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Polícia e direitos humanos: Aspectos contemporâneos (página 5)

Marco Antonio Alves Miguel
Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6

A criação do TPI, em conferência das Nações Unidas, realizada em Roma, em julho de 1998, foi uma resposta a esse anseio de justiça.

O Tratado de Roma, produto desta conferência, contém o Estatuto do Tribunal Penal Internacional e foi subscrito pelo Brasil. Trata-se de instituição permanente, com jurisdição para julgar genocídio, crimes de guerra, contra a humanidade e de agressão, e cuja sede se encontra em Haia, na Holanda. Os crimes de competência desse Tribunal são imprescritíveis, dado atentar contra a humanidade como um todo.

Os líderes políticos e militares de governos e grupos que, pelo poder que detêm em seus próprios Estados, dificilmente são responsabilizados pelos seus atos e punidos pelas jurisdições nacionais, assim, passam a ser o principal alvo do TPI. Para combater a impunidade, para defender os Direitos Humanos Fundamentais, para intimidar os senhores da guerra, para fazê-los pensar duas vezes antes de cometer seus crimes, para isso foi criado o TPI.

Na realidade, esta postura favorável ao TPI foi consubstanciada pela Constituição brasileira de 1988, que no artigo 7o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabelece: "O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos".

O Decreto Presidencial nº 4.388, de 25 de setembro de 2002, promulgou o Estatuto de Roma do TPI, anteriormente ratificado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 112, de 6 de junho de 2002. A norma internacional, vigente no ordenamento interno, dentre outras disposições, estabeleceu a competência jurisdicional do TPI para o julgamento dos crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão e definiu as respectivas condutas penalmente relevantes.

O TPI apenas exerce sua jurisdição sobre os Estados que tomaram parte de sua criação, ficando excluídos os países que a ele não aderiram. A jurisdição internacional é residual e somente se instaura depois de esgotada a via procedimental interna do país vinculado. Sua criação observou os princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei penal, pois sua competência não retroagirá para alcançar crimes cometidos antes de sua entrada em vigor, conforme previsto no artigo 11 do Estatuto de Roma.

Um problema que se apresenta: a questão da soberania.

O termo "soberania" é propositadamente um conceito jurídico indeterminado, pois é a situação política do momento que a define (sempre de forma temporária). A existência de um Direito Internacional Público é, em sua essência, a limitação de soberania dos Estados para que estes possam de uma forma ou outra coexistir. Se o princípio da soberania fosse absoluto e irredutível, as relações internacionais não existiriam.

O fato de o Brasil aceitar a submissão do § 4º, do artigo 5°, da CF, não deve ser interpretado como renúncia à sua soberania, mas apenas uma limitação consensual dela, limitação esta imposta de forma igual a todos os Estados participantes. Entende-se que o fator decisivo em matéria de soberania é a ausência de hierarquia entre Estados.

Discute-se, ainda, sobre a constitucionalidade de impor limites aos Direitos e Garantias Fundamentais.

O parágrafo 4° é o último item do Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) inserido no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais). Este parágrafo se apresenta como uma ressalva de todas as disposições do artigo 5º, ou seja, limita todos os direitos e garantias contidas nele em favor da jurisdição do TPI. Nesse mister, as Garantias Criminais são as mais afetadas.

Em razão dessas limitações, houve necessidade de se alterar a Constituição. A ratificação do Estatuto de Roma pelo Brasil, em 2002, não teria a capacidade e a legitimidade de tal efeito, pois seria levada à inconstitucionalidade, uma vez que o país discorda da supremacia dos acordos internacionais. A autorização constitucional de submissão às disposições do TPI torna, dessa forma, a participação do Brasil possível.

Destacam-se algumas hipóteses das limitações de direitos e garantias que poderão ocorrer com relação ao TPI: O inciso XLVII em sua alínea "b", do artigo 5º da CF, declara que "não haverá penas" "de caráter perpétuo". Contudo, o Estatuto do TPI prevê a possibilidade de imposição de pena perpétua no artigo 77, inciso 1, alínea "b". O artigo 80 do Estatuto também possui relevância nesta questão (Non-prejudice to national application of penalties and national laws); o artigo nº 89 do Estatuto de Roma trata da "Entrega de pessoas para a Corte" (Surrender of persons to the Court) o que vai de encontro com o disposto no inciso LI do artigo 5º: "nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei".

O Brasil poderá promover a entrega de cidadão brasileiro para ser julgado pelo TPI, sem violar o disposto no art. 5º, LI, da CF, que proíbe a extradição de brasileiro nato ou naturalizado (salvo se este último estiver envolvido em tráfico ilícito de entorpecentes ou tiver praticado crime comum antes da naturalização).

Não se pode confundir extradição com entrega. O art. 102 do Estatuto de Roma estabelece a diferença: "Por entrega, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal, nos termos do presente Estatuto; por extradição, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado, conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno".

Na extradição, há dois Estados em situação de igualdade cooperando reciprocamente um com o outro, ao passo que, na entrega, um Estado se submete à jurisdição transnacional e soberana, estando obrigado a fazê-lo ante sua adesão ao tratado de sua criação. Não há relação bilateral de cooperação, mas submissão a uma jurisdição que se sobrepõe aos países subscritores.

Convém consignar o fato do Brasil não poder se recusar a entregar um brasileiro ao TPI, sob a alegação de que a sua Constituição interna proíbe a prisão perpétua (CF, art. 5º, XLVII, b), porque o âmbito de aplicação dessas normas se circunscreve ao território nacional, pois não seria razoável o Brasil submeter-se a uma jurisdição internacional, querendo impor a ela seu ordenamento interno. Se cada país subscritor fizer as ressalvas próprias de suas normas, tradições e culturas, provavelmente o tratado perca seu caráter de universalidade. Observa-se que o art. 77, I, do Estatuto de Roma não autoriza a pena de morte, sendo sua pena mais grave a prisão perpétua.

Finalmente, no tocante às imunidades e aos procedimentos especiais decorrentes da qualidade oficial da pessoa (Presidente da República, parlamentares, diplomatas, entre outros), não constituirão obstáculo para que o TPI exerça a sua jurisdição sobre a pessoa, conforme o disposto no art. 27 do Estatuto.

Parece que, apesar de não afastar a jurisdição do TPI, os direitos previstos em nosso Direito interno poderão ser alegados como matéria de defesa perante o TPI (por força do artigo 21 do Estatuto), principalmente em relação à pena que será imposta.

A jurisdição do TPI é complementar, de acordo com o que consta de seu preâmbulo, e conforme ensinamento de Mazzuoli (apud CAPEZ, 2005a):

[...] sua jurisdição, obviamente, incidirá apenas em casos raros, quando as medidas internas dos países se mostrarem insuficientes ou omissas no que respeita ao processo e julgamento dos acusados, bem como quando desrespeitarem as legislações penal e processual internas.

Conclui-se que o parágrafo 4º do artigo 5º e a adesão brasileira ao TPI são constitucionais. Pois não houve nenhuma abolição de direitos e garantias individuais (vedada pelo Art. 60, § 4º, IV, CF), apenas a limitação de alguns para favorecer a punição de atos atentatórios aos direitos humanos.

Grave violação dos direitos humanos e a competência judicial

A Emenda Constitucional n° 45/2004 estabelece no artigo 109, que trata da competência dos Juízes Federais, as seguintes disposições:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

V- As causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo;

[...] § 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.

O objetivo fundamental destes dispositivos é a efetiva melhoria de proteção aos direitos humanos. Verifica-se que a EC nº 45/2004 concebeu a federalização dos crimes contra a humanidade, isto é, considerou a Justiça Federal como órgão competente para julgar as causas envolvendo direitos humanos, pois a federalização de competência em matéria de direitos humanos é uma tendência internacional, e apesar das adversidades, se forem seguidas as normas do devido processo legal, espera-se que o objetivo seja alcançado.

Sobre o assunto, Piovesan (1999) expressa:

A federalização dos crimes contra os direitos humanos é medida imperativa diante da crescente internacionalização dos direitos humanos, que, por conseqüência, aumenta extraordinariamente a responsabilidade da União nesta matéria. Se qualquer Estado Democrático pressupõe o respeito dos direitos humanos e requer a eficiente resposta estatal quando de sua violação, a proposta de federalização reflete, sobretudo a esperança de que a justiça seja feita e os direitos humanos respeitados

A referida EC n. 45/2004 teria criado adversidades. Argumenta-se que os critérios são demasiadamente vagos para definir o que vem a ser a tal "grave violação aos direitos humanos", levando a uma ofensa ao princípio do juiz e do promotor natural, diante de uma flexibilidade insustentável.

Capez (2005b) aduz:

[..] uma competência constitucional-penal discricionária e incerta, o que viola as garantias constitucionais do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII), pois ninguém pode ser julgado por um órgão cuja competência foi estabelecida após o fato, bem como da segurança jurídica (art. 5º, XXXIX), na medida em que a qualificação jurídica de um fato depende de lei e não da interpretação dessa ou daquela autoridade.

Não se define "direitos humanos", pois trata-se de um conceito jurídico indeterminado e para criar-se um conceito de "grave violação de direitos humanos" remeter-se-ia a valores individuais e universais. Ou seja, deve-se condicionar a um juízo de valor no caso concreto.

Por outro lado, a delineação de competências em nosso ordenamento deve ser sempre taxativa, devido ao seu aspecto formal (e não material). Ou seja, em matéria de competência deve haver definições claras e objetivas, evitando conceitos ou expressões subjetivas. Ainda mais se o assunto se refere à tipificação das infrações penais.

A amplitude do conceito de direitos humanos se faz necessária, não se atendo simplesmente aos transcritos no Título II da Carta Política, dos tipos penais do Estatuto de Roma ou outros diplomas criminais, para garantir a sua própria proteção. Por derradeiro, a conveniência da interpretação do magistrado diante do caso concreto, decidindo se a situação configura ou não grave violação de direitos humanos.

Existem evidentes riscos nesta situação, pois a simples alteração de competência da jurisdição estadual para a federal parece que não ajudaria substancialmente na tutela dos direitos humanos. Na medida em que são adicionados obstáculos processuais relativos à transferência de competência, como, por exemplo, aumentando inevitavelmente a duração do processo, atentando contra a celeridade processual, pode até prejudicar a tutela dos direitos humanos. Outro aspecto é o prejuízo para a ampla defesa, pois, em termos práticos, seria uma péssima publicidade para o réu ter a intervenção do Procurador-Geral da República, ainda mais não sendo responsabilizado pela Justiça ao fim do processo, podendo ficar estigmatizado como "violador de direitos humanos", mormente quando o seu nome for explorado pela mídia, o que será inevitável, à vista da delicadeza e singularidade do assunto.

Espera-se a formação de sólida jurisprudência no que tange o termo "grave violação", identificando seus parâmetros gerais, ou seja, quais as fontes que serão efetivamente utilizadas para saber quando a violação se torna grave. Por outro lado, espera-se cautela no momento da intervenção do Procurador-Geral da República, pois se o incidente de deslocamento de competência for realizado em fases avançadas do processo acarretará mais dificuldades do que benefícios.

Polícia e direitos humanos: a experiência precursora da polícia militar paulista

A Polícia Militar do Estado de São Paulo, principalmente após o episódio da Favela Naval, ocorrida em 1997, com o destaque na imprensa mundial, adotou várias estratégias consoantes às necessidades imperativas relacionadas às políticas públicas em Direitos Humanos.

Observa-se em notável Trabalho de Conclusão de Curso por Silva (2004, p. 80):

No dia 13 de março de 1998 foi constituída a Comissão de Direitos Humanos da Polícia Militar do Estado de São Paulo com o objetivo principal de representar a Corporação nos diversos eventos de Direitos Humanos, perante os órgãos oficiais, organizações não governamentais e comunidade em geral [...]. Trata-se de uma comissão específica para a área dos direitos humanos, com regimento interno próprio, que trabalha como pólo difusor das diretrizes do Comando Geral, nas áreas do ensino e operacional, para atender aos princípios consagrados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos [...]. A Comissão de Direitos Humanos da Polícia Militar do Estado de São Paulo busca ainda, com suas ações, eliminar a discriminação de pessoas e grupos sociais por motivo de raça, religião, ideologia ou condição social, promovendo também a proteção da pessoa humana de forma a reafirmar sua condição de indivíduo titular de direitos e deveres.

Indispensável tecer alguns comentários sobre a Comissão de Direitos Humanos da Polícia Militar paulista, pois se apresenta como uma feliz idéia, que rompe com alguns paradigmas perpetuados por meio dos ranços ideológicos até então vigentes.

A referida comissão tem por objetivo buscar a melhoria efetiva do serviço prestado pelos policiais militares no atendimento ao cidadão. Além disso, também busca assegurar aos policiais militares o reconhecimento de seus direitos e garantias individuais, até porque o policial como agente da aplicação da lei e, nessa condição, também deve ter as mesmas garantias e seus direitos preservados.

A Comissão criou a Subcomissão Permanente da Comunidade Negra, a qual possibilita à comunidade negra um canal de comunicação e participação junto à Polícia Militar do Estado de São Paulo.

Silva (2004, p. 80) lembra que:

O Centro de Formação de Soldados da Polícia Militar elaborou o Manual de Cidadania da Polícia Militar (M-18-PM), que trata dos direitos fundamentais da pessoa, das garantias constitucionais, do conceito e valores relativos à cidadania, do policial militar como instrumento dos direitos humanos e da cidadania, dos limites da lei, e da necessária indignação com a violência aos direitos humanos.

Decorrem da criação da Comissão vários eventos importantes para a consolidação dessa mudança de paradigmas. A Polícia Militar paulista realizou o 1º Concurso de redação "Ghandi e a Não-Violência" no ano de 1998, patrocinado pela Associação Palas Athena e pelo Consulado Geral da Índia, que contou com o apoio da Secretaria Nacional de Direitos Humanos e do Projeto "Discriminação, preconceito, estigma", da Faculdade de Educação da USP. Dentre os objetivos do concurso, estava a difusão das idéias do líder político e espiritual Mahatma Gandhi, enfatizando suas ações de forma não-violenta, diante das diversas agressões sofridas pelo povo indiano, relacionadas ao preconceito racial, ao abuso do poder político e econômico.

Em 1998, a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça e a Secretaria Estadual da Segurança Pública firmaram convênio com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e a Anistia Internacional para a implementação do Curso de Técnicas Não-Letais e de Intervenção Policial e também do Curso de Formação de Agentes Multiplicadores de Direitos Humanos e Técnicas Não-Letais.

Anualmente, a Diretoria de Ensino da Polícia Militar do Estado de São Paulo, órgão de Direção Setorial do Sistema de Administração de Ensino, por meio da Escola de Educação Física da Polícia Militar, desenvolve os Cursos de Técnicas Básicas de Uso de Equipamentos e Procedimentos Não-Letais e Defesa Pessoal, com o intuito de treinar procedimentos de intervenção policial, minimizando sempre que possível à letalidade do uso dos equipamentos disponíveis, principalmente as armas de fogo.

Policiais militares de todo o Estado são designados para realizarem os cursos em São Paulo e, ao retornarem para suas organizações policiais militares, atuam como instrutores nos estágios de atualização profissional, para multiplicar os ensinamentos e as técnicas adquiridas, difundindo assim os procedimentos não letais de intervenção policial. A partir da intervenção direta da Comissão foram adquiridos equipamentos de proteção individual, como o colete, o bastão tonfa e o gás pimenta [27]

A Comissão de Direitos Humanos ainda organizou o IV Congresso de Ordem, Segurança Pública e Direitos Humanos para o Desenvolvimento da América Latina e do Caribe, em São Paulo, e participou da organização do Programa Estadual de Proteção às Vítimas e Testemunhas de São Paulo, o PROVITA-SP.

Membros da Comissão participaram do II Congresso de Ordem, Segurança Pública e Direitos Humanos para o Desenvolvimento da América Latina e do Caribe, realizado no Caribe. A Polícia Militar do Estado de São Paulo possui um integrante na Comissão de Direitos humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção São Paulo, integrante da Comissão de Direitos Humanos da Polícia Militar.

As Unidades da Polícia Militar de todo o Estado foram estimuladas a promoverem eventos para a internalização dos valores e deveres éticos em oposição à violência, merecendo destaque: o I Fórum Internacional de Polícia Comunitária e de Direitos Humanos, realizado de 3 a 5 de novembro de 1999, em São Paulo; o II Congresso Internacional de Polícia Comunitária e de Direitos Humanos, realizado de 12 a 14 de junho de 2000, em Ribeirão Preto; o II Fórum Internacional de Polícia Comunitária e Direitos Humanos, realizado juntamente com o Seminário Internacional de Gerenciamento de Crises – Equipamentos, Técnicas e Táticas Não Letais de Defesa (INTERDEFESA), realizado em São Paulo, de 10 a 13 de abril de 2002.

O III Fórum Internacional de Polícia Comunitária e Direitos Humanos ocorreu no período de 06 a 09 de maio de 2003, no Centro de Exposições Imigrantes de São Paulo, sendo promovido pela Polícia Militar, com apoio de diversas entidades, associações de classe ligadas à instituição paulista e de vários setores da comunidade paulista, nacional e internacional.

A Comissão de Direitos Humanos da Polícia Militar e a Diretoria de Ensino contribuíram efetivamente para a modernização do ensino dos direitos humanos em todos os cursos de formação e aperfeiçoamento da Polícia Militar do Estado de São Paulo, não se limitando a aspectos técnicos, mas criando uma cultura de crenças e valores.

Ainda foram editados diversos manuais profissionais como o Manual de Conduta Social e o Manual de Auto-Proteção para o cidadão; instituído o Disque PM, mais um canal de comunicação com a comunidade para o recebimento de denúncias, críticas e sugestões para a melhoria dos serviços prestados pela Polícia Militar do Estado de São Paulo.

As parcerias efetivadas pela Comissão de Direitos Humanos com órgãos governamentais, não governamentais e entidades da sociedade civil comprometidas com a defesa dos direitos humanos possibilitaram a organização e o desenvolvimento de simpósios, palestras e seminários temáticos sobre minorias.

O Simpósio "A Mulher Presidiária e os Direitos Humanos" foi realizado em parceria com a Fundação Professor Dr. Manoel Pedro Pimentel, Secretaria Estadual de Administração Penitenciária e Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica/Comissão São Paulo no dia 15 de dezembro de 1998, em São Paulo/SP.

Ainda pode-se citar o fornecimento de instrutores que integram a Comissão de Direitos Humanos da Polícia Militar em cursos de direitos humanos para outros Estados brasileiros e até para outros países. Em razão da Comissão, foram instituídas as Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (CIPA), que tem como objetivo principal preservar a vida dos policiais militares durante a execução de suas atividades operacionais e administrativas.

Percebe-se que as políticas públicas em relação às polícias é a transparência de suas atividades de polícia, as quais devem estar integradas com as expectativas da sociedade civil.

A criação das Ouvidorias de Polícia em todo o Brasil vem demonstrando a certeza da punição dos encarregados da aplicação da lei, pelo tom dos discursos das autoridades federais, pelos relatórios publicados e pelo que se noticia nos meios de comunicação.

Por sua vez, as estratégias sobre Polícia Comunitária também são compartilhadas com a filosofia moderna de gestão de segurança pública.

Dias Neto (apud FELIX, 2002, p. 116) comenta:

Ao envolver os cidadãos no processo, a polícia contribuiu para a recuperação da vida em comunidade, e desta forma previne crimes [...], a sociedade passa a ter uma avaliação mais realista das potencialidades e limites da polícia e a partir disso conscientização de suas próprias responsabilidades no processo.

Busca-se diante dessa filosofia, resgatar o profissional de segurança pública, que sempre se preocupou em prestar relevantes serviços sociais, desenvolvendo atividades assistenciais, como atendimento a parturientes, pessoas desaparecidas, com problemas mentais, de alcoolismo, além de desentendimento entre vizinhos, perturbação do sossego, uso indevido do espaço público e outros.

Daí a necessidade de destinarem-se recursos compatíveis para que os objetivos traçados não sejam palavras em vão, pois é evidente que se espera uma ação eficiente, tanto no uso legítimo da força em relação às polícias militares, quanto ao aperfeiçoamento e capacidade de investigação em relação às polícias civis e federal.

Direitos humanos como limite no contexto de segurança pública

Ao se abordar os Direitos Humanos Fundamentais, no contexto da segurança pública, há uma polêmica em torno da questão do favorecimento a malfeitores, associando-se à proteção de marginais em detrimento à proteção das suas vítimas e dos encarregados da aplicação da lei. Às vezes, a indignação pública com esse entendimento faz sentido e, não raro, tem-se a impressão de que os criminosos contumazes se valem desses direitos para até mesmo debochar da população ordeira ou mesmo dos órgãos legitimados do poder público, como as polícias e a próprio judiciário. Essa população tem a idéia geral de que os direitos humanos devessem favorecer apenas as pessoas de bem, os cidadãos idôneos e, dentro desse raciocínio, seriam excluídos dessa proteção os criminosos sabidos, que, para efeito dessas garantias, não poderiam ser considerados cidadãos.

Silva (2003, p. 67), comenta acerca desse problema:

[...] é uma divisão maniqueísta que não resolve o problema. Os infratores da lei são passíveis de terem podados alguns direitos, mas não todos, sem falar da necessidade de que lhes reconheça a condição humana, de nada adiantando o argumento de que eles não respeitam a condição humana de suas vítimas [...]. O indivíduo preso é despojado do status libertatis e tem o status civitatis e o status familiae limitados [...].

O mencionado autor acrescenta:

Todo indivíduo em liberdade é, em princípio, um cidadão idôneo e deve ser respeitado pelas autoridades e pela polícia de segurança pública, não podendo esta supor que se trata de um criminoso foragido ou autor de crime ainda não conhecido" (SILVA, 2003, p. 67).

Nesse contexto, há um dilema para os encarregados da aplicação da lei: exige-se da polícia de segurança pública a repressão com todo rigor contra os infratores da lei, que deveriam estar presos e a proteção dos cidadãos plenos [28]que fazem parte da quase totalidade da população. Nos grandes centros, os infratores que deveriam estar presos confundem-se na multidão com os cidadãos plenos e não é possível aos olhos da polícia de segurança pública identificar uns dos outros. E, por fim, o sistema de repressão criminal, incluindo o sistema penitenciário, não é uma questão policial, mas as informações derivadas desse sistema são importantes ao trabalho de inteligência da polícia de segurança pública, notadamente à polícia ostensiva e de preservação da ordem pública.

Diante dessa visão, os encarregados da aplicação da lei passam a adotar o caráter subjetivo de seleção de cidadãos nos espaços públicos e, desta forma, são merecedores de críticas em face de posturas que possam ofender os direitos dos cidadãos plenos e que querem, ao mesmo tempo, a proteção contra a ação de criminosos.

A fiscalização de polícia, notadamente quando da abordagem de pessoas em atitudes suspeitas, quer em trânsito a pé, quer em veículos, por si só já caracteriza certo constrangimento, embora legal, no qual revela-se o caráter subjetivista da ação.

Não se pode conceber, sob a óptica do princípio do monopólio da violência legítima por parte do Estado, que este, por meio de seus órgãos de segurança pública, vá às últimas conseqüências para resolver, por essa única via, o problema da violência.

Retomando a questão da violência policial, espera-se esforços mais objetivos por parte dos analistas para fugir do preconceito contra a polícia e os encarregados da aplicação da lei.

Sobre essa crítica, Silva (2003, p. 522), observa:

Cumpre saber objetivamente se os valores e crenças de que os policiais se nutrem são algo inerente à sua (dos policiais) essência, ou se eles são induzidos e legitimados por segmentos importantes, com poder e voz, da própria sociedade. Cumpre identificar os representantes desses segmentos, muitos dos quais escondidos nos biombos da retórica formal, para que a luta contra a violência policial não se circunscreva e se esgote na polícia, sem que os seus legitimadores externos sejam questionados.

O problema vem merecendo soluções mais racionais. É razoável os encarregados da aplicação da lei terem de cumprir o dever que a lei lhes impõe e quanto a isso parece não haver qualquer dúvida. Por derradeiro, não se pode admitir a covardia e a omissão no desempenho de atividade policial àquele que tem o poder-dever de cumprir a lei. A lei é o limite que traça o cumprimento do dever.

Mais do que isso, para o encarregado da aplicação da lei passa a existir uma atitude moral, passível de críticas e elogios. As críticas vêm diante de abusos ou desvios de poder quando se ofende a Administração Pública ou mesmo os Direitos Fundamentais. Elogios ocorrem quando a polícia não se preocupa apenas com o contratualismo e o positivismo em seu poder-dever, vai mais além e aproveita valores tais, passando a se interagir com a sociedade na busca de melhores condições de vida e dignidade. Observa-se a polícia de segurança pública colaborando com inúmeros projetos sociais [29]e, assim, vai além de seu dever legal ou profissional, procurando valores que transcendem a vontade para uma finalidade, a razão humana, ou um imperativo categórico, mesmo que explicitamente não se reconheça as lições de Kant (2002, p. 58-59):

[...] o homem - e, de sua maneira geral, todo o ser racional - existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade.[...] O imperativo prático será, pois, o seguinte: age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio (grifo do autor).

Acerca do poder-dever, que também nutre o princípio da Administração Pública, as ações dos encarregados da aplicação da lei, e por isso destaca-se o dever, é no poder de polícia de preservação da ordem pública que se encontra também essa legitimidade. Como visto no capítulo anterior, para assegurar a supremacia do interesse público sobre o particular, um dos princípios da Administração Pública, os encarregados da aplicação da lei, agentes da Administração Pública, são investidos do poder de polícia que lhes permite, em nome desse interesse, restringir, limitar e até mesmo sacrificar, em determinadas condições, interesses e mesmo direitos privados. É por essa razão que os atos dos encarregados da aplicação da lei são dotados de fatores especiais de eficácia, como a interatividade, a presunção de legitimidade ou a auto-executoriedade, ausentes dos atos dos particulares.

Assim, aos encarregados da aplicação da lei, o uso de tais atributos ou poderes se apresenta como um dever funcional irrenunciável, expresso na atribuição legal de competência, cuja omissão possa levá-los, nos atos em que devam praticar de ofício, à responsabilidade criminal, por prevaricação [30]

O sentido do "poder-dever" para os encarregados da aplicação da lei é o da obrigatoriedade de tomada de providências requeridas no caso para curar do interesse público em comento, assim como a todo agente da Administração Pública. Esse o sentido do Direito Público Interno.

Mas as próprias normas, diante de princípios constitucionais consagrados, já trazem os limites da ação da polícia de preservação da ordem pública. E, bem por isso, os encarregados de aplicação da lei não devem se exceder em seu cumprimento, abusando da autoridade.

Além das normas já positivadas no Direito Pátrio, os Direitos Humanos Fundamentais inserem-se como barreiras ou limites ao poder de polícia de segurança pública e ao poder da polícia. O poder de polícia é um poder instrumental no Direito Administrativo em se tratando da Administração Pública, e autoriza os encarregados de aplicação da lei a exercerem atos coercitivos necessários a fazer, quando colidentes, este interesse geral prevalecer sobre o interesse individual.

Portanto, nessa óptica, em face de princípios da própria Administração Pública, o sentido de poder-dever que os encarregados da aplicação da lei possuem, em seu legítimo uso do poder de polícia, no cumprimento de suas missões constitucionais.

Nem mesmo a Organização das Nações Unidas aceita que os encarregados da aplicação da lei deixem de cumprir com o seu dever [31]

O Código de Conduta para os Encarregados da Aplicação da Lei (CCEAL) (COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA), destaca que a natureza das funções e a maneira pela qual essas funções são exercidas pelos encarregados da aplicação da lei na defesa da ordem pública possuem um impacto direto na qualidade de vida da pessoa humana, assim como da sociedade como um todo. E, nesse sentido, pode haver um potencial excesso ou abuso no cumprimento do dever.

Nesse ponto, relacionado com o cumprimento do dever aos encarregados da aplicação da lei, o CCEAL prevê oito artigos que não desmerecem em nenhum momento valores éticos relacionados com direitos humanos e justiça criminal. Vale citar esses valores éticos para sedimentar tal assertiva:

O artigo 1º estipula que os encarregados da aplicação da lei devem sempre cumprir o dever que a lei lhes impõe.

O artigo 2º requer que os encarregados da aplicação da lei, no cumprimento do dever, respeitem e protejam a dignidade humana, mantenham e defendam os direitos humanos de todas as pessoas.

O artigo 3º limita o emprego da força pelos encarregados da aplicação da lei a situações em que seja estritamente necessária e na medida exigida para o cumprimento de seu dever.

O artigo 4º estipula que os assuntos de natureza confidencial em poder dos encarregados da aplicação da lei devem ser mantidos confidenciais, a não ser que o cumprimento do dever ou a necessidade de justiça exijam estritamente o contrário.

O artigo 5º reitera a proibição da tortura ou outro tratamento ou pena cruel, desumano ou degradante.

O artigo 6º diz respeito ao dever de cuidar e proteger a saúde das pessoas privadas de sua liberdade.

O artigo 7º proíbe os encarregados da aplicação da lei de cometer qualquer ato de corrupção. Também devem opor-se e combater rigorosamente esses atos.

O artigo 8º trata da disposição final exortando os encarregados da aplicação da lei (mais uma vez) a respeitar a lei (e a este Código). Os encarregados da aplicação da lei são incitados a prevenir e se opor a quaisquer violações da lei e do código. Em casos onde a violação do código é (ou está para ser) cometida, devem comunicar o fato a seus superiores e, se necessário, a outras autoridades apropriadas ou organismos com poderes de revisão ou reparação (grifo nosso)

E, o CCEAL (s.d.) vai mais além, ao afirmar:

O desempenho correto e eficaz das organizações de aplicação da lei depende da qualidade e da capacidade de desempenho de cada um de seus agentes. A aplicação da lei não é uma profissão em que se possam utilizar soluções-padrão para problemas-padrão que ocorrem a intervalos regulares. Trata-se mais da arte de compreender tanto o espírito como a forma da lei, assim como as circunstâncias únicas de um problema particular a ser resolvido. Espera-se que os encarregados da aplicação da lei tenham a capacidade de distinguir entre inúmeras tonalidades de cinza, ao invés de somente fazer a distinção entre preto e branco, certo ou errado. Esta tarefa deve ser realizada cumprindo-se plenamente a lei e utilizando-se de maneira correta e razoável os poderes e autoridade que lhes foram concedidos por lei. A aplicação da lei não pode estar baseada em práticas ilegais, discriminatórias ou arbitrárias por parte dos encarregados da aplicação da lei. Tais práticas destruirão a fé, confiança e apoio públicos e servirão para solapar a própria autoridade das corporações.

Em se tratando de princípios de Direito Público, perceptíveis nesse ponto os da razoabilidade e da proporcionalidade, além da discricionariedade dos atos de polícia do poder de polícia para decidir o que é conveniente, oportuno e justo à realidade das atividades policiada, nos limites da lei, sob a pena de cometimento de abusos ou mesmo de prevaricação, em caso de omissão.

Portanto, em que pese toda essa carga acauteladora nas ações de polícia de segurança pública tendo a lei como o seu limite, evidentemente, num Estado Democrático de Direito espera-se que essas ações sejam sempre legítimas, só assim, os encarregados da aplicação da lei passarão a receber mais confiança da sociedade civil.

A lei e os Direitos Humanos são os limites para a ação legítima e, com isso, evitar-se-ia todo e qualquer tipo de abuso. Evidente também que os Direitos Humanos, além de limites aos encarregados da aplicação da lei, são valores a serem preservados e almejados, mesmo diante daqueles que detêm o poder-dever de agir. A grande meta e o grande desafio são protegê-los e, indo mais além, promovê-los. A esse respeito, comentou com muita propriedade Bobbio (1992, p. 25):

Há três anos, no simpósio promovido pelo Institut International de Philosophie sobre o "Fundamento dos Direitos do Homem", tive oportunidade de dizer, num tom um pouco peremptório, no final de minha comunicação, que o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los. Desde então, não tive razões para mudar de idéia. Mais que isso: essa frase que, dirigida a um público de filósofos, podia ter uma intenção polêmica - pode servir, quando me ocorreu repeti-la no simpósio predominantemente jurídico promovido pelo Comitê Consultivo Italiano para os direitos do homem, como introdução, por assim dizer, quase obrigatória. [...] o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados [...].

Essa é a grande mudança de paradigma sedimentada nos órgãos encarregados da aplicação da lei. A busca pelo bem estar social deverá ser a conseqüência de um objetivo maior em estatura física e metafísica, garantir o respeito aos direitos e promover a dignidade da pessoa humana.

Proposta para o Aperfeiçoamento das Polícias de Segurança Pública em relação aos Direitos Humanos

Nesse ponto do trabalho, procura-se apresentar uma proposta viável para mudanças efetivas de comportamento dos agentes encarregados da aplicação da lei, por meio da educação em Direitos Humanos.

Percebe-se que não é uma proposta inédita a mudança de comportamento por meio da educação, tanto é verdade que, mais recentemente, a exemplo da Polícia Militar paulista, outras corporações policiais vêm adotando o mesmo procedimento, inclusive com apoio do Ministério da Justiça o qual, aparentemente, acampou a idéia precursora e estabeleceu, como será demonstrado, um plano estratégico para o aperfeiçoamento e homogeneização do ensino às polícias de segurança pública brasileiras.

De outra forma, há uma filosofia imperativa na relação entre as polícias, notadamente a polícia ostensiva e de preservação da ordem pública, com a comunidade e em especial com o cidadão, por meio do policiamento comunitário. Essa relação advém das mudanças de estratégias com uma visão de gerenciamento de recursos, diante de princípios da Administração Pública, como a legalidade e eficiência.

A percepção da comunidade em torno dessas mudanças se faz necessário. Por isso, é de fundamental importância o estabelecimento de uma metodologia, envolvendo os órgãos policiais com a comunidade científica na busca de soluções ou, até mesmo, mudanças de políticas públicas visando melhorar as condições de vida das pessoas para que essas efetivamente tenham a almejada sensação de segurança.

A transversalidade na educação profissional do policial

A Interdisciplinaridade e a Transversalidade Curricular são duas dimensões metodológicas que contribuem para a excelência humana e para a excelência do trabalho. Vão ao encontro de uma das aspirações constitucionais nesse mister: o princípio da eficiência da administração pública, expresso no artigo 37 da CF.

O Ministério da Justiça divulgou por meio da internet (BRASIL, s.d.) situações de ensino-aprendizagem a serem propiciadas nos Cursos de Formação e Ensino Policial. Analisando essa intenção, verifica-se que Consultores do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, ministraram seminários sobre Direitos Humanos, focando a importância da Interdisciplinaridade e Transversalidade no ensino policial, resultado de uma parceria entre a Cruz Vermelha e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, do Ministério da Justiça.

Os cursos da Cruz Vermelha no Brasil são ministrados nos estados por especialistas na área de Direitos Humanos desde 1998. Seu principal público são os agentes da área de segurança responsáveis pela formação de alunos em suas academias, cujo objetivo é conscientizar professores instrutores do ensino policial, militares ou civis, sobre a importância da transversalidade dos Direitos Humanos, presente em todas as disciplinas.

Os Direitos Humanos estão relacionados a muitas disciplinas. Existe uma transversalidade entre Direitos Humanos e Direito Constitucional, Direito Processual Penal, Defesa Pessoal Policial, entre outras matérias.

Sobre transversalidade, afirma Araújo (1998, p. 11), referindo-se a Monserrat Moreno, professora da Universidade de Barcelona:

[...] a origem dos núcleos tradicionais de interesse educacional remonta à cultura grega clássica, até porque, naquela época, bem como recentemente, não havia espaço para que mulheres, minorias étnicas e demais grupos sociais politicamente organizados pudessem exercer qualquer tipo de influência.

Os cursos correspondentes à formação e especialização facilitam o processo nas instituições policiais de forma integrada e uniforme, canalizando as ações numa mesma direção. Essa é uma mudança de comportamento e na forma de encarar os Direitos Humanos e repassar esses conhecimentos.

A Transversalidade e Interdisciplinaridade fundamentam-se na crítica de uma concepção de conhecimento que toma a realidade como um conjunto de dados estáveis, sujeitos a um ato de conhecer isento e distanciado. Ambas apontam à complexidade do real e a necessidade de se considerar a teia de relações entre os seus diferentes e contraditórios aspectos. Mas, diferem uma da outra, uma vez que a interdisciplinaridade refere-se a uma abordagem epistemológica dos objetos de conhecimento, enquanto a transversalidade diz respeito principalmente à dimensão didática e, os seus temas, à dimensão axiológica.

A interdisciplinaridade questiona a segmentação entre os diferentes campos de conhecimento, produzido por uma abordagem que não leva em conta a inter-relação e a influência entre elas. Questiona a visão compartimentada (disciplinar) da realidade sobre o qual o ensino, tal como é conhecido, se constitui historicamente.

A transversalidade diz respeito à possibilidade de se estabelecer, na prática educativa, uma relação entre aprender conhecimentos teoricamente sistematizados (aprender sobre a realidade) e as questões da vida real e de sua transformação (aprender na realidade e da realidade). E há uma forma de sistematizar esse trabalho e incluí-lo explícita e estruturalmente na organização curricular também dos agentes encarregados da aplicação da lei, garantindo sua continuidade e aprofundamento ao longo do processo formativo.

A interdisciplinaridade e a transversalidade curricular alimentam-se mutuamente, pois o tratamento das questões trazidas pelos temas transversais expõe as inter-relações entre os objetivos do conhecimento, de forma que não é possível realizar um trabalho pautado pela transversalidade tomando-se uma perspectiva disciplinar rígida. A transversalidade promove uma compreensão abrangente dos diferentes objetos de conhecimento na sua produção, superando a dicotomia entre ambos.

Não basta trabalhar a questão de forma fragmentada e sim dentro do contexto e em todos os momentos da vida do ser humano, fazendo-o entender a importância de se conhecer quais são os seus direitos e o dos outros. Porém, há que se levar em consideração que no momento, o policial, principalmente o da preservação da ordem pública, o policial comunitário, é uma peça fundamental na efetivação dos direitos humanos, uma vez que ele está mais próximo das comunidades mais sofridas, dos excluídos e dos injustiçados.

Por mais que a polícia judiciária, ou seja, as polícias civis e a polícia federal, bem como o Judiciário, pretendam ser essa peça de efetivação, eles não conseguem, por um detalhe simples: a missão constitucional de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública e os valores institucionais, que isso significa efetivamente no consciente coletivo. Percebe-se que o policial militar está ao lado de quem mais sofre, então, ninguém melhor do que ele para resgatar a cidadania do ser humano na sociedade.

Reconhecida pelo plano maior esta necessidade, torna-se imperiosa a adoção da transversalidade na educação profissional do policial, não bastando, por conseguinte, a implantação nos diversos cursos de formação da disciplina Direitos Humanos, seja qual for a sua carga horária.

Espera-se que, especialmente, as disciplinas de cunho técnico tenham nos direitos humanos os seus princípios fundamentais como a base filosófica e, visceralmente, voltadas para o aprimoramento do cidadão policial.

Um trabalho pedagógico postula um processo educativo, centrado na formação de valores e na respectiva tradução atitudinal, o que é complexo, pois supõe respeito ao espaço de liberdade do ser humano para que ele realize a responsabilização moral. É nesse ato e nesse espaço que poderá construir a sua autonomia. A negação desse postulado é um processo educativo centrado em coações, constrangimentos, imposições, premiações e punições e em tecnologias construtoras de subjetividade, parecendo que não há mais espaço para essas concepções no mundo contemporâneo, pois enseja a configuração de comportamentos e procedimentos dos policiais calcados na heteronomia.

A formação de atitudes não depende apenas das práticas pedagógicas, pois concorrem, também, intricadas implicações de natureza psicológica e social. Entretanto, as definições da perspectiva educativa e sua respectiva metodologia enfatizam:

O ensino e a aprendizagem de conceitos como instrumentos de problematização, compreensão e transformação da realidade.

A construção coletiva do conhecimento, a partir de situações concretas e do estabelecimento de conexões e relações teóricas.

A participação ativa e reflexiva de todos e de cada um dos instruendos, propiciando condições de possibilidade para a assunção de atitudes, comportamentos e responsabilização moral referenciados no horizonte axiológico dos temas transversais, a saber, Direitos Humanos, Ética, Cidadania, Pluralidade Cultural, entre outros.

  • Direitos humanos e disciplinas policiais afins

O ensino dos Direitos Humanos é uma realidade nos diversos cursos de formação e de especialização de policiais. Entretanto, o conteúdo da disciplina pode encontrar-se dissociado do conjunto das disciplinas, inclusive as de cunho jurídico a tal ponto que o policial instruendo pode ter a impressão de que direitos humanos não se encontram no núcleo técnico-profissional, nem no grupo de disciplinas jurídicas.

Verifique-se, por exemplo, em relação ao grupo de disciplinas jurídicas, as estreitas vinculações com o Direito Constitucional, onde reside sua essência filosófica. Do mesmo modo em relação ao Direito Penal, cujos tipos configuram, extremamente, as violações dos direitos fundamentais que ao policial cabe reprimir e prevenir, mas cuja percepção é, absolutamente, inexistente.

É de se esperar, embora não seja integralmente comprovado, que os instrutores possuam conhecimento necessário para estabelecer a vinculação entre os Cursos de Formação e instruendos, para que haja uma visão compartimentada, fragmentária dos conteúdos, ficando ao instruendo a impressão de que cada disciplina e cada instrutor demonstrem sua importância exclusiva em relação ao todo.

Ilustrativamente, pode-se citar na disciplina Técnica Policial Militar (TPM), a atividade específica de abordagem às pessoas, cuja necessidade de observância dos próprios fundamentos dos Direitos Humanos é absolutamente impossível, já que a simples atividade se constitui por si só numa limitação flagrante ao exercício das prerrogativas individuais, ainda que o "abordado" seja autor do crime. Vê-se, por isso, como necessário, que o instrutor dessa disciplina estabeleça no policial instruendo a certeza que a sua ação técnica ou tática esteja contida numa conexão mais ampla de respeito inalienável à dignidade humana, mesmo sendo indispensável o uso de força e arma de fogo.

Demonstrou-se em capítulos anteriores, que a lei é parte integrante da força como meio de repressão e a organização de toda essa legitimidade exercida pelo Estado de Direito. O Estado edita e pronuncia a lei e por aí instaura um primeiro campo de injunções e de censura, criando, assim, o terreno para a aplicação e o objeto coerção física. A lei sempre acompanhou o exercício da violência e da repressão física. Não pode o Estado, a propósito de deter o monopólio da violência na edição e aplicação da lei, autorizar o não respeito à lei. Os agentes encarregados da aplicação da lei, notadamente a força policial, deve proteger a segurança da pessoa e assegurar a lei e a ordem. Não se pode permitir que o Estado se utilize desses mecanismos de força legítima como meio de dominação e organizador de disciplina social, pois não é a sua real atribuição.

Outro exemplo a ser citado, para dar a dimensão devida ao aspecto da transversalidade concernente à disciplina Direitos Humanos, diz respeito à matéria intitulada Tiro Defensivo, cuja vinculação é estabelecida com as disposições normativas constantes dos Princípios Básicos Sobre o Uso da Força e Arma de Fogo. Significa dizer que a instrução ou treinamento com arma de fogo deve ser feito em consonância com os estritos limites ali estabelecidos e consoantes às rígidas disposições penais pertinentes.

Não há como o policial instruendo imaginar, apenas, que a disciplina Direitos Humanos possua um caráter filosófico sem qualquer vinculação com a realidade ou, ainda, tão somente, carregada de conteúdos políticos partidários ou ideológicos, os quais também precisam ser bem compreendidos pelo policial moderno, isto na disciplina específica do núcleo geral. Afinal, no particular, também da transversalidade e nessa abordagem pedagógica, insere-se o processo de delineamento do cidadão policial e do conseqüente e simples cidadão.

Os exemplos acima referenciados dão uma sólida amostra da importância da transversalidade em relação aos Direitos Humanos, o que se constitui em mais um degrau na consolidação da pretendida polícia cidadã, enfim, do entendimento perfeito da relação policial e comunidade.

Havendo noções de transversalidade e interdisciplinaridade no ensino policial e, concomitantemente, no ensino de forma geral, espera-se que efetivamente haja uma interação perfeita entre a Polícia e a Comunidade, ou seja, a verdadeira sedimentação de uma polícia comunitária.

Idealização de uma metodologia para avaliação das polícias

Evidentemente, surge a indagação acerca da sedimentação da relação polícia e comunidade, ou seja, como as mudanças ocorridas e demonstradas nesse trabalho podem ser avaliadas. Assim, contemporaneamente, como se encontra essa relação polícia e comunidade, isto é, a comunidade em geral percebeu alguma mudança? E qual foi essa percepção? Resta apenas uma resposta: perguntar à comunidade, por meio de uma correta pesquisa de campo.

Percebe-se que a avaliação, com raras exceções, não consta como item relevante da cultura profissional das polícias brasileiras, estaduais e federais. Sabe-se quão difícil é definir uma metodologia adequada para avaliar o desempenho policial, apesar de alguns ensaios em algumas polícias, como a de Minas Gerais, Rio de Janeiro e de São Paulo. No entanto, não se estabeleceu uma metodologia válida para todas elas nesse sentido.

Interessantes alguns ensaios efetivos que demonstram a relação polícia com a comunidade acadêmica, quando comandos dessas corporações começam a se interagir com a comunidade científica na busca de propostas e soluções comuns e, de outra forma, quando esses cientistas buscam romper paradigmas ao procurarem respostas aos problemas dessa ordem formulados junto aos órgãos policiais.

Exemplo dessa iniciativa ocorre na cidade de Marília/SP:

O Grupo de Pesquisa e de Gestão Urbana de Trabalho Organizado - GUTO/UNESP - desenvolve investigações interdisciplinares e interinstitucionais nos eixos temáticos de Segurança Pública, Violência, Cidadania, Qualidade de Vida e Acesso à Justiça, conciliando e interagindo pesquisa teórico-metodológica e ação/intervenção na comunidade em parceria com Órgãos de Segurança Pública (Polícias Civil e Militar), Poder Executivo (Secretarias Municipais e EMDURB - Empresa de Desenvolvimento Urbano e Habitacional de Marília) e comunidade (Associações de Bairro e CONSEG´s e CONSEB"s – Conselhos Comunitários de Segurança). Integrado ao projeto principal "A Geografia do Crime" (apoio FAPESP/CNPq), desenvolvem-se diversos subprojetos teóricos com produções científicas: publicação de livros, artigos científicos, relatórios de pesquisas teóricas e de opinião pública (Vitimização e Desempenho da Policia Militar). Desenvolvimento do SIG (Sistema de Informação Geográfica) e SINPOL (Sistema de Informação Policial), eletrônicos on line de elaboração de Boletins de Ocorrência e Banco de Dados Estatísticos. Criação do Comitê de Prevenção à Violência de Marília-SP; Consolidação de um Fórum de Discussão Permanente dos Problemas do Município, canal de exercício de cidadania com ênfase nas questões de necessidades primárias; Campanhas de Prevenção à Violência;Revitalização dos CONSEG´s e criação de CONSEB"s; Realização do Projeto Educação para Não-Violência visando a estimular auto-estima e cidadania da criança e do adolescente. Realização de dois grandes eventos: I e II Encontro Sobre Segurança Pública e Cidadania (jun/01 e nov/03), sendo o segundo de abrangência nacional com a presença de muitas autoridades no assunto e apresentação de trabalhos científicos (CNPq, s.d.).

Essa minha experiência de ter participado do GUTO, representando a Polícia Militar do Estado de São Paulo, particularmente o 9º Batalhão de Polícia Militar do Interior, com sede no município de Marilia/SP, demonstrou a necessidade de se buscar uma ferramenta de base científica para a mudança de estratégias ligadas à segurança pública, notadamente em relação à polícia ostensiva e de preservação da ordem pública, missão constitucional das polícias militares brasileiras.

Por meio de um diagnóstico, dados e resultados estatísticos, utilizando-se metodologia científica, principalmente por meio de pesquisa de campo, todos os recursos materiais e humanos da polícia podem ser mais bem utilizados naquilo que é de interesse da sociedade e nada melhor do que isso é perguntar ao cidadão o que se espera do serviço da polícia. É uma questão lógica prestar um serviço a altura de nossas reais necessidades.

Assim, essa ferramenta possibilitou a melhor interação entre a polícia militar e a comunidade, um consenso de argumentação voltada a diminuir a criminalidade, possibilitando demonstrar que os índices de ocorrências policiais, aquelas mais relevantes que ofendem a vida, a integridade física e a moral de cada um, tivessem como resultado uma curva descendente nas estatísticas publicadas pela Secretaria de Segurança Pública e disponíveis por meio da Internet.

Por sua vez, não se trata de matéria sobre a qual haja consenso consolidado; mas é indispensável avançar neste terreno e é inconcebível a generalizada negligência à avaliação, por outros órgãos ligados à segurança, bem como aos do mundo acadêmico.

A ausência de dados críveis e rigorosos sobre desempenho policial é apenas uma parte do problema. O problema parece ser bem mais profundo e grave: tampouco há dados consistentes sobre as dinâmicas criminais, ou pessoal qualificado para interpretá-los, a partir da coleta, organização, processamento e distribuição, ou rotinas adequadas que valorizem sua interpretação e a produção de diagnósticos para fins práticos, isto é, não há gestão do conhecimento. Não havendo dados, qualificação profissional, rotinas e estruturas organizacionais, impedem-se processos decisórios que possam levar sistematicamente em conta um planejamento operacional adequado e compatível com as exigências dos desafios lançados ao poder público pelo crescimento da criminalidade.

O planejamento demonstra ser sempre tópico e reativo, por isso espasmódico, e convive com ou se rende à inércia institucional, em que se reproduzem práticas como hábitos atávicos. A criminalidade é um dos mais regulares fenômenos sociais, favorecendo, conseqüentemente, a previsão e a ação preventiva. Há, por exemplo, nos homicídios dolosos, dependendo de seu tipo, forte concentração espacial e temporal. Verifica-se que esta característica raramente é explorada, em benefício das corporações policiais, através de intervenções preventivas, as quais requerem pro-atividade, com algumas exceções como as já desenvolvidas na óptica da Geografia do Crime na cidade de Marília.

Ocorre que, de forma genérica, não havendo planejamento, ou seja, sem diagnóstico, rotinas, estrutura organizacional apropriada e pessoal preparado, não há estipulação de metas, sem as quais tampouco pode haver avaliação, o que, por sua vez, impede o monitoramento corretivo de todo o processo de trabalho das corporações policiais diante nas necessidades nas comunidades.

É oportuno afirmar que mais grave não é o erro em si, mas identificá-lo, porque caso não o reconhece, corre-se o risco de se condenar a repeti-lo. As instituições policiais brasileiras, se não se preocuparem com a necessidade de desenvolver uma gestão para a qualidade dos seus serviços, continuarão dependendo, apenas, do voluntarismo espasmódico, na reatividade ou na simples inércia conservadora e absolutamente insensível para as demandas de nosso tempo e as mudanças em curso no mundo social contemporâneo e no universo da criminalidade.

Então, por isso mesmo, a necessidade premente das policiais estabelecerem uma metodologia científica, com a participação da comunidade científica das universidades estaduais, ou mesmo privadas, a fim de realizar pesquisas de campo suficientes para estudos de gestão da coisa pública, cumprindo o seu papel constitucional sedimentado num princípio importante e atual: a eficiência. Trata-se, portanto, de buscar soluções, ou seja, trata-se de uma questão de gestão.

Conclui-se, neste capítulo, que a polícia de um modo geral, e a Polícia Militar do Estado de São, em particular, preocupa-se com os Direitos Humanos e se envolve com essas questões de forma estrutural.

A interdisciplinaridade e a transversalidade curricular passam a constituir-se em dimensões relevantes na excelência humana e para excelência do trabalho policial, notadamente a polícia militar, que está efetivamente mais próxima da população e das comunidades mais sofridas.

Assim, os direitos humanos constituem disciplinas afins com outros campos do conhecimento, inclusive de ordem prática nas ações de polícia, quando da utilização de técnicas e instrumentos de força legítima esperada pelos cidadãos em conflito com a lei, não apenas conservando as raízes e conceitos pela ordem filosófica. Para a polícia, os direitos humanos devem ser considerados como conceito de ordem prática.

Metodologicamente, necessário que a gestão dos recursos das polícias seja fundamentada por meio de dados científicos, notadamente utilizando-se ferramentas necessárias para o acompanhamento da evolução criminal e as necessidades das comunidades em relação à segurança pública. A participação e integração dos órgãos policiais e seus agentes de segurança pública no mundo acadêmico romperiam um paradigma preconceituoso e desnecessário contemporaneamente, que resultariam em propostas consolidadas cientificamente para as mudanças relevantes nas questões de políticas públicas relacionadas à segurança e o bem estar da população.

CONCLUSÕES

O poder de polícia atribuído à polícia de segurança pública tem demonstrado sua complexidade e merecido contemporaneamente, destaque quando se restringe o exercício da liberdade dos cidadãos, diante do princípio do interesse público ou social pelos agentes dos órgãos encarregados da segurança pública brasileira, notadamente quando do uso dos meios de força contida. O tema tem demonstrado dificuldade de enfrentamento e, bem por isso, vários países com tradição democrática não descuidam de produzir pesquisas necessárias para mudanças estratégicas em questões de gestão pública.

Procurou-se, nesse sentido, trazer a baila concepções filosóficas acerca de pacto, poder, autoridade, liberdade, violência e coação, com o referencial hobbesiano, arenditiano foucaultiano.

Para Hobbes o não cumprimento de um pacto acarreta a injustiça e para que se tenha sentido o pacto, é necessário o poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente os homens ao seu cumprimento, mediante o medo de algum castigo que seja superior ao benefício esperado com o rompimento do pacto, demonstrando, em sua concepção de contrato, que o mesmo se destina a garantir o mínimo de segurança pública, sem a qual não se poderia cogitar liberdade digna em valor e extensão. Todas as ações do soberano serão legítimas, desde que a convenção seja respeitada, ou seja, desde que não ameace a vida dos signatários do contrato social. Na óptica hobbesiana, o que importa é que o "corpo" que todos criaram dite a lei e a faça respeitar, e nenhum de seus súditos possa rebelar-se contra ele, exceto aquele que sinta sua vida diretamente ameaçada. Trata-se de uma relação do superior, aquele que manda, com os inferiores, que devem obedecer.

Em sentido diametralmente inverso, Foucault não entende o poder como algo que funciona em bloco, de modo maciço e homogêneo, como se faz quando se considera a dominação de uma pessoa sobre as outras, uma classe sobre as outras, ou de um governante sobre seus súditos, como entendeu Hobbes, mas sim leva em conta que o poder não se manifesta entre pessoas ou grupos que o detém, de um lado, e os que não o detém, de outro. O poder circula, funciona em cadeia onde o poder funciona e o poder se exerce, transitando pelas pessoas. A pessoa, para ele, não é um núcleo elementar onde o poder simplesmente incide, mas sim um efeito de poder e ao mesmo tempo seu intermediário. Verifica-se, portanto, que esta posição é antinômica em relação à de Hobbes: enquanto para este o poder é que cessa o estado de guerra e possibilita a instauração da paz, para Foucault é o exercício do poder que veicula consigo a sujeição, a violência e a guerra.

Na concepção arendtiana, o poder não impõe e nem se sustenta pela violência. O poder surge da ação em concerto dos cidadãos, e a violência destruiria as bases de sustentação desse mesmo poder. É esse poder político que mantém a existência da esfera pública e ele se efetiva quando a ação não-violenta corresponde ao discurso sincero e revelador das intenções individuais. A violência, por sua vez, pode destruir o poder, mas nunca substituí-lo. Portanto, o conceito de poder político de Arendt contrapõe-se ao pensamento tradicional, pois não se baseia na coerção, mas sim na ação conjunta dos indivíduos na esfera política.

Para Arendt, a autoridade é incompatível com a persuasão, pois esta pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argumentação. Nessa relação entre o indivíduo e a autoridade não há argumentação, logo não há persuasão, porque ambos não são iguais. Toda vez que se pretende argumentar com a autoridade esta fica suspensa, ou seja, ela existe, mas não opera, sendo esse o perigo quando se pretende persuadir a autoridade. A autoridade não se relaciona com vontade e sim com poder, com soberania.

Os direitos humanos surgem com a ruptura totalitária. Os limites dessa ruptura asseguram os direitos humanos contra a violência perpetrada pelo Estado. Por isso que os direitos fundamentais e, conseqüentemente os direitos humanos, assim constituídos positivamente em muitas Constituições de vários Estados, têm merecido igualmente intervenções no ordenamento jurídico, na condicionante de que todos devem promovê-los, inclusive e principalmente o Estado.

Os encarregados de aplicação da lei, os policiais de segurança pública, instrumentalizam o poder do Estado no que concerne ao uso da força, mas têm a lei como limite para as suas ações. É nesse ponto que surge a maior dificuldade desses profissionais: interpretarem suas ações de acordo com a lei. Pela discricionariedade de muitos de seus atos, demonstra-se que existe uma linha tênue, mas muito visível quando as ações passam a ser encaradas de forma arbitrária e que deixam muitos vestígios.

As experiências ocorridas no Brasil no final dos anos 90 e de conhecimento público, uma vez levadas à efeito pela mídia, fizeram com que os governos federal e estaduais se preocupassem mais com a questão do uso da força por parte das polícias, tendo em vista que a imagem do Brasil no exterior comprometia a consolidação da democracia no país.

E, por essa razão, além das alterações verificadas no direito positivo contemporâneo a partir desse contexto, influenciou fontes doutrinárias, procedimentos operacionais e tecnologias das policias de segurança da ordem pública que, a pretexto do uso legítimo da coação, não vêm mais se descuidando do princípio da dignidade da pessoa humana em todos os seus aspectos.

A autoridade é uma necessidade inarredável e sem ela não há o Estado, muito menos uma sociedade organizada. O Direito a torna legítima. Os encarregados da aplicação da lei, que detêm o poder legítimo do Estado e materializam o seu poder de coerção, não podem se descuidar de um processo moderno de interação com a comunidade, pois é a partir dessa relação que são estabelecidas as condições necessárias ao exercício das liberdades individuais na busca incessante do bem comum.

Embora se conheça a problemática para o aperfeiçoamento das polícias brasileiras, as soluções aparecem na medida em que os seus atos se tornam transparentes e o cidadão tenha condições de denunciar os excessos e abusos com a esperada certeza de que seus direitos serão assegurados. As Ouvidorias e mesmo as Corregedorias das Polícias, desde que tenham profissionais compromissados eticamente com as missões de seus respectivos órgãos, têm sido criadas para refrear os eventuais abusos de policiais, pois lá são relatados e discutidos temas relevantes que ofendem os direitos humanos e não tardam em buscar soluções imediatas.

Há uma preocupação dos governos em nível federal e estadual no aperfeiçoamento da polícia de segurança pública em relação a uma política voltada aos Direitos Humanos. O governo federal vem prestando contas ao Comissariado de Direitos Humanos acerca das políticas empregadas em programas desenvolvidos em vários entes federativos, inclusive com a edição de Emenda Constitucional que incorpora status constitucional aos tratados e convenções que versam sobre Direitos Humanos.

Verifica-se, também, que o Brasil, sem se descuidar de sua soberania, submete-se às disposições do Tribunal Penal Internacional e, assim, poderá entregar um cidadão brasileiro para ser julgado por genocídio, crimes de guerra, contra a humanidade e de agressão, visto que atentam contra a humanidade como um todo, notadamente se os agressores forem líderes políticos, militares e até mesmo aqueles encarregados da aplicação da lei, na medida em que o país não consiga tutelar jurisdicionalmente a grave violação dos direitos humanos.

De outra parte, as experiências precursoras da Polícia Militar Paulista alteraram vários paradigmas, não só na mudança política de suas ações operacionais voltadas aos Direitos Humanos, mas, sobretudo, na proposta de se alterar o ensino acadêmico em cursos de formação e especialização desses profissionais. Há a participação de cientistas políticos que vêm debatendo o tema Segurança Pública com idéias voltadas a promover os Direitos Humanos numa concepção filosófica de uma polícia mais comunitária e interativa. Daí um campo aberto para novas pesquisas na área de Segurança Pública e Direitos Humanos.

O ensino de Direitos Humanos nos órgãos de Segurança Pública, ainda parece incipiente. Não há uma padronização em nível nacional, enquanto até as Ouvidorias das Polícias, que se mostram relevantes para a conquista de uma política voltada aos interesses do cidadão quando seus direitos são violados por ações dos próprios encarregados da aplicação da lei, não tiverem um alcance em todos os entes federativos.

Há um esforço da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça em padronizar Cursos de Técnicas Não-Letais e de Intervenção Policial e de Formação e Agentes Multiplicadores de Direitos Humanos e Técnicas Não-Letais, com instrutores da Polícia Militar paulista e de representantes do Comitê Internacional da Cruz Vermelha e da Anistia Internacional. É uma tendência irreversível, bastando apenas a vontade política dos governos dos entes federativos, quando da elaboração dos seus planos políticos.

Essas estratégias demonstram ser eficazes. Ao possibilitar mensurar a relação dos órgãos de segurança pública com a comunidade, busca-se demonstrar a vitimização e as medidas de correção para a melhoria da qualidade dos serviços policiais. Essa interação faz com que se diminua a violência policial, valorizando-se cada vez mais os direitos fundamentais dos cidadãos, e se estabeleça critérios para uma polícia efetivamente mais comunitária, que busca, antes do poder do uso da força, postura de ações pautadas na argumentação.

Os encarregados da aplicação da lei devem cumprir com o seu dever, não se admitindo a covardia e a omissão no desempenho de suas atividades. Suas ações na defesa da ordem pública possuem impacto direto na qualidade de vida das pessoas. Em suas ações, fundamentadas em princípios morais, quando há críticas, evidentemente causam reflexos institucionais e nos próprios agentes, muitas vezes punidos com sanções penais e administrativas. Por sua vez, as ações positivas não vêm merecendo o mesmo tratamento, pois as considerações levadas a efeito pelos meios de comunicação, principalmente quando da realização de programas sociais desenvolvidos pelas polícias como estratégias para valorizar o ser humano, buscando-se resgatar a sua dignidade por meio de lazer, esporte, cultura, muitas vezes renegado pelo próprio Estado. Essas posturas são compatíveis com uma policia mais democrática, interativa e comunitária. Assim prosperando, evidentemente que a violência policial diminuirá e será resgatada a confiança da população na polícia que tem por obrigação prestar-lhe a almejada segurança, preservando-a das ações dos criminosos, possibilitando o sentimento de alguns direitos, infelizmente esquecidos por muitos políticos que se comprometem a assegurar-lhes em época de campanha.

É nesse sentido que as organizações encarregadas da aplicação da lei preocupam-se em melhorar a qualidade e a capacidade de desempenho de cada um dos seus agentes, uma vez que não há solução padrão para cada um dos problemas que ocorrem no dia-a-dia. Para que os encarregados da aplicação da lei possam utilizar-se da maneira correta e razoável os poderes e autoridade concedidos pelo Direito, é imprescindível a todos a consciência de um ensino voltado aos Direitos Humanos aplicáveis na prática, para que eles efetivamente sejam garantidos e promovidos.

Apresenta-se como proposta para o aperfeiçoamento das Polícias de Segurança Pública em Direitos Humanos a mudança de comportamento pela educação, com metodologia específica aos órgãos policiais. A interdisciplinaridade e a transversalidade são concepções de conhecimento que proporcionam a discussão dos temas relacionados aos Direitos Humanos mais abrangentes, notadamente em relação ao policial comunitário que, além de cumprir com o seu dever legal, desenvolve práticas de cidadania na comunidade onde serve.

Por fim, procurou-se demonstrar a necessidade de que os agentes encarregados da aplicação da lei tenham possibilidades de se utilizarem a transversalidade em sua formação e desempenho profissional, principalmente como instrumento de transformação da sociedade, por atitudes interativas, comportamentos éticos e responsabilização moral no horizonte axiológico. Os temas relacionados com os Direitos Humanos, Ética, Cidadania, dentre outros, não apenas pelo caráter filosófico pelos quais possam se fundamentar, mas, sobretudo, pelo caráter natural e efetivo que representam no interesse de cada ser humano, são traduzidos como princípios a serem preservados e, acima de tudo, promovidos antes mesmo de merecerem qualquer positivação.

REFERÊNCIAS

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