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A possibilidade de viver personagens e até mesmo construí-los em editoriais era minha prioridade, até que, em 1998, por sugestão de meu próprio pai, procurei o ortopedista Dr. Walter Targa que trabalha com o método russo de alongamento ósseo conhecido como Ilizarov, para discutir minha singularidade. Depois de alguns anos, resolvi fazer a primeira cirurgia, em 12 de junho de 2000, e, exatamente um dia depois, assim que pude me levantar novamente e, no momento em que meus pés descalços tocaram o chão, esta pesquisa se iniciou.
Foi quando percebi a dificuldade de encontrar calçados apropriados nos dois quesitos que fundamentam esta pesquisa: a funcionalidade, como melhoria da qualidade de vida relacionada à saúde, e a estética como deleite visual e prazer sociocultural, assim apontados por Jordan (2000).
Após colocar o Ilizarov, recusei a usar os sapatos propostos pelo ortopedista. Na época, eu já atuava há quase 10 anos como stylist, construindo imagens de moda para campanhas, revistas e desfiles. Foi durante aqueles anos que treinei o olhar para observar tendências comportamentais e de moda, e a construir imagens. Fiquei surpresa ao descobrir que os produtos direcionados ao público com necessidades especiais[1]eram ainda tão escassos. Então, empiricamente, comecei a adaptar meus próprios calçados, de acordo com o meu gosto estético e minhas necessidades reais. Para mim, era inconcebível não poder escolher meu próprio personagem em vista da limitação da oferta desses produtos.
Apesar de ter alongado o fêmur e não ter mais diferença entre membros inferiores, ainda possuo uma deformidade no quadril e musculatura atrofiada, que me dá um gingado especial. A cada passada, meu quadril, por falta de sustentação muscular despenca como numa montanha-russa.
Nos últimos oito anos, testo os mais diversos tipos de sapatos. Observo muitos obstáculos: existe uma estreita relação entre calçadas, escadas e calçados.
Nem o melhor tênis, tecnologicamente falando, consegue enfrentar as calçadas da Vila Madalena, na cidade São Paulo, por exemplo. E, em virtude desses fatos, a questão do uso foi, aos poucos, deixando de estar em último plano na minha vida.
Assim que me recuperei fisicamente do primeiro alongamento ósseo, fiz o curso de Pós-Graduação em Comunicação e Marketing de Moda da Universidade Anhembi Morumbi, onde, abordei as relações entre corpos fora dos padrões estéticos e moda. Esta reflexão, culminou na elaboração do TCC "Deformidades Formidáveis – trajetória do corpo e da deficiência física pela moda", orientado pela Profa. Dra. Kathia Castilho, defendido em 2005.
Em janeiro do mesmo ano, passei pela segunda cirurgia de alongamento, fato que me levou, mais uma vez, à adaptação de calçados e roupas. Neste ínterim, conheci diversos homens e mulheres com dificuldades em encontrar produtos que satisfizessem suas necessidades e desejos. Pensando principalmente nas usuárias femininas e nas suas insatisfações com os calçados recomendados pelos ortopedistas, foquei esta pesquisa no design de calçados para mulheres com discrepância de membros inferiores, levantando minha primeira hipótese:
Como a linguagem de moda contemporânea poderia auxiliar na melhoria da qualidade de vida, relacionado-a aos quesitos prazer e conforto social dos indivíduos com restrições físicas? As questões da moda contemporânea relacionadas à estética, e à diversidade corporal são discutidas no primeiro capítulo deste trabalho: Relações entre corpo e moda contemporânea, uma breve reflexão sobre corpo e moda (Villaça, 1998; Castilho, 2002; Santaella, 2003), seguido da moda contemporânea (Lipovetsky, 1989; Preciosa, 2004; Mesquita, 2004; Castilho e Martins, 2005; Crane, 2006) e suas in(ex)clusões sociais através da aparência. Esta fundamentação teórica é indispensável para pensarmos a relação da singularidade corporal com a moda, nosso objeto de estudo, retomado no quarto capítulo com foco nas percepções subjetivas dos usuários.
O segundo capítulo, Design e Moda, traz a reflexão interdisciplinar entre moda e design. Algumas questões tocam a singularidade da moda e seus designers, culminando nas investigações sobre o papel do designer de moda, através do viés conhecido como design socialmente responsável (Whiteley, 1998; Jordan, 1999; Margolin, 2002). Este viés sugere o levantamento das necessidades dos usuários por intermédio de uma equipe interdisciplinar. Neste projeto, unimos as opiniões dos sujeitos[2]do Instituto do Pé do Hospital das Clínicas (HC - USP) e da COF[3]ambas na cidade de São Paulo, e da Clínica Nivaldo Baldo[4]da cidade de Campinas.
O levantamento de dados qualitativos deste trabalho seguiu as normas da Comissão de Ética, conforme a Resolução 196/96 - Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos, seguindo os princípios de:
a) autonomia;
b) beneficência;
c) não maleficência e
d) justiça.
O objetivo da pesquisa de campo qualitativa foi dimensionar as necessidades estéticas e ergonômicas do usuário em relação ao objeto calçado. Para tanto, solicitamos a participação ativa dos sujeitos, registrando suas considerações.
Utilizamos a perspectiva fenomenológica (Merleau-Ponty, 2006) que consiste em registrar os diferentes perfis (ângulos) da pesquisa, considerando a percepção como forma de interação entre o corpo sensível do sujeito e o mundo das experiências. No intuito de registrarmos o "mundo dos sujeitos" e suas próprias ambigüidades, estivemos em seus lares, e, com as devidas autorizações, utilizamos as seguintes ferramentas:
a) filmagem (audiovisual) das entrevistas - o vídeo com áudio nos permitiu observar o sujeito em movimento, suas impressões e depoimentos. Muitas vezes emocionados, eles nos relataram suas vivências. Os vídeos estão em DVD;
b) questionários qualitativos semiestruturados (Jordan, 2000) - segundo Andrade (2001) e Facca (2008), as conversações informais alimentadas por perguntas abertas podem proporcionar maior liberdade ao entrevistado. Foram utilizadas algumas questões básicas, conforme descrito em Anexo 1, complementadas de depoimentos abertos;
c) fotos dos sujeitos e de seus calçados, apresentadas no decorrer da dissertação;
d) imagens de calçados (fig. 68, no capítulo 4) e
e) adaptação do calçado Mercadal (fig. 51 e 52, no capítulo 3) e construção do calçado inspirado nos anos de 1920 (fig. 69, capítulo 4).
Projetando calçados é o título do terceiro capítulo, com foco no objeto calçado: um breve olhar histórico (McDowell,1989; Motta, 2004; Riello e McNell, 2006; Walford, 2007) por intermédio dos designers de calçados, suas estruturas e componentes físicos segundo o IBTeC[5](2006) e um breve levantamento das necessidades ergonômicas relacionadas diretamente aos calçados (Monteiro, 1999; Martins; 2005) dos sujeitos em questão. No DVD, também foram incluídas as entrevistas realizadas com ortopedistas e fisioterapeutas, vez que, conhecer as opiniões dos especialistas é indispensável para analisar as necessidades fisiológicas dos corpos em questão.
O objetivo deste capítulo foi de levantar as necessidades físicas do usuário verificando nossa segunda hipótese: o design de calçados pode proporcionar ao indivíduo uma melhor qualidade de vida relacionada à saúde, como alívio de dores, ou um menor desgaste de ossos e articulações pela utilização do produto com um design ergonomicamente apropriado. Quais seriam suas necessidades ergonômicas? No final do capítulo oferecemos um check-list ao usuário para verificar os atributos do prazer e conforto físicos relacionados aos calçados.
No quarto e último capítulo, Investigando as necessidades estéticas e desejos das usuárias, observamos, através da pesquisa de campo, as necessidades socioculturais das usuárias e suas soluções espontâneas. Os depoimentos de Vanessa Vasques, Keith Andrade, Jacqueline Ramos, Karin Camargo e Nelly Nahum revelaram a singularidade de cada mulher, suas preferências estéticas e seus desejos por sapatos lúdicos.
Vale ressaltar que não existem designers de calçados brasileiros para este público específico. Normalmente as mulheres adaptam os sapatos existentes no mercado às necessidades que seus corpos e gostos solicitam. Conhecer e investigar estas soluções é o foco deste capítulo. Desvendar seus desejos é fundamental para proporcionar uma reflexão de suas reais necessidades.
Neste capítulo, observamos as relações entre corpo, costumes e moda contemporânea. Verificaremos que os códigos de condutas sociais atuais não são tão rígidos quanto no período das leis suntuárias[6]e, até mesmo, nos anos 1950, de quando Christian Dior marcou a década com a "cintura de vespa".
Constatamos a dificuldade de encontrar produtos de design de moda para o corpo do outro, o corpo fora dos padrões estéticos sugerido pela indústria cultural.
Corpo este poético e estésico que, por meio da experiência vivida revela desejos e paixões. É através de nossos corpos que nos comunicamos com o mundo elegendo sentidos. Compreende-se como "corpo padrão" aqueles impostos pela maior parte da indústria da moda e da beleza (designers, mídia, publicidade, etc.), ou seja, padrões corporais femininos magros, altos e longilíneos que usam manequins de 34 a 40, simbolizados por modelos como Gisele Bündchen ou por atrizes como Angelina Jolie.
A moda pode ser vista como um diagnóstico do mundo, no sentido de que através da corporeidade da moda, isto é, da relação percebida entre nossos corpos e objetos de moda, podemos selecionar e comunicar ideias e refletir sobre indagações estético-poéticas, como aquelas a serem discutidas pelo re-design de corpos da designer japonesa Rei Kawakubo para a marca Comme des Garçons.
1.1 O corpo e as práticas sociais
"Nem coisa, nem ideia, o corpo está associado à motricidade, à percepção, à sexualidade, à linguagem, ao mito. À experiência vivida, à poesia, ao sensível e ao invisível, apresentando-se como um fenômeno que não se reduz à perspectiva de objeto...". Merleau-Ponty[7](1994) apud Nóbrega (2000:101).
Neste estudo, partimos do corpo que se movimenta na passarela da vida, o corpo do outro. Este corpo que manca, ao subir e ao descer dos movimentos de seus quadris, aquele que rebola e pisa pelas pontas dos pés. Corpo este que balança o próprio olhar, num sobe e desce sinuoso, e que, claro, atrai o nosso olhar.
Corpo meu, corpo seu, corpo do outro encontram lugar de destaque na obra Fenomenologia da Percepção, de Merleau-Ponty, que privilegia o mundo das experiências vividas como primeiro plano da configuração do ser humano e do conhecimento pela percepção. A percepção fenomenológica, nas palavras de Chauí (2000:157), podemos compreender: "é a relação entre elas [as coisas] e nós e nós e elas; uma relação possível porque elas são corpos e nós também somos corporais".
É dotada de significação, tem sentido na nossa história de vida e faz parte da nossa experiência, depende da nossa vivência corporal, das situações de nossos corpos. É a forma de comunicação que estabelecemos com os outros e com as coisas, envolve nossa personalidade, desejos e paixões, "é a maneira fundamental dos seres humanos estarem no mundo", complementa a autora.
Neste projeto, observamos a relação destes corpos com o objeto calçado, por intermédio do relato de suas experiências e experimentações. Seus corpos e suas falas percorrem esta dissertação com foco nas necessidades físicas e estéticas do design de calçados, sem a pretensão de esgotar o assunto[8]A percepção envolve ainda questões socioculturais, isto é, os valores ou funções dos objetos são dotados de sentido e podem variar entre grupos sociais.
Os pés de lótus (fig. 01), por exemplo, eram os pés atrofiados das mulheres da sociedade aristocrática chinesa - enrolados por faixas apertadas, durante a infância. O objetivo era de mantê-los pequenos, tornando-se símbolos de beleza imperial. Segundo Koda (2000:151), o costume se iniciou no século XIII permanecendo até a vitória dos comunistas de Mao Tse-Tung, em 1949. O valor dos pés de lótus e de seus calçados (fig. 02) só fazem sentido nesta sociedade que valorizava a beleza do pé pequeno ornamentado por seus sapatos, símbolos de delicadeza e prestígio.
Podemos encontrar simulações de outros sapatos de lótus (fig. 03) em outras sociedades, vestindo outros corpos e produzindo, portanto, outros significados. É o caso dos sapatos de lótus do designer de moda inglês Alexander McQueen para a coleção de verão de 2001. Inspirado na aparência dos calçados chineses aristocráticos, porém, difundidos na sociedade ocidental atual, eles adquirem o significado de objeto de design de moda e artefato de museu evocando a poética do objeto, e o status de peça pertencente à coleção do Metropolitan de NY, mas não símbolo de beleza imperial. Este último significado só pode ser atribuído ao sapatos de lótus chineses originais.
O corpo é objeto de reflexão através do princípio de motricidade. Observado por diferentes perspectivas, admite ambiguidades, já que tais perspectivas podem ser arranjadas em percurso circular, isto é, observamos um corpo em movimento à distância e, depois de perto, percebemos a mulher de frente que caminha em nossa direção, suas laterais ao passar por nós, e em seguida, suas costas que se vão. São perfis diferentes de uma mesma mulher, vistos por diferentes olhares que para Merleau-Ponty (2006) acrescentam informações na percepção e no conhecimento sobre a mulher em movimento, e não constroem análises substitutivas, ou seja, não é o menos, a substituição, e, sim, o mais, o "e": é a mulher percebida de cima, e de baixo, e de costas, e de frente, e sua relação com os objetos, e com o mundo. Nossas observações imagéticas são do corpo em movimento. A biomecânica é, portanto, fundamental em nossa pesquisa, mas é sua forma poética de nos atravessar que nos intriga.
É o corpo que nos personifica e nos torna presentes no mundo. É o responsável por nos conectar com o mesmo. Apesar do limite físico de nossos corpos, da nossa própria pele, ele é o nosso elo de comunicação com o meio sociocultural, conceito reforçado por Castilho e Martins (2005:87):
"Padrões de comportamentos, traços da cultura, diálogos sócio-históricos são aspectos que podem ser reconhecidos nos corpos, cuja realidade se funde no caráter comunicacional dos seres humanos."
Manifestações culturais de transformação corporal e suas vestimentas existem por intermédio dos rituais de beleza, da demonstração de coragem das mais diversas tribos primitivas, na utilização de tatuagens, escarificações, e, até mesmo, nas deformações de determinadas partes do corpo.
Os costumes, através da vestimenta, marcaram épocas, como a estética chinesa, anteriormente exemplificada pelos pés de lótus. Impuseram padrões estéticos nas questões relativas ao vestuário: proporções, cores, formas, materiais, como no comprimento da barra da saia lápis, a 42 cm do chão, considerado ideal por Balenciaga; ou da silhueta de ampulheta proposta por Dior em 1947, que marcaram as décadas de 1940 e 1950, sucessivamente. Assim como os modismos[9]e suas imposições de padrões estéticos, o corpo também impôs padrões.
Entendem-se como padrões corporais os modelos estéticos ressaltados pela sociedade como denominadores comuns alterando ou não corpos fisiologicamente.
No período chamado de Belle Époque, por exemplo, o corpo feminino apresentava uma forma em S ou ampulheta. Época de prosperidade da burguesia, as mulheres ostentavam riqueza e feminilidade, acentuadas pelas linhas do quadril e busto com o uso dos espartilhos.
Acredita-se que as primeiras intervenções cirúrgicas em prol da estética pelos modismos tenham surgido nesta época. Algumas mulheres chegariam a recorrer ao bisturi para deslocar ou mesmo tirar algumas costelas, a fim de conseguirem uma cintura de 42 cm, afirma Faux (2000:84). Neste caso, o corpo foi transformado de maneira imutável, pela remoção cirúrgica de suas costelas, e não apenas pela ilusão da roupa ao remodelar o corpo.
Para Santaella (2003:200), o corpo possui múltiplas realidades: remodelado, protético, plugado, simulado, digitalizado e molecular[10]Por corpo remodelado, compreendemos a manipulação estética na superfície do mesmo, ou seja, transformações plástico-estéticas que não alterem a função de um órgão ou membro do corpo do indivíduo: construções advindas da ginástica, cirurgias plásticas, por meio de implantes e enxertos. Sob este aspecto, podemos incluir as cirurgias estéticas da Belle Époque, os implantes de silicone atuais, e, até mesmo, as roupas que alteram temporariamente a superfície corporal.
1.1.2 Corpos fora do padrão
Da Idade Média até a metade do século XX, as relações da sociedade com os defeituosos[11]foram marcadas por práticas de eliminação social, piedade, intolerância, curiosidade e objeto de estudo. No aspecto curiosidade, muitas aberrações, como eram assim denominadas, apresentavam-se nos Circos Itinerantes ou nos Museus da Moeda, onde o visitante podia ver as aberrações, conhecidas como Freaks[12]acompanhado de um "educador" que buscava explicá-las.
Vash (1988:22) identifica três tendências que talvez possam apontar razões para que se desvalorize a pessoa com deficiência: a) o ser humano instintivamente rejeita organismos danificados; b) as diferenças marcantes são menos toleradas no plano psicossocial; c) o indivíduo não ser produtivo no aspecto econômico, prejudica a dinâmica de funcionamento das famílias, da comunidade ou da sociedade.
A concepção sobre deficiência variou da determinação metafísica para a orgânica, desta para a educacional e, mais especificamente, na segunda metade do século XX, ampliou-se para o âmbito das determinações sociais.
"Depois das duas grandes guerras, houve um aumento considerável de indivíduos que voltavam fisicamente debilitados ou deficientes, e lacunas deixadas pelo grande número de pessoas mortas... Estes fatores promoveram programas de educação, saúde e treinamento que visavam integrar tais indivíduos na sociedade, preencherem as lacunas nas forças de trabalho europeu, originado pelas duas guerras. A Declaração Universal dos Direitos Humanos do Homem, proclamada pela ONU, em 1948, aponta em seu artigo 1: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e, dotados que são de razão e consciência, devem comportar-se fraternalmente uns com os outros... Se no pós-guerra a perspectiva de reintegração destes indivíduos se dava no sentido de "preencher lacunas" ou num sentido paternalista, a partir dos anos 60, quando surgiram movimentos pelos direitos humanos,. a demanda relativa aos deficientes, a partir de então, se dá no sentido de integrá-los com base em seus direitos como seres humanos e indivíduos nascidos em dada sociedade". (Santos, 1995 apud Correr, 2003:27).
Após as duas grandes guerras, com a Europa devastada, a necessidade de inclusão social do portador do deficiência física como indivíduo ativo da sociedade foi inevitável. O avanço científico permitiu o desenvolvimento de pesquisas nas áreas sociológica, médica, educacional e psicológica. Ser excepcional, ou seja, carregar algum tipo de deficiência não deveria necessariamente implicar incapacidade.
Karin Camargo, uma de nossas entrevistadas, relatou que o conceito de produtividade perante a sociedade alterou-se. Há mais de 30 anos, em seu primeiro trabalho, ela assinou contrato com uma instituição financeira aceitando receber 30% menos do que os outros funcionários com mesmo cargo, horário e responsabilidades.
Recentemente, porém, devido aos seus direitos como portadora de restrição física, conseguiu manter dois empregos, sendo que foi contratada no segundo devido às suas habilidades e por ser PNE.
Apesar de encontrarmos atualmente algumas melhorias, como elevadores e rampas, dentre outras, que permitem maior mobilidade e independência, ou mesmo legislações e regulamentos que favorecerem a inserção e os direitos as pessoas portadoras de deficiências[13]ainda encontramos muitas dificuldades conforme relatos das pessoas entrevistadas, como os de Vanessa Vasques e Karin Camargo[14]
Elas comentaram casos frequentes de discriminação social por suas restrições físicas. Vanessa relatou sua dificuldade de mobilidade na universidade que frequenta, como calçadas com buracos e inexistência de rampas. Karin disse que ser vítima de exclusão social, é algo comum. Ela descreveu um caso recente da administração de um shopping da cidade de São Paulo, que não lhe permitiu dirigir um carro de brinquedo fixo ao chão, alegando que a usuária poderia se machucar, e assim, processar o shopping, apesar de ela estar sentada utilizando apenas um joystick, e de possuir carteira de motorista há mais de 27 anos. "Discriminação social é comum, tem dias que brigo, e muito por minha causa, mas tem dias...", cometa com um olhar cabisbaixo e sorriso no rosto. Ela ainda acrescenta que, mesmo sendo uma das diretoras da empresa para qual trabalha, não pode comparecer a reuniões com clientes externos. Ela fica na sala ao lado passando todas as informações via rádio ou telefone aos funcionários de sua empresa.
Na década de 1990, pesquisadores de diversas áreas direcionaram seu foco para a qualidade de vida, segundo Halpern (1993:386-498). Em seu artigo, o autor propõe uma reflexão sobre os aspectos que envolvem a qualidade de vida divididos em: a) necessidades objetivas (alimentação, vestuário, moradia, saúde e educação, dentre outras), b) necessidades subjetivas (satisfação pessoal, felicidade, filosofia de vida, lazer, etc.). Para o autor, a qualidade de vida é entendida como o complexo conjunto das necessidades subjetivas e objetivas.
Em nossa dissertação, a moda é abordada como um campo de ideias transformadas em produtos. Em nosso entender, o papel do designer é preocupar-se com as questões que discutem as necessidades objetivas e subjetivas relacionadas ao bem-estar social do usuário, em prol da melhoria da qualidade de vida em ambos os aspectos.
1.2 Moda contemporânea
Para Lipovetsky (1989), a moda como sistema tem origem no século XIV, na Europa Ocidental, passando a ser uma regra social, de costumes e maneiras, caracterizado por uma duração breve que consiste na mudança periódica dos hábitos, gostos e estilos em diversos fatores e, exclusiva da aristocracia ocidental. Lipovetsky divide o sistema da moda nos seguintes estágios: 1. Moda aristocrática, período localizado entre o século XIV até a metade do século XIX; 2. Moda dos cem anos, de meados do século XIX até meados dos anos de 1960; 3. Moda aberta, do final de 1950 até meados dos anos de 1980; e 4. Moda consumada, do final dos anos 1980 até os dias atuais. Nossa pesquisa concentra-se na singularidade da moda aberta e consumada.
Vale ressaltar que, mesmo nos tempos da moda aristocrática e da moda dos cem anos, a linguagem de moda deveria refletir os valores morais, sociais, políticos, econômicos e culturais para que tal proposta se tornasse uma tendência de moda.
Como cultura[15]entendemos, conforme uma breve definição proposta por Santaella (Op. cit. :31) "...é a parte do ambiente feita pelo homem", ou seja, constituída por objetos materiais e relacionamentos sociais, argumento reforçado por Villaça (1998:107):
"A discussão sobre moda só pode ser pensada hoje em conexão com o par natureza/cultura... O surgimento do fenômeno moda foi propiciado, numa visão genealógica, pelo cruzamento de fatores de ordem econômica, política e social num dado momento histórico."
Para exemplificar estas afirmações, um dos fracassos mais citados pelos historiadores (Souza, 1987; Laver, 1989; Crane, 2006, dentre outros), por exemplo, é o caso da calça bloomer (fig.4), quando, em 1851, a Sra. Bloomer foi à Inglaterra tentar convencer as mulheres a usarem uma vestimenta mais confortável. Segundo Laver (1989:184), a calça foi rejeitada pela sociedade patriarcal do século XIX, pois os trajes femininos e masculinos deveriam ser distintos. O modismo das calças apareceram quase cinquenta anos depois, com a prática do ciclismo (fig.5). Parecenos que a Sra. Bloomer propôs um traje muito avançado para os valores de seu tempo.
Já um grande sucesso associado aos valores socioculturais vigentes (liberdade, juventude e revolução sexual) dos anos de 1960, é a minissaia, que divide a sua autoria entre dois designers: a inglesa Mary Quant (fig.6) e o francês André Courrèges (fig.7). Para Seeling (2000:348), a minissaia se originou na Inglaterra por diversos motivos, entre eles: a) o movimento estudantil desta década que se inicia em terras inglesas; b) o polo de moda jovem estar localizado nas ruas King"s Road e Carnaby Street, de Londres; c) o comprimento curto não ser o grito da alta-costura.
Porém, foi Courrèges, engenheiro e piloto de avião que, na coleção de primaveraMariana verão de 1965, propôs nas passarelas da alta-costura[16]a minissaia, em conjunto com diferentes materiais resistentes, botas de plástico com biqueiras cortadas e óculos brancos davam uma aparência de astronautas às modelos.
A moda aberta trata da mudança do eixo da moda imposta pela alta-costura para o novo sistema imposto pelo prêt-à-porter, quando os designers de moda ganham maior prestígio e impõem hierarquias que diminuem a desigualdade entre classes sociais. Declara que não existe mais moda, aquela da elite, mas, sim, modas: cada designer propõe um modo de vestir para públicos diferentes. É a democratização da moda. O autor ainda sugere a individualização e a importância do look[17]uma somatória dos valores da moda e valores estéticos daquela sociedade. Ela faz parte da indústria cultural[18]assim como o cinema e as artes. É geradora de demanda e impulsionadora do consumismo muitas vezes desenfreado.
O conceito de moda atribuído por Souza (1987:19), como mudanças periódicas nos estilos de vestimentas e nos demais detalhes da ornamentação pessoal, cultua o presente, adorando sempre a novidade, diferenciando-se dos costumes, estes ligados ao passado, portanto à tradição. Moda é um fenômeno organizado, disciplinado e sazonal. A autora se refere à moda como processo industrial, lançamento de tendências e absorção das mesmas pelo grupos sociais. Souza ressalta que moda é uma imposição de um determinado grupo, depende da aprovação do coletivo, mas que o gosto representa a escolha individual dentre estas possibilidades.
Exemplifica a escolha de determinadas peças pelos grupos sociais e pelo indivíduos como reflexos de seu tempo. Na década de 1960, a minissaia era a peça chave do guarda-roupa feminino, sendo que algumas revistas tentaram lançar a maxi-saia, modismo este que não avançou, por mais que alguns designers e a mídia tentassem, uma vez que não refletia a liberação sociocultural daqueles anos, explica a autora.
Consideramos a moda território de sonhos e fantasias, lúdica, paradoxal, individualizada, efêmera, sensual e diversificada. Moda esta chamada por Lipovetsky (1989) de moda consumada, quando os três pilares da moda contemporânea - obsolescência, sedução e diversificação - são encontrados em outras esferas, como na indústria automobilística.
O efêmero governa a produção e o consumo de objetos: estes não são mais do tipo utilitário, mas do tipo lúdico, que seduz, em referência a Baudrillard, afirma o autor. O consumismo da década de 1980 é desenfreado pela constante procura da novidade."As modificações freqüentes empregadas na estética dos objetos são um correlato do novo lugar atribuído à sedução." Lipovetsky (Op. cit.:164).
Os objetos projetados para o consumo desenfreado, como se sua constituição tivesse apenas uma preocupação com a forma no sentido estético, ficam conhecidos como objetos de design styling (Lipovetsky, 1989; Christo in Pires, 2008). São carros, eletrodomésticos e louças projetados para acompanharem a frivolidade e a efemeridade da moda. Criados para seduzir o consumidor por seus apelos estéticos, trouxeram uma possível conotação negativa aos artefatos de design styling.
A diversificação de mercadorias e bens de serviços da sociedade do consumo, segundo Lipovetsky, entrou na esfera da personalização pela multiplicação de linhas, versões, opções, cores, etc. Encontrados, até então, somente na produção do vestuário, os demais segmentos diversificaram suas variantes, proporcionando a individualização dos produtos e oferecendo um leque de opções nas questões dos gostos.
Estas são algumas características positivas e negativas da linguagem de moda, mecanismo questionador do próprio sistema.
Podemos constatar que a moda, mesmo nos seus momentos mais ditatoriais, propõe idéias que não precisam ser necessariamente seguidas, argumento reforçado por Villaça (Op. cit.:116) ao dizer que "o mimetismo da moda nunca foi total".
Segundo a autora, já no início do século XVII, existia a moda da corte e a moda paralela. A moda de hoje, portanto, é mais apresentada como uma escolha do que como uma imposição, afirma Crane (2006:47). "Espera-se que o consumidor construa uma aparência individualizada a partir de um leque de opções".
Sabemos que a ela nem sempre foi tão democrática, sendo a sua história marcada pelas distinções sociais através do processo de inclusão e exclusão da aparência, seja do corpo ou do look. Sua faceta mais conhecida é a do despotismo das tendências e influências midiáticas. Os pesquisadores, historiadores e sociólogos (Souza, 1987; Laver, 1989; Lipovetsky, 1989; Mesquita, 2004; Crane, 2006; dentre outros) concordam que tais códigos eram rígidos e impositivos até meados dos anos de 1960, primeiramente pelas leis suntuárias e, depois, pela imposição de tendências do sistema, quando Christian Dior, por exemplo, marcou a década de 1950 com a silhueta New Look, a cintura de vespa.
Pode parecer uma contradição que a moda, mais reconhecida como um mecanismo de simulação e imposição de padrões estéticos conhecidos como modismos e/ou tendências, possa manifestar, por intermédio de seus designers, uma postura ética, ou uma preocupação social, em relação à melhoria da qualidade de vida de seus usuários.
Assim, parece-nos natural que alguns designers de moda contemporâneos aproximem suas investigações sobre os mais diversos assuntos utilizados como inspirações e/ou apropriações, tais como o interesse por corpos metamorfoseados de Rei Kawakubo para a Comme des Garçons, e os corpos mutantes de Walter van Beirendonck para a WL-T, ou ainda por questões que permeiam a sustentabilidade, como Oskar Metsavaht para a marca carioca Osklen, ou questões sociais, como Geraldo Lima para a marca paulista Urânio.
Castilho e Martins (2005:27-35) complementam essa ideia ao dizer que a moda é um sistema de linguagem, um discurso de ideias transformadas em produtos, e que estes, por sua vez, refletem os valores e preocupações socioculturais pela interpretação subjetiva de seu criador, o designer de moda, conceito este reforçado por Preciosa (2004:30), ao dizer:
"[a moda] como forma absolutamente singular de sintonizar ideias, sensações, que vão modelando o contemporâneo, encarnando-as. Neste sentido, ela, em certa medida, pode nos oferecer um diagnóstico do mundo em que vivemos. Nas suas mais variadas manifestações, ela nos propõe modos subjetivos que serão vestidos por nós."
Se nos encontramos no início deste milênio preocupados com sustentabilidade, cultura, tradição, futuro, tecnologia, poderíamos admitir que cada designer possa oferecer o seu diagnóstico, isto é, se manifestar por meio da criação de sua coleção, refletindo sobre o assunto ou mistura de assuntos que lhe convier, transformando-os em produtos e, da mesma maneira, os usuários poderiam escolher aqueles que melhor os satisfizerem. A moda não é um sistema isolado do mundo, mas parte dele, ela reúne os mais diversos e variados assuntos que podem ser apropriados pela cultura material, utilizados como inspiração.
Villaça (2007:218) amplia essa idéia ao acrescentar que a moda, a partir dos anos 1990, se tornará um fórum de debates. É nesta década, que a moda passa a ser notícia de pauta geral, deixa de ser privilégio dos especialistas, é tratada em jornais do cotidiano, assumindo conotações políticas, sociais, artísticas, estéticas, banais ou engajadas, afirma. Podemos, portanto, observar uma parcela do mundo através da moda.
Um exemplo disto, é a coleção de verão de 2007 da designer paulistana Karlla Girotto, intitulada De Verdade, que se inspirou em mulheres que usam número de manequins de 44 a 50. Em seu desfile do SPFW[19]ela optou por substituir modelos femininos por balões de gás, acoplados a cabides que traziam as roupas da coleção e eram conduzidos por modelos masculinos. Sendo assim, a opção de casting[20]feminino foi pela ausência de casting. O masculino era composto por uma seleção de modelos longilíneos, dentro dos padrões estéticos do mercado de moda.
Os modelos masculinos, apresentaram looks cuja rigidez lembrava uniformes militares, entraram carregando balões amarrados às roupas femininas.
Após curto percurso, cada um se posicionou em um degrau pré-determinado e prendeu o balão em uma pedra ali localizada.
Ao optar por apresentar sua coleção amarrada a balões de gás, Girotto, contesta através da ausência do casting feminino, a ditadura da magreza, e enfoca a beleza da roupa capaz de vestir a variedade de corpos de sua inspiração, segundo texto de nossa autoria (2008:94). O conceito de leveza, atribuído aos vestidos flutuantes transmitiu a mensagem de que a beleza pode se apresentar sob diferentes formas poéticas (fig.8 e 9).
Ted Polhemus, antropólogo anglo-americano, autor da teoria do Supermercado de Estilos, sugere que a aparência está cada vez mais ligada à comunicação, uma vez que o ser humano utiliza o corpo e a forma de se vestir para se promover e marcar sua presença, referindo-se aos usuários. Em sua obra Street Style (1994), o autor discute a relação entre modos de vestir, modos de se comportar e músicas, que definem diferentes tribos urbanas americanas e europeias durante o século XX. Muitas destas tribos possuíam uma ideologia de vida identificada pelo autor, como os punks, góticos, skinheads, surfistas, apenas para citar alguns.
Polhemus aponta para a mistura de referências e inspirações dos usuários, a partir dos anos 1990, sem necessariamente uma identificação ideológica, como se estivéssemos num supermercado, escolhendo determinados produtos pelos aspectos estéticos, reforçando a singularidade da moda e do indivíduo, transformando-nos em neo-hippies, neo-punks ou neo-new romantics.
Esta teoria afirma nossa despreocupação com a possível ditadura das tendências de moda, aproximando nossa investigação da moda como propostas de ideias transformadas em produtos que podem ou não serem "selecionados" pelo usuário, já que um dia podemos ser neo-hippies e no outro neo-punks.
A partir dos anos 1990, as opções de escolhas são maiores comparadas aos anos 1950, proporcionando uma moda mais individualizada. Mas será que as mulheres portadoras de necessidades especiais, objeto desta dissertação, possuem escolhas de produtos? Nossas entrevistadas relatam suas dificuldades com foco no calçado no capítulo 4.
1.2.1 Re-design de corpos
A moda é, por princípio, efêmera e paradoxal, afirma Lipovetsky (1989).
Por um lado, continuamos encontrando propostas e imposição de tendências como nos áureos tempos da alta-costura, e, posteriormente, do prêt-à-porter, mas, por outro, encontramos mais opções de escolha hoje do que nos anos 1950, argumento reforçado por Villaça e Góes (1998:107):
"Como prótese corporal e elemento do processo de subjetivação, a moda oscila em geral em duas direções. Por um lado, ela é instrumento de padronização, correção, perfeição, como se vê notadamente nos anos gloriosos em que a alta-costura, com seu aparato, se distinguiu da produção em série. Por outro, também como prótese, a moda funciona cada vez mais como derrubada de cânones, novidade e pluralização das diferenças, mesmo que por meio da imperfeição..."
Na terminologia médica[21]atual, o termo órtese se refere aos aparelhos ou dispositivos de uso externo, destinados a alinhar, prevenir ou corrigir deformidades ou melhorar a função das partes móveis do corpo, mas não substituí-los.
Compreendemos as modificações propostas pela moda como transformações externas estéticas, portanto, órteses da moda. Uma bota ortopédica pode ser considerada uma órtese, que auxilia a marcha do indivíduo não substituindo, entretanto, seus pés. Considera-se prótese a peça ou dispositivo artificial utilizado para substituir um membro, um órgão ou parte dele, relacionado diretamente com a função biomecânica do mesmo. A moda tem suas realidades protéticas.
Consideramos, portanto, as peças do vestuário, peças que nos auxiliam na composição estética de nossos corpos, órteses da moda. As questões que dizem respeito à beleza ou à falta dela – à feiura, são associadas por Feitosa (2004:134) como a dificuldade em lidar com o diferente.
Incluem seus aspectos morais, como desvios de conduta sociais, ou, de maneira indireta, algo associado ao bárbaro, ao grotesco e ao estrangeiro. Para o autor, "tudo o que parece ser estrangeiro, inabitual ou muito novo tende a ser visto com desconfiança e a ser percebido como feio." Relembramos que a percepção corporal relaciona-se com o meio social, portanto, o que pode parecer estranho para nós é aquilo que não estamos acostumados a ver.
Estas afirmações nos remetem às explicações de Halpern, com relação aos corpos dos portadores de necessidades especiais: são corpos diferentes, com um caminhar particular. Podem nos parecer estranhos, esquisitos na passarela da vida.
Corpos estes que, mesmos nos dias atuais, não estamos acostumados a ver. Neste sentido, Karin, uma das entrevistadas, fala sobre a dificuldade de encontrar PNEs na mídia, ou seja, se víssemos mais indivíduos com restrições físicas inseridos no cotidiano mostrando suas habilidades, mais pessoas não estranhariam nos ver. Ela argumenta:
"Sem desmerecer o Cesar Cielo, [complementa], que apareceu no Fantástico, foi capa de revista e tudo mais... mas e o Daniel Dias, com 8 medalhas paraolímpicas, não deveria receber o mesmo tratamento da imprensa? Ele poderia inspirar as crianças... perdemos uma oportunidade de ouro, não de 8 ouros", lamenta Karin.
Parece-nos que a moda, fábrica de produzir estranhezas, palco de debates e assuntos polêmicos, poderia nos auxiliar nesta reflexão por meio de Rei Kawakubo, designer de moda japonesa, que se esconde atrás da marca Comme des Garçons, e demonstra sua fascinação pelo corpo e pelo re-design do corpo, pela forma e por texturas. Sua obsessão em modificar a anatomia do corpo humano é uma constante em seu trabalho, conforme afirma Caletti in Miglietti (2006:264).
Em 1997, ela colocou chumaços em zonas inusitadas, transformando o corpo das modelos com corcundas, barrigas, ombreiras e quadris distorcidos. O corpo associado às diferentes formas foi apresentado por Kawakubo, ao nos perguntar: o que é o belo? Para Comme des Garçons, as transformações corporais são formidáveis nesta estação. Seus vestidos apresentados na passarela por corpos deformados sugerem outros padrões estéticos-corporais. Ela inverte o texto do corpo padrão para o discurso do corpo estranho, diferente, inusitado. Aquele corpo que não estamos acostumados a ver.
Nesta coleção, através da órtese, ela sugere o re-design do corpo, transformando os corpos considerados perfeitos das modelos na passarela em corpos deformados (fig.10 e 11), questionando os padrões de beleza impostos pela própria indústria cultural. Ela propõe na passarela uma reflexão sobre a beleza do corpo considerado perfeito, o corpo das modelos, deformando-os, apresentando como padrão corporal o corpo deformado por seus looks, uma alusão à diversidade corporal. Sendo a marca Comme des Garçons uma griffe altamente conceituada no universo fashion, suas propostas são ainda mais emblemáticas. Para a marca Comme des Garçons, o belo é a deformidade, conceito reforçado por Eco (2007:428) ao dizer que, no século XX, a beleza é politeísta.
Kawakubo não está defendendo diretamente causas em prol dos PNEs, mas certamente proporciona um diálogo direto entre moda e corpos transformados. Ao sugerir corpos com volumes estranhos, moda de silhueta estranhamente deformada, e, ao mesmo tempo, tão harmônica, delicada, poética e sensível, ela nos permite dialogar com as diferenças. Aproveitamos para relembrar a importância do corpo do outro na obra de Merleau-Ponty, e acrescentar, nas palavras de Nóbrega (2000:104), o conceito de sensível relacionado ao corpo:
"o elemento sensível relaciona o corpo à unidade do humano, uma unidade de diversidade, aproximando a linguagem do corpo da expressão artística, do viés sensível. A linguagem sensível privilegia a beleza, a poesia e a diversidade corporal."
Existe, portanto, uma relação íntima entre o corpo como meio de comunicação e a corporeidade da moda, esta última efêmera e paradoxal, sempre em busca do novo, propondo assuntos controversos que, para muitos podem parecer estranhos, ou até mesmo feios, afinal trata-se de algo novo, inusitado. Mas, por outro lado, são propostas que algumas vezes são diluídas e, posteriormente aceitas, ou não, como os casos da calça Blommer e da minissaia. Mas nos parece que tais códigos são mais complexos no contemporâneo. Ao mesmo tempo em que procuramos algo que nos identifique, também procuramos diferenciação.
Relembramos também que as condutas sociais não são tão rígidas quanto nos tempos das leis suntuárias e até mesmo nos anos 1950, quando a tatuagem e os piercings eram considerados marginais.
Em A História da Feiúra, Eco (2007B) sugere: como é bela esta feiura, considerando os aspectos plásticos da beleza clássica e renascentista em oposição ao feio contemporâneo encontrado na mídia, na arte, na comunicação e nas publicidades de moda. Para o autor, a feiura é relativa ao tempo e às culturas, isto é, o que era considerado estranho ou grotesco em tempos passados ou em culturas distintas, atualmente pode ser considerado belo. Ele ainda acrescenta que alguns elementos percebidos como feios podem compor um belo conjunto, como o personagem principal do filme E.T., ou os extraterrestres de Guerra nas Estrelas, considerados "classicamente feios", mas certamente amabilíssimos, defende Eco.
"O feio hoje", título do último capítulo desta obra, sugere que no contemporâneo vivemos muitas contradições paradoxais que não se encontram em oposições binárias, mas coexistindo na atualidade, quando jovens, por exemplo são atraídos mais pela beleza de Marilyn Manson do que de Marilyn Monroe. Podemos compreender que a desagradável estranheza de Maison, pode ser considerada por alguns uma categoria de beleza mais interessante do que a clássica beleza de Monroe, segundo seus valores socioculturais. Isto não significa que, estes mesmo jovens, eliminem a categoria de beleza clássica de suas vidas, reforça Eco. Uma garota que adore o som de Maison pode desejar se casar com um clássico vestido branco, exemplificamos.
Concluímos que, mesmo as características da beleza/feiura estão relacionadas a outras questões além da plasticidade estética, tais como: interesse, desejo e até mesmo emoções despertadas pelo imaginário do usuário, ou provocadas pela indústria cultural em relação a um determinado produto. Parece-nos, portanto, que o paradoxo belo/feio está relacionado ao que nos instiga. Perguntamo-nos, então: quais seriam os interesses de nossas usuárias? Pensar em "produtos capazes de tirar o indivíduo da cadeira, disponibilizando novas formas e conexões do mundo", parafrasiando Preciosa (Op. cit.:50), como fez Kawakubo, é o que nos motiva a trazer a discussão do corpo para o território da moda. Artefatos que nos tragam prazer, proporcionem experiências sensoriais, nos transportem para territórios lúdicos, criem vínculos emocionais, até que se tornem mais difíceis de serem descartados e, portanto, consumidos conscientemente, é nosso desafio.
Investigar as possibilidades de escolha do usuário que satisfaçam suas necessidades funcionais para a melhoria da qualidade de vida no quesito saúde, seus desejos e interesses pessoais, aquilo que lhes proporciona prazer e conforto, seus processos de seleção individual (do gosto) na construção dos looks é o que nos interessa.
Neste capítulo, abordamos as qualidades e funções dos produtos de design de moda considerados por nós, órteses ou próteses da moda.
Órteses são entendidas como artefatos que auxiliam os órgãos de nossos corpos a realizar funções, mas não os substituem: óculos de grau que auxiliam nossos olhos a ler, sapatos que protegem nossos pés, vestidos que transformam as silhuetas de nossos corpos, como os de Rei Kawakubo, observados no capítulo anterior.
As próteses da moda são compreendidas como artefatos de design que substituem algumas das funções de nossos órgãos ou membros, observados neste capítulo pela da singularidade do designer de moda inglês, Alexander McQueen e suas propostas para os portadores de necessidades especiais (PNE). É por meio desta proposta que nos perguntamos se um artefato de moda pode contribuir para a melhoria da qualidade de vida nos quesitos saúde física e bem-estar social.
Acreditamos que o modelo social fomentado por Margolin, associado aos valores subjetivos e éticos postulados por Whiteley, e a questão do prazer na investigação de Jordan, possam nos auxiliar nesta reflexão.
2.1 Sobre qualidades e funções do design
Para Iida (2005:316), os produtos deveriam possuir três características desejáveis, que seriam responsáveis por satisfazer certas necessidades do ser humano, tais como as qualidades: a) técnicas; b) ergonômicas e c) estéticas. Segundo Cipiniuk e Portinari in Coelho (2008:77), a necessidade na área do design é compreendida como a essência que determina e justifica a existência de um determinado grupo de funções. É entendida como aquilo que não se pode dispensar: o essencial. Os autores acrescentam que os critérios de legitimação das prioridades das necessidades não são claros, mas há consenso de que o usuário os estabelece.
A qualidade técnica é a parte que faz funcionar o produto, do ponto de vista mecânico, elétrico, eletrônico ou químico, transformando uma forma de energia em outra. Existem diferentes tênis para diferentes esportes, formatados para diferentes pisadas, por exemplo.
A qualidade ergonômica é o que garante uma boa integração do produto com o usuário: facilidade de manuseio, adaptação antropométrica, compatibilidades de movimentos e demais itens de conforto e segurança.
A ciência baseada nos fatores humanos (nomenclatura utilizada nos Estados Unidos e Canadá) e ergonômicos (no resto do mundo) define-se como a ciência da utilização das forças e das capacidades humanas. Para Moraes e Mont"Alvão (2003:11), a ergonomia compreende a aplicação de tecnologia de interface entre o ser humano e o sistema (posto de trabalho e objetos), com o objetivo de aumentar a segurança, o conforto e a eficiência do sistema e da qualidade de vida.
A terceira é a qualidade estética que proporciona prazer ao consumidor. Envolve a combinação de formas, cores, materiais, texturas, etc.
Para Löbach (2001:58-66), os produtos possuem três funções: a) a função prática – relações entre o produto e seus usuários no nível fisiológico de uso; b) a função estética – relação entre o produto e o usuário no nível dos processos sensoriais, um aspecto psicológico da percepção sensorial durante o uso[22]e c) função simbólica – determinada pela capacidade psíquica e social de fazer conexões entre a aparência percebida sensorialmente e a capacidade mental de associação de idéias (símbolos).
Vale ressaltar que as funções estão entrelaçadas, como afirma Ono (2004:73): "As funções de uso [práticas] encontram-se, como as funções simbólicas, diretamente vinculadas à percepção do usuário e ao contexto em que se insere." Em sua tese, a autora afirma que as soluções dos produtos variam de acordo com os aspectos socioculturais: uma motocicleta pode ser utilizada como meio de locomoção relacionado ao trabalho por um motoboy, enquanto o mesmo objeto pode ser considerado um veículo de passeio por outro usuário. Diferentes contextos, diferentes funções simbólicas.
Kasper (2004:01), em seu artigo Aspectos do Desvio de Função, questiona a função como propriedade de um objeto quando o uso de um artefato é desviado do seu uso considerado adequado (projetado para executar determinada função). Nas palavras do autor: uma chave inglesa utilizada como martelo.
Recordamo-nos das diversas funções da garrafa de coca-cola encontrada por um membro de uma tribo africana no filme Os deuses devem estar loucos. A garrafa caiu do céu, mais precisamente de um avião, e foi levada à tribo que até então vivia de forma pacífica, em harmonia. Em princípio, os membros questionaram sua função, mas, ao constatar que se tratava de um presente divino, vindo dos céus, a garrafa se tornou importante. Em um determinado momento da película, todos os membros da tribo, homens, mulheres, crianças, não conseguiam mais viver sem a garrafa de coca-cola, usada das mais diversas maneiras. As desavenças começam e, na tribo até então pacífica, instaura-se o caos, até se perguntarem que presente era aquele que os deus enviaram. Um dos integrantes fica incumbido de devolver o tal presente. Este filme exemplifica nossa teoria de que a função do objeto varia de acordo com o contexto social, sendo que este é percebido pelo indivíduo através de suas experiências, e estas podem ser aprendidas.
Na moda, podemos verificar diversos exemplos de objetos com funções de uso desviadas pelos usuários, redirecionando a função simbólica: um cadarço de sapato utilizado como cinto, uma camisa como saia. Elsa Schiaparelli, de origem italiana, com uma maison de alta-costura em Paris, a Pour le sport, introduzia, já na década de 1930, objetos do cotidiano em contextos diferentes, como o sapato-chapéu ou as luvas com unhas. Amiga de Salvador Dalí, Man Ray e Cecil Beaton, dentre muitos outros artistas, ela trouxe para a moda o surrealismo (fig. 12 e 13), segundo Seeling (Op. cit.:149).
O sapato (fig. 12), que possui a função original de proteger os pés e de auxiliar no caminhar, foi transformado em chapéu. A função de uso do chapéusapato atual é de proteger a cabeça; houve um desvio de função do calçado, deslocando seus aspectos simbólicos.
Ainda sobre funções e artefatos, gostaríamos de acrescentar a reflexão de Forty (1993), que nos traz os objetos como próteses, como prolongamentos físicos e simbólicos de nossos corpos. Segundo o autor, o valor de prótese possui um sentido literal e outro metafórico. No primeiro, a prótese, termo advindo das áreas biomédicas, significa substituição de um membro ou órgão do corpo humano, como próteses de membros, por exemplo. No segundo, o sentido metafórico, além dos seus aspectos materiais, o artefato serve para determinados rituais sociais, como afirma o autor:
"A mais valiosa aplicação da teoria protética é na área da estética do design, à qual fornece pontos de partida importantes. Se considerarmos os objetos como prolongamentos do corpo, então temos que reconhecer que eles dão prazer ao corpo... O vestuário é mais do que um simples revestimento e um meio de manifestar diferenças sociais: usá-lo é também uma sensação de experiência." Forty (Op. cit.:90).
É justamente neste território estético-simbólico, ou seja, proporcionando prazer e conforto nos níveis fisiológicos e sociais, que a moda pode, por intermédio do design de calçados, proporcionar maior satisfação pessoal aos PNEs.
Jordan (2000) afirma que, para pensar artigos ou bens de serviços socialmente responsáveis, baseados nas necessidades humanas, devemos considerar a relação de prazer que tal produto pode proporcionar ao usuário. Para o autor, prazer e conforto estão correlacionados.
As funções e qualidades dos produtos de design, em especial os calçados, serão abordadas no decorrer desta dissertação. A função prática, com as qualidades técnicas e ergonômicas associadas ao prazer e ao conforto fisiológico no capítulo, são discutida no capítulo Projetando Calçados, enquanto as questões estéticas, simbólicas e o styling associadas ao prazer e ao conforto social se desdobram no capítulo, Investigando as necessidades subjetivas das usuárias.
Lembramos que, mesmo os produtos pré-destinados a um possível tipo de uso, não são necessariamente utilizados daquela forma. Os artefatos do vestuário são transformados frequentemente, fazemos ajustes de uma peça na cintura, uma barra de calça, ou até mesmo tingimos ou bordamos. Também ao usarmos uma peça com outra redefinimos o look através do styling, re-significando a imagem de moda.
Diferentes usos podem gerar outros significados. O stylist é um mediador da moda, assim como um curador[23]é para a arte. Cada stylist interpreta a vestimenta e a propõe de maneira diferente, inserindo-a em um novo contexto. Ele é um mediador entre público e designer, isto é, a maneira como a composição imagética dos elementos é organizada causa uma imagem e um determinado impacto. Se os mesmos elementos fossem organizados de outra maneira, ou, por outro curador, a mensagem seria diferente.
Na fig. 14, podemos observar, no editorial da revista Vogue Brasil de outubro de 2006, um editorial apresentado com a mesma peça de roupa, o trenchcoat da marca Maria Bonita, utilizada de três maneiras distintas, conforme a proposta de cada fashion stylist[24]
A função prática do trench-coat é a mesma: vestir o corpo. Na imagem da esquerda encontramos um look clássico, com uma combinação de cores e texturas próximas, sem grandes contrastes. No look de Daniel Ueda, na foto central, encontramos uma variedade de texturas, cores e composições que a revista tenta nomear de street único. O trench-coat, uma peça clássica, assume a re-significação simbólica da moda streetwear.
Quanto à função estética, o trench-coat apresentado por Daniel Ueda é um simulacro do clássico no quesito forma, ou seja, os materiais e cores utilizados no trench-coat são os mesmos: trata-se da mesma peça, mas sua apresentação fotográfica aberta sobrepondo as outras peças adquire uma nova forma, resignificando a função estética. O trench-coat, inicialmente com a silhueta em forma de ampulheta, propõe feminilidade; já na imagem central, simula a silhueta retangular alargada e unissex, em combinação com as demais peças utilizadas por Ueda. O styling re-significou o trench-coat através da recombinação dos elementos e da própria imagem fotográfica alterando nossa percepção: a imagem da esquerda simboliza elegância e feminilidade enquanto a imagem central é street e unissex.
Gostaríamos de acrescentar, que na moda, o styling tende a ser valorizado por ser o elemento responsável pela comunicação do conceito de uma imagem de moda, normalmente um desfile ou editorial de revista. A interpretação deste conceito pode ser realizada pelo profissional stylist ou não. Estão incluídos os aspectos estéticos da apresentação, tais como: a) edição de looks - cores, formas, texturas, proporções, e, nos casos dos desfiles, a passagem do look de uma modelo para o outro; b) casting, c) sonoridade/trilha-sonora; d) ambientação/cenografia, e e) coreografia – a atitude dos modelos. A organização destes elementos forma a imagem de moda e deveriam transmitir o conceito da marca através dos aspectos simbólicos.
Aproveitamos para ressaltar uma possível divergência com relação ao termo styling. Na área do design, ficaram conhecidos como produtos styling aqueles com uma conotação estética mais acentuada que as demais funções, insinuando um possível aspecto negativo dos produtos por impulsionar o consumismo, enquanto que, na área de moda, o styling tende a ser valorizado por permitir a mensagem da marca e também a comunicação na esfera individual. Acreditamos que o styling de moda, com o objetivo de comunicação do conceito, pode ser positivo em nossa reflexão.
2.2 Designers de moda
O designer de moda é, por principio, um designer de produtos voltado para o nicho do vestuário. Como designer entendemos a definição da ICSID[25]
"Design is a creative activity whose aim is to establish the multi-faceted qualities of objects, processes, services and their systems in whole life cycles. Therefore, design is the central factor of innovative humanization of technologies and the crucial factor of cultural and economic exchange."
Ao pensarmos em designers de moda, estão subtendidos, portanto, os processos de criação e a realização de projetos que refletem a subjetividade do designer. Sua missão, como designer, é utilizar-se das inovações tecnológicas de seu tempo, oferecendo produtos que reflitam a sociedade ou uma parcela dela na esfera cultural, social e econômica. Argumento que é completado por Iida e Mühlenberg (2006:5): "o designer de moda utiliza-se intensamente dos fatores emocionais nas formulações de novos produtos." Portanto, as funções estético-simbólicas nos artigos de moda são mais acentuadas do que as qualidades técnico-funcionais.
Segundo Christo (Op. cit. :31), a formação do designer de moda no Brasil é recente. As universidades de criadores de moda têm historicamente foco no estilismo. Para Catellani (2003:327), o "fashion designer é o desenhista de moda, seja ele técnico, ilustrador ou estilista". Em seu livro, a autora não usa o termo estilista. Já estilista, segundo Sabino (2007:254) ".. destina-se a designar alguém que consiga, a partir de uma matéria-prima qualquer, imaginar uma roupa, um acessório ou um par de sapatos, por exemplo".
Não nos interessa discutir as diferenças semânticas entre designers ou estilistas, mas, definitivamente, a abrangência de alguns criadores não se restringem ao universo do indústria do vestuário, ou até mesmo calçadista, nem sequer somente ao desenvolvimento de produtos. Muitos deles, como Rei Kawakubo, Alexander McQueen, os brasileiros Ronaldo Fraga, Jum Nakao, dentre muitos outros, participam de exposições artísticas. Alguns exemplos são: Fraga para "Bossa 50" no Pavilhão da Bienal - SP e Nakao para "Quando vidas se tornam forma: diálogo com o futuro – Brasil / Japão" no MAM –Ibirapuera - SP, ambas em 2008.
Os criadores aqui apresentados são aqueles que discutem seu próprio sistema, regras e quebra de paradigmas. É essa moda que nos interessa: aquela que nos tira do confortável sofá da sala de estar. Estes criadores nos tiram do lugar, nos arrepiam, emocionam, nos dão prazer. São eles que nos transportam para territórios lúdicos, e não outros. É pensar que, por intermédio de suas propostas, podemos refletir sobre a relação da moda com nossos corpos, e de nossos corpos com a moda, assumindo ambiguidades. A moda é paradoxal por definição.
Nossos tempos convivem com diversos padrões de beleza, juntos na mesma categoria hierárquica: a ninfeta Twiggy divide espaço com a charmosa Jack Kennedy e a cantora James Joplin. A moda apenas se apropria destes padrões de beleza e os consagra através da mídia.
Para Crane (Op. cit.:30-31), as teorias de Tarde e Simmel explicam uma parcela da estetização da moda. A autora relembra que algumas criadoras de modismos eram operárias que se tornaram atrizes ou cortesãs no século XIX. Para explicar esta influência independente do poder econômico, a autora utiliza-se da teoria de Veblen como potencial de visibilidade social, e as teorias de Bourdieu[26]identificadas pelo estilo de vida. O processo de adoção de modismos é muito mais complexo, segundo a autora, na sociedade fragmentada do final século XX. Os grupos de referência estão relacionados aos gostos culturais e estilos de vida.
Encontramos, portanto, uma sociedade muito complexa, e uma linguagem de moda contemporânea igualmente estratificada. A moda se encontra em uma arena onde diferentes assuntos podem ser abordados: questionamento do belo e do feio, da inserção tecnológica, da quebra e imposições de padrões. Não existe mais o comprimento correto da saia, ou a cor da estação. Mesmo os editoriais de moda, responsáveis por indicar as tendências da estação, seus modismos, enumeram uma série de possibilidades com imagens (fig. 15): as palavras não dão conta da mistura de referências.
A partir dos 1990, encontraremos um mesmo designer reunindo diversas propostas no mesmo desfile, na mesma coleção. Ele pode buscar inspirações nas mais variadas fontes, reunindo-as aparentemente num caos estético pós-moderno. As apropriações do criador se fundem em diversos códigos complexos numa mesma coleção. Cada look de uma mesma coleção é uma singular sugestão. São vários nomes da moda com propostas singulares no mesmo desfile: Walter van Beirendonck, Comme des Garçons, Alexander McQueen, Hussein Chalayan e os brasileiros Alexandre Herchcovitch, Marcelo Sommer, Jum Nakao, Icarius, Ronaldo Fraga, Karlla Girotto, dentre outros.
Para exemplificar a complexidade destes diálogos e suas relações com o redesign de corpos, abordaremos o desfile de verão de 1999, do designer inglês Alexander McQueen, em conjunto com o editorial da revista inglesa Dazed & Confused coordenado por ele.
2.2.1 Propostas protéticas e estéticas de Alexander McQueen para PNE
Para Santaella (Op. cit.:201), o corpo protético é aquele corpo híbrido, corrigido ou expandido por intermédio de uma prótese, substituindo suas funções orgânicas. Difere-se do corpo remodelado pela órtese, apresentado no capítulo anterior pela abordagem da marca Comme des Garçons.
Nesta leitura, observamos a moda protética no sentido metafórico e literal, através das diferentes próteses de McQueen para a modelo Aimee Mullens, atleta paraolímpica, que não possui parcialmente seus membros inferiores, necessitando de uma prótese para substituir a função de suas pernas e pés, portanto, um corpo já protético.
O designer apresenta o mesmo corpo protético da modelo em três momentos distintos. São três próteses diferentes com qualidades técnico-funcionais semelhantes: com função prática mecânica de permitir o caminhar do corpo humano, porém, distintas em seus materiais técnicos. No editorial interno (fig.16), sua prótese é de plástico, já na capa da revista (fig.17) de fibras de carbono com aparência metálica, e durante o desfile (fig.18) de couro.
Aimee Mullens abriu o desfile de McQueen para o "verão de 98-99", realizado em outubro de 1998. Ela foi capa e editorial da revista Dazed & Confused n. 48 e, na ocasião declarou: "I don"t want people to think I"m beautiful inspite of my disability but because of it. It"s my mission to challenge people"s concept of what is and isn"t beautiful[27]No editorial interno (fig.16), ela utiliza próteses plásticas, as unhas estão mal pintadas, sujas, molduradas com suas pernas de plástico também sujas. A atitude corporal é passiva, porém, dura, como uma estátua. O look é todo em tom de pele pálido-bege, ela usa uma jaqueta de madeira sobre uma camiseta de malha e crinolina sobre a calcinha da mesma cor. O corpo protético transformado por McQueen num corpo frágil e delicado, nos remete às bonecas infantis de plásticos com expressão apática e distante.
Na capa (fig. 17) da revista, ela usa calças Adidas, dorso nu e próteses de carbono, com as quais ela venceu a paraolimpíada. O corpo protético apresentado é de uma mulher forte e sensual. Seu olhar é penetrante e a atitude corporal é sinuosa.
As tiras verticais brancas são símbolo da marca Adidas e, em conjunto com suas próteses especiais para corrida, contextualizam o esporte. É a imagem simbólica de uma atleta.
Na mesma edição, Alexander McQueen, responsável pela coordenação do editorial, e Katy England pelo styling, fotografado por Nick Night, apresentam o mesmo corpo carnal, da mesma mulher com próteses diferentes, uma de aspecto metálico e outra de aparência plástica. Em ambas imagens, com significados diferentes, podemos observar claramente o corpo da atleta sendo transformado em corpo protético. Seu corpo foi expandido pelas próteses, objetos de design.
A função prática das próteses é a mesma. Na prótese de carbono com aparência metálica, ainda encontramos diferenças na qualidade técnica, sendo que esta foi projetada para dar maior propulsão e menor impacto ao correr[28]
Já no desfile (fig.18 e 19), Mullens usa como extensão de seu corpo botas de couro, próteses como calçados, desenvolvidas especialmente para a ocasião. Assim, McQueen propõe que uma mulher protética (amputada) se torne padrão de beleza como modelo na passarela de seu desfile, em conjunto com as outras mulheres normais[29]que com ela dividem a mesma passarela. Pelas imagens, não é possível identificar a falta de seus membros inferiores. O design de suas botas sugere equilíbrio no aspecto emocional-funcional do produto. Jordan (2000:12) atribui os aspectos funcionais ao bom desempenho do produto e os emocionais às sensações provocadas, como prazer, excitação e alegria, resultantes das qualidades sensoriais (visão, audição, tato, olfato e paladar) na utilização do mesmo. Para este autor, um vestido novo pode trazer autoconfiança ao usuário.
Para Evans (2003:177), neste desfile o designer justapõe o orgânico ao inorgânico, explora a relação entre alienação pré e pós industrial, utilizando elementos como pesados corselets e botas de couro com rendas delicadas. Esta inspiração aparentemente caótica percorre todo o desfile, desde a oposição de materiais como a renda e o couro. Na apoteose do desfile, quando a última modelo perfeita, Shalon Harlow, encerra a performance imóvel na passarela como uma boneca, ela é alvejada de tinta (fig.20) por mecanismos industriais automobilísticos nas cores preto e verde-amarelo-limão. Podemos, portanto, confirmar que tanto o corpo protético de Mullens como o corpo perfeito de Harlow são corpos-próteses e corpos-órteses sucessivamente, no sentido metafórico sugerido por Forty: uma sensação de experiência através do prazer, isto é, que proporciona satisfação.
Apesar da pressão estética da indústria da beleza por um corpo perfeito, podemos encontrar, no contemporâneo, maior diversidade corporal proposta por alguns designers de moda, como nos casos demonstrados.
Se outrora a questão da aparência do corpo ou do look divulgava a posição social do indivíduo, uma hierarquia definida e respeitada até mesmo por disponibilidade de recursos econômicos, parece-nos que tais códigos não são tão certeiros na pós-modernidade. As grifes, mercado de luxo e poder aquisitivo continuam sendo importantes - não somos ingênuos de pensar que não. Mas, por outro lado, não ampliamos nossas possibilidades de escolha?
2.3 Sobre Design e Responsabilidade Social
O design socialmente responsável está relacionado diretamente à qualidade de vida. Segundo Cooper in Santos (2005:79-85), desde os anos 1960, a pesquisa em prol da melhoria da qualidade de vida no campo do design é abordada por diferentes enfoques: o design verde e consumismo, design responsável e consumo ético, ecodesign e sustentabilidade, além do design feminista[30]Nos anos 1970, encorajado por Papanek, uma abordagem mais solidária foi retomada na tentativa de abandonar o design para o lucro em prol das necessidades humanas. Nas décadas de 1980 e 1990, questões relacionadas ao lucro e à ética, pesquisas no campo da sustentabilidade e orientações frente à educação do consumidor foram publicadas.
Acessibilidade e inclusão social também são assuntos de grande interesse por parte dos designers. Recentemente, os designers têm voltado sua atenção para as questões relacionadas ao crime, afirma a autora.
Vários autores (Bonsiepe, 1997; Whiteley, 1998; Jordan, 1999; Margolin, 2002; Cardoso, 2004; Cooper in Santos, 2005) parecem concordar com o impacto da polêmica obra Design for the Real World[31]de Victor Papanek - desenhista industrial e diretor de design do California Institute of the Arts, dos anos 1970. Nesta obra, Papanek (2000:54-85) solicita a participação dos designers em programas de necessidades sociais: "necessidades dos países em desenvolvimento, necessidades dos idosos, dos pobres e dos portadores de deficiências físicas". O autor sugere a reflexão sobre o papel do designer como cidadão responsável, exigindo uma postura radical em relação ao modelo de mercado[32]
Antes de abordamos os modelos de investigação de Whiteley e Margolin, gostaríamos de trazer a reflexão de Flusser sobre a responsabilidade do designer para com a dialética interna da cultura, com foco no que o autor sugere como progresso em direção aos homens.
Segundo Flusser (2007:194), a cultura pode ser considerada como a totalidade dos objetos de uso, ou seja, os objetos que nos cercam servem de diagnóstico para construirmos e compreendermos nosso mundo. Sendo os designers responsáveis por um grande número de objetos de uso em diferentes esferas (carros, eletrodomésticos, computadores, vestuários, dentre outros), podemos admitir que os objetos do cotidiano são, pelo menos em parte, responsáveis pela composição cultural do mundo.
Esta posição relata o estado das coisas com relação aos objetos de uso, portanto, com relação à cultura. Se parecemos nos encontrar atualmente numa posição aprisionada[33]é porque nossos antecessores criaram objetos irresponsavelmente. Como sair deste dilema?, pergunta o autor:
"Como devo configurar esses projetos para que ajudem os meus sucessores a prosseguir e, ao mesmo tempo, minimizem as obstruções em seus caminhos? Esta é uma questão política e também estética, e constitui o núcleo do tema configuração (Gestaltung)". Flusser (2007:196).
Os objetos de uso são mediações (media, meios) entre o usuário e os objetos, afirma o autor, sendo as mediações do objeto, objetivas e intersubjetivas, não apenas problemáticas, mas dialógicas, isto é, os objetos deveriam ser configurados de maneira que seus aspectos comunicativos fossem mais evidenciados que os aspectos problemáticos.
As antigas botas ortopédicas infantis, por exemplo, dependendo da patologia, estão sendo substituídas por tênis (fig. 21), comunicando, através do design destes produtos, um tênis comum para crianças comuns, e não suas restrições físicas. Os problemas ortopédicos são camuflados pelos aspectos comunicativos de um tênis infantil comum. Poderíamos, portanto, argumentar que as funções estética e simbólica estão relacionadas diretamente com a comunicação do objeto de design, e que este pode sofrer desvios de função de acordo com o ambiente sociocultural.
Para Whiteley (1998:67), o designer radical do final da década de 1960 deu lugar ao designer responsável da década de 1970, seguido pelo designer verde ou ecológico da década de 1980, e, por último, o designer ético da década de 1990, que encara todo o design como fenômeno visceral e intimamente ligado ao consumo e, portanto, ao sistema social e político do Ocidente moderno. O autor sugere que, nos tempos atuais uma postura radical do designer com relação ao mercado não seja necessária, e, sim, uma postura ética segundo os valores sociais e culturais do designer, nomeado por ele de designer valorizado:
"É aquele que possui uma compreensão crítica dos valores e fundamentos do design, mas também deve ser audaz, e corajoso: disposto a defender ideais sociais e culturais mais elevados que o consumismo a curto prazo, com a sua bagagem obrigatória de degradação ambiental. O designer valorizado deve enxergar no design o potencial de contribuir para uma qualidade de vida melhor e mais sustentável. Neste sentido, o designer valorizado deve ter consciência do seu próprio valor. Aliás, o modelo preconiza que o designer – longe de ser um mero sonhador, um teórico distante ou técnico sem imaginação - saiba estipular o preço de seu conhecimento. Os designers devem ter consciência de quanto custam, assim como de quanto valem!".Whiteley (Op. cit.:74).
O autor refere-se às limitações dos modelos de ensino do design encontrados nas principais escolas do mundo. Cabe a estas instituições a responsabilidade de fomentar qualidades no aluno: "As escolas e faculdades devem satisfações a toda sociedade e não apenas àquelas empresas que empregam designers diretamente." Whiteley (Ibidem:69).
O artigo considera a prática do design e a teoria do design como saberes diferenciados, porém relacionados em função dos valores como consciência crítica ao pensar design ou ao fazer design. Estão inclusas as questões éticas e ecológicas de natureza cultural, ambiental, social e política, diante do perfil polivalente e interdisciplinar do design na sociedade contemporânea.
O aluno precisa ter uma noção sólida do papel do design na sociedade em que vive e compreender o contexto histórico e intelectual que o gerou, entender como o "design se transformou em uma atividade de ordem cultural e não mais de ordem utilitária ou comercial", afirma Whiteley (Ibidem:72). Ao estudar os valores elásticos que historicamente são frutos das práticas sociais e culturais, associados ao estilo de vida como campo cultural e não como segmentação do mercado, o aluno poderá compreender que as idéias estão sempre em mutação: de onde vieram, como mudaram e que rumo poderão tomar. Esta compreensão deverá transformá-lo indiretamente num designer melhor, afirma o autor.
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