Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 


Guerreiro Ramos e a redenção sociológica: capitalismo e sociologia no Brasil (página 2)

Edison Bariani
Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10

PALAVRAS-CHAVE: Guerreiro Ramos. Sociologia no Brasil. Capitalismo. Nacionalismo. Desenvolvimento.

ABSTRACT

The trajectory of Guerreiro Ramos – the tense and dynamic relation of life and work – is a contribution in the direction to bring to the intellectual debate a perception of certain dilemmas of sociology in Brazil and to propitiate subsidies in the attempt to understand the Brazilian situation; the formularizations, subjects, emphases and mistakes of the author are, in certain measure, consequences of the problems that had suscitated such efforts, as well as his work is one radical attempt to create authentic national thought that, for this reason, could redeem the sins of the Brazilian misery and its ally, the alienated sociology of the national reality. Such effort imbricates with his work – and in the historical-social context – with the yearnings of construction of a national and independent capitalism of certain middle class, and would have in the proper elaboration of a national sociology one of its main instruments of remission. The efforts of Guerreiro Ramos had been pledged in the direction of the sociological redemption of Brazilian sociology and society, stigmatized – according to it – by an original sin: the transplantation/importation of ideas. But could sociology not only stimulate the national development as to save itself by itself?

KEY WORDS: Guerreiro Ramos. Sociology in Brazil. Capitalism. Nationalism. Development.

Introdução

"Sociologia sem práxis é non-sens."

Guerreiro Ramos

Na sociologia brasileira, Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) ocupa uma posição particular: baiano de Santo Amaro da Purificação, sociólogo, poeta, ensaísta, professor, pesquisador, deputado federal (PTB da Guanabara), militante do movimento negro, nacionalista, integralista (na juventude), técnico em administração do DASP (Departamento de Administração do Serviço Público), integrante do Grupo de Itatiaia, IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política), ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), docente na EBAP (Escola Brasileira de Administração Pública) da Fundação Getúlio Vargas, na Universidade do Sul da Califórnia e na Universidade Federal de Santa Catarina. Autor de muitas vivências e influências, erudito, engajado, polemista feroz, defendeu febrilmente suas posições e posicionou-se incontinenti; produtor de uma obra de temas diversos, influências várias, originalidade e contundência, foi uma espécie de consciência incômoda da sociologia brasileira.[1]

Crítico voraz da subserviência às idéias "importadas", do descaso com o público e do descompromisso com o país, angariou tantos desafetos quanto pôde acumular, polemizou duramente com outras figuras de vulto na sociologia brasileira (Florestan Fernandes, Luiz Costa Pinto, Emilio Willems, Roger Bastide, para citar alguns)[2] e tentou retomar o que acreditava ser a herança da linhagem crítica do pensamento social no Brasil: Silvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Vianna...

Participante de alguns dos mais influentes círculos da inteligência brasileira no período 1943-1964 (DASP, Assessoria de Vargas, IBESP, ISEB),[3] engajou-se na política brasileira empunhando as bandeiras do nacionalismo, da autonomia, da industrialização, do desenvolvimento, e batendo-se em defesa da publicização do Estado, da construção da nação e da sociedade civil – tarefas do povo com o norte da intelligentzia.

No pós-1964, derrotado politicamente e alijado de uma carreira universitária no Brasil, exilou-se nos EUA, onde veio a obter o sonhado reconhecimento acadêmico e passou a ocupar-se com a crítica da modernidade, da razão instrumental, da visão unilateral sobre a existência humana e da concepção teleológica ingênua da história.

Com Guerreiro Ramos – que sonhou um dia com uma sociologia nacional e um capitalismo autônomo no Brasil – a sociologia brasileira teve um de seus críticos menos complacentes, mais ácidos e o mais intransigentemente apaixonado; sua trajetória confunde-se momentaneamente com a própria sociologia brasileira, seu destino, por outro lado, destoa da acomodação: seus feitos referem-se a uma fase tragicamente heróica desta sociologia, momento no qual – se não tudo – muito (ainda) parecia possível e por fazer, e o exercício da sociologia era menos uma carreira que uma missão.[4] Uma missão cujo propósito estava, para Guerreiro Ramos, eivado de um salvacionismo – na época Mário de Andrade (1972, p. 41) definiu a sociologia como "a arte de salvar rapidamente o Brasil" – e, também, singularmente, de uma atitude redentora, que pretendia (re)fundar a sociologia (e a nação) em novas bases, agora redimida(s) de seus pecados originais.

No intuito de situar o pensamento do autor, o período da história brasileira compreendido entre 1930-1982 é considerado – sem que nos detenhamos necessariamente nele – com privilégio do interregno 1930-1964, período no qual não só a produção intelectual e a atuação política do autor são mais intensas e efetivas,[5] mas também por ser um momento crucial da história da sociedade brasileira, quando houve profundas mudanças em sua densidade e configuração social, consolidou-se um outro setor da classe burguesa dominante como dirigente, as classes subalternas irromperam no cenário político como novos sujeitos, conformou-se uma classe média de tipo moderno e, no plano intelectual, foram criadas as primeiras universidades e desencadeado o processo de institucionalização da sociologia brasileira, organizou-se um padrão e uma regularidade de produção científica e buscou-se interpretar a sociedade brasileira conforme novos moldes e exigências, em sua maioria, insistindo na diferenciação/distanciamento com o pensamento social anterior.

Tal período marca a consolidação do capitalismo e da sociologia no Brasil, o que não indica uma coincidência, mas a determinação – por parte do modo de produção – de um novo saber socialmente adequado às suas demandas econômicas, técnicas e de divisão do trabalho, bem como uma atualização de mentalidade no sentido de ajustar o saber às formas de racionalização e parâmetros de interpretação legítimos dentro da formação social e seus condicionantes ideológicos. Obviamente, esse contexto esboçado não pretende um completo cerceamento das circunstâncias sociais de inserção da problemática, já que relega – embora não desconheça – os condicionantes mais amplos de historicidade e sua força de permanência. Esta lacuna, cremos estar amenizada pela consideração do período (1930-1982), além disso, neste caso, a amplitude por si talvez não seja uma virtude, pois se as idéias têm um enraizamento histórico-social, a profundidade e formas de expansão dessas raízes certamente escapam à nossa completa percepção, vez que se confundem com a própria história humana e todos os seus aspectos.

Desse modo, o que está proposto é o entendimento dos principais aspectos de uma obra significativa, original, elaborada por um intelectual profundamente atormentado com as dificuldades, insuficiências e possibilidades de apreensão mental das circunstâncias de sua existência individual, de grupo e o entorno social, bem como, ao fundo, a perseguição às relações entre as aspirações à construção de um capitalismo nacional (logo, à época, autônomo) e de um saber fortemente imbricado com a realidade nacional: para o autor (em certo momento), uma sociologia nacional em recusa à transplantação de idéias e à determinação de temáticas e modelos externos, apartados (e subjugando) os verdadeiros interesses e necessidades oportunos para a superação da miséria brasileira, do atraso, do subdesenvolvimento.

Pretende-se – também – asseverar a indispensabilidade de dialogar como o autor e não simplesmente "dissecá-lo", já que muitos dos problemas que Guerreiro Ramos se propôs ainda assombram a sociedade e sociologia brasileiras: se suas "soluções", por vezes, detiveram-se no malogro, seus questionamentos continuam vivos e conseqüentes.[6] Nesse aspecto, no plano político, alguns – como José Murilo de Carvalho (2003c, p. 6) – já o revisitam com base numa espécie de ardil da história, notando a volta à atual cena política nacional de suas concepções, particularmente no que diz respeito à constituição do povo como sujeito político, da nação como espaço vital e da herança varguista, ironicamente, por meio de seus críticos tardios.

Cabe também advertirmos para os estreitos limites e as dificuldades de compreender e explicar a trajetória de um autor tanto fascinante quanto complexo, em alguns momentos, contraditório. Primeiramente, abandonamos a tentativa de retalhar o autor e sua produção em fases definidas em benefício de uma consideração de sua trajetória, pois só a totalidade tensa e dinâmica de seu percurso e conformação conferem certa fidelidade à apreensão do sujeito intelectual, de sua obra e as relações destes com determinado grupo social e sua visão de mundo.[7] Segundo, envidamos esforços na abordagem desta obra como pensamento vivo e tenso, seja no que diz respeito à atualidade de suas elaborações, seja no tratamento das idéias como forças atuantes em seus contextos, resguardada a historicidade dessa – conflituosa e problemática – relação (texto/contexto), tomada como situação dinâmica e não elemento do baú de ossos da crítica arqueológica, que lê o passado em função de um presente providencial. Por fim, mobilizamos uma concepção deliberada – e talvez insuficiente – no sentido de não pretender domar completamente ou exaurir a rica trajetória de um indivíduo e suas idéias (e condicionantes) na incompletude e precariedade de uma armação teórico-conceitual, um contexto imediato e a simples diluição num determinado grupo social, pois intentamos não reduzir a significação de uma experiência intelectual (e existencial) a uma construção lógica encravada num recorte espaço-temporal. Tanto as idéias quanto a vida serão sempre maiores que o texto e o contexto, bem como intangíveis à nossa capacidade de explicá-los teórica e cabalmente.

I - Trincheiras

"Não pertenço a instituições, não tenho fidelidade a coisas sociais; tudo o que é social, para mim, é instrumento. Eu não sou nada, estou sempre à procura de alguma coisa que não é materializada em instituição, em linha de conduta. Ninguém pode confiar em mim em termos de sociabilidade, de institucionalidade, porque isso não é para mim, não são funções para mim. O meu negócio é outro."

Guerreiro Ramos

Mesmo avesso ao engajamento institucional, Guerreiro Ramos esteve por vezes ligado a instituições que influenciaram sua trajetória. Cursou Ciências Sociais na Faculdade Nacional de Filosofia, e Direito na Faculdade de Direito (ambas da então Universidade do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro), formando-se, respectivamente, em 1942 e 1943. Recém-egresso da Universidade, esforçava-se em estabelecer relações entre o instrumental teórico que possuía e as circunstâncias da sociedade em que vivia, tateando a realidade brasileira e procurando desafios e respostas às inquietações (muitas delas existenciais) que o acompanhavam – e algumas o acompanhariam por toda sua vida.[8]

Preterido na carreira universitária, entrou em profunda crise existencial.[9] Necessitando manter-se, passou a lecionar – por indicação de San Tiago Dantas – no Departamento Nacional da Criança (no Rio de Janeiro), ocupando a Cadeira de Problemas Econômicos e Sociais do Brasil; ainda em dificuldades financeiras e convidado por um amigo, candidatou-se a um emprego de técnico em administração no DASP (Departamento de Administração do Serviço Público), sendo aceito (de modo interino) em 1943. Entre suas atribuições no órgão, estavam analisar projetos de organização (para órgãos policiais, penitenciárias, de estímulo à agricultura, etc.) e auxiliar na seleção de pessoal, cuja seção de recrutamento chegou a chefiar. Após aprovação em concurso em 1945 (apresentando o trabalho Administração e política à luz da sociologia), efetivou-se em 1945 como técnico em administração, apresentando como requisito de mérito a tese Uma introdução ao histórico da organização racional do trabalho.[10]

Com a posse de Getúlio Vargas (em 1951), distanciou-se do quadro do DASP para integrar a equipe da Assessoria da Casa Civil do Presidente,[11] simultaneamente, com a criação da Escola Brasileira de Administração Pública (EBAP) da Fundação Getúlio Vargas (em 1952), tornou-se professor dessa, mantendo com a instituição estreita relação que duraria longos anos. Engajou-se, assim, diretamente na política ao integrar a mencionada Assessoria de Vargas e posteriormente o Grupo de Itatiaia, IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política) e ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), todavia, continuou afastado da Universidade, só vindo a ter propriamente uma carreira acadêmica no exílio, nos EUA.[12]

O pertencimento a tais instituições (Departamento Nacional da Criança Assessoria de Vargas, Fundação Getúlio Vargas e, mormente, DASP, Grupo de Itatiaia, IBESP, ISEB) e as circunstâncias que o envolvem têm relevância contextual (mesmo limitada e momentânea) na análise da trajetória do autor. Tomada como lócus e processo social, a instituição pode ser considerada limitadamente uma "sociedade em miniatura", o que não lhe confere – ao final e em definitivo – nem autonomia social, nem prerrogativa na explicação sociológica (FERNANDES, 1991, p.171-2).[13] Possuir uma dinâmica própria, desfrutar de uma posição diferenciada no interior da sociedade, ter ritmos e rumos não ajustados automaticamente ao movimento do todo, em suma, exceder uma simples engrenagem do sistema não a torna (a instituição) soberana ou sequer independente. Por outro lado, tal condição que a particulariza também pode lhe proporcionar – em relação à sociedade – uma atuação mais que meramente funcional ou disfuncional (MERTON, 1970), ou mecanicamente articulada: pode situar-se numa posição de empuxo ou tensão e, no limite, até mesmo de contradição à própria sociedade que a envolve, identificando-se ou contrapondo-se à totalidade, afirmando ou negando os influxos do processo social geral.

Também o indivíduo se relaciona com a instituição de modo tenso, se as formas sociais às quais é submetido (coerção, exterioridade, seleção, recompensa, sanção, etc.) circunscrevem suas possibilidades e condicionam suas ações, tais ações não são absolutamente determinadas, irrefletidas ou automáticas, estão simultaneamente condicionadas por uma forma superior (mais determinante) de sociabilidade que lhe fornece subsídios para conformação de seu modo de existência e consciência social, a saber, sua maneira de inserção na estrutura social sob as formas predominantes de ordenação das ações sociais em fluxo: os grupos, mormente as classes sociais.

A participação de Guerreiro Ramos em certas instituições, se não determinou cabalmente os rumos de sua trajetória, fez com que se defrontasse com exigências em termos de vivência, formulação conseqüente das questões sociais prementes e aparelhamento teórico conceitual para abordá-las, tornando imperativa a tomada de decisões no que diz respeito à postulação de temas e problemas, opções teórico-conceituais, ambiente e postura intelectual, instrumentalização do conhecimento, experiência social e implicações político-pragmáticas do saber, sobretudo, na interiorização da relação teoria-prática quando da assunção de uma práxis – momento constitutivo da inserção social coletiva.[14] Todavia, se o autor como sujeito intelectual não pode ser tomado como espécie de "superconsciência" social, sua existência e estatuto de integração impõem-lhe o estabelecimento de relações teórico-racionais na interpretação das circunstâncias e assunção de papéis sociais.

1. DASP, administração, política e modernização

No período no qual Guerreiro Ramos esteve no DASP – segundo ele próprio – a rotina de suas funções o entediava, seu temperamento forte e irrequieto não se aplacava em exercer um trabalho dessa natureza, que ele mesmo definiu (anos depois) simplesmente como "chato" (OLIVEIRA, L., 1995, p.146).

No entanto, o DASP (em seu contexto e atribulações), foi um sugestivo laboratório para que – inicialmente – Guerreiro Ramos atentasse para alguns dos problemas cruciais do Brasil, o que notoriamente pautou suas reflexões a respeito da complexidade social do país, questões como: a efetivação da administração, a transplantação de idéias, a função pública e a do intelectual, a relação entre Estado e sociedade, o público e o privado, o patrimonialismo, a relação entre racionalidade e irracionalidade, modernização e tradicionalismo, o caráter do Estado, as formas e os arranjos entre as forças políticas, a conformação e dinâmica das classes sociais, a cultura política e suas implicações, os entraves ao desenvolvimento, o desenvolvimento como racionalização, modernização como tarefa nacional e o papel do Estado nessa empreitada – entre outras colaterais.

Guerreiro Ramos, no departamento, praticamente iniciou uma carreira profissional e colaborou na Revista do Serviço Público, resenhando livros. Nesse período, sua produção foi marcada por trabalhos quase sempre modestos e imediatos, sua tese para efetivação no cargo – Uma introdução ao histórico da organização racional do trabalho: ensaio de sociologia do conhecimento (1949) – é que possui maior fôlego.[15]

Fruto de uma experiência pioneira, o DASP foi parte da iniciativa de reforma e planejamento que inaugurou uma nova feição dos órgãos estatais no Brasil, somente a partir dele organismos planejadores e fiscalizadores de caráter técnico-burocrático ganharam importância.[16] Entretanto, ele não fincou suas raízes no ar, a sociedade brasileira é profundamente marcada por uma sociabilidade baseada no favor, no personalismo, no clientelismo, no fisiologismo, na promiscuidade entre o público e o privado, na corrupção, na exclusão. Um terreno nada fértil para o empreendimento, ainda assim, o DASP acumulou forças, resistiu e manobrou até onde pôde. Suas ações foram marcadas pelas dificuldades de viabilização inerentes e seu percurso por tensões e contradições que se acumulavam devido ao atrito entre o caráter de suas funções (racionais-legais) e a cultura política e sociabilidade (patrimonialista) na qual se inseria. Seus dilemas são, de certo modo, os dilemas de toda modernização no Brasil, que o avanço do capitalismo não somente não dirimiu como também potencializou.

Previsto no artigo 67 da Constituição Federal de 10 de novembro de 1937 e criado no início do Estado Novo pelo Decreto-lei nº 579, de 30 de julho de 1938 (BRASIL, 1938), o DASP tinha amplas atribuições como órgão de consultoria, seleção, planejamento e fiscalização (ver anexo A).[17] Em sua criação (e posterior desempenho), consta a procura por um modelo de gestão que propiciasse racionalidade e excelência produtiva com rigor técnico, impessoalidade e autonomia; as influências teóricas dessa engrenagem seriam buscadas – segundo Wahrlich (1983, passim) – em Francisco Campos (e sua primazia na confecção da Constituição de 1937), Max Weber, Henri Fayol, Luther Halsey Gulick, Frederick Winslow Taylor e, sobretudo, em William F. Willoughby. Entre as idéias principais da teoria da administração de Willoughby, estão: 1) a consideração dos princípios da administração como passíveis de aplicação universal, 2) a separação entre política e administração e 3) a menção a um departamento de administração geral como órgão de apoio direto e imediato ao chefe do Executivo. Tais elaborações eram particularmente congruentes com a pretendida armação político-institucional brasileira naquele momento.[18]

No intento de romper os estreitos limites dados pela organização do Estado (e da máquina administrativa) – que moldados pelos interesses predominantes na Primeira República, minimizavam em muito o escopo e intensidade das manobras políticas e de gestão por parte do poder central –, o Estado Novo cria o DASP visando modernizar o setor estatal, imprimir novos ritmos e rumos à dinâmica político-administrativa e arrastar consigo a frágil sociedade civil.

A situação brasileira, já descrita como de "completa debilidade (ou mesmo ausência) de sociedade civil" (COUTINHO, 2000, p. 21), não favorecia a ebulição de demandas sociais legítimas, o que havia de efetivamente organizado – como já havia afirmado Tobias Barreto (MENESES, 1962, p. 103) – era o Estado, um Estado configurado pelos estreitos interesses da classe dominante, sob as hostes dos seus sócios, as burguesias dos países centrais. Hegemônico, um liberalismo oligárquico dominava a cena política e restringia não só a participação das outras classes nos assuntos de Estado, como também a própria autonomia relativa (possível) desse em relação à limitação dos anseios excessivamente particulares que exigiam as benesses do mando. Estado e classe dominante praticamente se confundiam, se identificavam em larga medida, inviabilizando a organização e atuação estatal de modo mais amplo, racional e moderno. Nos níveis operacionais da máquina administrativa, predominava um funcionalismo público que já havia sido descrito como "o grande asilo das fortunas desbaratadas da escravidão" (NABUCO, 2000, p. 106), inchado, um tanto incompetente e perdulário das receitas públicas.

Numa guinada antiliberal, o Estado Novo fortaleceu o poder central e garantiu-lhe razoável capacidade decisória à revelia dos interesses particularistas e do poder local, embora sem participação ativa da incipiente sociedade civil, mormente suas classes subalternas. Efetivava-se então a concepção, preconizada por Alberto Torres (1982b, p. 117) já em 1914, de que a única força capaz de promover a coesão e o dinamismo da sociedade brasileira era "o aparelho político-administrativo, com seus vários órgãos".

Frente à fragilidade de alguns grupos sociais, ausência de democracia e privilégio arbitral da posição estatal, a ditadura incumbiu-se de implantar o gerenciamento minimamente impessoal dos negócios do Estado, cabendo ao autoritarismo bloquear muitos canais dos quais se serviam os particularismos e viabilizar o surgimento de uma administração burocrática e racional. Segue-se, no entender de Faoro (1987, p. 725, v. 2), que: "O quadro administrativo domina a cúpula, com forças nacionais e não regionais, capaz de vencer veleidades localistas". Nessa nova disposição, o DASP foi um órgão que – funcionando como órgão de inovação e modernização administrativa, liderando a efetiva organização do aparato público-estatal e atuando como centro irradiador de influências renovadoras – tornou-se peça estratégica de um sistema racionalizador no âmbito do Poder Executivo Federal (NOGUEIRA, 1998, p. 94). Desdobrava-se ainda nos estados por meios dos "daspinhos" (departamentos estaduais) que, sob controle federal, funcionavam como "uma espécie de legislativo estadual" e corpo supervisor para o Interventor no Estado e o Ministério da Justiça, submetendo também os prefeitos municipais ao seu jugo (SOUZA, Maria, 1976, p. 96). Daí apenas um passo para que no Estado Novo, a política fosse "eliminada", "tudo se discutia como se se tratasse de assunto puramente técnico, a ser decidido por especialista" (CARVALHO, 2003b, p. 110).

A tentativa de modernização do país (e a melhoria da administração) passava pela desobstrução das artérias políticas, intoxicadas pelo emaranhado de interesses localizados que obstaculizava o fluxo da racionalidade administrativa. Coube mormente ao DASP isolar as pressões dessa teia de interesses e normatizar a administração da gestão racional dos negócios do Estado. Nas palavras de Guerreiro Ramos (1966, p. 448), deu-se, entre 1930 e 1945, uma "verdadeira revolução administrativa, tal o porte das modificações de estrutura e de funcionamento que se verificaram em nosso serviço público federal".

Era o primeiro grande passo em direção à burocratização do serviço público e à criteriosa contratação de pessoal, baseada agora nas exigências de competência e qualificação. Com o DASP, os critérios – antes calcados nas relações pessoais (favor, apadrinhamento, etc.) – passaram a ser orientados pelo mérito e pela competência, instaurando concursos e carreiras, superando o favoritismo e estendendo as oportunidades de emprego. A classe média que surgia será a grande beneficiária desse processo (IGLÉSIAS, 1993, p. 254-5).

Assim, as mudanças legitimavam-se não apenas pelos anseios de modernização, eficiência e cuidado administrativo, mas também por abrir brechas institucionais à participação (técnico-política) – embora em cargos de menor poder decisório – e à ascensão social de uma classe média instruída e desejosa de oportunidades.[19] Segundo Luiz Werneck Vianna (1997, p. 184), o DASP "trará o taylorismo, a racionalização do trabalho, a ideologia do produtivismo, este nosso bizarro americanismo forjado pelo Estado".

Todavia, possuidor de imensos poderes, o órgão (hipertrofiado) usurpava funções, monopolizava decisões e desconsiderava as rotinas institucionais de representação, considerando-se imune às pressões clientelísticas. Com isso, entre outros expedientes, o Estado Novo tentava "dobrar os joelhos" das oligarquias,[20] especialmente algumas ainda relutantes e que se apoiavam no clientelismo (ainda incrustado na máquina estatal) como tipo de dinâmica decisória:[21] ao criar um rígido setor técnico estatal, o regime escolhia as arenas (e os momentos) para travar as disputas políticas e ganhava poder de barganha ao endurecer no trato administrativo das questões, dissociando na superfície o administrativo do político, uma vez que as decisões políticas estavam nas mãos do Governo Federal e da ditadura que o controlava – e algumas vezes apenas nas mãos de Vargas. As questões não podiam mais passar por cima ou pelas frestas da rede administrativa, deviam antes ser tratadas tecnicamente e, como Vargas detinha o controle estratégico do direcionamento das decisões técnicas, teriam de passar pela negociação política com o poder central – racionalidade técnica e astúcia política imbricavam-se nessa rede.

Obviamente, essa arquitetura não era tão sólida e infalível quanto talvez possa parecer, ainda assim, tal estrutura – associada a outras estratégias de repressão, cooptação, convivência e aproximação – [22]garantiu quase uma década de poder a um Estado reformador, que fez incisões em questões prementes e alterou as bases sociais de um país moldado em relações privatistas e clientelísticas, o que não é pouco.[23]

O planejamento – na modalidade que aqui assumiu – passava a fazer parte do desenvolvimento capitalista, modificando as formas de controle do Estado e influenciando a dinâmica da sociedade. As possibilidades para uma intervenção desse porte foram abertas graças a uma particular conjuntura interna/externa, derivada de mudanças estruturais e certo arranjo de classes.[24] Não obstante, dentro das escolhas históricas possíveis, a habilidade de Vargas e do grupo no poder foi invulgar.[25]

Contudo, o privatismo ainda possuía profundas raízes e, superada uma conjuntura negativa, voltou à carga cobrando a hegemonia perdida. Com a queda de Vargas em 1945 e o fortalecimento de outra vertente burguesa de extração mais liberal, as funções do DASP foram drasticamente reduzidas, limitando-o a um órgão de estudo e de orientação administrativa (DRAIBE, 1985, p. 298). No Governo Dutra – segundo Cunha, M. (1963, p. 108-9) – o DASP sofreu críticas na imprensa e no Parlamento, correndo o risco de ser extinto; sobreviveu então com seus poderes diminuídos (especialmente alijado da confecção do orçamento) e com seu prestígio arranhado, não sendo poucos os técnicos que o abandonaram, procurando melhores posições nos organismos internacionais e nos Ministérios.[26]

A burocracia (os técnicos do DASP), todavia, resistia. Guerreiro Ramos permanecia no órgão, mas viria a lamentar os efeitos que a queda de Vargas e o fim do Estado Novo produziram na administração federal. Uma outra concepção (auto-intitulada "democrática") vigia, a partir de então, no órgão esvaziado em muitas de suas funções administrativas e como vetor de poder, e grassavam novamente na administração as antigas formas do clientelismo. "Na prática, a "reestruturação democrática" do DASP favoreceu a distribuição política de empregos, independentemente do controle do sistema de méritos e concursos" (DRAIBE, 1985, p. 298).

A atuação do DASP havia granjeado muitos desafetos entre os interesses até então sem peias, encarregado de zelar pela legislação e aplicar de modo impessoal as determinações, descontentou desde setores poderosos até os pequenos apadrinhados.[27] O poder que teria acumulado, a visão técnica que o movia e a investidura de guardião da eficiência e moralidade públicas granjearam-lhe inimigos dentro até do próprio Governo. A sistemática imposta pelo DASP ao serviço civil contrariava interesses, parecendo mesmo às autoridades dos vários ministérios que o departamento se arvorava em superministério (AVELLAR, 1976, p. 290).[28] Com a mudança da conjuntura política, os ataques vieram de vários lados, tendo o DASP contra si – segundo Edson Nunes (1997, p. 54) – o fato de que teria sustentado um processo de centralização sem precedentes no país, o que teria permitido identificá-lo como um "rebento da ditadura".

É comum na literatura a respeito do Estado Novo detectar um dado arranjo de classes, um equilíbrio de poder e/ou certo bonapartismo – além do talento político – que deram amplos poderes a Vargas e uma liberdade de manobra poucas vezes conseguida na história da República, o que teria lhe facultado a possibilidade de um governo forte e poder necessário para fazer incisões profundas na estrutura do Estado brasileiro, paradoxalmente, implementando a administração burocrática (impessoal) sob o lastro do personalismo carismático e autocrático. No entender de Graham (19-, p. 8), as reformas administrativas nas "sociedades em transição" só seriam possíveis sob a égide de um governo forte, entretanto, seria possível organizar um governo forte – naquela conjuntura de agudas tensões, enfrentamento entre classes e emergência de demandas sociais – sem recorrer a algum tipo ou nível de autoritarismo?

A questão, refletida no pensamento social no Brasil, remete a duas vertentes que se opunham, mas que na verdade constituem duas faces da mesma moeda: intervencionistas, para os quais as livres demandas perturbariam o processo de racionalização e só o comando autoritário propiciaria um ambiente asséptico para a organização administrativa; e liberais, para os quais qualquer racionalização que tivesse como base o estatal (e não o privado) padeceria com o autoritarismo, ainda que a manutenção de interesses particulares e elitistas não lhes parecesse autoritário.[29]

Os termos – notoriamente – têm como referência a célebre discussão – e suas várias facetas – entre duas posições que marcaram o ambiente (e antecedentes) daquele período: dever-se-ia estruturar e reformar a sociedade por meio da legislação e institucionalização ou tais mecanismos deveriam adequar-se à realidade social em questão? Legislar ou proceder? As normas regeriam os fatos ou os fatos seriam imperativos frente às normas? Inventar o novo ou inovar o inventado? Deliberar para a modernidade ou modernizar – numa expressão cara a essa geração – a realidade nacional.

Numa das formulações a respeito dessa contenda Wanderley Guilherme dos Santos (1978, p. 93 et seq.)[30] distingue entre o liberalismo doutrinário, configurado por "[...] sucessivas facções de políticos e de analistas que, desde meados do século XIX, sustentavam a crença de que a reforma político-institucional no Brasil, como em qualquer lugar, seguir-se-ia naturalmente à formulação e execução de regras legais adequadas", citando como exemplos Tavares Bastos e, "talvez", Assis Brasil e Rui Barbosa, tendo mais tarde a UDN como herdeira; e o autoritarismo instrumental, compartilhado pelos que criam "que as sociedades não apresentam uma forma natural de desenvolvimento" – daí o papel do Estado na determinação desses rumos – e "[...] que o exercício autoritário do poder é a maneira mais rápida de se conseguir edificar uma sociedade liberal, após o que o caráter autoritário do Estado pode ser questionado e abolido", contar-se-iam entre esses Francisco Campos, Azevedo Amaral e Oliveira Vianna, não fortuitamente artífices do Estado Novo e mantenedores (em parte) de uma herança que Guerreiro Ramos reivindicaria para si como sendo a corrente mais lúcida quanto ao entendimento da realidade brasileira. Entretanto, Guerreiro não a assumirá cabalmente: virá mais tarde (nos anos 1950) a alardear o nascimento do povo e tecer críticas ao elitismo das posições dessa corrente; insurgir-se-á contra esses antigos axiomas que persistiam em perpetuar – por meio dessas duas correntes principais do pensamento social brasileiro – suas influências, a saber: que a modernização no Brasil só seria possível pelo alto e pela força, da lei ou do autoritarismo.

Naquela conjuntura dos anos 1940, todavia, a ambiência teórico-conceitual estava calcada nesse verdadeiro cabo-de-guerra entre as correntes referidas (mesmo alguns setores da intelectualidade de esquerda postavam-se entre os marcos da disputa), que se defrontavam, seja confundindo democracia com liberalismo, seja apelando ao Estado demiurgo. Em comum, apenas a crença no moderno, na necessidade de desenvolvimento do capitalismo como forma de superar a miséria nacional e toda sua pesada herança arcaica.

Nesses embates entre tradicionalismo e racionalização, burocracia e clientelismo, vicissitude e desventura, o caso do DASP reflete as contradições da sociedade brasileira em busca da modernização, seu ocaso ilustra e enriquece o histórico dos infortúnios nas tentativas de adequar certa realidade social aos imperativos da evolução do capitalismo.

É certo que a iniciativa de administração moderna desencadeada por meio do DASP não poderia fazer tábua rasa da realidade brasileira, o clientelismo arraigado na sociabilidade e na cultura política trazia elementos que desafiavam a impessoalidade e a generalidade burocrática que porventura quisesse se estabelecer; mais ainda, na prática, o que se observa é que – em última instância – a administração burocrática foi não só incapaz de resistir aos assédios privatistas: a própria organização administrativa e sua dinâmica enraizavam-se numa sociabilidade eivada de clientelismo – seja na sociedade civil, seja no Estado – engendrando a particular constituição que a administração e a burocracia tiveram no Brasil.[31]

Não se tratava, portanto, apenas do uso clientelístico das formas de gestão, nem simplesmente da instrumentalização política por parte do poder central num contexto ditatorial, mas de como a institucionalização do moderno se construiu num país no qual uma herança de privatismo, exclusão e autoritarismo assombra o domínio público.

Os desafios desse processo colocavam-se, também, para Guerreiro Ramos. Como entender – em que pesasse sua posição burocrático-estatal – que as formas do moderno aqui implantadas, ainda que prescritas para as devidas necessidades, não se coadunassem funcionalmente com a estrutura social? Que os mecanismos de transformação do país e os obstáculos preexistentes não se eliminassem mutuamente, convivessem e até mesmo, por vezes, inextricavelmente se confundissem num mesmo emaranhado de instituições e idéias, inclusive internamente ao próprio Estado (tido principal agente da transformação)?

Emergia aí, lentamente, para o autor os sentimentos de que não bastaria simplesmente que quiséssemos ser modernos e que as receitas do capitalismo central não nos fariam inelutavelmente modernos. Talvez nossa sina fosse a condenação – como havia vaticinado Euclides da Cunha (1982, p. 60) – a sermos originalmente (singularmente) modernos, ou não sê-lo.

Estimulado pelas questões candentes, Guerreiro Ramos exerceu modestamente (a partir de 1946) sua criação intelectual no DASP, em artigos na Revista do Serviço Público (ligada ao órgão), muitas vezes resenhando livros. Apesar do formato restrito e dos estreitos limites para o raciocínio teórico, fez daquele espaço editorial um campo para aprendizado e exercício de reflexão sistemática.

Em "A divisão do trabalho social", resenha crítica sobre o livro de E. Durkheim,[32] lê-se um comentário respeitoso, atento à contribuição fundamental à sociologia e, sobretudo, às possibilidades do planejamento como forma de intervenção social, sobretudo na administração.[33] Preocupado com a erosão da ordem social, alerta para a planificação – e o papel dos sociólogos – como forma de contenção dos desequilíbrios, controle social e conseqüente garantia de convivência social democrática, bem como para a importância da ilustração da elite, o esclarecimento dos dirigentes e a função de uma intelligentzia no Brasil.

Uma sociedade de que estão ausentes as forças de integração espontânea dos indivíduos e dos grupos, só poderá manter-se ou por métodos policiais ou por métodos administrativos compreensivos.

A preponderância de uns ou de outros dependerá da preparação sociológica dos grupos governantes.

Não estou certo de que o problema tecnológico do governo se resolveria mediante a fórmula, um tanto platônica, de por os sociólogos no lugar dos governantes, mas, com certeza, sua solução será tanto mais assegurada quanto maior for a capacidade dos dirigentes de assimilarem os conhecimentos recém-atingidos pelas ciências sociais.

Por este motivo, cresce de importância o papel dos órgãos de estado maior, naturalmente incumbidos de por ao alcance dos governantes os conhecimentos técnicos e científicos das ciências sociais, sem os quais a administração da sociedade será aleatória e torpe. (RAMOS, 1946b, p. 161-2).

A temática do planejamento – uma constante – também domina um artigo posterior ("Notas sobre a planificação social"),[34] no qual ressalta a importância K. Mannheim e censura duramente O caminho da servidão, de Hayek; problematizando o tema, propõe um estudo mais acurado da planificação e prudentemente aponta que deva ser tomada como "[...] uma questão em debate, cuja solução ainda não está suficientemente amadurecida e, portanto, há de não condená-la ou aplaudi-la em bloco, pois a adesão a certo enunciado científico não pode ser fundada em tendências emocionais" (RAMOS, 1946c, p. 163). Adverte que, com a ascensão dos monopólios, a competição não mais regularia as relações sociais: "estamos vivendo já numa sociedade planificada [...] O que nos interessa é saber agora que espécie de planificação é necessário realizar, tendo-se em vista as necessidades da democracia". Diante disso, os pontos de vista possíveis seriam "o capitalista, o fascista e o comunista", e observa que os dois últimos "[...] estão ainda dentro do marco capitalista da história e pretendem apenas substituir os detentores do atual controle dos meios de produção por outros detentores, motivo porque não são propriamente revoluções, mas golpes de estado". Observa ainda que "[...] tanto a planificação fascista como a comunista padecem de tendências de índole reacionária muito fortes, pois ambas pretendem impor uma unidade cultural à sociedade, sem compreender a estrutura fundamental da nossa época" (RAMOS, 1946c, p. 164).[35] Define então – baseado em Mannheim – a planificação (democrática) como "[...] uma autoconsciência da sociedade atual ou, melhor, é a realização de sua essência. É menos um intento de reconstruí-la em bases favoráveis a este ou aquele grupo do que um intento de liberar as suas forças genuínas reprimidas." (RAMOS, 1946c, p. 165).

Naquele momento, incorpora-se ao pensamento de Guerreiro Ramos um ponto de vista culturalista e a concepção de fases (faseológica),[36] Mannheim tornava-se uma influência poderosa sobre o autor (como o será para toda sua geração); outrossim, a planificação (democrática) surge como uma alternativa ao fascismo, comunismo e neoliberalismo, e orientada para a interpretação da sociedade brasileira conforme suas particularidades, donde começa a aflorar a preocupação com a assimilação do conhecimento vindo "do exterior". Seria assim necessário postular a questão da planificação e mudança social "de um modo não ideológico, isto é, em termos da estrutura fundamental de nossa época e não de arquétipos" (RAMOS, 1946c, p. 165).

É com Max Weber, entretanto, que se dá a maior empatia. Ao resenhar Economia e sociedade, quando do lançamento da edição mexicana (provavelmente o primeiro comentário sobre a obra no Brasil), afirma que "é a tentativa mais bem sucedida de estabelecimento de uma ciência sociológica da história, e, por isto mesmo, de uma sociologia efetiva, [...] é a partir de Max Weber que a sociologia se emancipa definitivamente do normativismo, liberta-se de certa tendência reformista que a impelia a invadir, não sem os clamores das vítimas, os feudos da moral, da religião, da profecia e da filosofia" (RAMOS, 1946a, p.129-30). [37]

Por meio de uma leitura perspicaz de Weber, Guerreiro Ramos desperta teoricamente para a teoria da organização, o estudo da burocracia e da administração, além de extrair dali subsídios metodológicos. Todavia, a prudência weberiana no trato da sociologia como forma de ação, contra o "normativismo", parece não ter afetado o ímpeto do jovem Guerreiro, inebriado pelas possibilidades de intervenção social.[38]

Ele não se deixa levar por uma possível leitura antimarxista da obra, não intentando uma inversão do materialismo histórico, atenta sim para a amplitude e o não-determinismo metodológico da obra de Weber. A leitura é permeada por certa reverência que revela mais que uma admiração intelectual, Guerreiro Ramos identifica ali uma posição teórica que vinha ao encontro das suas concepções espiritualistas. Sua interpretação norteia-se – além do culturalismo – por certo existencialismo (refletido na leitura de Weber), que se sobrepõe à anterior proximidade do sociólogo brasileiro com o espiritualismo cristão da revista L"Esprit e o neotomismo de Jacques Maritain.

Esta concepção [de Weber] de ciência é eminentemente anti-socrática. O conceito socrático de ciência supunha uma relação conatural entre o indivíduo e o universo. A ciência, segundo Sócrates, está infusa no homem e este a adquire desenvolvendo-a dentro de si como um embrião se desenvolve no seio materno. A concepção típico-ideal da ciência é o reverso do socratismo. O espírito humano e o mundo são inconversíveis. O homem está ilhado e nenhuma garantia possui de que a sua ciência seja uma expressão verdadeira do que o mundo é em si mesmo. Assim sendo, importa menos conhecer a forma ou substância do universo do que conhecer como podemos dominá-lo ou conjurar a sua irracionalidade. A concepção típico ideal da ciência exprime o desespero da consciência humana diante do fracasso da explicação religiosa ou mágica das forças do mundo histórico. Ela é representativa de uma época secularizada em que os padrões sagrados foram radicalmente minados pelo trabalho corrosivo da razão (RAMOS, 1946a, p. 132).

Inspirado por Weber, opõe o sagrado ao profano e o encantamento do mundo à razão, termos que embasarão – poucos anos depois – sua análise sobre a relação entre o tradicional e o moderno, objeto de sua tese sobre a organização racional do trabalho (RAMOS, 1950).

Apesar das lições de Durkheim, a influência de Mannheim e o encantamento com Weber, as preferências de Guerreiro Ramos não se refreavam; em outro artigo[39]ele demonstra apreço pela pesquisa empírica, pela técnica dos surveys e pela sociologia estadunidense, representada pela Escola de Chicago e seu mais ilustre arauto no Brasil à época, Donald Pierson.

Um aspecto que tem sido negligenciado no Brasil, na formação dos especialistas nos vários ramos das ciências sociais, é o treinamento dos mesmos, no emprego dos métodos e no manejo das técnicas de pesquisa. A não ser a rara exceção da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, onde o Prof. Donald Pierson mantém um curso de pesquisa social, não sabemos nenhuma outra entidade universitária em que se considere a pesquisa social como uma disciplina autônoma.

Um dos maiores serviços prestados ao desenvolvimento dos estudos sociais, no Brasil, pelo Sr. Donald Pierson é, precisamente, o de ter difundido, entre nós, um sistema de referências para o estudo de pesquisa social. (RAMOS, 1947, p. 147).[40]

Ao optar por visões sociológicas totalizadoras, Guerreiro Ramos, conhecedor de um leque de referências teóricas sistematizantes, ressentia-se de um instrumental mais leve, de técnicas de pesquisa e questionários que o capacitassem a abordar mais diretamente dados quantitativos e situações empíricas que agora – por força de suas ocupações profissionais – [41]se prestavam à sua análise, uma vez que só tinha como referência, nesse aspecto, os estudos e método monográficos de Le Play[42]– provavelmente assimilados por meio da influência de Silvio Romero e Oliveira Vianna, admiradores do pensador francês, que pretenderam readequar tal método à realidade brasileira, numa chave culturalista (RODRÍGUEZ, 2006).

Nessas breves resenhas escritas por Guerreiro Ramos já aflora a preocupação, um tanto formalizadora e especulativa, com a utilização da sociologia como instrumento de intervenção social, sobretudo na gestão racional dos recursos e organização administrativo-estatal; o fundamento dessa ação é o planejamento (democrático), entendido então menos como operação direcionada a fins e mais como desobstrução de entraves, forma de dar livre curso às potencialidades, às forças latentes numa sociedade que se candidatava à modernização – tomada aí como processo relativamente orgânico.

A influência de Weber se faz sentir enormemente na tese que Guerreiro Ramos apresenta ao DASP (Uma introdução ao histórico da organização racional do trabalho: ensaio de sociologia do conhecimento, 1949), na qual o objetivo seria "[...] mostrar que a Organização Racional do Trabalho é conseqüência de um longo processo de secularização, no transcurso do qual apareceu, tardiamente na civilização ocidental, uma atitude laica do espírito humano, em face da natureza e da sociedade" (RAMOS, 1950, p. 8-9); nesse texto, discorre sobre o conceito de trabalho na civilização ocidental, taylorismo, fordismo e o percurso da administração até a contemporânea sociologia do trabalho.[43]

O erudito trabalho de síntese (e ostentação) conclui que a organização racional do trabalho só se produz em sociedades nas quais predomina o espírito antitradicional e laico, não se desenvolvendo em outras nas quais o sagrado se sobrepõe ao racional e secular. Os EUA seriam o campo mais fértil para tal, já a América Latina, Ásia e Oceania muito menos, pois nessas a indústria seria algo incipiente e a maior parte de suas populações não teria ainda emergido das "culturas de folk". Mannheim, Hans Freyer (quanto ao planejamento e à sociologia como intervenção social) e a Escola de Chicago (quanto aos estágios de evolução do tradicional ao moderno) – entre outros – estão presentes na análise como referências teóricas.

As considerações sobre o histórico da organização racional do trabalho convergem para o ponto crucial do trabalho: a análise da administração pública, mormente no Brasil. Segundo o autor, as circunstâncias de um gerenciamento racional dos negócios nessa esfera não seriam um assunto meramente técnico ou institucional, um simples modelo de gestão, e sim produto de um amadurecimento histórico-social, dependente do alcance de determinado estágio evolutivo de superação do privatismo:

Na administração pública, a racionalização é, antes, uma fase da evolução do Estado que uma tecnologia propriamente dita. Ela surge, sob a forma do que Max Weber chamou burocracia, naqueles tipos de Estado em que, sob influência do constitucionalismo, se afirma o predomínio da função pública sobre a feudalidade e a soberania territorial, ou seja, do interesse universal sobre o interesse particular. (RAMOS, 1950, p. 113).

Tal processo histórico avançaria segundo a formulação tipológica weberiana, na qual os tipos de dominação "sucedem-se" mais ou menos "progressivamente", denotando o advento da racionalidade e da dessacralização do mundo, isto posto, para assentar-se, a organização racional-legal haveria de solapar as bases patrimonialistas de dada sociedade, instaurando-se – em tempo e intensidade – conforme as características próprias da formação social. "A superação da administração patrimonial pelo desenvolvimento da administração racional ocorre mais ou menos lentamente, conforme a composição social de cada país" (RAMOS, 1950, p. 117). Guerreiro Ramos assevera que a universalização do capitalismo impõe um caráter relativamente inexorável ao processo de racionalização, embora de modo lento e tensamente articulado com a ordem anterior, "o que explica a coexistência de elementos burocráticos com elementos patrimoniais dentro de uma mesma sociedade" (RAMOS, 1950, p. 119).

Destarte o uso da tipologia weberiana, não o faz ingenuamente, atenta para a idealização dos tipos, as especificidades das sociedades e a não-imanência de sentido e ritmo na história. Cada sociedade – no processo de modernização e racionalização – percorreria um caminho próprio e combinaria, de modo ímpar, formas modernas e arcaicas, sendo assim, não existiriam formas "puras", mas formas eminentemente híbridas, "umas mais que as outras" de administração pública (RAMOS, 1950, p. 118).

Pautado pela transformação histórica, o avanço desse tipo de organização dependeria de uma análise social que identificasse e tornasse possível a superação de resistências à mudança entrincheiradas em mentalidades, formas culturais, hábitos cristalizados pelo tradicionalismo etc., substituindo-os por formas modernas, congruentes com a efetivação da nova ordem.

A racionalização assume algumas peculiaridades na esfera da administração pública. Aí ela é uma questão eminentemente sociológica, antes de ser de qualquer outra natureza.

A racionalização na esfera da administração pública não se converte em mera aplicação do saber técnico na organização de atividades. É, principalmente, um processo de transformação do aparato estatal, que se opera a custa da diminuição (e até anulação) da eficácia da tradição, ou melhor, que implica a substituição de "folkways" por "technicways". (RAMOS, 1950, p. 12).[44]

Assim, haveria uma tendência de intensificação do processo de racionalização, mas não progressiva e implacavelmente de modo a eliminar o passado e fazer tábua rasa da sociedade em que atuaria, sua evolução seria difícil e inconstante, defrontando-se com a ordem anterior e a cultura enraizada, que o obstaculizariam. Dentre essas formas de resistência, a cultura exerceria um papel fundamental: a imposição da nova ordem não bastaria, só com a mudança dos padrões de comportamento seria possível viabilizar a racionalização modernizadora.

A arrebatadora marcha da racionalização (pensada por Weber) teria como contraponto a força da cultura e a manutenção de condutas (lições tomadas ao culturalismo e à Escola de Chicago). Função primordial nesse processo teria a sociologia, à qual cumpriria entender a sociedade, identificar os obstáculos, dar subsídios às formas de embasamento da ação transformadora e promover formas de atualização das mentalidades arraigadas.

No caso brasileiro, a herança de privatismo – para Guerreiro Ramos – ainda impedia a consolidação da racionalidade administrativa:

No Brasil, a racionalização da administração pública defronta-se com sérios obstáculos, principalmente oriundos de sua formação histórica. Pode afirmar-se, mesmo, que a sua introdução em nossa máquina corre por conta daquele idealismo utópico, característico das elites brasileiras e extensamente estudado por Oliveira Vianna.

A verdade é que a estrutura social e política do país ainda não apresenta até hoje condições capazes de tornar plenamente efetivo, em nossa administração pública, um sistema racionalizado.

Uma tradição de patrimonialismo permeia o Estado brasileiro que, até recentemente, se pulverizava socialmente em "organismos monocelulares", clãs parentais, clãs feudais, clãs eleitorais, de puro direito privado e carecia daquela unidade orgânica e compacta a que se referia von Stein. (RAMOS, 1950, p. 24).[45]

Em auxílio às abrangentes formulações teóricas das quais se servia, Guerreiro Ramos lança mão de autores nacionais para dar conta da peculiaridade da sociedade brasileira e viabilizar a crítica ao patrimonialismo em sua caracterização local. Utiliza-se de Gilberto Freyre e sua crítica ao mandonismo, de Nestor Duarte e a análise da ordem privada e, principalmente, Oliveira Vianna e sua crítica da organização clânica e do familiarismo. Vianna ainda lhe fornecerá subsídios para a crítica da importação de idéias por parte de uma classe dirigente considerada alheia à realidade brasileira (o idealismo das elites) (RAMOS, 1950, p. 124-5).[46]

A administração pública no Brasil, nesse contexto, não teria ultrapassado o "estágio patrimonialista", uma vez que a pressão do privatismo e do familiarismo perturbaria a estrutura governamental, legando à administração pública "[...], o caráter a que [Edward] Sapir chamaria "espúrio", visto nela não se integram perfeitamente os processos burocráticos. Registra-se, pois, dentro de nossa administração pública, um verdadeiro conflito cultural, como já lembrara o sociólogo brasileiro Emílio Willems." (RAMOS, 1950, p. 128-9).

Por suas incumbências e seu caráter precursor, o DASP, nesse contexto, estaria no "olho do furacão", assim como a burocracia que o compunha – inclusive o próprio Guerreiro Ramos.

Este conflito cultural retrata-se com maior agudeza naquilo que se poderá chamar "processo do DASP", órgão pioneiro da implantação da racionalização na administração federal, cujo destino vem sendo ultimamente discutido pela opinião pública e assume as proporções de um caso de consciência do país. Tal "processo" não deixa de ser dramático, pois muitos o sentem no espírito e na carne. (RAMOS, 1950, p. 130).

Mesmo saindo em defesa do departamento, não poupa críticas à importação de modelos em dissonância com a situação específica do país e cita, como exemplo negativo, a influência de Willoughby (também uma das mais presentes no DASP) na instituição do Conselho Federal do Serviço Público Civil (em 1936) com características de órgão de administração geral, embora pondere que, naquelas circunstâncias, representaria algum progresso.

A Lei nº 284 [de 28 de outubro de 1936] representa uma verdadeira transplantação no Brasil das idéias sobre racionalização administrativa, em voga nos Estados Unidos, especialmente na forma por que são expostas por Willoughby. Muitas reservas poderiam ser feitas a esta maneira de introduzir tais idéias em nossa administração federal. É porém incontestável que, de qualquer modo, a Lei 284 assinala um avanço na história administrativa do Brasil. (RAMOS, 1950, p. 133). [47]

Guerreiro Ramos também defende o DASP contra o assédio que sofria por parte da oposição liberal, porta-voz das resistências privatistas à modernização administrativa. "O que resta a dizer é que, no presente momento, a evolução da racionalização da administração, no Brasil, está perturbada pela reorganização política que se vem operando desde 29 de outubro de 1945" [deposição de Vargas e fim do Estado Novo] (RAMOS, 1950, p. 134).

A defesa dos privilégios, do privatismo, seria também reivindicação de organizações políticas partidárias, que não primariam pela coerência "ideológica", antes, representariam interesses específicos que se aglutinariam para conquistas particulares, assediando o Estado em busca de acesso a benesses.

Este "privatismo", até o momento crônico na vida brasileira, exprime-se, na esfera política sob a forma de partidos de patronagem, isto é, partidos sem unidade ideológica, meras agremiações ou ajuntamentos de gânglios que, interferindo na administração pública, retardam, quando não paralisam de todo, o processo de sua burocratização. (RAMOS, 1950, p. 125). [48]

O advento da modernização capitalista como processo de racionalização é tomado então por Guerreiro Ramos como processo eminentemente cultural, enfrentamento entre o privatismo e a racionalização, entre a burocratização e o patrimonialismo (entendidos como tipos ideais), consistindo em um "conflito cultural", no qual a administração pública defrontar-se-ia com o tradicionalismo e suas vicissitudes arraigadas; o Estado seria – naquele momento – o agente defensor do público e portador do moderno, capaz de dissolver os embaraços postos por esse tradicionalismo.

Assim, naquele período, particularmente no Estado Novo, os intelectuais aproximaram-se do Estado e mantiveram com ele uma relação tão íntima quanto complexa, predominando uma visão desse como bastião da modernidade.

A ideologia de Estado que se consolida neste momento tem como um dos seus pilares a idéia de que o Estado é mais moderno que a sociedade. Ele é a sua razão e consciência, impedindo-o de se dilacerar nos seus pequenos conflitos de interesse e assim obstaculizar a constituição da vontade nacional. (VIANNA, L., 1985, p. 40).

Ao reeditar – de modo um tanto mais sofisticado – análises anteriores, mormente de Alberto Torres, Guerreiro Ramos releva a condição do Estado como grande baluarte da modernização, único agente capaz de se sobrepor aos interesses privatistas da sociedade civil. No entanto, tal concepção do Estado de um lado identifica-o à administração pública e esvazia-o de sua condição política, assim como em Alberto Torres (BARIANI, 2007), de outro, elide a participação dos grupos sociais no processo de mudança. No entender de Guerreiro, não havia ainda um "povo", uma estrutura de classes formada, uma sociedade civil organizada e tampouco um grupo social coeso e apto a subsidiar a mudança necessária; os grupos sociais existentes só se reuniam em torno do achaque aos bens públicos e na defesa de privilégios. Uma elite dirigente – mesmo em seus despreparo, "idealismo" e alheamento para com a realidade brasileira – aparece como dignitária do progresso, sob os auspícios dos quadros técnico-científicos da burocracia pública, então cientes de sua função pública e da tarefa de impor a racionalidade. Esses quadros adquiriam ares de uma intelligentzia de Estado (BARIANI, 2003b) e o DASP era um ambiente profícuo para tal.[49]

Eminentemente políticas, as "elites" mostravam-se – para Guerreiro Ramos – aquém das necessidades, despreparadas para a tarefa de modernizar o país, caberia então a essa intelligentzia ligada ao setor estatal esclarecer as elites e fazer agir o gigante (o Estado) – acordado em 1930 e posto em marcha em 1937 – no sentido de organizar a nação (recomendação deixada pela geração imediatamente anterior) e modernizar o país. Era uma tarefa que, ao final, afigurava-se muito mais da inteligência, de missão intelectual, que propriamente política; muito mais de salvação que de negociação, de construção que de arranjo e rotinização. Nessa concepção – e num contexto de "sociedade em transição" –misturavam-se os papéis da burocracia e da intelectualidade, do técnico-científico e do "ideólogo", as tarefas da administração pública e o projeto político de Estado, indicando como Guerreiro Ramos ainda estava ligado aos intelectuais da geração anterior e a auto-imposta missão de criar a nação e organizar o país.[50]

A política – com seus interesses, conflitos, instituições e rituais – parecia a Guerreiro Ramos irracional demais, demorada demais, injusta demais; surgia-lhe mais como tática protelatória que mecanismo decisório, obstaculizava a ação do Estado. Assim, a política em seu teor de conflituosidade, ao menos nesse contexto, atuaria – para o autor – como fator perturbador da administração pública e da racionalidade modernizante que, naquela circunstância, o Estado Novo lograra construir.[51] A modernização deveria ser defendida da interferência irracionalista da embrionária sociedade civil, seus interesses e seus vícios, deixando ao Estado a tarefa primordial.

Essa perspectiva tinha como vértice social a classe média que emergia da profissionalização do ofício militar, da institucionalização dos ofícios do saber, da reestruturação produtiva propiciada pela modernização (industrialização primária, burocratização, formação de quadros técnicos) e da urbanização e sua demanda por serviços. Insurgente num passado então recente (oposição ao regime oligárquico da I República, Tenentismo, Movimento de 1930), amparada no Estado Novo mas ainda alijada da participação política institucional, buscava sua afirmação no exercício do saber técnico e/ou científico (principalmente abrigado no Estado), para o qual advogava preponderância nos imperativos da modernização.[52]

A passagem pelo DASP marcou a trajetória de Guerreiro Ramos, embora daí não se possa concluir que foi essa a experiência que o levou a determinadas posições, não há demasiado risco em afirmar que não por causa dela, mas, sobretudo com ela esboçou naqueles anos uma noção de que o advento do moderno era – principalmente – um "conflito cultural", enfrentamento entre o racional e o irracional: a cultura do moderno (supremacia do Estado, antiliberalismo, intervenção, planejamento e administração burocrática) chocava-se com a cultura do atraso (patrimonialismo, privatismo, clientelismo). Só não percebia ele que, com a imbricação entre o "novo" e o "velho", as formas do moderno – oriundas da evolução do capitalismo – trariam consigo a lógica do interesse, legitimando o privatismo mesmo em suas formas mais arcaicas.

No DASP, o autor inteirou-se da problemática brasileira e sua complexidade, atentou para o fato de que a transplantação de instituições, condutas e formas de organização dos países de capitalismo central não seriam funcionais na realidade brasileira; por outro lado, não seria possível simplesmente relegar os instrumentos e experiências daqueles países, aí precisamente residia o dilema: alcançar a modernidade por meios próprios e, no entanto, utilizar-se dos meios possíveis; ser outro sem deixar de ser si mesmo, articular o particular e o geral, o estrutural e o funcional. Já não era possível simplesmente refazer a trajetória dos países desenvolvidos, o Brasil não poderia galgar os mesmos degraus que aqueles países, haveria de trilhar seu próprio caminho rumo à modernização, todavia, conforme sua condição particular. Para enfrentar os desafios dessa condição, seria preciso forjar instrumentos teóricos próprios, adequados ao entendimento da realidade brasileira, aparelhar a sociologia – consciência dessa realidade – para dar conta da complexidade da situação.

2. O arsenal em construção

Nesse período de incrementação de temas e problemas, consolidava-se para Guerreiro Ramos a seleção de um instrumental teórico. Trazia de antes a influência do neotomismo de Jacques Maritain, o existencialismo cristão expresso na revista L"Esprit e na obra de Nicolai Berdiaev, entre outras.[53] Tais concepções espiritualistas são, a partir de então, filtradas e certo culturalismo ganha contornos mais sólidos por meio de outros autores. O conceito de W. Pinder de contemporaneidade do não-coetâneo e a concepção faseológica da história – de Franz Carl Miler-Lyer são utilizados para entender a originalidade do Brasil como sociedade na qual coexistiriam diferentes tempos numa dada fase histórica. Também duas grandes influências começam ali a tomar corpo: Karl Mannheim e Max Weber, combinadas ainda de modo frágil com uma preocupação empírica que buscava subsídios na sociologia "norte-americana". A preocupação com a cultura (em sentido amplo) ainda é dominante, apesar da influência admitida e da presença de Donald Pierson (OLIVEIRA, L., 1995, p. 139), não parece ser fortuita a opção pela Escola de Chicago, uma vez que foi por meio dessa que o empirismo, a técnica dos surveys e a preocupação com o fato aliaram-se a uma considerável atenção à cultura – como constituída de formas enraizadas de consciência, comportamento, construção material, sociabilidade, etc.

Emergem também as influências do pensamento social brasileiro em sua obra, embora de modo periférico, pois se os temas concernentes à realidade brasileira já ganhavam centralidade em suas preocupações, as influências teóricas eram ainda basicamente de autores estrangeiros.[54] Uma ainda tênue linha já o liga a certa herança intelectual que – crítica do liberalismo e desconfiada da capacidade (ou mesmo da existência efetiva) da sociedade civil e do "povo" – busca interpretar o Brasil como algo original, criticando o transplante de idéias e instituições, procurando instrumentos teóricos próprios para essa tarefa e vislumbrando a modernização como uma tarefa eminentemente prática, pragmática, organizativa, de construção da nação a partir do Estado, a despeito ou até à revelia dos interesses particulares presentes na sociedade civil. Precariamente, essa tradição – nomeada por Guerreiro Ramos como a linhagem "crítica" do pensamento social brasileiro – pode ser assim esboçada: Visconde do Uruguai (Paulino José Soares de Souza), Silvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Vianna...[55]

Todavia, se a visão do Brasil que emanava desses autores contemplava uma ânsia de síntese, o aspecto rarefeito e mais ou menos dedutivo que as embasa lentamente se tornava claro para Guerreiro Ramos; a partir de então, busca na sociologia acadêmica e profissionalizada que nascia elementos empíricos e mais cuidadosamente coletados, daí a crescente menção a autores como Emílio Willems, Fernando de Azevedo, Florestan Fernandes - abundam citações de obras desses autores, bem como de Donald Pierson e Roger Bastide. Nesse aspecto, Guerreiro também colabora com a revista Sociologia – editada pela Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo e considerada a primeira revista eminentemente acadêmica das ciências sociais no Brasil.[56]

Em dois trabalhos dessa época (publicados naquela revista) nota-se a influência – temática e na abordagem – da sociologia "norte-americana" e da ecologia humana (principalmente da Escola de Chicago) no tratamento de fenômenos como a pobreza, a medicina popular e a mortalidade infantil, vistos como frutos da ambiência.[57]

O pauperismo não é apenas uma condição econômica. É também uma condição cultural e psicológica. Ao baixo poder aquisitivo das massas corresponde um repertório de costumes, tradições e atitudes. A pobreza é uma condição econômica e cultural e um estado de espírito. Ambos (condição e estado) têm a sua inércia, oferecem resistência à mudança. Quando se diz que os altos coeficientes de mortalidade infantil se correlacionam com o baixo poder aquisitivo, não se diz tudo. Para maior precisão seria necessário mencionar que eles se correlacionam com a "cultura de folk", característica da pobreza. (RAMOS, 1951b, p. 252).

O problema da transplantação de idéias aflui também e passa a ser uma das questões centrais na obra do autor, a princípio, a crítica tem em foco a transplantação de instituições – influência de sua experiência profissional e das considerações sobre administração e direito público de Paulino José Soares de Sousa (o Visconde do Uruguai).

No Brasil, a administração precedeu a sociedade. Éramos no início do século XVI, um território sobre o qual viviam alguns povos organizados sob a forma tribal. A partir de 1530, data em que se funda São Vicente, começam a ser transplantadas para o nosso país, pré-fabricadas, por assim dizer, as instituições administrativas de Portugal, de uma das mais desenvolvidas nações do mundo, naquela época.

Em 1549 já aqui funcionavam mecanismos administrativos que na Europa tinham sido elaborados demorada e lentamente no decorrer de vários séculos.

A sociedade brasileira, por força de sua formação, não teve a oportunidade de elaborar lentamente, por ensaios e erros, as soluções dos seus problemas. Estes, uma vez pressentidos, eram tratados pelos métodos experimentados ou em uso na metrópole.

Quando o país e se tornou independente de Portugal, já o vício de adotar para os seus problemas soluções prontas tinha deitado raízes profundas. Os modelos deixaram de vir de Portugal e passaram e a ser importados da França, da Inglaterra, dos Estados Unidos, principalmente. (RAMOS, 1951a, p. 1-2).

Definido como mal de origem, o empréstimo de iniciativas descoladas da estrutura social traria não só problemas adaptativos como também reforçaria hábitos – e suas conseqüências – de importar soluções. Alheias à realidade presente, as organizações mostrar-se-iam contraproducentes...

Na verdade, as instituições administrativas não têm nenhum poder mágico ou imanente de resolver os problemas. Elas só rendem em função umas das outras e do meio nacional onde atuam. É inócuo transplantá-las de um país para outro de condições radicalmente diferentes. (RAMOS, 1951a, p. 40).

[...] nenhuma instituição burocrática, nenhum esquema de organização tem qualidades imanentes. Sua eficácia depende das estruturas sociais e econômicas onde se encaixam [...] Certas instituições, uma vez transplantadas, não encontram na sociedade receptora elementos fixadores ou condições que possibilitem o rendimento que elas apresentam nas sociedades doadoras. Muitas vezes são reinterpretadas, a fim de exercerem alguma função na nova estrutura social. (RAMOS, 1951a, p. 2-3).

Problemas como o da mortalidade infantil, o pauperismo, as deficiências de saúde e outros seriam agravados por tal disfunção, uma vez que as formas de combate utilizadas teriam como vício do deslocamento contextual a ineficiência (ou inconseqüência) de resultados. Daí a pretensão do autor em analisar as políticas públicas e realizar estudo de caso da administração federal, pois os equívocos apontados nada mais seriam do que "aspectos particulares do desajustamento de toda a máquina governamental à realidade sociológica e econômica do país" (RAMOS, 1951a, p. 4).[58]

Se a relação disjuntiva entre a estrutura social e as instituições tomava corpo na análise levada a cabo pelo autor, os reflexos do deslocamento e suas decorrências nas representações sociais – com ênfase no pensamento técnico e científico – ainda não eram claros, ele próprio utiliza conceitos e avaliações que, mais tarde, certamente consideraria "importados".[59]

O arsenal teórico guerreiriano ressentia-se de um aparelhamento para enfrentar as questões numa plataforma superior, basicamente de um método que o habilitasse a se desvencilhar do cipoal de referências cruzadas, de conceitos simbolicamente retorcidos quanto aos seus referenciais. Já vislumbrava no horizonte teórico as implicações dessa orientação metodológica, ainda que a percebesse também a partir de um legado estrangeiro e confundisse o equacionamento teórico da questão com a construção de uma sociologia aplicada.[60]

Quando importamos sistemas legais ou instituições burocráticas de outros países, procedemos, de certa forma, como os nativos do Taiti [que enterraram ferramentas esperando que dali nascessem casas prontas]. Esperamos que eles aqui realizem os mesmos efeitos de lá, sem atentarmos para as diferenças estruturais entre a sociedade brasileira e as sociedades que procuramos imitar.

O reconhecimento de que a eficácia das instituições não lhes é inerente, mas depende das estruturas nas quais elas se integram está suscitando o desenvolvimento de uma Sociologia e de uma Antropologia aplicadas. Os ingleses, por exemplo, estão pondo ambas em uso na administração de suas colônias na África. (RAMOS, 1951a, p. 2).

Em breve, despertaria para o fato de que os problemas e o modo como os propunha implicarem uma vultosa tarefa, que de forma alguma se resumiria à construção de uma sociologia aplicada, mas, conforme considerará, na reconstrução da sociologia em novas bases, ou melhor, na construção de uma autêntica sociologia brasileira, "nacional".

Ao procurar e juntar peças no sentido de organizar teoricamente uma orientação sociológica sólida, Guerreiro Ramos avançava num modo de pensar a sociedade brasileira como algo novo e particular, diferente dos "países centrais"[61], mas ainda fazia uso de um instrumental nos moldes de um complexo quebra-cabeça, pois a heterogeneidade social (e teórica) era um desafio a vencer.

O Brasil é um mosaico de culturas, já observou R. Lynn Smith. O gradient que Robert Redfield e outros sociólogos registraram no México pode ser observado no Brasil, assinalam-se numerosos graus culturais, desde a "civilização" até a chamada "cultura de folk". (RAMOS, 1951a, p. 21).

Essas culturas diferenciadas, esse complexo cultural, comportaria diversas visões de mundo – Weltanschauung na acepção mannheimiana – que habitariam uma mesma fase, na qual coexistiriam diferentes tempos históricos, configurando uma "contemporaneidade do não-coetâneo" (RAMOS, 1951a, p. 41).[62]

A heterogeneidade sincrônica e diacrônica do complexo cultural brasileiro identificada pelo autor trazia consigo o desafio à compreensão teórica e a sedução do ecletismo para dar conta de realidade tão ímpar; era preciso entender a sociedade brasileira, requisito para transformá-la, mas o arsenal teórico disponível havia sido forjado para (e por) outras sociedades, significativamente diferentes. Naquele início dos anos 1950, ao abordar a sociedade brasileira com base na transplantação, na forma reflexa e não-autêntica da vida social, pairava – para Guerreiro Ramos – sempre a percepção de algo de insuficiente: para o entendimento do país, para pleitear as tarefas da organização da nação, para instrumentalizar o conhecimento e direcioná-lo à prática da transformação e, assim, para aplacar sua voracidade intelectual e ânsia de engajamento. Buscará então as armas necessárias também num duplo movimento: puxando o "fio da história" e resgatando as tentativas anteriores de construção de uma teoria crítica imbricada à realidade brasileira, bem como empreendendo uma dura crítica da sociologia no Brasil.

3. Grupo de Itatiaia, IBESP e os Cadernos de Nosso Tempo

Envolvido diretamente com a política nacional ao ingressar na Assessoria de Vargas, Guerreiro Ramos, a partir de 1952, participou do Grupo de Itatiaia – que, em suas palavras, teria sido formado "com o objetivo de entender o governo brasileiro" (OLIVEIRA, L., 1995, p. 148). Também foi um dos fundadores do IBESP e do ISEB. Para ele, o IBESP foi "um encontro de estudiosos", já o ISEB teria sido feito – em suas palavras – à sua "revelia", "praticamente, pelo Jaguaribe; foi ele quem fez tudo... Do IBESP eu gostava, participei, mas o ISEB, é aquela coisa... Objetivamente eu não entendo" (OLIVEIRA, L., 1995, p. 154).

No IBESP, Guerreiro Ramos publicou nos Cadernos de Nosso Tempo (editados pelo instituto) os artigos: "Padrão de vida do proletariado de São Paulo" (Cadernos... nº 1), "O problema do negro na sociologia brasileira" (nº 2), "A ideologia da Jeunesse Dorée" (nº 4) e "O inconsciente sociológico" (nº 5). [63]Se em "Padrão de vida do proletariado de São Paulo" sonda as condições de vivência dessa classe, em "A ideologia da Jeunesse Dorée", analisa a visão social de uma "família" de intelectuais bem-nascidos – Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), Afonso Arinos de Melo Franco e Otávio de Faria – que primariam pelo elitismo, intelectualismo e reacionarismo; por fim, "O inconsciente sociológico" recupera o legado de autores como Virgínio Santa Rosa, Martins de Almeida e Azevedo Amaral, a cuja tendência ao esquecimento e diminuição – impulsionada, segundo ele, por sociólogos e antropólogos de "treino especialíssimo" – opunha-se. Concomitantemente, publicou nesse período, entre outras obras, O processo da sociologia no Brasil: esquema de uma história das idéias (1953), Cartilha brasileira do aprendiz de sociólogo: projeto a uma sociologia nacional (1954), "Esforços de teorização da realidade brasileira politicamente orientados de 1870 a nossos dias" (nos ANAIS DO I CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, editados em 1955) e Sociologia de la mortalidad infantil (publicado no México, em 1955). [64]

O Grupo de Itatiaia – embrião do IBESP e do ISEB – [65]teve início a partir de agosto de 1952, no Parque Nacional de Itatiaia (entre RJ e SP), em local cedido pelo Ministério da Agricultura (cujo Ministro era João Cleophas), quando começou a se reunir – ocasionalmente – um grupo de intelectuais "paulistas" e "cariocas", sendo alguns católicos, antigos integralistas, conservadores e outros de posições mais à esquerda. Vargas, que já estimulava a Cepal (então Comissão Econômica para a América Latina, depois também para o Caribe), segundo D"Araújo (1992), teria discretamente incentivado as reuniões em Itatiaia.

A tônica dos debates, inicialmente, era a discussão teórica por parte de estudiosos, que tinham em comum certa configuração intelectual, influências de alguns autores e um desejo de impulsionar um pensamento genuinamente brasileiro.

Embora o grupo se consolide no Rio de Janeiro (e ali finque raízes), nos primórdios, intelectuais "paulistas" – sobretudo ligados ao IBF (Instituto Brasileiro de Filosofia) e à Revista Brasileira de Filosofia – participaram do começo das discussões em Itatiaia.[66] Os "paulistas" – Roland Corbisier, Angelo Simões de Arruda, Almeida Salles, Paulo Edmur de Souza Queiroz, José Luiz de Almeida Nogueira Porto, Miguel Reale[67]e também um professor italiano chamado Luigi Bagolini – eram liderados por Vicente Ferreira da Silva (filósofo cujos seminários eram muito conhecidos na cidade de São Paulo) que, como outros pensadores, guardava certo distanciamento da institucionalização e do ensino filosófico ministrado na Universidade de São Paulo (USP) – de inspiração européia, francesa (em essência) devido às "missões"[68]– e eram pejorativamente chamados por João Cruz Costa (professor uspiano) de "filósofos municipais".[69]

Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10


 Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.