A escrita de si - michel foucault
129- 160.
A ESCRITA DE SI1
A Vita Antonii de Atanásio apresenta a notação escrita das acções e dos pensamentos como um elemento indispensável da vida ascética: “Eis uma coisa a observar para se ter a certeza de não pecar. Que cada um de nós note e escreva as acções e o s movimentos da nossa alma, como que para no-los dar [130] mutuamente a conhecer e que estejamos cer tos que, por vergonha de sermos conhecidos, deixaremos de pecar e de trazer no coração o que quer que seja de perverso. Pois quem consente ser visto quando peca, e após ter pecado, não prefere mentir para ocultar a sua falta? Não fornicaríamos diante de testemu nhas. Do mesmo …exibir mais conteúdo…
Parece não haver dúvida que, entre todas as formas que tomou este adestramento (e que comportava abstinências, memorizações, exames de consciên cia, meditações, silêncio e escuta de outro), a escrita – o facto de se escrever para si e para outrém – só tardiamente tenha começado a desempenhar um papel considerável. Em todo o caso, os textos da época imperial que se referem às práticas de si concedem uma [133] grande parte à escrita. É preciso ler, dizia Séneca, mas escrever também 3. É Epicteto, que todavia não ministrou senão um ensino oral, insiste repetidas vezes no papel da escrita como exercício pessoal: deve-se "meditar" (meletan), escrever (graphein), treinar (gymnazein );
“possa a morte arrebatar --me enquanto penso, escrevo, leio”4. Ou ainda: “Mantém estes pensamentos noite e dia à disposição (procheiron ); põe-nos por escrito, faz -lhes a leitura; que eles sejam o objecto das conversas contigo mesmo, com um outro... se te suceder um daqueles episó dios que chamamos indesejáveis, logo e ncon trarás alívio no pensamento de que não era inesperado” 5 . Nestes textos de Epicteto, a escrita aparece regularmente associada à “meditação”, a esse exercício do pensamento sobre si mesmo que reactiva o que ele sabe, se faz presente um princípio, uma regra ou um exemplo, reflecte sobre eles, os