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Guerreiro Ramos e a redenção sociológica: capitalismo e sociologia no Brasil (página 7)

Edison Bariani
Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10

Otários, à época, para ele, seriam quase todos.[275]

IV – A utopia desarmada

"A ciência social e, portanto, também a ciência administrativa

nada significam sem um engajamento com valores humanísticos."

Guerreiro Ramos

Após o golpe de 1964, Guerreiro Ramos teve seu mandato de deputado federal e os direitos políticos cassados.[276] Perseguido, foi abrigado por Luiz Simões Lopes (ex-presidente do DASP), então presidente da Fundação Getúlio Vargas, na qual – com o financiamento de uma bolsa da Fundação Ford – trabalhou e escreveu Administração e estratégia do desenvolvimento: elementos de uma sociologia especial da administração (publicado em 1966). Interrompido seu envolvimento com a política nacional, que se intensificava desde 1953 (quando trabalhou na Assessoria de Vargas), encontrou a proteção econômica e institucional no lugar que o havia acolhido quando – naqueles difíceis momentos após sua saída da Universidade do Brasil (nos anos 1940) – foi preterido na carreira universitária, acusado de colaboração com o integralismo: na administração pública. O tecnicismo e a proteção corporativa ressurgiam como tábua de salvação para as tormentas da política.

Imediatamente, é como se Guerreiro Ramos recuasse aos anos 1940, retomando temas e questões há muito relegadas e tratando dos problemas com certo distanciamento técnico que já não lhe era peculiar. As condições exigiam-no, entretanto, Administração e estratégia do desenvolvimento será, daí em diante, para sempre um filho malquisto.[277] Nele, Guerreiro Ramos esboça uma sociologia especial da administração e volta-se para temas como burocracia, estratégia, formalismo, etc.; não fosse a profundidade de abordagem de certos temas, a erudição e o enciclopédico conhecimento do autor a respeito do tema, poder-se-ia tomá-lo – devido à forma do texto, à quantidade de autores relacionados e o didatismo da argumentação – como um manual. Não o é, malgrado o desapreço do autor pela obra, é um livro que acerta algumas contas com o passado e retoma uma temática anterior de maneira nova, dando início a um outro momento de sua produção, agora voltado à teorização a respeito da administração e das políticas públicas; mais técnico, menos intensamente político, privilegiando a teoria em desfavor do pragmatismo nacionalmente engajado. O peso do contexto não permitia grandes manobras.

Em Administração e estratégia do desenvolvimento, uma questão adquire circunstancial importância: "a burocracia pode ser agente ativo de mudanças sociais?" (RAMOS, 1966, p. 245). De início, Guerreiro Ramos repõe a questão numa outra base teórica, alertando para o fato de que a "burocracia não tem natureza, tem história. Conferir-lhe atributos fixos e imutáveis é incidir num erro de perspectiva histórica" (RAMOS, 1966, p. 264, grifos nossos), ou seja, seria equivocado dotá-la de predicados inerentes, julgá-la por si mesma positiva ou negativa, autônoma ou submetida, conservadora ou progressista. O que não o impede de analisar-lhe o papel e status, demarcando (como setor) os limites de sua posição e possibilidades de atuação na estrutura social:

A burocracia é agrupamento que, por força de seu lugar na estrutura social, jamais logra impor suas próprias diretivas à sociedade em geral. Isso não quer dizer que a burocracia não possa exercer um papel modernizante. Na verdade, pode, e a história tem dado prova disso. Mas o seu papel modernizante apresenta-se-lhe sempre como uma chance, um "acidente estatístico" da história, da conjuntura de poder. (RAMOS, 1966, p. 274).

Se a burocracia não desfruta de estatuto político que a capacite à universalidade de empreendimento como portadora de um projeto, entretanto, em determinadas conjunturas, poderia adquirir certa "autonomia" política e motivação que, nessas condições, seria direcionada num dado sentido. O resultado, porém, seria nocivo:

Quando a burocracia adquire orientação política autônoma, debilita-se a estrutura social, "aristocratizando-se", e tende à "exploração parasítica" dos recursos econômicos. É dizer, na história decorrida e em curso, a política espontânea da burocracia tem sido essencialmente predatória e conservadora e jamais modernizante. (RAMOS, 1966, p. 275, grifos do autor).[278]

No mais, a atuação da burocracia estaria sempre submetida às diretrizes de um grupo superior – capaz de construir um projeto – que legaria àquela a possibilidade de ação. "A execução direta de toda estratégia administrativa modernizante é sempre tarefa de elite, nas condições atuais de nossa época" (RAMOS, 1966, p. 280, grifos do autor). Cabalmente, para ele: "A burocracia como agrupamento social jamais se torna sujeito do poder político [...] Não existe burocracia dirigente" (RAMOS, 1966, p. 328).

Adverte, todavia, que se por um lado a burocracia poderia exercer efetivamente uma função modernizadora e colaborar decisivamente para a superação de obstáculos ao desenvolvimento, embora não como protagonista principal da mudança, por outro, as "características de uma burocracia que, alguma vez, desempenhou funções modernizantes, são sempre "a posteriori", "post festum", e, por isso, têm escasso valor normativo ou estratégico. As normas da autêntica estratégia administrativa são coetâneas às ações e ao desempenho administrativo" (RAMOS, 1966, p. 299, grifos nossos).

As constatações anteriores não lastreariam "cientificamente" uma deliberada intervenção modernizadora, já que só a experiência adquirida daqueles fatos, em contextos determinados, poderia indicar o papel modernizador da burocracia; antecipadamente, não haveria como detectá-lo. Ademais, o escopo das ações da burocracia reduzir-se-ia a realizações circunstanciais e operacionais da rotina administrativa, não de efetiva direção política – tarefa, novamente, de elites.

Se todo experimento sociopolítico só se consolida na prática e não há resultado a priori, os efeitos só poderiam ser significativamente entendidos com a efetivação, todo progressismo ou conservadorismo só se definiria realmente na ação num dado contexto (e numa certa perspectiva), nunca discursivamente, "em abstrato"; todavia, seria ainda possível uma prospecção racional a respeito das potencialidades e implicações dos projetos. A elaboração de Guerreiro Ramos trata não somente da dificuldade de intelecção da eficácia da ação e do projeto, mas também da incapacidade – por parte da burocracia – de indicar rumos precisos e determinados aos processos modernizadores.

A burocracia estaria circunscrita ao âmbito da racionalidade (WEBER, 1982), dos negócios rotineiros do Estado (SCHÓFLLE apud MANNHEIM, 1972) e alijada da esfera da criação, da política, do irracional (MANNHEIM, 1972).

Na insegurança do período (pós-1964), com a perplexidade, a busca de "culpados" pelo acontecido, o advento das previsões catastrofistas de estagnação econômica e retrocesso político (cf. FURTADO, 1979)[279] emergem – para Guerreiro Ramos – as incertezas em relação ao regime, ao momento histórico (e à própria vida do autor) e suas possibilidades; pelas frestas do incerto vem à tona o desânimo com as forças políticas consideradas progressistas, com o potencial transformador desses sujeitos políticos e até mesmo uma incômoda suspeita: aquele regime pós-1964 (e sua tecnocracia) que se instaurava (autoritário, excludente e conservador), a posteriori, poderia mostrar-se modernizante; isto é, já não parecia seguro que as mudanças na sociedade brasileira teriam necessariamente como herdeiras as forças progressistas, um outro tipo de mudança que não a sonhada revolução brasileira poderia ser possível e o capitalismo consolidar-se-ia no Brasil por outros meios que não o autônomo e nacional – como outros viriam a indicar em 1969 (CARDOSO; FALLETO, 1975).

Essa modernização configurar-se-ia mais tarde como o fôlego do regime e a esfinge para a esquerda, modernização essa muito peculiar (conservadora, pelo alto), mas que desafiava uma geração de intelectuais que se acostumou a pensar o desenvolvimento e a modernização capitalista como processo relativamente inexorável, evolutivo, e a face mais visível da democracia, cidadania e soberania. Ilusão que o tempo se encarregaria de destruir.

Para Guerreiro Ramos, razão e modernização já não eram convergentes. O desenvolvimento mostrava suas outras faces (algumas perversas) e contradições. A política continuava uma amante infiel. Assim, devido à desilusão – do servidor com a impotência e o amesquinhamento privatista da burocracia, do sociólogo com o descompromisso da Inteligência com o país, e do político com a baixeza do jogo do poder – Guerreiro Ramos exilar-se-á, distanciando-se da política e pondo em causa a razão (instrumental) e sua aptidão para uma transformação positiva, não mais pensada em termos de modernização, mas sim de humanização (RAMOS, 1989).

A partir daí, o autor deixa em segundo plano o processo político do desenvolvimento nacional e passa a ocupar-se da modernização como "modalidade de mudança social menos espontânea do que deliberada", cuja teoria teria por objeto "um fenômeno dotado de especial carga volitiva" (RAMOS, 1966, 140-1).[280] A ênfase na ação devia-se à tentativa de diferenciar-se dos teóricos da modernização, então na berlinda, os quais não desprezava, mas incomodava-o o caráter prescritivo e a-histórico da maioria das análises, além de certa preocupação normativa (ou de receituário, às vezes); também enfatizando a ação, o autor penitenciava-se do – forçado – distanciamento político, dando força a uma retórica que só demonstrava a fraqueza da práxis.

A modernização, como processo (escassamente definido) de ingresso na modernidade, ostenta a partir daí – nas formulações do autor – um caráter mais geral, mundializado e não-nacional. Em artigo escrito em 1967 ("A modernização em nova perspectiva: em busca do modelo da possibilidade") – já no exílio nos EUA, como professor visitante da Universidade do Sul da Califórnia – o autor, após afastar-se do conceito de fase, esboça uma noção de etapa como período histórico-comparativo e não como realidade empírica, um tipo-ideal, no sentido weberiano (RAMOS, 1967, p. 136-7); usa-o no sentido de instrumentalizar uma outra abordagem da história, agora em termos de uma concepção típico-ideal baseada na possibilidade objetiva ("Teoria P"), em contraposição a uma concepção baseada na necessidade ("Teoria N"). Conforme a opção que faz pela primeira, a evolução histórica e seus condicionantes estariam postos de acordo com as possibilidades (objetivas) de realização histórica. Assim, a caracterização básica relativa à modernização:

1) pressupõe que a "modernidade" não está localizada em qualquer lugar do mundo precisamente; que o processo de modernização não se deve orientar segundo qualquer arquétipo platônico; e, 2) sustenta que toda nação, qualquer que seja sua configuração presente, terá sempre possibilidades próprias de modernização, cuja efetivação pode ser perturbada pela sobreposição de um modelo normativo rígido, alheio àquelas possibilidades (RAMOS, 1967, p. 9).

Desse modo, faz considerações que recolocam alguns problemas em novas bases, a saber: 1) seria errôneo nessas condições utilizar termos como países "desenvolvidos" e "subdesenvolvidos", ou "pioneiros" e "seguidores", sendo mais correta a distinção entre nações hegemônicas e periféricas; 2) todas as nações seriam influenciadas por um supersistema, a economia mundial, ou a sociedade mundial, cuja dinâmica seria superposta à de qualquer sistema nacional isolado; 3) a modernidade, sendo algo "ecumênico e universal" não estaria segregada geograficamente no mundo, daí que "do ponto de vista político, qualquer forma de provincialismo ou nacionalismo, hegemônico ou periférico, representa, em última análise, um obstáculo à modernização"; 4) a modernização seria um preocupação constante para os cientistas sociais e deveria ser por esses não somente compreendida, mas conduzida, para tanto, deveriam ocupar-se mais de conceitos operacionais do que de prescrições, esforçando-se no sentido de uma estratégia da modernização (RAMOS, 1967, p. 39-42).

Empreende, assim, uma crítica das teorias que enfocam a mudança social com base numa linearidade histórica pretendida por algumas teorias da modernização, que identificariam o alcance da modernidade como o trilhar determinado percurso que levaria à posição dos países "desenvolvidos". Em contrapartida, Guerreiro Ramos afirma o destino histórico "aberto" e próprio de cada país, por meio de uma teoria que aborda a transformação como horizonte de possibilidades (objetivas). A esperança na peculiaridade e na construção de rumos históricos próprios não se alicerça mais no culturalismo de Danilevski, mas em Weber e na leitura deste por alguns teóricos norte-americanos; resgata, ademais, a categoria de "mundo", porém relativamente esvaziada de seu conteúdo existencial e definida agora em termos de uma abordagem sistêmica. Os novos ares já influenciam Guerreiro Ramos: o nacionalismo é subjugado às determinações do sistema mundial e torna-se mesmo obstáculo à modernização; a transformação social perde sua imanência histórica e adquire aspecto de estruturação, de controle de variáveis; a política perde espaço para a técnica; a teoria distancia-se um pouco da prática e é agora menos revelação histórico-existencial de problemas e mais organização conceitual estrito senso; por fim, os intelectuais, antes postos a reelaborar como projeto os anseios do povo, são chamados novamente, agora em novo contexto, a tomar decisões como dirigentes e não como intelligentzia, entretanto, não são mais os organizadores da nação ou vanguarda do povo, estão mais próximos de uma tecnocracia. A revolução e o povo saem de cena, dando lugar aos libelos da crítica em termos de tecnologia social.

Manifesta-se, então, a respeito da conturbada relação entre intelectuais e Estado:

No Brasil – e em outros países latino-americanos – a extrema rigidez da estrutura social, e sua capacidade para absorver os setores médios, precisa ser considerada quando se tenta explicar a hipertrofia dos quadros burocráticos. Tal hipertrofia é o resultado necessário de certa cooptação inconsciente exercida pelo sistema social brasileiro no sentido de acomodar aqueles que porventura ameacem sua estabilidade, alienando-os completamente.

[...]

Aqueles bacharéis que não encontram emprego no setor privado da economia exercem pressão sobre o governo na busca de ocupações e meios de subsistência. O governo, em todos os níveis, é forçado a prover os serviços públicos com pessoal além de suas reais necessidades, sacrificando então sua eficiência, mas ao mesmo tempo evitando uma situação na qual as pressões poderiam alcançar um ponto crítico. (RAMOS, 1971, p. 65).[281]

O intelectual compromissado denunciava a cooptação não simplesmente em defesa da integridade da Inteligência, nem pelo ponto de vista da sociedade civil – numa eventual condenação à falta de independência ou à proximidade com o Estado –, mas indignando-se com o clientelismo, o parasitismo exercido por aqueles que buscavam "colocações". O vértice desse ponto de vista não é a função do intelectual, nem mesmo a moralidade ou o cinismo, é, paradoxalmente, ainda o próprio Estado e sua racionalidade.

Embora Guerreiro Ramos só se refira aos equívocos dos governantes e militantes políticos, os acontecimentos de 1964 e o que se seguiu ao Golpe, estremeceram-lhe a fé no povo como sujeito político. Também a irrealização de possíveis tarefas históricas o faz duvidar da própria existência de uma sociedade civil e de "verdadeiras" classes sociais nos países latino-americanos é questionada:

[...] a existência de verdadeiras classes sociais – classe dominante, burguesia industrial, burguesia dos campos, proletariado, classe média – é muito discutível. Autores rigidamente presos a esse enfoque apresentam situações quiméricas como se fora a realidade dos países latino-americanos. Os entes políticos latino-americanos parecem permitir melhor compreensão se explicados em termos de, por exemplo, aspirantes ao poder, atores, do que em termos de classes estratificadas. Da mesma forma, muito autores dão por suposto que os países latino-americanos já são verdadeiras sociedades, ou, em outras palavras, que em todo país latino-americano existe a dicotomia Estado versus sociedade, tal como se verifica nos países cêntricos. (RAMOS, 1983b, p. 59, grifos do autor).

Antes central, a questão da transplantação também se modifica: os acentos nacionais e políticos, de construção da nação e realidade existencial são afastados, e passa a ser tratada conforme a adequação lógica e funcional a contextos teóricos; o autor refere-se a "transferência de conceitos", para "os casos nos quais é pertinente e adequada a tentativa de examinar o problema segundo um modelo tomado de empréstimo de uma situação diferente, porque ambos possuem realmente características análogas", e "uso inadequado de conceitos", para os casos nos quais um modelo é tomado de empréstimo, sem observar a indisponibilidade do uso (RAMOS, 1973, p. 6). Se a nação já não é uma categoria central e estaria mesmo "rapidamente se tornando inviável como categoria de análise" (RAMOS, 1983b, p. 51), a transplantação no sentido anteriormente atribuído, a saber, de deslocamento de idéias para uma realidade nacional alheia, é agora destituída de sentido. Para Guerreiro Ramos, frente à vigência de um sistema único, "faz-se mister uma ciência social global" (RAMOS, 1983b, p. 51), desse modo, soterra qualquer resquício de realização de uma sociologia nacional.

Um outro aspecto da transplantação, a importação de instituições e condutas despregadas do devido contexto, aplicados conforme uma concepção formal, passa a ser tratada como uma questão autônoma, que denomina formalismo. Desde Administração e estratégia do desenvolvimento e, principalmente, em "Latent functions of formalism in Brazil",[282] o autor investiga as várias facetas do fenômeno do formalismo no Brasil, que se configuraria em estratégias: para lidar com o conflito social, de ascendência social conforme uma mobilidade vertical, de construção da nação e de articulação da sociedade periférica com o resto do mundo (RAMOS, 1971, p. 80); assim, o formalismo (identificado nas relações e instituições sociais brasileiras) seria, em seu sentido principal, não uma característica bizarra, nem um traço de patologia social nas sociedades periféricas, mas uma reação "normal", que refletiria a estratégia global conforme a qual sociedades tentam emergir de seu atual estágio de desenvolvimento. Isto posto, seria, nas sociedades periféricas, "uma estratégia de mudança social, imposta pelo caráter dual de suas formações históricas e pelo modo particular como essas sociedades se articulam com o resto do mundo" (RAMOS, 1971, p. 62).

O formalismo, que – anteriormente – ao nível nacional aparecia como uma forma de alheamento, de inautenticidade, de importação de formas, desta feita, num contexto de sistema mundial, torna-se uma legítima manobra – obviamente não plenamente consciente – para lidar com as circunstâncias do "atraso", isto é, da diferença (comparativa) de estágio de desenvolvimento no interior de um mundo que já estaria organizado como sistema ("único e completo") devido aos efeitos da tecnologia (RAMOS, 1983b, p. 36).[283]

A partir da década de 1970, advém como questões centrais para o autor a crítica da centralidade social do mercado como instituição estruturante da sociabilidade em geral e destituída de controles políticos, tendo na razão organizacional a sua legitimação funcional. Tais preocupações refletem-se em alguns artigos (cf. RAMOS, 1982, 1984), mas sua peça principal é seu último livro, escrito nos EUA e – custosamente – publicado no Canadá e no Brasil. Em busca da superação da ciência social contemporânea, A nova ciência das organizações – livro esboçado desde 1973 e só publicado em 1981 – liga-se à agenda de pesquisas norte-americana do período, todavia, se por um lado assume seus temas e problemas, por outro contraria severamente a abordagem, as referências teóricas e os argumentos mais aceitos pelo mainstream acadêmico.[284]

Inicia a árdua tarefa apoiando-se raízes na distinção entre racionalidade formal ou instrumental e racionalidade substantiva. A razão formal ou instrumental seria aquela baseada no "cálculo utilitário de conseqüências", na relação exclusiva entre meios e fins, caudatária da imposição funcional do mercado; a substantiva ou de valores resgataria a "razão como categoria ética" (Escola de Frankfurt), independe de cálculos utilitários e expectativas de êxito (Weber), e revelaria percepções inteligentes das inter-relações de acontecimentos numa situação determinada (Mannheim), propiciando a existência da boa sociedade (Eric Voegelin).[285] Segundo Guerreiro Ramos, "a racionalidade substantiva sustenta que o lugar adequado à razão é a psique humana [...] [que] deve ser considerada o ponto de referência para a ordenação da vida social, tanto quanto para a conceituação da ciência social em geral" (RAMOS, 1989, p. 23).

Guerreiro censura agora Weber e Mannheim – ambos por não terem levado adiante a distinção crítica entre as formas de racionalidade (RAMOS, 1989, p. 4-7) – e passa a buscar subsídios para a tarefa também em outros autores (Escola de Frankfurt, Hanna Arendt, Eric Voegelin, etc.). A partir da crítica da razão, investe contra a ciência social estabelecida, que se assentaria na racionalidade instrumental – característica do sistema de mercado – e teria estendido à cognição as formas de sociabilidade organizadas por esse sistema.[286]

A ciência social moderna foi articulada com o propósito de liberar o mercado das peias que, através da história da humanidade e até o advento da revolução comercial e industrial, o mantiveram dentro de limites definidos [...] A moderna ciência social deveria, portanto, ser reconhecida pelo que é: um credo, e não verdadeira ciência. (RAMOS, 1989, p. 22).

Essa ciência seria uma "ideologia serialista", isto é, difundiria a "noção de que a história revela seu significado através de uma série de estágios empírico-temporais" (RAMOS, 1989, p. 39), tal concepção seria comum a liberais, marxistas, neomarxistas, etc. Mas, não seria mesmo aplicável à concepção faseológica da história que Guerreiro Ramos havia esposado?

A ciência social então em voga, segundo Guerreiro Ramos, seria também uma "ciência cientística", partiria "da premissa de que a correta compreensão da realidade só pode ser articulada segundo o modelo da linguagem técnica da ciência natural. Sob esse enfoque, a realidade é reduzida apenas àquilo que pode ser operacionalmente verificado" (RAMOS, 1989, p. 42). Desse modo, os aspectos se conjugam: "a própria ciência social cientística é produto de uma posição serialista em relação à realidade", e mais, retomando posições anteriores (e potencializando-as), cerra fogo contra o puritanismo científico, ao afirmar que "método e técnica não são padrões de verdade e de adequado conhecimento científico" (RAMOS, 1989, p. 42).[287]

Empreende, assim, uma crítica generalizante, concluindo que "a despeito de suas reivindicações isentas de conceitos de valor, a ciência social contemporaneamente é normativa, à medida que, na teoria e na prática, nada mais é do que um corpo de critérios de análise e planejamento de sistemas sociais induzidos a partir de uma configuração histórica particular" (RAMOS, 1989, p. 195, grifos do autor), a saber, a de alguns poucos países do Ocidente e a trajetória que eles tomaram. Guerreiro Ramos ainda respondia às críticas feitas à sociologia que praticava apontando a falsa objetividade que os adversários cultuariam.

Adverte, então, que a deliberada distinção entre uma ciência social baseada na razão instrumental ou na razão substantiva...

[...] não deveria ser considerada um exercício didático: propõe um dilema existencial a quem quer que escolha ser um cientista social. Na verdade, em geral, a opção por uma ou outra das pontas do dilema não é consciente, mas é feita para os indivíduos através de sua socialização em meios acadêmicos, que por sua vez operam no contexto dos parâmetros institucionais que prevalecem no Ocidente. (RAMOS, 1989, p. 194).

Aqui aflora o sentido da crítica da terceira modalidade da redução sociológica: "a superação da ciência social nos moldes institucionais e universitários em que se encontra" (RAMOS, 1989, p. XVI). A nova ciência, baseada na razão substantiva, deveria ter como pressuposto fundamental "que a produção é, ao mesmo tempo, uma questão técnica e uma questão moral" (RAMOS, 1989, p. 199)[288] e, daí "libertar-se de sua obsessão com o desenvolvimento, e começar a compreender que cada sociedade contemporânea está potencialmente apta a se transformar numa boa sociedade, se escolher se despojar da visão linearista da história" (RAMOS, 1989, p. 196, grifos nossos).

Cumpriria fundar uma ciência multicêntrica e não focada no sistema de mercado, embora advirta que o modelo alternativo de ciência proposto não seria "antimercado", vez que não estaria proposta "a eliminação do mercado como sistema social funcional" (RAMOS, 1989, p. 195). Essa nova ciência englobaria uma preocupação com o aspecto moral e não somente técnico da produção, com a produção intensiva e industrialização descontroladas, com a questão ecológica e a sanidade psicológica dos indivíduos. Como paradigma para uma nova ciência livre dos vícios indicados, propõe um modelo multidimensional, a "teoria da delimitação dos sistemas sociais".[289] Era o derradeiro fim da febre desenvolvimentista e o início da "utopia" humanista. A crítica culminava em autocrítica.

E o Brasil? Guerreiro Ramos, outrora um analista tão apaixonado, teria riscado o país de sua agenda de pesquisas? Absolutamente não, em textos circunstanciais e entrevista, bem como num breve período que esteve como professor da Universidade Federal de Santa Catarina, abordou a situação do país, não sem certa mágoa.

Por ocasião de um seminário internacional sobre os acontecimentos de 1930 no Brasil, o autor voltou às críticas que caracterizaram desde a década de 1950 sua leitura da produção teórica brasileira e seus sujeitos, passou em revista o pensamento social no Brasil com base na diferenciação entre a hipercorreção e o pragmatismo e sentenciou que a história da cultura no Brasil seria ainda uma sucessão de importações, seríamos mesmo a essa altura apenas consumidores de ciência importada e estaríamos ao sabor dos ventos da última moda. Os intelectuais no Brasil, em regra, estariam sempre sob o signo da cooptação, jamais na história brasileira os intelectuais teriam se sentido excluídos, daí o fato – segundo ele – de que também nunca teria havido uma verdadeira intelligentzia contestadora no Brasil. Mais ainda, o próprio projeto de modernização no Brasil deu-se sob o signo da decadência, como atrelamento do país à decadente sociedade ocidental, a própria modernidade seria uma "ideologia da decadência" (1983a). Em seu último artigo, escrito em 1982 ("Curtição ou reinvenção do Brasil"), reclama da dificuldade em "distinguir entre aparência e realidade" no Brasil, alerta para o aspecto "trágico" da situação do país e reafirma que este "nunca deixou de ser um país colonial" (RAMOS, 1986, p. 3).[290]

Finalmente, em entrevista em 1982, pouco antes de sua morte, afirmou "é preciso reinventar a civilização brasileira, em termos de elementos permanentes, não de elementos modernos", livrar-se do estigma da decadência já que a sociedade industrial haveria sido um "fiasco". Também os intelectuais, constituintes que seriam de uma "oligarquia", não escapam da ferocidade do autor, ressalta-lhes o arrivismo e a submissão (OLIVEIRA, L., 1995, p. 180).

As referências à condição do negro escasseiam nesse período, ainda denunciava o preconceito no Brasil, mas, curiosamente, dizia sentir-se aceito nos EUA, onde desfrutaria – segundo ele – de uma condição privilegiada, "incolor", e teria o reconhecimento que aqui lhe negavam (OLIVEIRA, L., 1995, p. 176).

Dilacerado entre a mágoa pelo não reconhecimento intelectual e acadêmico e o aborto de suas convicções políticas de um lado, e o amor pelo país de outro, ao final chegou ao limite de desabafar: "este país é uma merda!".[291]

Entretanto, reconsiderou....

Não nascemos no Brasil por deliberação. Mas isso não é escusa para escolher o rumo da capitulação. Mais inteligente é aceitá-lo como destino e com espírito de grandeza, posicionamento sem o qual seria impossível o sucesso de qualquer tentativa de salvar o fenômeno brasileiro. (1983a, p. 547).

Frustrada a redenção só restaria a resignação, um tanto indignada, mas ainda a resignação.

V – O saber (re)velado

"Vivo dialeticamente."

Guerreiro Ramos

Quando estudamos a polêmica entre Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos, procuramos caracterizar tal enfrentamento não apenas nos termos de uma querela intelectual, interessava-nos a dimensão de projetos que adquiriram as formulações dos autores, nesse rumo, ao final, impunha-se uma questão que veio a se tornar hipótese deste trabalho, a saber:

A aspiração à construção de um saber social (e sociológico) original, radicalmente enraizado nesta formação social é não somente contemporâneo ou paralelo mas, sobretudo, convergente com as aspirações e projetos de construção de um capitalismo autônomo e nacional no Brasil do séc. XX, seus sonhos de autonomia e desenvolvimento são comuns, suas frustrações também. (BARIANI, 2003a, p. 97).

Guerreiro Ramos foi quem melhor encarnou essa voracidade pelo original, essa busca frenética pelo enraizamento social (nacional) da sociologia; seguindo agora a sua trajetória, ocupamo-nos em tentar – usando as próprias palavras do autor – "fixar um momento importante da evolução cultural do Brasil, quando uma vida humana se faz matéria em que um determinado "tempo" histórico impregna o seu sentido" (RAMOS, 1957b, p. 216).[292]

A trajetória de Guerreiro Ramos (a totalidade tensa e dinâmica de sua vida, obra, práxis) representa – senão de modo exemplar, ao menos de forma original e fecunda – significativamente, um momento um tanto controvertido e complexo da sociedade brasileira, que buscamos interpretar conforme os marcos históricos e o horizonte de perspectivas dos sujeitos, já que – nas próprias palavras do autor, que remetem a Lucien Goldmann – "se não há esperança de um aprisionamento definitivo da realidade social, num sistema, há sempre, em cada época, um máximo de consciência possível da realidade, que se pode atingir" (RAMOS, 1996, p. 183). Esse máximo de consciência possível[293]não denota aqui uma exigência e sim um parâmetro, uma medida (limítrofe) para lidar com a temporalidade histórico-social e a consciência, pois a história não é um tribunal, e analisar o pensamento social não é levar um sujeito intelectual ao banco dos réus, ao altar ou ao panteão.

A primeira metade do século XX no Brasil marcou a formação do proletariado e a ascensão da burguesia como classe dominante, embora alguns – entre eles Guerreiro Ramos – criam que esta não fosse propriamente "dirigente", já que não possuiria a representatividade ideológica e o pleno controle do processo político.[294] 1930 marca não só o efetivo domínio burguês, o reconhecimento dos oponentes proletários e as preocupações com as tensões geradas, marca também a ascensão de setores sociais intermediários como sujeitos políticos, circunstancialmente qualificados por suas posições relativamente estratégicas para garantir alguma estabilidade no delicado equilíbrio na balança do poder.[295]

A influência desses setores intermediários não provinha decisivamente da pequena burguesia que, embora contando com um setor relativamente moderno e destacados personagens políticos desde o séc. XIX, sempre foi economicamente débil e pouco expressiva politicamente – enquanto classe – devido às características do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, dentre elas, a escassa importância dos pequenos negócios (pequena produção e pequeno comércio) na estrutura econômica, desde logo dominada pelos grandes negócios monopolistas e oligopolistas (SAES, 1986, p. 449).[296] No geral, essa pequena burguesia asseverava posições conservadoras, dada sua submissão ao padrão burguês de dominação: excludente, elitista, anti-democrático e defensor ferrenho de uma concepção da propriedade privada como forma de afirmação perante a sociedade civil e o Estado, derivado da herança escravista e discriminatória – calcada na necessidade de renda (e propriedade) para efetiva participação política. Alguns desses quadros pequeno-burgueses mais modernos (profissionais liberais, mormente), que contavam com seus instrumentos de produção, mas eram destituídos de propriedade de meios de produção empregáveis como capital, alinharam-se à classe média.

Formada na primeira metade do século XX e consolidada socialmente nos anos 1950, a classe média, grupo social urbano ligado aos setores mais avançados da produção (indústria e novos serviços), ocupações técnicas, administrativas, militares, funcionários públicos, etc., não estava obrigatoriamente ligada à defesa da propriedade privada e dos privilégios "estamentais", sua existência e experiência eram produto (ainda que recente) da modernização – e das contradições desse processo. Nutria, sem dúvida, anseios de ascensão social, mas as rígidas e "estamentais" condições anteriores à emergência do "mercado de oportunidades" para tal mobilidade (compromissos com as classes dominantes, clientelismo, fisiologismo, apadrinhamento, favorecimento), já não eram tão férreas; adquirindo formas conjunturais e localizadas, tais relações arcaicas já estavam combinadas com outras mais modernas (impessoalidade, competência, competição e demais relações advindas da racionalização e do mercado de trabalho em formação). Se havia relações de dependência pessoal para colocações profissionais, busca de melhoria de nível de vida e participação política (localizadas), por outro lado, essas circunstâncias já não eram determinantes quanto à sobrevivência social dos indivíduos pertencentes a essa classe média. Não eram mais agregados, estavam configuradas algumas formas de inserção tecnicamente qualificadas na produção social, além disso, emergia um tipo de Estado que já se pautava por ainda incipientes padrões burocrático-racionais e admitia (e ampliava) espaços públicos e oportunidades de emprego, garantindo-lhes, assim, certa "autonomia" e margem de manobra.

Possuía já essa classe média – em seus primórdios – um histórico de posicionamento político: seja nos fatos relacionados ao Tenentismo, ao Movimento de 1930 e ao Estado Novo, seja na militância integralista ou comunista. Agora, no início da segunda metade do séc. XX, tentava ganhar espaço social e político consignando apoio ao setor burguês que considerava progressista (o industrial), contra as oligarquias e outros setores da burguesia tidos como conservadores (comercial, bancário). Tinha a frágil percepção de que seus interesses seriam locupletados com o pleno domínio por parte da burguesia industrial e "nacional", a saber: aumento e complexificação do setor produtivo (indústria e novos serviços), ampliação de oportunidades, qualificação de emprego nos setores privado e estatal, promessas de reforma agrária – que supostamente frearia o êxodo dos trabalhadores do campo, considerado ameaça aos seus empregos, salários, acesso a bens e condição geral de vida. Cria – outrossim – que sua efetiva participação política poderia se ampliar e ganhar qualificação se organizasse e intensificasse sua presença e intervenção nas instituições políticas públicas, desse modo, a defesa do Estado e da nação, confundia-se com a busca de prestígio e defesa de privilégios e oportunidades no funcionalismo público.

Carregava consigo a herança elitista do orgulho da ocupação intelectual (e suas promessas de oportunidade) e a aversão ao trabalho manual (resíduo escravista), daí sua preocupação com a educação – particularmente a pública, a qual lhe era facilitado o acesso, não só em termos de qualificação profissional e intelectual, mas, também, como forma de distinção social. Havia, concomitantemente aos anseios de ascensão social, o medo da proletarização e da perda de status numa sociedade na qual a pirâmide social sempre teve uma base amplíssima e um topo de agudíssimo ângulo – particularidade de uma modernização tardia, cujos processos de mobilidade social (ascendente e descendente) ocorriam de modo simultâneo e socialmente difuso. Por vezes, encarava a classe trabalhadora como o inimigo oculto, denotando forte preconceito moralista,[297] porém, acreditava que o alargamento de sua influência derivaria também da ampliação da sociedade política e, conseqüentemente, de certa democratização das formas de decisão, o que tornava os proletários possíveis aliados – se circunstanciais e tutelados – nessa jornada.[298]

Os aliados potenciais seriam, assim, a burguesia industrial e o proletariado de extração urbana; os trabalhadores do campo – profissionalmente desqualificados para novas formas de ocupação, alijados de uma educação mínima, politicamente submetidos ou manipulados, negligenciados pela cobertura e efetiva aplicação das leis trabalhistas e formas de proteção social – não ofereciam suficiente atrativo como aliados e, não bastasse, ainda pairavam ameaçadores sobre a classe média (e sua interpretação eivada de preconceitos), que os tomava por sua história política de subjugação e estertores de violência e fanatismo, inabilidade de "participação" política, composição "racial" demasiado heterogênea e hábitos migratórios em direção às cidades quando da inviabilização da vida no campo. Eram identificados com o atraso, com o Brasil que queriam deixar para trás.

Todavia, o medo da proletarização e perda de status[299]levavam a classe média a evitar ser confundida com os "de baixo" e a pleitear, juntamente com outras reivindicações de caráter mais geral, concepções e formas de intervenção elitistas e hierárquicas: tratamento político diferenciado, favorecimento na representação institucional, espaço na organização partidária elitizada, privilégio de formação como quadros técnicos e burocráticos, e, até mesmo, reivindicar primazia no assunção do papel de intelligentzia.

Heterogênea, permeada por contradições, pressionada por cima e por baixo, a classe média oscilava politicamente – às vezes de modo abrupto – entre a esquerda e a direita, reivindicando a distinção, a defesa de privilégios, a representação e, por outro lado, a ampliação das oportunidades de participação política e na distribuição da renda, abrindo espaço – inadvertidamente – também para alguns setores subalternos. Não havia, então, dois campos políticos internos claros, mas uma polarização volátil entre posições, conforme a conjuntura política e o peso político das classes antagônicas (burguesia e proletariado); daí suas variações de rumo – avanços sociais e democratizantes, defesa de privilégios e conservadorismo. Daí, também, sua aversão às posições políticas radicais ou polarizadas – que apontariam no sentido do esfacelamento de sua influência ou, no limite, da ameaça à sua sobrevivência – e suas atitudes de não apoiar majoritária e resolutamente o socialismo nem a contra-revolução burguesa, nem se unir decisivamente às classes subalternas (e aceitar a hegemonia do proletariado no processo de contestação), e nem se juntar organicamente à reação burguesa.[300] Externamente, também se via pressionada a tomar posições. Opunha-se ao domínio do capital "externo" e à intromissão dos países centrais, mantinha considerável distância do imperialismo e do comunismo, e comungava uma pretensa terceira posição, em conformidade com sua auto-imagem no contexto social do país e com a ponderação predominante na herança diplomática brasileira: o neutralismo – como recusa aos EUA e à URSS – seria a forma de expressar essa posição.

Uma das formas que a classe média no Brasil encontrou para participar politicamente – de modo qualificado e elitista, sem confundir-se com a massa, longe do trabalho manual, próximo dos centros decisórios (mormente o Estado) e sem radicalização política – foi a postulação do papel político da intelligentzia: caracterizada sempre por proposições e não por atitudes severas contra o poder, seu modo de atuação era de um ator privilegiado, consciência do processo político e organizador de interesses diversos em busca de uma síntese (ou uma conciliação), malgrado o descontentamento de determinados setores ("arcaicos"), cujos interesses seriam absolutamente incompatíveis com o avanço.

A proeminência do nacionalismo desse período[301]– como ideologia e projeto político – é em muito devedor de uma visão de mundo cujas raízes remontam a essa classe média.[302] Não que tenha sido apanágio exclusivo dessa classe, sem dúvida teve manifestações particulares em outros grupos, no entanto, a forma do nacionalismo que prevaleceu no Brasil, no transcorrer do séc. XX, mormente naqueles anos 1950 até o ponto de viragem de 1964, foi eminentemente de classe média. Um nacionalismo menos xenófobo que de proteção contra as inseguranças geradas pela exteriorização de algumas formas decisórias, cuja dinâmica implicava mais na "salvação" da classe média – proteção contra os inconciliáveis tormentos gerados pelo avanço do capitalismo monopolista mundial quanto do internacionalismo proletário. Proteção não contra o inimigo externo, e sim contra a insegurança da transformação abrangente que tais sujeitos (e ideologias) externos representavam, haja vista o caráter mais propriamente econômico que político que, na maioria das vezes, assumiu este nacionalismo, ao qual cumpria resguardar a sobrevivência em vez de intervir seriamente nos rumos do país no cenário mundial, avançar preservando o modo de vida e sem desfazer-se dos "atalhos" políticos de efetivação de interesses (elitismo, favoritismo, personalismo, fisiologismo, compadrismo, etc.).

Havia, por parte desse nacionalismo, formas de contestação política mais ou menos intensas contra o predomínio econômico do capital estrangeiro que, sob as hostes do imperialismo, escoava recursos nacionais para fora e punha em sobressalto os que temiam pela viabilidade da modernização capitalista no Brasil, e não compreendiam que, de longa data, a associação com o capital estrangeiro foi o mote do desenvolvimento do capitalismo no país. Desenvolvimento e industrialização como processos sociais de incremento e superação, de autonomia, tornaram-se lugares comuns, palavras mágicas de conteúdo providencial que, por vezes, chegavam a reunir em coro as mais variadas forças e setores sociais... Até o primeiro passo, quando ficava evidente que os modos como as entendiam e o quê pretendiam eram extremamente diferentes.

Em verdade, desenvolvimento e industrialização não eram nem a sonhada revolução social, nem a isca do imperialismo, eram formas de atualização do processo de reprodução ampliada (e mundial) do capital que, entrando em nova fase (monopolista), abria possibilidades de mudança nas forças produtivas sem necessariamente pôr de cabeça para baixo as relações de produção. Para a temerosa classe média, era parte do sonho de incremento produtivo e estabilidade social que poderia garantir sua sustentação econômica, melhoria de vida e participação política, desde que obstaculizada a voracidade do capital "externo", que supostamente ameaçaria a indústria nacional, as oportunidades dela decorrentes e o conseqüente desenvolvimento capitalista nacional. Note-se que, entre outros motivos, quando da percepção da viabilidade e compatibilidade do desenvolvimento econômico capitalista no Brasil (e mesmo oferta de oportunidades) sob a influência do capital internacional, o ânimo nacionalista dessa classe média arrefeceu severamente – daí a aprovação ao "milagre econômico" do início dos anos 1970 e a corrida às oportunidades de emprego na indústria multinacional.

Também a massificação da oferta (a despeito da qualidade) de bens sociais então escassos (educação, saúde, postos de trabalho, infra-estrutura urbana), se por um lado favorecia diretamente tal classe média, por outro, infligia-lhe medo a expansão "imprudente" dos benefícios, pois poderia "explodir" a ordem social com a inclusão dos proletários e chamar a atenção dos trabalhadores rurais, pondo em risco a frágil rede de proteção social. Desse modo, a defesa nacional dos investimentos públicos são bem-vindos quando criam novos postos e melhores condições sociais para essa classe média, mas têm como limite uma "alarmante" extensão dos bens a setores marginalizados; daí o cíclico clamor pela contenção dos gastos (e da dívida) públicos e o indefectível moralismo político – que apelava tanto à frugalidade de vida dos indivíduos, quanto à falta de parcimônia estatal – processo, por vezes, confundido com apelo liberal da classe média. As políticas públicas e a assistência social (uma instituição ainda hoje fundamental numa sociedade desigual e excludente) funcionavam em dupla mão: como amortecedores de conflitos (e forma de cooptação) e instrumentos de submissão política; se fruídos pela classe média (conforme sua própria visão) tornavam-se "bens", "direitos" sociais, já se tinham como beneficiários os "de baixo", os carentes, eram vistos como inspiradores de maus hábitos, assistencialismo, dilapidação do dinheiro público com os inextirpáveis vícios do caráter nacional, a preguiça e a mendicância.[303]

O campo privilegiado de atuação desse nacionalismo não foi seguramente a sociedade civil, o Estado é o lócus para onde se dirigiam os interesses e estratégias nacionalistas. Essa classe média, após 1930, estreitou laços com o Estado como forma de garantir posições e fazer valer sua intervenção política, já que era no campo estatal que conseguia – seja por meio de suas funções técnicas e burocráticas, seja pelas rotinas legais ou pelo clientelismo – participar de decisões. Se pensou suas soluções a partir do Estado, não é devido somente ao diagnóstico de entreguismo, do antinacionalismo que desposariam outros setores da sociedade civil, que embasa tal argumento, o Estado era o grande trunfo da sobrevivência política e econômica, que deveria ser conquistado para o êxito dessa classe média. Não era algo novo, tinha aí continuidade a herança de vários pensadores brasileiros que elaboraram projetos de cunho nacional emoldurando-os nas balizas do Estado ou mesmo a partir do Estado.[304] Este encarnava também, paradoxalmente, o bastião da luta republicana contra as oligarquias, contra o clientelismo, pelos direitos sociais, etc. O Estado era ainda – paradoxalmente – ator e arena privilegiados pelas forças da mudança, pela intelligentzia, que via neste o poderoso gigante no qual, uma vez instalados no alto de seus controles, podia-se dominar a liliputiana sociedade civil. [305]

A nação era identificada com a soberania, a autonomia de decisões governamentais e a internalização dessas decisões como prerrogativa do Estado; menos com a cultura, a cidadania, o sentimento do povo como pertencente a uma comunidade, e mais com a autodeterminação do Estado, sua soberania e independência com relação aos outros Estados e, no limite, à própria sociedade civil – quando emergem interesses não coadunados com os rumos nacionais delimitados, daí a demonização do "entreguismo" e a confusão do "público" com o "nacional".

Não obstante, diferentemente da concepção organizatória e construtivista da nação que predominou do início até a metade do séc. XX, e teve no Estado Novo seu ápice, agora nação e comunidade já não eram simplesmente sinônimos, havia já delimitação entre os grupos sociais, o que levava a pensar a nação como comunidade numa sociedade – terreno também de conflitos, que momentaneamente tomaram a forma de nacionalismo e entreguismo, "forças centrípetas versus forças centrífugas", "nação versus antinação" (Guerreiro Ramos). Entretanto, a aceitação da existência de tais conflitos não significava – para aquele nacionalismo – a aceitação da atualidade da luta de classes, a agenda impunha formar a nação e depois pensar suas contradições internas. A comunidade nacional deveria preceder a comunidade mundial, ainda que esta, adiante e em última instância, fosse discursivamente posta como preponderante (RAMOS, 1963).

A idéia de que esse nacionalismo escamoteava a luta de classes é equivocada, ela reconhecia-lhe a universalidade e importância, identificava classes e interesses distintos e mesmo contraditórios; negava-lhe, isto sim, a centralidade da luta de classes no momento histórico em questão, retirava-lhe atualidade, conferindo-lhe a tarefa nacional da internalização e publicização do centro de poder, em suma, da conquista da hegemonia pelo bloco histórico comprometido com a realização do projeto de capitalismo nacional e autônomo. Todavia, num contexto de capitalismo periférico, eram evidentes as vicissitudes desse nacionalismo para a tarefa, uma vez que faltava à classe média a capacidade de tornar-se classe hegemônica e liderar as classes subalternas num projeto nacional. Desse modo, a aposta recaiu sobre o direcionamento da burguesia industrial – por meio da direção intelectual da intelligentzia – para assumir suas tarefas nacionais: erro de cálculo que desconsiderou a conformação associada e dependente desse setor da burguesia aos interesses antinacionais.

Não obstante, o nacionalismo daí surgido não foi simplesmente uma farsa como querem alguns, talvez tenha sido mesmo uma tragédia, decorrida da derrocada das aspirações de conquistas democráticas, de cidadania, rotina de circulação no poder, rituais de escolha, conquistas trabalhistas, não-alinhamento imediato no contexto da "guerra fria", etc., questões essenciais para a sociedade brasileira e relegadas pela revolução burguesa com as quais – bem ou mal, decisivamente ou não – este nacionalismo defrontou-se.[306] Por outro lado, pelos seus erros de cálculo político e insuficiência ideológica, o nacionalismo deslocou algumas peças de resistência que poderiam ter feito diferente – senão inexistente – o 1964 e suas conseqüências.[307]

Ao analisar as transformações do nacionalismo, mormente na Europa entre 1870 e 1918, Eric Hobsbawn (1990, p. 152-3, grifos do autor) – insuspeito como nacionalista – concluiu:

Primeiro, que ainda sabemos muito pouco sobre o que significa a consciência nacional para as massas das nacionalidades envolvidas [...] mas antes disso, precisamos de um olhar frio e desmistificador dirigido à terminologia e à ideologia que cerca a "questão nacional" nesse período, particularmente em sua variante nacionalista. Segundo, que a aquisição de uma consciência nacional não pode ser separada da aquisição de outras formas de consciência social e política nesse período: todas estão juntas. Terceiro, que o desenvolvimento de uma consciência nacional (fora as classes e casos identificados com o nacionalismo integralista ou de extrema direita) não é nem linear nem feito necessariamente à custa de outros elementos da consciência social.

A partir destas observações – não obstante o nacionalismo ser uma categoria histórica – uma relação pode ser traçada com o caso brasileiro: há que se analisar e distinguir as formas do nacionalismo, seus projetos, suas ações, e não tomar como excludentes a aquisição de formas de consciência social e nacional, uma não é realizada na ausência, a expensas ou à revelia da outra. Essa é uma das chaves para entender o nacionalismo no Brasil, ele simplesmente não competiu com e/ou obscureceu a consciência de classe, não absolutamente disseminou ingênua ou deliberadamente a confusão quanto à fidelidade devida à classe ou à nação, ou à nação as expensas da classe. A grande maioria das críticas feitas a autores e idéias nacionalistas desse período da história brasileira remete à conciliação de classe, ao obscurecimento das contradições essenciais (de classe) presentes na sociedade brasileira, à proximidade promíscua com o Estado, ao papel doutrinário conciliador e protelatório, à subjugação das lutas sociais (mormente a sindical), etc. Há que se identificar as raízes ideológicas desse nacionalismo para entender que era crucial à classe média – donde ele provinha – submeter as contradições de classe aos imperativos da "comunidade nacional", que foi algo tanto inerente à sua sobrevivência e objetivos políticos, como à derrocada de seu projeto de hegemonia: ao traçar a linha que separaria o novo do arcaico fora dos estritos limites de classe, evitava sucumbir à polarização entre burguesia e proletariado, e tentava viabilizar sua imponderável liderança no processo; todavia, ao crer em sua própria criação, idealizou as condições do terreno de sua atuação e foi politicamente dilacerada entre os pólos dos interesses contraditórios que concorriam ao cenário político no ato consolidação da revolução burguesa no Brasil.

Parte das críticas pode ser resumida sob a rubrica das querelas quanto a ser ou não marxistas, ou ser insuficientemente marxista, como se o pertencimento ou filiação teórico-ideológicos fossem categorias analíticas. Outra parte – que não exclui alguns críticos igualmente presentes na primeira – esmera-se em afirmar, apesar do esforço teórico bem articulado, uma severa condenação do nacionalismo com base na análise (superficial) dos discursos, na desmistificação de interesses ou ainda, relevando os "erros históricos e políticos" cometidos, que saltam aos olhos quando se considera o "contexto histórico" da época, o que seria algo conseqüente não fosse o fato de que tais "contextos históricos" têm sempre escassa verossimilhança, pois geralmente são frutos de idealizações – de esquerda ou de direita – providencialmente convenientes para justificar situações posteriores. O passado necessário para justificação da existência de um presente indesejado.

É iminente que um projeto político radical e conseqüentemente articulado com a realidade global projete – finalmente – a extrapolação dos marcos nacionais para sua realização, mas não é certo que devam se separar desde o início e por todo o percurso; tal objetivo (de uma comunidade mundial) não invalida as conquistas sociais e políticas que se obtém nos marcos do âmbito nacional e por meio de projetos nacionais. Além disso, é perceptível que, nos países onde a questão nacional não foi devidamente[308]equacionada, subsistem problemas que se espraiam pela constituição da democracia, cidadania, soberania, direitos (civis, políticos, sociais), coexistência de etnias, limites e sanções do Estado, etc.

A visão de mundo dessa classe média – em seu projeto nacionalista – [309]alimentou sonhos de um Brasil-nação grande e soberano, cuja realização passaria pelo desenvolvimento, pela industrialização e pela fundação do capitalismo nacional e autônomo, e, afora as veleidades desarrazoadas do projeto, não cabe simplesmente condená-lo, vetá-lo, pois além de ter desenvolvido interessantes aspectos de uma consciência nacional que forneceram subsídios para um avanço político (econômico e social), forneceu também elementos e experiências para a construção de formas mais elaboradas de consciência social e, no limite, de consciência de classe, pois o nacionalismo trouxe consigo a afirmação de uma identidade nacional acima das condições de cor, "raça" e regionalismos, uma noção de igualdade (baseada nesta identidade), uma sensibilidade social derivada da preocupação com o desenvolvimento e a acomodação de conflitos internos, uma idéia de cidadania contígua à sociabilidade numa comunidade de valores (nacionais) e, também, uma idéia de povo como sujeito político – ainda que resignado – que vinha ao encontro das aspirações políticas (primárias) das classes subalternas. O problema do êxito ou fracasso do nacionalismo na sociedade brasileira não é um ônus a ser pago, é uma construção interrompida. O problema do quantum de incorporação ou não dessas conquistas à cultura política democrática e de esquerda não é de responsabilidade exclusiva do nacionalismo, mas, sobretudo, do que o sucedeu.[310]

As condições que deram vazão ao mito[311]do capitalismo autônomo, nacional, também deram ensejo aos anseios de elaboração de um pensamento social "genuinamente" brasileiro, particularmente ao mito da sociologia nacional – como enraizamento histórico-social, autonomia do pensar, internalização do saber e domínio temático e metodológico sobre a produção teórica. Ambos os mitos foram forjados pela irrupção de certo nacionalismo ligado à visão de mundo de classe média no contexto de meados do séc. XX no Brasil, seus sonhos de autonomia derivavam da volúpia em escapar do dilaceramento pelas circunstâncias de polarização interna (burguesia versus proletariado) e externa (países de capitalismo central versus bloco "socialista"). Tais anseios de independência foram prejudicados pela impossibilidade dessa classe média de elaborar um projeto que contivesse um caráter de representação "em geral" da sociedade e superasse as contradições entre os interesses dos grupos sociais, apresentando-se como classe portadora de um projeto "universal"; não podia ela sustentar um projeto hegemônico num contexto de consolidação da revolução burguesa tardia sob as hostes da evolução do capitalismo monopolista. A timidez e desconfiança políticas e a escassa (e distante) representação de interesses das classes subalternas não lograram atrair e mobilizar os setores populares, assim como a fragilidade política e erro de cálculo dessa classe média levou-a a apelar ao sentimento nacional da burguesia e a supostas contradições de interesse entre o capital industrial brasileiro e o imperialismo. O chamamento às tarefas de uma burguesia nacional era uma pregação no deserto, só mais tarde isso ficaria claro para a grande maioria da intelectualidade desse período.

Os acontecimentos de 1964 viriam a deixar claras as opções da burguesia brasileira e seus setores considerados "progressistas", assim, 1964 é a interrupção dessa tentativa de esboçar um projeto nacional e ao mesmo tempo o coroamento da revolução burguesa no Brasil nos termos em que estava sendo posta e reposta, isto é, conforme um padrão compósito de dominação, de associação entre grupos dominantes internos (e externos), antinacional e antidemocrático. O Golpe e o que se segue é a consolidação do domínio da burguesia e o fim do sonho do capitalismo autônomo e nacional, é o fim das elucubrações intelectuais sobre a existência da burguesia nacional e do feudalismo (ou seus resíduos), é o corte do – até então – maior ensaio de democracia no Brasil e o início de um outro modo político de contestação ao regime burguês. É também o apagar das luzes para a intelligentzia como postulante à representação dos valores da nação e de síntese dos interesses "em geral" dos grupos sociais e do país, bem como para o salvacionismo sociológico e a vocação missionária dos intelectuais; a sociologia já não podia ser mais instrumento de organização nacional e para dirimir conflitos, uma vez que os próprios sociólogos (e os intelectuais em geral) passavam agora definitivamente a se perceber não mais conforme uma coesão que, por vezes, a classe média encamparia, mas como divididos eles próprios pelos vincos de classe, por pertencimento e opções políticas. Em tais circunstâncias e com o advento da profissionalização, não havia mais lugar para a síntese de interesses e o clássico papel da intelligentzia como camada intersticial.

O projeto de uma sociologia nacional (mormente na elaboração de Guerreiro Ramos) acusava interessantes mudanças na sociedade brasileira, identificava o nascimento e qualificação do povo como sujeito político das transformações e lastreava neste mesmo povo – embora como realização de uma intelligentzia – a tentativa de construção de um saber sociológico engajado com as questões e formas conceituais inerentes aos problemas brasileiros, combatendo as especulações estéreis e a afetação teórica que pautavam (e pautam ainda) o comportamento de certa intelectualidade descompromissada da vida brasileira e de suas questões candentes, alinhada aos padrões e valores adquiridos dos centros acadêmicos europeus e norte-americanos como forma de afirmação e conquista de prestígio por contágio com o saber dominante. Não nos referimos aqui a um "simples" resíduo elitista ou forma alienada de apreensão de idéias, o que estava em jogo eram as reais estratégias de legitimação ideológica por meio de idéias aparentemente "fora do lugar", todavia, funcionalmente inseridas para dar conta de interesses localizados – estes sim profundamente enraizados na sociedade brasileira.

A aspiração à construção de um pensamento radicalmente enraizado nas condições sociais da formação social que se constituiu no Brasil não é algo insano, impõe-se para qualquer elaboração intelectual que se pretenda teoricamente válida e efetivamente ancorada numa práxis conseqüente – ou seja, consciente quanto a que tipo de enraizamento, com relação a qual grupo, projeto e interesses sociais lidará. Por outro lado, a criação de uma disciplina ou modalidade de pensamento cujos alicerces e horizontes se esgotem na "realidade nacional", que se utilize de método e conceitos única e exclusivamente construídos com base numa "realidade" específica (e circunscrita em termos da nação como centro da sociabilidade) e visando a aplicação imediata é, sem dúvida, um contra-senso, uma focalização absurda que acaba por primar pela miopia, pela desconsideração das relações gerais e universais que, no limite, condicionam as formas particulares ou específicas dos processos sociais. É forma imatura de casuísmo teórico que acomete sociedades, grupos e categorias culturalmente inseguras quanto a sua existência histórica e horizonte de perspectivas.

Os projetos de capitalismo nacional autônomo e de sociologia nacional no Brasil do séc. XX insurgiram-se contra a negatividade paralisante da pretensamente implacável influência dos países de capitalismo central, o que se desdobrava (à direita e à esquerda) como admiração, necessidade, domesticação, subordinação ou revolta, condenação, alienação, etc. – em suma, veneração e rancor, ambas as faces do fascínio pelo dominador. Insurgiram-se também insensatamente, já que procuraram soluções nacionais para questões supranacionais e/ou afirmaram o exótico, o excêntrico ou o local como antagônico à dominação "cosmopolita" – quando na verdade é mesmo o reflexo desta, a visão alegórica e benevolente adquirida do próprio cosmopolitismo alienado (Gramsci), abstrato (COUTINHO, 2000, p. 61). Dominação cultural e impostura como reação são faces do mesmo fenômeno.

Todavia, se o capitalismo e a dominação burguesa aqui se consolidaram em associação ao capital externo, também a sociologia no Brasil construiu-se em profunda imbricação com as idéias e métodos "importados" dos países centrais, ambos fizeram-se de contradições, evoluíram em tensão e negação para com as circunstâncias da qual surgiram, em atração e repulsão, colaboração e recusa, realizaram-se deturpando-se – como todo processo político-social real.

Ainda assim, tais projetos nacionais não deixaram de ser exercícios de afirmação positiva da autonomia dos periféricos, da insurgência dos satelitizados contra a organização do capitalismo mundial, de momento histórico de negação do processo de expansão e concentração do capital, de resistência cultural. Faltou aqui, entretanto, distinguir – dentre os grupos sociais na sociedade brasileira – aqueles que se solidarizavam, desejavam, sobreviviam e talvez até existiam devido à proximidade ou associação com o imperialismo, daqueles que não as queriam ou não as reforçavam. Tarefa tardiamente realizada pela intelectualidade brasileira e negligenciada pela academia (e seu fascínio pelo dominador) e insuficientemente feita pela militância política (quase sempre despreparada e escassamente estrategista).[312]

A sociologia brasileira (ou no Brasil) – também como conhecimento elitista e mesmo alheio às classes subalternas (ao povo) – sofre fortemente a influência da dinâmica cultural dos países centrais, o que tanto areja quanto subordina esse saber. Tanto o alimenta quanto o raquitiza, tanto lhe dá virilidade quanto o castra, algo que certamente não está relacionado à simples instrumentalização dessas idéias "importadas", mas, sobretudo, à operacionalização, à imbricação funcional que lhe é dada, o que varia conforme o grupo social que se apropria e a capacidade (histórica, política, social e mesmo intelectual) de lidar com tais idéias e circunstâncias. E isso não é uma questão que pode ser equacionada em termos de imitação ou originalidade:

A história da cultura brasileira, portanto, pode ser esquematicamente definida como sendo a história dessa assimilação – mecânica ou crítica, passiva ou transformadora – da cultura universal (que é certamente uma cultura altamente diferenciada) pelas várias classes e camadas sociais brasileiras. (COUTINHO, 2000, p. 46).

É mesmo problemático considerar tal assimilação conforme as noções de alienação ou inautenticidade, uma vez que "quem diz cópia pensa nalgum original, que tem a precedência, está noutra parte, e do qual a primeira é o reflexo inferior" (SCHWARZ, 1987, p. 47); isto nada acrescenta ao processo cultural e, além disso, renega condições e dinamismo próprios da cultura nacional – desde sempre impregnada em sua formação pela cultura "exterior", "estrangeira" – em favor de uma idealização, um purismo irrealista e conservador, que só tem olhos para o postiço, quando postiça (e miscigenada, precária, recente, rica e dinâmica) é a própria realidade cultural que o circunda. O purista recusa-se a ver que:

[...] a vida cultural tem dinamismo próprio, de que a eventual originalidade, bem como a falta dela, são elementos entre outros. A questão da cópia não é falsa, desde que tratada pragmaticamente, de um ponto de vista estético e político, e liberta da mitológica exigência da criação a partir do nada. (SCHWARZ, 1987, p. 48).

Ao pensar a fundação de uma sociologia nacional à revelia das anteriores elaborações sociológicas – mesmo ensaísticas, dedutivistas, metodologicamente frágeis – produzidas no Brasil, Guerreiro Ramos abriu mão de uma (ainda que incipiente) herança, uma tradição, embora não consolidada, mas que já fornecia indicativos para pensar a sociedade brasileira a partir de algumas atitudes e marcos conceituais. Justamente ele, que identificava uma corrente crítica no pensamento social brasileiro que procuraria se desvencilhar das armadilhas da submissão intelectual e que reconhecia – inclusive enfrentando duramente os críticos – as contribuições do "inconsciente sociológico", das formas quase que intuitivas de saber sociológico elaboradas por autores sem "treino" e "especialização" em sociologia. Ao agir assim, vendeu barato o que mais tinha de valor: uma herança (e sua ligação com esta), que poderia aparelhá-lo para compreender a dinâmica cultural brasileira e as formas possíveis de abordá-la com base em seu enraizamento histórico-cultural.

A trajetória de Guerreiro Ramos é uma das contribuições no sentido de trazer à consciência os dilemas do nacionalismo e da sociologia no Brasil, sua obra foi uma radical tentativa de remissão nacional do que cria ser os pecados originais da sociedade brasileira, a transplantação, o desenraizamento, a heteronomia, etc.[313] Por meio de uma crítica às formas de organização e pensamento, buscou a redenção sociológica da sociedade e sociologia brasileiras, intentou reinterpretar a realidade brasileira conforme um arsenal teórico engendrado pela experiência nacional (e nacionalista) e pela assimilação crítica das idéias estrangeiras, e utilizar-se desse conhecimento para intervir decisivamente nesta realidade, promovendo a autoconsciência nacional. Uma sociologia da práxis que interpretaria seu entorno social trazendo à tona os problemas cruciais de sua existência e, nesse processo, refazendo-se como saber qualificado e autônomo, não submetido a determinações "exteriores". Tal sociologia de missão e salvação promoveria – para ele – a almejada redenção (sociológica) e nos poria nas mãos nosso próprio destino. Mas poderia a sociologia não só salvar a sociedade brasileira como a si e por si mesma?

A sociologia – mesmo imbuída de seu potencial de intervenção como forma de consciência social e indicativo de práticas – é uma ciência e não uma ideologia redentorista, seus paradigmas e resultados podem servir à instrumentação, à mobilização, à organização, à reação ou à revolução; seus fatos não estão desvinculados de valores, entretanto, a forma, o contexto e a direção na qual a sociologia (como instrumento) pode ser utilizada não depende somente do sociólogo, uma vez que não estão asseguradas na teoria seus usos possíveis, seus fins necessários e, sobretudo, seu êxito analítico como saber. Ademais, o processo histórico em seu fluxo (volátil, contraditório, inabarcável em todos os seus aspectos, não obstante a procura da totalidade) não pode ser tomado como indelével marcha providencial dos fatos, mas apenas como devir, acontecer, cujas soluções ou estados são sempre provisórios, momentâneos, precariamente históricos e relativos.

A importância e até mesmo certo "protagonismo histórico" dado à sociologia por Guerreiro Ramos, se por um lado a eleva, de outro, desqualifica-a, uma vez que – na lição de Marx – são os homens, os sujeitos que "penetrados" pelas idéias (concebidas por estes mesmo sujeitos), que fazem a história, embora em dadas circunstâncias que escapam ao seu completo controle. A missão salvadora da sociologia nunca esteve ao seu próprio alcance, qualquer transformação histórica possível dependeu sempre da assunção dos homens e grupos sociais como sujeitos do processo social. A construção de um capitalismo autônomo e uma sociologia nacional não se punham seriamente para um proletariado em amadurecimento e cuja pátria já lhe parecia menos brasileira (no sentido então posto) que internacional, ou uma burguesia que teve como forma de afirmação a articulação com o Imperialismo; assim, tal mito só poderia ser apanágio de uma intelectualidade fortemente ligada à classe média, culturalmente distante e afetivamente próxima do povo, num país de elitismo e marginalização cultural, analfabetismo e desigualdade, no qual a cultivada menoridade da sociedade civil proporcionava ao Estado levantar-se soberano sobre todas as outras instituições e atores políticos.

A sociologia não podia se arvorar em redentora, já que, como "saber de salvação" (Guerreiro Ramos), era mesmo parte do problema, elemento do mesmo engano, a saber, o de hipervalorização do saber científico numa sociedade marcada pela exclusão cultural e o analfabetismo.[314]

Entretanto, Guerreiro Ramos prestou grande serviço à sociologia brasileira ao encurralá-la, ao exigir dela macular-se com as questões da sociedade brasileira, ao cobrar compromisso político e não estético dos intelectuais, ao cobrar-lhes projetos e perspectivas, bradar pela urgência do saber em consonância com a responsabilidade de suas atribuições, ao tomar o saber como fardo e não como dádiva, privilegiar a práxis e não o saber ornamental. Eis que suas realizações são inseparáveis de seus equívocos e, sua coerência, seu preço a pagar. Também é meritória sua obstinação em perscrutar as profundezas do Brasil, em ressaltar a originalidade desta sociedade e, quando acuado pelo cosmopolitismo abstrato, chegou – em alguns momentos – a universalizar a singularidade (brasileira) e cometer o mesmo erro ao avesso, para relevar a fascinante complexidade do país. Nesse aspecto, seus erros são exemplares e nos poupam de repetir difíceis lições apreendidas:

No universal que todos buscamos, a singularidade da experiência brasileira é o elemento central. Pensá-la, mesmo quando esse ato possa ser fruto de uma violência, é um dado salutar e necessário. Poder-se-á dizer, neste terreno, que é preferível errar por excesso e jamais por comedimento. (ODALIA, 1997, p. 14).

Sem dúvida, Guerreiro Ramos errou por excesso, o que confere o fulgor que sua trajetória ainda acusa, mesmo após tantos percalços; sua trajetória de solitário, outsider, apaixonado, engajado – "o outsider mais insider que já se viu", segundo Lucia Lippi de Oliveira (1993, p. 8)[315] –, levou-o à condição de consciência incômoda da sociologia brasileira: sempre agressivo, arredio, irônico e cáustico, metendo o dedo nas feridas (ainda abertas) da sociologia brasileira. Ainda segundo Lucia Lippi de Oliveira:

Comprometimento e ceticismo são os pontos extremos entre os quais oscila a existência de Guerreiro Ramos e de vários outros brilhantes intelectuais deste país. Com um agudo senso de tragédia o que o faz sentir-se próximo dos intelectuais russos, Dostoievski como exemplo significativo ou Berdiaeff, seu preferido. Guerreiro produziu solitário dentro das questões morais e sociais postas pela intelectualidade, dentro dos dilemas que ela procurou e ainda hoje procura responder. (OLIVEIRA, L., 1993, p. 8).

Tal agudo senso de tragédia, retomando a trajetória e as próprias palavras de Guerreiro Ramos, "quando uma vida humana se faz matéria em que um determinado "tempo" histórico impregna o seu sentido", enredar-se-ia com a tragédia da construção do capitalismo autônomo e da sociologia nacional. Em Guerreiro Ramos – frente a esse seu sentimento trágico – a sociologia brasileira adquire ares de saber revelado, de conhecimento existencialmente percebido, que somente a profunda imbricação com a realidade social (nacional) – com o espaço vital – traz à tona e pode fazer operar a redenção; entretanto, trazida por esses meios, ela nos parece menos clara e presente do que jamais foi, escondendo-se onde nunca pensaríamos em procurar: sob os nossos olhos. A tragédia de Guerreiro Ramos talvez tenha sido viver intensamente um tempo de desengano. A tragédia da sociologia brasileira talvez tenha sido não acreditar na sua própria existência.

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