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Os atos ilícitos cíveis á luz da boa-fé objetiva: limites de uma virada jurisprudencial (página 3)

Vanessa Santos Lopes
Partes: 1, 2, 3, 4, 5

No antigo Código Civil o ato ilícito era previsto intrinsecamente ligado a idéia de responsabilidade, mais precisamente como elemento estruturante da responsabilidade civil, senão vejamos:

Art. 159. Aquele que, por ação omissão voluntária, negligencia ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.

Nota-se que no dispositivo, além do legislador não se referir ao dolo, somente à culpa, o prejuízo se apresenta como uma das formas de configurar o ato ilícito, podendo decorrer tanto de violação ao direito, quanto do ensejo ao dano. A conjunção "ou" era determinante, haja vista que se o ato ilícito emanasse da violação do direito não precisaria da ocorrência do prejuízo.

O atual Código Civil transformou substancialmente o conteúdo do ato ilícito com algumas poucas alterações na redação. Uma das alterações ínfimas, porém vultosas foi à substituição da conjunção "ou" por "e". Dessa forma, o art. 186 [51]que prevê o ato ilícito civil no novo Código, passou a idéia de que o prejuízo não era somente uma forma de caracterização para o ato ilícito, como era previsto no antigo diploma. Não basta somente a violação do direito, é necessária também a ocorrência do dano.

Fortalecem esse entendimento, os autores clássicos a exemplo de Orlando Gomes. Para o autor, o dano é componente essencial do ato ilícito, uma vez que o efeito do ato ilícito é justamente a obrigação de reparar.

A redação do art. 186 do novo código, apesar da considerável mudança em relação ao art. 159 do diploma de 1916, não trouxe muitas satisfações ao mundo jurídico. Muitas foram as críticas ao texto, sendo qualificada por alguns autores, como José Aguiar Dias como um equívoco legislativo.

Censurou o autor arrazoando seu posicionamento.

Se o que se pretendia era tratar separadamente o ato ilícito da reparação do dano, ao contrario do art. 159, que tratava da obrigação de reparar baseada na culpa, houve um visível excesso na definição daquele, em cujos elementos integrantes não figura o dano, requisito, e sim, da obrigação de reparar. (2006,p. 30).

Para José Dias Aguiar (2006) o aspecto determinante que descaracteriza o dano como elemento do ato ilícito é que podem ocorrer ilícitos civis que tem conseqüências diversas da necessidade de reparação.

Nota-se que o posicionamento do autor retrata posição doutrinária de tentativa de re-educação do judiciário. Isso porque a ligação inerente do ato ilícito com a ocorrência do dano inspira a idéia de que todo ato ilícito ocasiona a reparação do dano, e por ato contínuo, os tribunais e os operadores do direito atribuem à reparação um caráter patrimonial, ainda que o prejuízo tenha sido de outra natureza. Não parece razoável corroborar com esse entendimento.

A necessidade de o Judiciário reavaliar sua postura quanto à reparação civil, não permite possibilita a doutrina desnaturar os institutos. Como bem mencionou o autor, existem sim ilícitos cíveis que possuem efeitos distintos da reparação, a exemplo dos negócios ilícitos já mencionados acima. Contudo, os atos ilícitos propriamente ditos possuem autonomia em relação aos outros tipos de ilícitos e por tal razão, o dever de reparar é elemento imprescindível. Para tanto, existem as outras hipóteses de ilícitos, como os fatos, e negócios ilícitos que dispensam o prejuízo.[52]

Ultrapassada as considerações acerca do prejuízo, não se pode olvidar de um fator que talvez seja elemento mais importante para a configuração do ato ilícito; a contrariedade à norma, ao direito. Pelo conceito apresentado por Orlando Gomes, a contrariedade ao direito no ato ilícito, deve ser entendida como ofensa direta e imediata à lei. (2007, p.11)

A idéia defendida nesse trabalho contanto, partilha de um entendimento menos limitado. Mesmo que a expressão ato ilícito cause a impressão de que esse só irá existir se houver afronta a lei, é importante esclarecer que a norma assume um mais caráter abrangente. Dessa forma, poderá existir ato ilícito nas hipóteses de violação as disposições contratuais pactuadas. Complementando essa asserção, que já se constitui como um consenso entre os operadores do direito, convém transcrever as palavras de Renan Lotufo:

Cumpre lembrar que o ilícito geralmente é referido à violação direta da lei, mas não se pode deixar de admitir que possa existir uma violação direta à norma individual do negócio jurídico, contrato, e, pois mais remota da lei. Nesse caso, teremos o que se pode classificar de ilícito contratual, que é disciplinado pelos arts. 389 e seguintes do Código (2003, p.497)

Não somente a violação direta a lei e as normas contratuais motivam o ato ilícito. A afronta a preceitos e a finalidade da norma também provocam a sua incidência. Nota-se que o próprio legislador não quis restringir o âmbito de incidência do ato ilícito, prevendo no art. 186 que a violação ao direito e não a lei induz a sua configuração.

É nesse sentido que traz Eduardo Ferreira Jordão a terminologia de Antônio Castanheira Neves que define precisamente o significado da contrariedade ao direito. Segundo ele, o ato ilícito pode ser formal, quando decorre de violação à letra da norma, ou material quando oriundo de ofensa aos preceitos implícitos da norma, aos princípios que a norteiam. (2006. p. 102). É nessa segunda hipótese que se enquadra o art. 187 do CC/02, ao dispor que também comete ato ilícito o "titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".

Há ainda quem defenda que a análise da contrariedade a direito na ilicitude esteja também relacionada à consciência ou não dessa contrariedade, definida por alguns autores como antijuridicidade. Nesse sentido, sustenta Machado Neto.

É óbvio, portanto, que aqui não nos ocupará a sutil distinção dos civilistas entre ato ilícito propriamente dito, isto é, aquele que apresente antijuridicidade subjetiva ou culpa e a ação contrária ao dever jurídico, mas à qual falte consciência da antijuridicidade por parte do agente. Dado que aqui tratamos – no plano lógico-jurídico da Teoria Geral do Direito – de um conceito puro e não de um conceito empírico, construído cientificamente ou dogmaticamente, não poderemos negar a condição de ato ilícito à conduta humana contrária ao dever jurídico ou prestação, conceituada de endonorma. (NETO apud JORDÃO, 2006, p. 100)

Infere-se como ato ilícito, assim sendo, "todo aquele que não encontra guarida em dado ordenamento jurídico por frustrar um dever ou valor nele fundado" (JORDÃO, 2006, p.101). Não decorre, portanto, somente da violação direta à lei mas também de afronta aos valores e finalidades firmados na lex.

Além das discursões quanto o conteúdo da contrariedade ao direito, resta ponderar acerca da averiguação da conduta volitiva no ato ilícito. Em outras palavras, indaga-se se há a necessidade do elemento anímico à constituição do ato ilícito.

Para Sergio Cavalieri Filho, o ato ilícito é um ato consciente decorrente da manifestação da vontade, podendo essa manifestação ocorrer tanto de forma omissiva, como também de atuação expressa. (2007, p. 23).

Partilha desse mesmo entendimento Renan Lotufo ao afirmar que "a caracterização do ato ilícito continua sendo pela culpa (que engloba o dolo, evidentemente), o nexo de causalidade entre o ato culposo e o dano, e este, o dano". (2003.p. 497).

Ainda que alguns autores defendam a presença da culpa no conceito de ilicitude, no direito moderno, entretanto, esse posicionamento vem sendo cada vez mais aplacado. Até mesmo as próprias disposições do novo Código já apresentam um ato ilícito independente de culpa, em seu art. 187.

Verificam-se através da redação do novo código duas categorias de atos ilícitos; aqueles que depreendem a averiguação da culpa prevista no art. 186, e aquele decorrente da simples afronta ao direito, sejam pelos seus valores e preceitos ou pela ofensa frontal a letra da norma, disposto no artigo subseqüente.

Por todo o exposto, é possível delinear algumas linhas da definição do ato ilícito assim compreendido como toda conduta humana omissiva ou comissiva contrária aos parâmetros definidos pela norma, sejam eles explícitos ou implícitos[53]que ocasionem prejuízo, podendo ou não ter havido o animus de causar tal dano.

Diante de tais considerações e de um conceito formulado de ato ilícito, já é possível mensurar o que se pretende no presente capítulo, analisar o abuso de direito como ato ilícito, sobretudo à luz da conjectura do art. 187 do Novo Código Civil.

3.3 O ABUSO DE DIREITO COMO ATO ILÍCITO

Os dissensos doutrinários acerca da consideração do abuso de direito como ato ilícito não se iniciaram somente em razão da previsão do art. 187 do novo diploma civil. Institutos como a desconsideração da personalidade jurídica, que repreende o abuso do direito cometido pelo responsável pela pessoa jurídica, já ensaiava uma figuração do abuso como ato ilícito, o que provocava alguns debates.

A primeira questão suscitada pela doutrina como ponto provocador desse dissenso é a antinomia dos institutos. Há quem defenda que o abuso de direito e o ato ilícito são institutos contraditórios, já que para a configuração do abuso é preciso atuar em conformidade com o tipo previsto na norma, enquanto que o ato ilícito é justamente o inverso. Para a sua incidência é necessário que haja a ofensa ao quanto disposto. Em outras palavras seria a desobediência da letra da norma.

Defende esse fundamento João Álvaro Quitiniano Barros, afirmando que:

O fator determinante da diferença entre abuso de direito e ato ilícito é a natureza da violação a que eles se referem. No ato ilícito a violação é observada quando o individuo afronta diretamente um comando legal, levando-nos a crer que o aludido comando contém previsão expressa da conduta praticada pelo indivíduo. Já no abuso, o sujeito aparentemente estaria agindo no exercício do seu direito. Contudo, na configuração de tal hipótese, o sujeito se encontra violando os valores que justificam o reconhecimento desse direito pelo ordenamento jurídico.(2005, p. 06).

Observa-se que aqueles que se filiam a essa posição se amparam no conceito de ato ilícito como conduta de afronta direta a lei. Nesse sentido, que também firma seu entendimento Heloisa Carpena asseverando que "no ato ilícito o sujeito viola diretamente o comando legal, pressupondo-se então que este contenha previsão expressa daquela conduta". Por sua vez, no abuso "não há limites definidos e fixados aprioristicamente, pois estes serão dados pelos princípios que regem o ordenamento, os quais contém seus valores fundamentais" (2003 , p. 371). Seria o abuso uma categoria de autônoma de antijuridicidade.

Nesse sentido, também defende Orlando Gomes:

No ato ilícito o agente infringe a lei frontalmente. No abuso de direito, viola o principio geral de que os direitos devem ser exercidos com certos limites, a fim de que seja atingida a finalidade em vista da qual se conferem e tutelam, apesar de serem inconfundíveis. (GOMES, 2008, p. 123).

Impõe-se mais uma vez divergir desse posicionamento. A visão do ato ilícito somente como conduta que afronta direta a lei, excluiria as outras hipóteses de violação que se adequam a todos os outros requisitos do ato ilícito. Estariam essas proposições lançadas pelo ordenamento sem qualquer definição de sua natureza. A exemplo estão os ilícitos contratuais[54]Apesar de oriundas da conduta humana que ensejam prejuízo, não poderiam ser considerados atos ilícitos por ,simplesmente, a violação não decorrer da lei propriamente dita, mas de normas que também possuem força imperativa.

Por tais razões, filia-se ao posicionamento adotado por Judith Martins Costa, que compreende o ato ilícito derivado de contrariedade aos deveres impostos pelo ordenamento, compreendendo esses deveres um complexo de regras e princípios decorrentes da jurisprudência, da lei e dos costumes. (2006, p.14). É nesse contexto que se enquadra o ato abusivo, figurando não como a violação frontal a lei, mas aos valores por ela fixados.

Com efeito, faz-se indispensável indicar as lições de Inácio Carvalho Neto citado por Nelson Rosenvald, destacando a representação do abuso de direito como ato ilícito, in verbis:

Também será ilícito o ato que fere a ordem jurídica, ainda que tenha, em principio, obedecido à ordem legal. Ora, o exercício abusivo de um direito fere justamente a ordem jurídica, ainda que conforme à lei; é no desvio de finalidade social que o ato se caracteriza como abuso- ferindo o rdenamento jurídico, e por conseguinte, caracterizando-se como ato ilícito. (CARVALHO NETO apud ROSENVALD, 2007, p. 124).

Insere-se desse modo, o ato abusivo na categoria de ato ilícito material, por violar os preceitos que fundamentam a norma, hipótese enquadrada no art. 187 do novo diploma. O disposto no art. 186, já se enquadra em outra categoria de ato ilícito, da ilicitude formal, pela violação direta e imediata à lei. São figuras distintas, que ao revés do que alguns autores citados defendem não se excluem, em verdade, compatibilizam-se.

Outro ponto que se questiona a caracterização do ato abusivo como ato ilícito, também decorre de um dos requisitos para a configuração da ilicitude, qual seja, a culpa. Entendendo a necessidade do elemento anímico para a configuração da ilicitude, haveria, portanto incompatibilidade entre os institutos, haja vista que para o ato abusivo se dispensa a existência da culpa.

Nos dizeres de Heloisa Carpena, a inserção do ato abusivo como ato ilícito ofuscaria o conteúdo do abuso de direito, vez encaminharia tal instituto a uma seara subjetiva que é inerente e exclusiva do ato ilícito. (2003, p. 382).

Impede tecer algumas críticas a esse posicionamento. Como já revelado no tópico anterior, para a configuração do ato ilícito não é necessária à presença da culpa. Nota-se, que a maioria da doutrina indica como elemento da ilicitude somente a conduta humana. A averiguação da culpa e do dolo constitui apenas um complemento para definição de ilicitude. A ilicitude está presente na infração da norma, sendo objetivamente considerada.

Por seu turno, toda a controvérsia que se pauta a discursão do abuso de direito como ato ilícito tem suas razões fundadas em um único propósito. Tentar delimitar a natureza jurídica do abuso de direito.

Diante dessa finalidade, alguns autores buscam instituir novas categorias para inserir o ato abusivo. É o caso de Silvio de Salvo Venosa que tenta enquadrar o abuso do direito entre ato jurídico licito e o ato ilícito à medida que a atuação inicialmente aparenta contornos lícitos, mas o resultado sugere uma conduta irregular. (2002, p.261).

Em outras palavras, mas sugerindo a mesma idéia, Heloisa Carpena sugere o abuso de direito como uma categoria autônoma de antijuridicidade. (2003, p. 382).

Com efeito, as tentativas da doutrina para diferenciar o ato abusivo do ato ilícito, inserindo-o em uma nova fonte de natureza jurídica são bastante compreensíveis. A preocupação paira justamente no receio do abuso de direito perder sua autonomia, já que a inserção desse, como categoria de outro instituto (ato ilícito) poderia obscurizar a relevância do seu estudo.

O conflito, no entanto, é de fácil resolução. Nesse ponto, houve uma grande contribuição do legislador possibilitou um destaque ao ato abusivo dedicando um artigo para a sua disposição, ao tempo que não retirou a sua natureza de ato ilícito, enquadrando-o no titulo III destinado a tal tema.

Utilizando das palavras de Nelson Rosenvald, que sintetiza de forma enfática a solução do problema, induz que o "legislador qualificou o abuso de direito como ato ilícito, e concordemos ou não, é assim, que doravante deveremos tratá-lo" (2007, p.122).

Nesse sentido, também entende a Jurisprudência pátria que antes mesmo da previsão do Novo Código já firmava o entendimento exposado, como indica julgado abaixo proferido em 1996.

Comete abuso de direito, que é ato ilícito absoluto, o contraente que, com grave prejuízo a outro, exercita de forma irregular o poder de desconstituição unilateral do contrato por prazo indeterminado. De modo que comete o cedente que, sem provar necessidade inadiável, denuncia contrato atípico de cessão de águas ao termo do plantio do cessionário, comprometendo-lhe toda a safra com falta de irrigação. (TJSP -2ª.C.-Ap. 182.977-1-Rel.Des. Cezar Peluso- j.01.06.1996 – JTJ-lex 148/81)

Atualmente a posição não é diversa. Embora existam julgados que façam a diferenciação entre abuso de direito e o ato ilícito, é notório que são reconhecidos os mesmos efeitos, qual seja a responsabilidade civil. Em suma, com a previsão expressa da lei, sem razão de ordem pratica que fundamentem rispidamente sua incompatibilidade com o ordenamento, o Superior Tribunal de Justiça também firmou o entendimento quanto a caracterização do abuso de direito como ato ilícito. A título elucidativo se pode citar o recente julgado publicado em 19.06. 2006[55]que trata sobre a matéria. In casu, o Tribunal reconheceu o cometimento de ato ilícito por uma empresa de energia que suspendeu o fornecimento dos serviços para um usuário por estar em débito sob a quantia de R$ 0,85 (oitenta e cinco centavos).

Feitas tais constatações, é possível se concluir que todas as formas de abuso de direito se constituem como ato ilícito e sofrem, portanto os mesmos efeitos. Assim, para se delimitar alguns estados de abuso do direito, examinar-se-á as modalidades de atos ilícitos[56]decorrentes de atos abusivos por violação a boa-fé objetiva, mais presentes na jurisprudência. São eles: o venire contra factum proprium, a teoria da supressio, exceptio doli e tu quoque, figuras que serão estudadas no capítulo que se segue.

As modalidades de atos ilícitos fundamentados na boa-fé objetiva

4.1 DA CONSAGRAÇÃO DAS MODALIDADES DE ATOS ILÍCITOS PELO ORDENAMENTO.

No capítulo dedicado à boa-fé objetiva se testificou que seu conteúdo é essencialmente constituído pela confiança e lealdade. De mesmo modo, constatou-se que o sujeito que atua em afronta aos preceitos da lealdade e confiança, estando em aparente conformidade com a disposição da lei, comete ato ilícito em decorrência do abuso de direito.

Notadamente, as modalidades de ato ilícito por violação à boa-fé objetiva vêem sendo cada vez mais adotadas no sistema jurídico pátrio. Não raro se observar que considerável parcela das obras elaboradas atualmente, versa sobre alguma ou todas as categorias aqui estudadas, seja o venire contra factum proprium, a supressio, a exceptio doli, ou o tu quoque. Essa atenção, contudo não esteve sempre presente.

O antigo diploma civilista não trabalhava com hipóteses que previam esses atos ilícitos, fato inteligível. A concepção privatista do Código Civil de 1916 não era compatível com a proteção à confiança e a solidariedade social que são desrespeitados no âmbito da ilicitude. Por ora, a jurisprudência possuiu um papel fundamental de propagação do reconhecimento dessas categorias de ilícitos.

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, as investiduras da jurisprudência para a relevância das categorias de ilícitos por abuso foram ainda mais freqüentes. Era possível se verificar os anseios dos operadores do direito por um sistema menos delimitado, e que se compatibilizasse com a realidade social. Era necessário recorrer ao direito estrangeiro, mas precisamente o direito europeu, que apesar da brusca diferença entre as realidades sociais, conseguiu se adequar as pretensões perqueridas.

Com quase um século de vigência do Código de Beviláqua, já se tinha ter um esboço de um reconhecimento jurisprudencial da matéria. Era possível observar alguns julgados que utilizavam a expressão "venire contra factum proprium" mesmo que fora do contexto hoje utilizado.

Nota-se que o novo Código Civil nasceu em um ambiente previamente estabelecido, em que a maioria dos institutos já estavam consagrados pelos aplicadores do direito. Ao invés de trazer novos paradigmas, apenas ratificou àqueles já previamente firmados.

Nesse sentido, convém citar a crítica formulada por Anderson Shreiber, in verbis::

De fato, as novidades do novo código ficaram, quase todas, por conta do registro expresso de institutos e formulas já há muito aplicadas em nossa cultura jurídica. As esperanças de uma verdadeira inovação do direito civil permanecem em grande parte, onde estiveram durante todo o século passado: no "jeito de ver" dos seus interpretes. (2007, p. 74).

O novo Código Civil nasceu, e não correspondeu as expectativas, em que pese, seu caráter principiológico. Não houve a apresentação dessas categorias no texto legal como eram esperadas. A idéia de inserir no diploma disposições que mencionassem expressamente a proibição ao comportamento contraditório e as demais modalidades foi substituída pelas previsões específicas e casuísticas. Somente através da interpretação do texto é que se podia reconhecer a presença dessas figuras parcelares da boa-fé objetiva como atos ilícitos.

Como exemplo, é possível citar algumas das disposições pontuais do CC/02 que repelem essas formas de atos ilícitos. Uma das expressões claras contendo uma hipótese de vedação a uma desses atos ilícitos é o art. 476[57]que consagra a exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus). Não demais ainda mencionar o art. 619 parágrafo único[58]que impede o dono da obra posteriormente se refutar ao pagamento dos acréscimos realizados pelo empreiteiro se teve ciência desses acréscimos e nunca protestou. O art. 1.146[59]também veda o comportamento contraditório, à medida que reconhece como realizada a compra nas hipóteses que tenham condições suspensivas, bem como o art. 175[60]que impede o devedor aduzir anulabilidade de negocio que confirmou expressamente.

Essas disposições esparsas causam grandes transtornos a sistemática do ordenamento. Por um lado em determinados artigos se repreende esses atos eivados de ilicitude, por outro, em tantas outras disposições eles são permitidos. Nesse sentido, destaca Anderson Schreiber (2007), os arts. 428, IV [61]438, parágrafo único[62]e 1.969[63]do novo diploma. A dificuldade ainda maior se encontrava não somente pelo fato de existirem disposições que ampararam situações eminentemente contraditórias. O empecilho para que houvesse uma expressão geral de vedação aos atos ilícitos vinha da aparente razoabilidade da preservação desses dispositivos no ordenamento.

Embora os arts. 428, IV [64]438, parágrafo único[65]e 1.969[66]que prevêem possíveis permissões de atos ilícitos sejam considerados contrários ao espírito do ordenamento, em verdade, pela análise aprofundada de seus textos, nota-se que não tutelam situações que são seguramente abusivas. O impasse que a primeira vista não teria qualquer solução lógica, encontrou amparo nas tentativas da jurisprudência em fixar contornos dogmáticos aos institutos.

Como forma de superação desse impasse, faz-se necessário o estudo individualizado de cada modalidade, investigando de que forma são vistos, e como podem ser harmonizados no ordenamento.

4.2 AS MODALIDADES DE ATOS ILÍCITOS CÍVEIS À LUZ DA BOA-FÉ OBJETIVA

4.2.1 Exceptio doli

No mais remoto alicerce do direito romano se firmou a regra segundo a qual o "sujeito passivo de uma relação jurídica teria o poder de repelir a pretensão do autor se esse tivesse incorrido em dolo". (CORDEIRO, 2001, p.720). Nasce daí a exceptio doli, concebida como manifesta rejeição do réu a pretensão jurídica do autor por esse ter agido com dolo. Na classificação trazida por Menezes Cordeiro (2001) há três formas de defesa em confronto à conduta dolosa, a clausula doli, a actio dolo e a exceptio doli. Na clausula doli as partes avençam que se uma das partes incidir em dolo essa será penalizada com os efeitos convencionados. A actio dolo equivale a ação indenizatória que o prejudicado poderá ajuizar. Por fim, ter-se-ia a exceptio doli que se infere como a impugnação à ação já ajuizada maculada pelo dolo.

Como recorda Nelson Rosenvald a primeira teoria acerca da exceptio doli tratava da atuação dolosa no momento em que ocorrida a situação jurídica. Com a criação dos vícios de consentimento[67]essa concepção perdeu o sentido, sendo posteriormente, considerado o dolo somente no curso do processo, dando origem ao que a se denominou de exceptio doli generali ou praesentis. (2007 p.133). Existia ainda a exceptio doli especialis ou praeteriti cuja incidência só era possível no momento de formação da demanda. (SOUZA, 2008. p.64).

Por um longo período a exceptio doli foi aceita pela jurisprudência, principalmente alemã, para coibir aquelas condutas que aparentemente estavam conforme à norma jurídica, todavia corrompida pela má-fé. Por ser considerado um meio de defesa genérico, era comum que os operadores do direito recorressem a ela já que eram escassas as figuras que detinham essa função de forma mais especifica[68]

O aperfeiçoamento do direito aportou alguns institutos como a compensação e o direito de retenção que reduziram consideravelmente o campo de atuação da exceptio doli sendo literalmente esquecida. Seu renascimento só ocorreu com a consagração da boa-fé objetiva sob a qual foi criada uma vertente mais objetivada do instituto. A exceptio doli passou a ser considerar como meio de defesa em face de toda afronta a boa-fé objetiva. Apoiado nesse pensamento, defende José Gustavo Souza Miranda:

Quando se fala em dolo é porque a expressão latina é assim traduzida literalmente. Contudo, quando tratamos de estudar essa exceção tendo em vista o principio da confiança, não podemos esquecer tudo o que foi dito anteriormente sobre os aspectos objetivos que compõem o dolo. (2002,p.147).

Entretanto, essa tentativa de inserir a todo esforço a exceptio doli na nova orientação do Direito Civil não surtiu frutos. De início, a existência de outras formas de repressão a violação à boa-fé objetiva torna absorta a utilização da exceptio doli. Nesse sentido, aponta Anderson Schreiber:

[...] definindo-se a exceptio doli como meio de defesa contra qualquer violação à boa-fé objetiva, ela perderia a razão de sua existência ou ficaria reduzida a uma mera expressão de estilo, já que o ordenamento jurídico reprime as violações à boa-fé, por inúmeros instrumentos e independentemente deles. (2007, p.181).

Igualmente, a abstração da subjetividade no que concerne à definição da exceptio doli não poderia surtir quaisquer efeitos, haja vista que sua aplicação exige a presença do dolo.

Constata-se que a utilização da exceptio doli, mesmo diante dos esforços em adequá-la a nova sistemática do direito contemporâneo não alcançou os efeitos pretendidos. Seu lugar foi cedido às outras formas mais eficazes e especificas de repreender a transgressão à probidade como o reconhecimento da supressio, tu quoque e venire contra factum proprium.

4.2.2 Venire contra factum proprium

A expressão nemo potest venire contra factum proprium denota a proibição ao comportamento contraditório. Na conceituação trazida por Menezes Cordeiro, o venire contra factum proprium se consubstancia como o exercício de posição jurídica contrária a uma atuação anteriormente assumida. Há dois comportamentos lícitos e diferidos no tempo que são ligados por um liame; a segunda conduta segue direção oposta à primeira. (2001, p 743).

Para Judtih Martins Costa (1999), o preceito do venire contra factum proprium se enquadra na teoria dos atos próprios em que se reconhece como ilícito o sujeito exercer seu direito em contra-senso a um comportamento objetivo assumido anteriormente.

Ponderando unicamente as palavras "à vol d'oiseau", é possível se cogitar que o direito não admite comportamentos contrários, ou melhor, a mudança de comportamento. Não é esse o caso. É sabido que o homem por sua própria natureza tem um caráter inconstante, de contínua mutação.

É por conseqüência desse comportamento instável, que se garante o desenvolvimento da humanidade e sua adaptabilidade ao meio, modificando inclusive, os padrões de conduta. A própria Constituição Federal consagra esse comportamento como direito fundamental do homem, ao prevê o direito à liberdade[69]que abrange igualmente, a mudança de opinião ou atitude.

Em verdade, a vedação ao comportamento contraditório não proíbe qualquer comportamento incoerente. O que não se admite, é que o sujeito atue frustrando as expectativas que criou em outrem, em razão daquele comportamento anterior. A não aceitabilidade do venire não se firma apenas no comportamento conflitante, mas, sobretudo, na quebra da confiança que foi gerada em terceiros.

Consideração relevante traz Judith Martins Costa sobre tal questão, referenciando a confiança como fundamento essencial do venire contra factum proprium. Preceitua a autora:

A proibição de toda e qualquer conduta contraditória seria, mais do que uma abstração, um castigo. Estar-se-ia a enrijecer todas as potencialidades da surpresa, do inesperado e do imprevisto na vida humana. Portanto, o princípio que proíbe como contra ao interesse digno da tutela jurídica é o comportamento contraditório que mine a relação de confiança recíproca minimamente necessária para o bom desenvolvimento do tráfego negocial, (1999, p.469).

Nota-se, que o comportamento contraditório por si só não é entendido como ilícito, mas sim, aquela conduta que frustrou a expectativa do outro, criada a partir de um comportamento anterior. Importa a confiança que o fato anterior (factum proprium)[70] criou, e que foi rompida pelo ato subseqüente, gerando a frustração das expectativas firmadas pela outra parte. Dessa forma, a pessoa que firma uma rotina e repentinamente muda seu itinerário habitual, não quebra a priori, confiança que possa ser relevante para o direito, mesmo incidindo em comportamento incoerente. A situação se diverge quando esse mesmo sujeito promete a outra pessoa lhe vender determinado bem, fazendo essa outra parte, inclusive investimentos, e ao final o agente não concretiza a venda. Somente esse último caso seria uma hipótese de comportamento contraditório repudiado pelo direito.

Importa destacar, que mesmo residindo a expectativa em um ímpeto subjetivo, a proibição ao comportamento contraditório não decorre da análise da intenção do agente, tampouco do animus daquele que se prejudicou em decorrência do venire. A análise se houve ou não o rompimento da confiança, perpassa pela compreensão da probabilidade de que aquele antigo ato perdurasse. A expectativa, portanto seria analisada pela possibilidade dela ser razoável dentro dos padrões de condutas existentes. Não é qualquer expectativa que será abarcada pela proibição ao comportamento incoerente, mas somente aquela que for fundada em uma convicção razoável.

Nesse contexto, exprime com clareza Menezes Cordeiro ao afirmar que a tutela da confiança no venire se baseia em três premissas, são elas: a justificação da confiança que se funda em elementos objetivos aptos à provocarem uma crença plausível, o investimento na confiança manifestado através dos atos praticados pelo sujeito, baseados na expectativa que foi criada, e por fim, a imputação da situação de confiança que denota a existência de boa-fé da parte que confiou. (2002, p. 411).

Como afirma Anderson Scheiber que dedica uma obra exclusivamente ao tema, o venire contra factum proprium se revela à luz de quatro pressupostos. O primeiro deles é um ato, definido pelo autor como factum proprium, atrelado à confiança do outro na conduta, ou ato anterior. Posteriormente há uma conduta contraditória à primeira e o conseqüente dano causado pela violado da confiança depositado no primeiro ato. (2007, p. 132). Exprime-se que para haver o venire é necessário que haja prejuízo a terceiros, indicando, por conseguinte, a importância do dano como pressuposto do ato ilícito, o que já fora discutido anteriormente.

Um dos mais relevantes sinais de indicação expressa do venire contra factum proprium no tráfico jurídico veio do direito inglês. Equiparando o venire ao instituto inglês do estoppel, Carlyle Popp registrou um caso em 1965, de aplicação do venire contra factum proprium ao direito de família. A ação versava sobre uma lide entre um casal, em que o homem, após estabilizar-se em outro relacionamento, exigiu que sua antiga companheira se retirasse do lar em que moravam juntos por anos. Além da efetiva existência de more uxória, a antiga companheira ainda tinha investido parte da poupança que tinha, em reformas para esse imóvel. Destarte, entendendo que o companheiro tinha frustrado as legítimas expectativas da antiga convivente, o tribunal reconheceu a configuração do estoppel, e determinou que fosse transferida a propriedade e posse do imóvel para a antiga consorte. (ROSENVALD, 2007, P. 138).

No Brasil, os tribunais também foram os principais responsáveis pela vinda do venire ao ordenamento. Nos tribunais superiores o primeiro julgado que reconheceu a aplicação do nemo potest venire contra factum proprium data de 1978.[71] Em 20 do mês de outubro do ano supracitado, o STF proferiu acórdão em que não conheceu o recurso extraordinário da parte que aduziu a inconstitucionalidade da aplicação da lei uruguaia, buscando o reconhecimento do regime de bens adotado no Brasil, qual seja,comunhão parcial, quando em verdade, casou-se no Uruguai e adotou o regime de separação de bens. Em voto, o ministro relator, Exmo Leitão de Abreu considerou que o recorrente atuou em afronta à boa-fé, ao execrar o regime de bens que manifestamente adotou, quando firmou matrimônio no estado uruguaio. Eis o trecho do referido voto:

Com perfeita boa-fé agiu o recorrente no estabelecimento do regime de bens do casamento. Tanto quis, com lealdade esse regime, que, realizado o matrimonio, ale, de outros atos, que traduzem manifestação inequívoca de que se considerava casado sob o regime de separação de bens, chegou o mesmo a declarar –se assim casado em escritura pública de aquisição de bens (fl.660). Se isso é certo, não pode, agora, passados anos, cerca de um qüinqüênio, ser ouvido quando vem sustentar que o regime de bena, em vez de ser o da separação, ao qual conscietemente se submeteu e sob o qual, de fato, passou a viver, é o regime da comunhão. Tendo criado, com a recorrida, uma situação que ambos acreditaram regular e juridicamente constituída, situação que foi condição do casamento, não pode vir agora, sem quebra da boa-fé, renegar o regime a que ambos, no casamento quiseram submeter-se. Instituindo uma situação em que a aoutra parte confiou, a alegação, que agora levanta, de que o regime de bens é o da comunhão de bens, importa quebra do principio geral de direito, se gundo o qual não pode a parte venire contra factum poprium. (1978, RE/86.787-RS, DJ 04-05-1984 EMENT VOL-00113-02 PP-00621, RTJ VOL-00090-03 PP-00968).

Como se depreende no voto transcrito, o ministro atribui a vedação ao comportamento contraditório a definição de princípio geral do direito. De certo que dentre os atos ilícitos objetivamente considerados, o mais relevante é o venire contra factum proprium. Não é por acaso que o apresentam como princípio e não somente como um instituto. É pela sua tamanha importância no trafico jurídico, que salta à vista algumas discursões acerca de sua natureza no ordenamento. Não é demais mencionar que o fato de alguns autores, como Menezes Cordeiro (2002) e Anderson Schreiber (2007) o considerar como princípio, não retira a sua qualidade de abuso do direito. A inserção do venire nessa categoria, só vem facilitar a compreensão metodológica da matéria, e, por conseguinte, não reduz sua relevância na ordem jurídica.

Há ainda algumas outras discursões atinentes a natureza do instituto. Dogmaticamente, debate-se muito se o venire decorre de uma violação à boa-fé objetiva, ou se consiste numa espécie de abuso de direito.

Compactuando da visão explanada por Anderson Schreiber (2007), a polêmica não passa de um "falso problema". Considerando que o abuso de direito pode derivar da violação aos limites da boa-fé, não pairam dúvidas que o venire seja uma espécie de ato abusivo, por afronta à boa-fé.

Pactuando desse entendimento, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal em julgado proferido em 25 de maio de 1999, in verbis:

Actua com abuso do direito - por representar um verdadeiro venire contra factum próprio - a parte que, decorridos mais de 10 anos depois de haver conferido expressa autorização à contraparte para, através de um seu logradouro, aceder a uma pequena construção para depósito de botijas de gás existente em outras fracções (que pela segunda, veio, a ser arrendada no pressuposto da subsistência de tal autorização) vem agora, ao arrepio

da actuação objectiva de confiança por si criada, pedir a condenação do beneficiário a abster-se de usar tal logradouro para o transporte daquelas botijas. (JSTJ00037112, Relator Fernandes Magalhães - SJ199905250004091 - 25/05/99)

Outra questão proeminente é a relação entre a vedação ao comportamento contraditório e o direito adquirido. Isso porque desperta uma sensação incômoda na medida em que na proibição ao comportamento incoerente se tutela a expectativa como direito. Importa advertir, que há uma substancial diferença entre a expectativa como direito e a expectativa de direito. Como indica a própria expressão, a expectativa de direito não é um direito. Ver-se essa hipótese quando o direito está condicionado ao acontecimento de algum fato. A exemplo, quando o sujeito tem a promessa de receber uma doação se cumprir determinada obrigação.

No caso da expectativa como direito, a expectação se consubstancia em um direito adquirido. Nos dizeres de Luciano de Camargo Penteado,

"a frustração dessa expectativa seria uma obstação do fato ou condição subordinante, o que pode implicar venire contra factum proprium, nos casos em que viola a regra da boa-fé obstando a conversão da expectativa em direito adquirido" (2006, p. 06).

A ocorrência do venire contra factum proprium gera, portanto, direito adquirido àquele prejudicado, podendo o agente da conduta incoerente ser obrigado a indenizar a parte lesionada, ou, de forma mais compatível com a tutela jurídica, ser compelido a prestar a tutela específica.

Diante de tantas discursões acerca do venire contra factum próprio, seja em razão da sua natureza, seja pela problemática em torno da tutela da confiança, a questão que talvez gere mais tormenta na doutrina e jurisprudência se apresenta na relação do venire com o sistema de nulidades. Indaga-se se seria possível obstar a impugnação a um ato juridicamente eivado de vícios, com fundamento na vedação ao comportamento contraditório. Em outras palavras, questiona-se se o agente de um ato em dissonância com o direito, poderia ser impedido de impugnar seu próprio ato em razão do venire contra factum proprium.

Nas hipóteses de anulabilidade, não existem muitas desavenças, já que tanto a doutrina como a jurisprudência reconhece a aplicação do nemo postest venire contra factum proprium para descaracterizar uma impugnação à nulidade relativa. Justifica-se essa aceitação utilizando dos mesmos fundamentos a confirmação tácita do negocio jurídico, guardadas algumas dessemelhanças cruciais. Nota-se que tanto na confirmação tácita quanto na vedação ao comportamento contraditório não se admite a impugnação para aqueles que tenham cumprido ou tenham dado causa ao vício que macula o ato.

A diferença está em critérios objetivos vez que, na confirmação tácita há um juízo de existência de animus do agente em convalidar aquele ato, enquanto que no venire há um sustentáculo estritamente objetivo que se firma pela expectativa criada na outra parte de que não haverá a impugnação do ato, por se fundar em interesses unicamente particulares.

Por ser efetivamente reconhecida pela prática forense, a doutrina nomeou como "inelegabilidade de nulidades formais" essa possibilidade de convalidar os atos eivados de vícios em respeito à tutela da boa-fé objetiva. Trata-se de um impedimento para que a parte não se beneficie de um vicio de forma que ela mesma tenha causado.[72]

Nesse mesmo sentido se entende a imposição do venire em casos de nulidade absoluta relacionadas a vícios formais. A tendência cogente da proteção a boa-fé objetiva, e a linha cada vez mais tênue entre os interesses públicos e privados impendem uma aplicação cada vez maior da vedação ao comportamento contraditório, mesmo que para obstar os efeitos das nulidades absolutas formais. Obtemperando Anderson Schreiber:

Sendo as nulidades formais geralmente estabelecidas em beneficio da segurança das relações sociais, não raros tribunais concluem que a conservação daquela relação já consolidada no tempo atende melhor ao interesse público –até no que diz respeito ao valor da segurança- que a sua anulação. Isto aliás, se coaduna com a tendência contemporânea de temperar o excessivo formalismo do direito positivo. Daí virem os tribunais de toda parte acatando a incidência do nemo potest venire contra factum proprium em face das nulidades formais.

A exemplo, convém fazer referência ao julgado proferido pela 4º Turma do STJ, publicado em 22.06.1998, em que não se reconheceu o pedido da Administração Publica em anular, por ausência de regulamentação do loteamento, o contrato de promessa de compra e venda firmado com particular. Eis os termos da ementa:

Loteamento. Município. Pretensão de anulação do contrato. Boa-fé. Atos Próprios. Tendo o município celebrado contrato de promessa de compra e venda de lote localizado em imóvel de sua propriedade, descabe o pedido de anulação do contrato dos atos, se possível à regularização do loteamento que ele mesmo está promovendo. Art. 40 da Lei 6.766/79. A teoria dos atos próprios impede que a administração pública retorne sobre os próprios passos, prejudicando os terceiros que confiaram na regularidade de seu procedimento. (RE 0057205-8/SP, Rel. Ministro Ruy Rosado, 24-11-1998).

A situação se diverge quando se trata das nulidades absolutas de caráter substancial. Filiando-se à compreensão adotada por Menezes Cordeiro, a desconstituição da nulidade absoluta substancial traria uma insegurança jurídica desnecessária mesmo que sob a égide da tutela da confiança. Para compatibilizar a proteção à boa-fé e o respeito às previsões relacionadas as nulidades, indica o autor que seria possível compelir o agente a ressarcir ou indenizar a parte prejudicada, o equivalente ao proveitos que a parte lesada teria, se o ato nulo continuasse a produzir efeitos. (2002, p.946) [73]

Em razão dos efeitos e da amplitude da vedação ao comportamento contraditório alguns autores, como Anderson Schreiber (2007) definem todos os outros atos ilícitos, como decorrentes do venire contra factum proprium. Entende o autor, que a supressio, a surrectio, e o tu quoque seriam subespécies do comportamento incoerente. Embora os outros atos ilícitos apresentem similitudes com o venire esses são institutos com características próprias e como tal, detém particularidades que garantem a sua autonomia no sistema. Ver-se-á, portanto, no decorrer da pesquisa, as principais distinções entre esses atos e o comportamento contraditório, que não obstante seu grande destaque no universo jurídico, não perde seu caráter morfológico de ato ilícito.

4.2.3 A supressio e a surrectio

A supressio[74]ou verwirkung no direito alemão tem suas raízes mais remotas no inicio do século XX, mais precisamente 1923 na Corte germânica. A época, a moeda alemã vivia uma fase de crise, em que a desvalorização era crescente. A correção monetária sofria uma elevação que implicava em um aumento considerável das dividas, o que majorava consideravelmente seu o valor com poucos dias de atraso no adimplemento. Atento a extensão da crise, "o tribunal germânico reconheceu a perda do direito a correção monetária, por parte de um empreiteiro que havia retardado por quase dois meses a comunicação ao devedor de corrigir o preço ajustado". (FARIAS e ROSENVALD, 2007, p.520). Esboçou-se nessa ocasião, o que se intitularia como verwirkung ou supressio.

Para Nelson Rosenvald, a supressio se caracteriza como um desleal não-exercício de direito, em que o agente por não exercê-lo, acaba por não poder mais haja vista que foi criada por sua inércia uma legítima expectativa na outra parte. (2007, p. 138). Em verdade, preferir-se-á definir a supressio não como não-exercício do direito, mas como exercício retardado dele. Por óbvio que se o titular nunca usufruir do seu direito não haverá a frustração da confiança na outra parte e, por conseguinte, não será configurada a verwirkung.

A supressio equivaleria a um comportamento contraditório decorrente de uma conduta omissiva. É por essa razão que Anderson Schreiber (2007), Cristiano Chaves de Farias (2007) e Antônio Menezes Cordeiro (2002) classificam a verwikung como uma subespécie do venire contra factum proprium. Como já dito, a afinidade entre os institutos, embora existente, não permite com que ambos sejam considerados iguais. Até os próprios autores que entende a supressio como especialidade do venire destacam as distinções entre esses institutos[75]Assim indica Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald

Aproxima-se a supressio da figura do venire contra factum proprium, pois ambas atuam como fatores de preservação da confiança alheia. Mas dele se diferencia primordialmente, pois, enquanto no venire a confiança em determinado comportamento é delimitada no cotejo com a conduta antecedente, na supressio as expectativas são projetadas apenas pela injustificada inércia do titular por considerável decurso do tempo – que é variável conforme as circunstâncias -,somando-se a isso a existência de indícios objetivos de que o direito não mais seria exercido.(2007,p.521).

Constata-se que como ato ilícito decorrente de abuso de direito a supressio também prescinde da verificação do animus do agente. Não há interesse em saber se o titular tinha a intenção de prejudicar a outra parte e por tal razão só exerceu seu direito após um lapso temporal suficiente para causa expectativas. Pode até haver o elemento anímico, mas esse é dispensável para a configuração da supressio.

Apreende-se, desse modo, que para a configuração da supressio deverá constar a presença de requisitos, que a doutrina identifica como sendo três. O primeiro seria o lapso temporal em que não há o exercício do direito. Posteriormente a inércia do titular do direito e a legítima confiança desertada na outra parte.

À primeira vista, pela análise dos requisitos apresentados é plausível que em razão da semelhança que a supressio guarda com outros institutos, como a renúncia, a prescrição e a decadência, haja certa dificuldade em enquadrá-la no ordenamento. É por isso que a distinção da supressio com esses outros institutos é de fundamental relevância para sua compreensão.

De bom alvitre que primordialmente se aponte as diferenças existentes entre a supressio e a renúncia. A renúncia importa a análise da intenção do sujeito, sendo o elemento volitivo fundamental para a sua caracterização. A supressio como ato ilícito decorrente da violação à boa-fé objetiva, prescinde esse componente anímico.

No que concerne a renúncia talvez não haja tanta dificuldade em entender a distinção desse instituto com a supressio. A complexidade é mais evidente quando se refere a distinção da supressio com a prescrição e a decadência, vez que todos esses possuem um requisito em comum que são essenciais para a sua configuração - o lapso temporal.

Curiosamente, a primeira grande diferença entre a supressio, a prescrição e a decadência se refere ao aspecto que os assemelham. Enquanto que na prescrição e decadência o lapso temporal é previamente definido – há um prazo determinado, na supressio há uma variabilidade nesse decurso do tempo, que irá depender do caso concreto. (MIRANDA, 2002, p. 146). Dessa incerteza do tempo para a incidência da supressio é que advém seu caráter subsidiário. Só haverá a supressio se não forem aplicáveis ao caso os outros remédios, como a preclusão e a caducidade. Se não há uma solução específica, existindo a violação a boa-fé objetiva, haverá então a aplicação da supressio. (CORDEIRO, 2002, p.812).

Tornando claro o fundamento dessa subsidiariedade, convém trazer as considerações formuladas por Anderson Schreiber.

Ao menos em primeira análise, não pode ser considerada inteiramente legitima a confiança despertada em outrem com relação ao não-exercício do direito sujeito a prazo fixo em lei. Isto porque, conhecendo ou devendo conhecer o prazo legal[76]para o exercício, o terceiro não poderia sustentar, com pleno amparo no direito, ruptura de uma expectativa legítima fundada no não-exercício por período inferior a este mesmo prazo. (2007, p. 192).

Embora traga o autor fundamentais razões para justificar a incidência da supressio somente após a verificação de impossibilidade da aplicação dos demais institutos, apresenta ainda críticas a esse caráter secundário da supressio, alegando que o seu emprego se resumiria às situações sem prazos fixados legalmente. Aduz ainda, que essa subsidiariedade descaracterizaria a função inicial da verwirkung, já que nos ordenamentos que a admitem, sua finalidade é de mitigação dos prazos legais rígidos. Impende divergir desse posicionamento.

Por certo que a aplicação da supressio quando ainda incidente a prescrição ou decadência traria um esvaziamento desses remédios jurídicos. Não há como vislumbrar uma hipótese em que seria cabível a supressio sem que houvesse a supressão desses outros institutos. Se o ordenamento estipulou prazos específicos que são eficazes, não haveria razão para a incidência da supressio sob o fundamento de lhe dar maior aplicabilidade no tráfico jurídico. Decerto que existe no sistema espaço para todos esses meios de repressão àqueles que retardam o exercício do direito razão pela qual, a alocação da supressio para as hipóteses em que haja prazo específico, traria uma desordem incompatível no ordenamento.

Outra importante distinção entre a prescrição e a supressio se refere a disparidade quanto a natureza. Nota-se que a prescrição tem um cunho processual que não se observa na supressio. Aliado a isso, a prescrição não tem qualquer relação com a boa-fé, ao ponto que um dos requisitos fundamentais da supressio é a quebra da confiança.

Como ato ilícito decorrente do abuso de direito, a supressio teve seu reconhecimento no ordenamento brasileiro pela jurisprudência. O Superior Tribunal de Justiça, em julgado proferido em 10 de agosto de 1999, considerou a relevância do instituto e identificou a ocorrência da supressio, como se verifica na transcrição abaixo.

RESP 214.680/SP - "CONDOMÍNIO. Área comum. Prescrição. Boa-fé. Área destinada a corredor, que perdeu sua finalidade com a alteração do projeto e veio a ser ocupada com exclusividade por alguns condôminos, com a concordância dos demais. Consolidada a situação há mais de vinte anos sobre área não indispensável à existência do condomínio, é de ser mantido o statu quo. Aplicação do princípio da boa-fé (suppressio). Recurso conhecido e provido." (RSTJ 130:366)

Além da jurisprudência, é possível verificar no texto legal hipótese de incidência da supressio, como no caso do disposto no art. 330 do Novo Código Civil[77]Tem-se na previsão uma observância à tutela da confiança à medida que o legislador inadmite que o credor se beneficie de sua inércia no exercício do seu direito, quando houve pela outra parte, uma expectativa de aceitação do pagamento em outra local que não o avençado.

Diferente da supressio, a surrectio não é considerada um ato ilícito. É sim, uma fonte de direito subjetivo. Como bem conceitua Nelson Rosenvald, a surrectio se constitui como o "exercício continuado de uma situação jurídica ao arrepio do convencionado, ou do ordenamento que implica em nova fonte de direito subjetivo, estabilizando-se tal situação para o futuro" (2007, p. 139). Verifica-se, portanto, que a surrectio não é vista pelo lado do titular do direito que o exerce abusivamente, mas sim, pela parte que atuou de boa-fé e se beneficiou por uma situação continuada, decorrente do ato ilícito de outrem. Por tal razão, que muitos autores definem a surrectio e a supressio como os dois lados da mesma moeda. Assim dispõe Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald.

Supressio e surrectio são dois lados de uma mesma moeda: naquela, ocorre a liberação do beneficiário; nesta a aquisição de um direito subjetivo em razão do comportamento continuado. Em ambas preside a confiança, seja pela fé no não exercício superveniente do direito, seja pelo credo na excelência do seu próprio direito. (2007, p. 522).

Recentemente, o tribunal de Minas Gerais reconheceu a existência da surrectio, garantindo ao locatário que pagava os alugueres sob um valor menor que fora avençado, o direito de firmar tal situação sob a égide da tutela da boa-fé, como se observa abaixo:

DIREITO CIVIL - LOCAÇÃO RESIDENCIAL - Situação jurídica continuada ao arrepio do contrato. Aluguel. Cláusula de preço. Fenômeno da surrectio a garantir seja mantido a ajuste tacitamente convencionado. A situação criada ao arrepio de cláusula contratual livremente convencionada pela qual a locadora aceita, por certo lapso de tempo, aluguel a preço inferior àquele expressamente ajustado, cria, à luz do Direito Civil moderno, novo direito subjetivo, a estabilizar a situação de fato já consolidada, em prestígio ao Princípio da Boa-Fé contratual (TJMG - 16ª Câm. Cível; ACi nº 1.0024.03.163299-5/001-Belo Horizonte-MG; Rel. Des. Mauro Soares de Freitas; j. 7/3/2007; v.u.).

Analisando o caso apresentado é possível verificar que o direito adquirido pelo locatário em pagar os aluguéis sob valor menor que o convencionado, decorreu da inércia do locador em não exercer seu direito de questionar esse fato, que se consolidou. É nesse contexto que se verifica que a surrectio seria a outra face da supressio, já que a situação continuada decorre da procrastinação da outra parte em exercer seu direito.

A despeito da convivência com o fenômeno da supressio alguns autores como Marcelo Colombelli Mezzomo (2006) defendem que é possível ocorrer a surrectio sem que tenha a outra parte ensejado a supressio. Em outras palavras, sustenta o autor que a surrectio seria uma fonte criadora de direito que não necessita da ocorrência da supressio para incidir. Mesmo que o autor não traga nenhum exemplo da incidência autônoma da surrectio, vislumbra-se que é possível ela existir no sistema, sem que a outra parte tenha deixado de exercer seu direito.

Conquanto, a inserção da surrectio nessa pesquisa redunda da sua relação com a supressio. Sua configuração como instituto autônomo, em que pese sua intrínseca relação com a boa-fé objetiva, não implica em ato ilícito, e, portanto não se consubstancia como objeto desse trabalho. Importa aqui, a surrectio como conseqüência da supressio, e como tal, apresenta-se como fonte de direito decorrente do retardamento da outra parte em exercer o direito, gerando uma situação estabilizada ao revés do que fora avençado.

Tendo a surrectio como instituto decorrente da supressio, necessário para a sua configuração que haja o decurso do tempo e a consolidação da situação jurídica. (CORDEIRO, 2001, p. 719).

De toda sorte, tanto a supressio quanto a surrectio se fundam na confiança e na proteção a legítima expectativa, criada a partir de elementos objetivos, sendo que, enquanto naquela há a quebra de crença, nessa existe a consolidação da situação jurídica firmada no tempo em respeito à boa-fé objetiva. Em suma, na supressio há o ato ilícito pela violação da confiança, enquanto que a surrectio se consubstancia numa fonte criadora de direito subjetivo em reverência à confiança.

4.2.4 Tu quoque

Estima-se que a denominação tu quoque tem sua origem na fatídica morte do imperador Júlio César, na Roma antiga. A expressão reporta a célebre frase - "Tu quoque, Brute fili mi[78]- dita pelo imperador romano, ao constatar, com sofrimento e espanto, que seu filho adotivo Bruto era um dos seus assassinos. (CORDEIRO, 2001, p. 837). No vernáculo, a expressão tu quoque, ipsi literis, significa "até tu", que se difundiu como dito popular denotando a idéia de surpresa com traço de desapontamento à(s) atitude(s) de determinada pessoa que seja(m) extraordinária(s), fora daquilo que normalmente se espera.

No campo jurídico, o tu quoque possui uma concepção mais peculiar. O referido instituto corporifica a regra pela qual o sujeito que viola determinada norma jurídica, não pode exercer posição jurídica que essa mesma norma lhe confere. (CORDEIRO, 2001, p. 174). Sua inclusão cede ao primado da ética, tão bem revelado pelo brocardo "quem não cumpre seus deveres também não pode exigir seus direito com base nessa norma violada" (ROSENVALD, 2007, p. 141).

Ainda que não exista menção expressa ao tu quoque no ordenamento, assim como todos os atos ilícitos já examinados, é possível constatar sua imposição no dispositivo do art. 129 do Novo código civil. Embora tenha o legislador elaborado para o referido artigo um texto bastante confuso, nota-se que a idéia da norma é repelir que aquele que venha a dar causa à condição resolutiva venha se beneficiar posteriormente de sua atitude.

Como confirmação da regra, impende citar o julgado do tribunal de Minas Gerais.No caso, uma instituição financeira tinha firmado contrato com a poder judiciário local, para fornecer empréstimos a juros menores aos funcionários efetivos. Violando o dever de informação, o banco não avisou a parte autora, que era funcionária contratada,que sua categoria não se enquadrava no perfil de serventuários que eram beneficiados pelo empréstimo, o que culminou na ação, julgada procedente em primeira instância, sendo tal decisão mantida pelo Tribunal, sob o argumento da vedação ao tu quoque, proferida nos seguintes termos:

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER - EMPRÉSTIMO BANCÁRIO - FUNCIONÁRIO PÚBLICO EFETIVO - CONDIÇÃO - NÃO INFORMADA QUANDO DA PROPOSTA - VEDAÇÃO AO TU QUOQUE - RESTRIÇÃO DE CRÉDITO - INDEVIDA - RECURSO IMPROVIDO. Se a condição de ser funcionário público efetivo não está expressa no convênio e não é informada previamente pelo banco ao contratante, não pode a instituição financeira se beneficiar desta sua omissão para, após fornecer o empréstimo, praticar taxas maiores em virtude da distinção entre efetivos e contratados. Vedação ao tu quoque. A restrição de crédito do devedor, decorrente do descumprimento contratual pelo próprio credor, que aplica taxas superiores àquelas anteriormente oferecidas, revela abuso de direito e não encontra arrimo na escusa do exercício regular de um direito. Dano moral existente. (Processo nº 1.0261.07.050484-8/001(1), Relator: MARCELO RODRIGUES, Publicado em 24.06.2008)

Pelo disposto no referido acórdão, é possível concluir algumas considerações acerca do tu quoque. A primeira delas é que sua vertente contratual, notadamente, tem sido a que desponta maiores atenções da jurisprudência e doutrina. A outra questão se refere ao seu âmbito de atuação nessa esfera contratual. Como alerta Wagner Mota Alves de Souza, não é qualquer violação que poderá incidir a tu quoque.(2008, p. 78). Para reclamar sua implicação no caso concreto é necessário que haja uma afronta a substância do contrato, que poderá ocorrer ora pela violação da obrigação principal, ora pela violação de deveres correlatos que implique em instabilidade na avença. Nesse sentido obtempera Ricardo Seibel de Freitas e Lima

Entendendo a obrigação como um todo e como um processo, é possível imaginar a hipótese em que a falta de cumprimento de deveres anexos de informação por parte de um dos contratantes, suficientemente grave a ponto de desequilibrar a harmonia do sinalagma, pode tornar inadmissível o exercício do direito subjetivo da parte contrária à rescisão contratual, caso a prestação não tenha sido cumprida em todos os pontos. (2007,p.20).

A distinta compatibilidade do tu quoque com o direito contratual reflete a suas similitudes com outros institutos pertencente a esse ramo do direito civil. Um desses institutos, talvez o que apresente mais semelhanças é o exceptio non adimpleti contractus, mas conhecida como exceção do contrato não cumprido prevista no art. 476 do Novo Código Civil[79]

A exceção do contrato não cumprido ocorre nos contratos bilaterais e se caracteriza como o obstáculo criado àquele que mesmo sem cumprir sua parte na avença pretende que a outra parte venha adimplir o contrato. Há uma reciprocidade das prestações que possuem um vínculo em que somente haverá o cumprimento de um lado se houver a contra prestação do outro. Tome-se como exemplo, um contrato de compra e venda de bem móvel, em que uma parte se obriga a entregar a rés, enquanto a outra compete realizar o pagamento. Se por ventura a parte obrigada não entregar a coisa, não há porque o outro efetuar o pagamento e, por conseguinte, obrigá-lo a cumprir sua parte na avença.

Ressalta-se que para ser acolhida a exceptio se impõe a presença de alguns requisitos, são eles: a reciprocidade das prestações, a correspondência exata entre os compromissos assumidos que são ligados entre si, e por fim, proporcionalidade das obrigações assumidas. (MONTEIRO, 1997, p. 25). Resguarda-se o princípio do sinalagma, da boa-fé objetiva e da justiça contratual.

A identidade entre as figuras, contudo, não é unânime na doutrina. Para Wagner Mota Alves de Souza (2008), a exceção do contrato não cumprido, ainda que guarde similitudes com o tu quoque são institutos distintos, não configurando a exceção subespécie ou exemplo do tu quoque. Sustenta o autor, que para incidir exceção, não poderá existir prazo para que haja o cumprimento do contrato. Para isso, se um dos contratantes requer o adimplemento é preciso que cumpra sua parte, concluindo que inexiste violação da norma e portanto, não consiste numa hipótese de tu quoque. Não pactuamos desse entendimento. Verifica-se que há a violação a norma no momento em que a parte exige da outra o cumprimento da obrigação, sem que a tenha feito.

Mesmo nos casos em que não há violação literal a letra da norma, configuração do inadimplemento contratual por não ter prazo estipulado para o adimplemento há a violação ao dever de lealdade, inerente a qualquer contrato firmado, e, desse modo haverá a tu quoque. Em suma, a violação ao dever de lealdade sempre essencial aos contratos, atrelada a tentativa de se beneficiar da norma violada traduz a exceptio non adimpleti contractus como espécie ou figura representante do tu quoque como indica Luciano Camargo de penteado e Flavio Tartuce (2006) ao afirmar que "a figura que melhor representa o tu quoque é a exceção do contrato não cumprido". (2006, p. 07).

De mesmo modo, o tu quoque mantém identidade com o venire contra factum proprium, mas dele se diferencia. Para Anderson Schreiber o tu quoque não guarda apenas similitudes, mas, assim como a supressio, consubstancia-se como uma subespécie do venire contra factum proprium. Ver-se no tu quoque uma noção de incoerência, à medida que a parte tenta se favorecer da norma que violou.

O caráter abrangente do venire permitiria englobar a figura do tu quoque em seu conceito. Preferimos, contanto, para manter a autonomia dogmática do instituto, distanciar o tu quoque do venire contra factum proprium. Justifica-se essa escolha em prol da aplicação facilitada, vez que a classificação exarcebada acaba por confundir o operador do direito, que diante de tantas subespécies do venire o aplicaria sem qualquer fundamentação prática ou teórica que o justificasse. Qualquer situação seria passível da incidência a vedação ao comportamento contraditório, desvirtuando o conteúdo desse preceito. A delimitação dos outros atos ilícitos em caráter distinto ao venire permite uma demarcação do tema, promovendo um melhor preenchimento do seu conteúdo, sendo conseqüente a facilidade da sua aplicação nos casos concretos.

Sobre a distinção entre as duas figuras, convém transcrever as considerações sintéticas e objetivas de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald acerca das peculiaridades de cada ato, senão vejamos:

No verine, ambos os comportamentos, isoladamente considerados, não apresentam qualquer irregularidade, senão quando tomados em conjunto pela quebra da confiança decorrente da contradição entre as duas condutas opostas. Já no tu quoque a contradição não reside nas duas condutas em si, mas na adoção indevida de uma primeira conduta que se mostra incompatível com o comportamento posterior. Isto é, há uma injustiça da valoração que o indivíduo confere ao seu ato e, posteriormente, ao ato alheio. (2007, p. 524).

Com efeito, a semelhança de estrutura existente entre o tu quoque e o venire contra factum proprium induz a relação daquele ato ilícito com outro elemento de natureza semelhante; a inelegabilidade das nulidades formais.

Algumas reflexões sobre as inelegabilidades já foram abordadas no item que versava sobre a vedação ao comportamento contraditório. Todavia, há também intrínseca relação entre as inelegabilidades e o tu quoque, e por isso que assim como existem hipóteses que as inelegabilidades decorrem de comportamento contraditório strictu sensu, igualmente existem os casos em que decorram de atos qualificados como tu quoque[80]

A maioria dos autores não pactua do entendimento de que haja relação entre a impossibilidade de alegação das nulidades formais e o tu quoque. Menezes Cordeiro (2001) e Wagner Mota Alves de Souza (2008) sequer apresentam as afinidades existentes, já que entendem só existir vinculo entre as inelegabilidades e o venire. Importa frisar que não se pretende nessa pesquisa desconsiderar a conexão existente entre o venire e a impossibilidade de alegação das nulidades formais. Tanto assim, que foram abordadas anteriormente as diversas formas de inelegabilidade em situações decorrentes do venire. Busca-se, nesta ocasião demonstrar que também existe ligação entre o tu quoque e as inelegabilidades das nulidades formais, e do mesmo modo precisa ser evidenciada.

Na definição trazida por Wagner Mota Alves de Souza as inelegabilidade das nulidades formais consiste no impedimento da parte alegar vício que causou em favor próprio. Testifica-se que não se trata de um ato ilícito, mas de um beneficio à parte que foi prejudicada pela ilicitude da outra. A ilicitude está na alegação do vício que pode decorrer tanto de venire contra factum proprium ou de outra modalidade. A inelegabilidade, no entanto, é o impedimento, a impossibilidade de aceitar o ato ilícito, e, portanto um obstáculo para que o praticante do ato ilícito não colha os frutos da sua conduta.

Mesmo sendo dispensada a culpa para a configuração do vício, a inelegabilidade exige do prejudicado a boa-fé subjetiva, vez que não poderá conhecer no instante da celebração do contrato, o defeito que macula o negócio jurídico. (SOUZA, 2008, p. 70).

Pela análise superficial do conceito apresentado já é possível tecer algum esboço analógico entre esse remédio jurídico e o tu quoque. Com efeito, é factível que a parte causadora do vício seja a pessoa que posteriormente pretende argui a nulidade daquele ato, em função da falha procedimental. Tome-se como exemplo o julgado proferido em 12.11.1998 pelo STJ, in verbis:

Reputa-se em abuso do direito aquele que se recusa a celebrar a escritura de compra e venda, com fundamento na omissão das formalidades que pediu para ser dispensada. [BMJ 481(1998), 458-469]

Nota-se que mesmo sem a expressa menção a inelegabilidade das nulidades formais, o acórdão reconheceu a sua incidência no casu in tela, sob uma hipótese de tu quoque. Veja-se que o promitente vendedor para celebrar a escritura alegou em justificativa a ausência de formalidade, omissão que ele próprio havia dado causa anteriormente.

A identificação do tu quoque nesses casos terá, contudo, efeitos diversos dependendo da nulidade ocorrida. Como já demonstrado, nas hipóteses de vícios insanáveis, a convalidação do ato jurídico se torna prejudicada, razão pela qual será cabível somente para a parte prejudicada indenização pelos danos sofridos.

Em razão do próprio desenvolvimento metodológico da matéria, em muitos julgados, dos tribunais de primeira instância, ainda se ver o tu quoque vinculada à idéia de malícia, ardil, atribuindo ao instituto um caráter subjetivo que não coaduna com sua vertente atual. Os tribunais superiores desempenharam um papel fundamental para a contemporaneizar o instituto e trazê-lo à realidade jurídica sob uma relevante função, evitando que sua presença se tornasse inócua diante da tendência atual de tutela objetiva da confiança.

Não se pode olvidar que o árduo trabalho da doutrina não somente em relação ao tu quoque, como para todas as modalidades de atos ilícitos oriundos de violação à boa fé objetiva foi principalmente voltado para reestruturar a prática forense, sobretudo a formas como os tribunais compatibilizam esses institutos ao ordenamento nacional.

Em razão da relevância dos julgados para a sistematização do direito e do seu papel fundamental na composição e no desenvolvimento estrutural desses atos ilícitos, que se faz necessária à análise da jurisprudência fonte de direito e de que forma essas modalidades de ilícito tem sido utilizadas pelos tribunais.

A virada jurisprudencial

5.1 A JURISPRUDENCIA COMO FONTE DE DIREITO

A jurisprudência tem fincada sua gênese nas remotas atuações dos pretores da Roma Antiga. Por esses árbitros eram enunciados os editos, manifestos pelos quais se corrigia e complementava o direito vigente. Para Carlos Maximiliano (2003) os pretores foram os verdadeiros progenitores da jurisprudência, utilizando o jus gentium para reestruturar o direito e torná-lo mais compatível à realidade.

Etimologicamente, jurisprudência significa "juris-prudentia" ou prudência do direito. Seria ainda, aquilo que serve como modelo ou exemplo para agir, pensar, dizer. No direito, entende-se como o conjunto das decisões e interpretações das leis feitas pelos tribunais, adaptando as normas às situações de fato.

Antes de averiguar se a jurisprudência se constitui como fonte de direito, é necessário tecer algumas considerações acerca da sua significação, ou seja, o que seria fonte de direito. Nos dizeres de Washington de Barros Monteiro, "as fontes de direito são meios pelos quais se formam ou se estabelecem as normas jurídicas". (2005, p.12). Já na visão de Pietro Perlingieri seriam os "atos pelos quais se extrai a norma" (2002.p. 07). Seriam os alicerces do direito, os quais ele se funda e em razão delas se desenvolve.

Existem ainda diversas classificações em que se subdividem as fontes de direito, as quais se definem como primárias e diretas ou secundárias e indiretas[81]São fontes primárias de direito aquelas que por si só criam as regras/normas jurídicas. Toma-se como exemplo a lei e o costume. Por sua vez, as secundárias ou indiretas criam a base para a elaboração da regra jurídica, tendo como modelo a doutrina.

Muito se diverge quanto a classificação da jurisprudência como fonte de direito. Em verdade, o que se discute não é a sua definição como fonte, e sim em qual das subdivisões estaria enquadrada. A evolução histórica foi um dos elementos que mais interferiram para essa instabilidade quanto à categoria em que se insere a jurisprudência.

Na Idade Média, os antigos colégios judiciários eram verdadeiras fontes formais de direito, vez que eram responsáveis pela delimitação das regras que iriam reger a vida social, além de identificarem o sentido e a extensão do direito posto.

A situação mudou radicalmente com o surgimento dos glosadores em meados do século XIII. A interpretação passou a ser função desempenhada pela doutrina representada pelos glosadores. A atividade jurisdicional se resumia aos pareceres, as glosas, redundando em um declínio da jurisprudência.

O renascimento somente ocorreu no século XVII, em que a jurisprudência foi adquirindo paulatinamente maior prestigio pela sua função de interpretadora dos textos legais. O papel dos juizes foi expandido adquirindo o destaque que atualmente possui. Observa-se que a falta de constância no que diz respeito ao papel do magistrado resultou numa imprevisão quanto a âmbito de atuação da jurisprudência, ocasionando essa vagueza conceitual.

O sistema pelo qual se rege o ordenamento, também influencia substancialmente para delimitação da autoridade da jurisprudência. No direito Anglo-Saxão que se dirige pelo sistema common law, baseado no direito costumeiro, a jurisprudência tem fundamental importância, ao ponto de ser incontestável sua autoridade como fonte de direito primária. Por outro lado, no civil law a autoridade da jurisprudência não é tão evidenciada, já que a lei ainda continua no topo da hierarquização das fontes normativas.

Partes: 1, 2, 3, 4, 5


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