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Não pode a Administração invocar imprecisa e vaga noção de interesse público para constranger a liberdade e a propriedade dos administrados. Indispensável que o interesse público esteja fixado com clareza, de forma explícita, pela lei.
Não se pode confundir interesse público com o interesse do Estado, pois a Constituição Federal contemplou a existência de interesses públicos também às organizações não governamentais, o chamado terceiro setor. Bem elucidativo é o raciocínio de Justen Filho (2005, p. 37):
Não é possível definir interesse público a partir da identidade do seu titular, sob pena de inversão lógica e axiológica. O equívoco está em que o Estado existe para satisfazer as necessidades coletivas. O Estado Democrático é instrumento de realização dos interesses públicos. Ou seja, o interesse público existe antes do Estado. [...] o interesse público não pode ser titularidade do Estado, mas atribuído ao Estado por ser público (grifo do autor).
Assim, num Estado Democrático de Direito, o Estado somente está legitimado a ser sujeito de interesse público. Atribuir ao Estado a titularidade de interesse privado infringe o princípio da República.
O Estado contemporâneo é fragmentado de interesses. Há afirmação conjunta de posições subjetivas contrapostas e a variação dos arranjos entre diferentes grupos. Nesse contexto, a utilização do conceito de interesse público deve ser feita com cautela, diante da pluralidade e contraditoriedade entre os interesses dos diferentes integrantes da sociedade.
Justen Filho (2005, p. 43), aduz:
Justamente por isso, nem sequer há um modo prático de descobrir "o" interesse da "maioria" do povo. É que não existem maiorias permanentes, que tenham interesses comuns. Não existe um conjunto homogêneo de interesses privados ao qual se possa atribuir a condição de interesse da maioria. Na sociedade moderna, há uma pluralidade de sujeitos, com interesses contrapostos e distintos. [...] traduzidos nas palavras de CASSESE, no sentido de que "não existe o interesse público, mas os interesses públicos, no plural" (grifo do autor).
Nessa óptica, Justen Filho (2005, p. 45) assevera:
A atividade administrativa do Estado Democrático de Direito [inclui-se naturalmente a atividade ou ato de polícia] subordina-se, então a um critério fundamental que é anterior à supremacia do interesse público. Trata-se da supremacia e indisponibilidade dos direitos fundamentais (grifo do autor).
Bem por isso, o interesse público ou interesses públicos convergem a um princípio constitucional: o da Finalidade.
Reforça-se, nessa temática, a idéia do próprio poder de polícia e, como mencionado, deixou-se de impor obrigação apenas negativa visando resguardar a ordem pública, na concepção de polícia geral francesa, para também impor obrigação positiva, além de ampliar seu campo de atuação, o qual passou abranger, além da ordem pública, também a ordem econômica e social.
Assim, se há o poder de polícia, a autoridade administrativa deve ter em vista produzir a realização de direitos fundamentais dos demais integrantes da coletividade. A convivência social acarreta a necessidade de evitar que a fruição das liberdades e dos direitos privados produza lesões a direitos, interesses e bens alheios, públicos e privados, ou seja, a evitar que a máxima liberdade de cada um produza a redução da liberdade alheia. Ao encarregado de aplicar a lei [4]não deve ceder às tentações de satisfazer interesse individual, ou pessoal, sobre o interesse coletivo, pois estaria desviando-se da finalidade pública prevista em lei, sujeitando-se ser responsabilizada por desvio de poder ou desvio de finalidade, tornando o ato de polícia ilegal e, desta forma, passível de anulação. Havendo anulação, evidentemente que o terceiro que sofreu os efeitos do ato nulo, agindo de boa fé, será indenizado, à vista da responsabilidade objetiva do Estado.
O Estado assumiu amplas atividades para atender às necessidades coletivas, o atendimento de interesse geral. Daí, portanto, entender-se também tratar-se do princípio da finalidade pública e, por isso, irrenunciáveis e indisponíveis (grifo nosso).
E são nesses interesses públicos, diante dos mais variados setores da sociedade, como segurança, moral, saúde, ambiente, defesa do consumidor, patrimônio cultural, propriedade, que aparecem os mais variados ramos da polícia administrativa: polícia de segurança, das florestas, das águas, de trânsito, de pesos e medidas, logradouros públicos, sanitária, edilícia, dentre outros.
Princípios relevantes da administração pública inerentes ao poder de polícia
Princípios administrativos são os postulados fundamentais inspiradores de todo o modo de agir da Administração Pública. A Constituição Federal, quando trata da Administração Pública, em seu artigo 37, refere-se expressamente a princípios aos quais a administração direta e indireta dos entes federativos devem obedecer, quais sejam: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
A fim de chegar-se aos princípios traçados expressamente na Constituição Federal, no tocante à Administração Pública, busca-se os ensinamentos de Bonavides (1998, p. 231), que, ao tratar da conceituação de princípios, apresenta sua vinculação a disposições normativas:
A caminhada teórica da juridicidade dos princípios gerais, até sua conversão em princípios constitucionais, constitui matéria das inquirições subseqüentes. Os princípios, uma vez constitucionalizados, se fazem a chave de todo o sistema normativo.
E nessa conceituação: "Os princípios gerais [...] correspondem, em sentido de substância, aos princípios constitucionais e às disposições de princípio, da terminologia mais em voga entre os Mestres do Direito Público contemporâneo" (BONAVIDES, 1998, p. 245).
Nesses estudos, ao trabalhar sobre a dicotomia princípios e regras, Bonavides vale-se dos ensinamentos e das contribuições de Robert Alexy, de um lado, e Ronald Dworkin, de outro, que teriam, ambos, contribuído para a formulação da questão. No entanto, Bonavides enaltece a precisão de Alexy com a qual se fundamentam estes estudos.
Alexy distingue regras e princípios. Os princípios são mandados de otimização, isto é, são normas que ordenam algo que deve ser realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes, podendo ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento depende não somente das possibilidades reais, mas também das jurídicas.
[...] los principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no solo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas. El ámbito de las posibilidades jurídicas es determinado por los principios y reglas opuestos. [.] las reglas son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si una regla es válida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. [.] las reglas contienen determinaciones el ámbito de lo fáctica y jurídicamente posible. [.] la diferencia entre reglas y principios es cualitativa y no de grado. Toda norma es o bien una regla o un principio (ALEXY, 1993, p. 86).
Por sua vez, as regras são normas que somente podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então há de fazer-se exatamente o que ela exige, nem mais, nem menos. Elas contêm, pois, determinações, no âmbito do fática e juridicamente possível. Isto significa que a diferença entre regras e princípios é qualitativa e não apenas de grau.
A distinção entre regras e princípios mostra-se mais claramente nas colisões de princípios e nos conflitos de regras. Embora apresentem um aspecto em comum - o fato de duas normas, aplicadas independentemente, conduzem a resultados incompatíveis - diferenciam-se, fundamentalmente, na forma como o conflito é solucionado.
Assim, os conflitos de regras se resolvem na dimensão de validade. Ou seja, somente podem ser solucionados introduzindo-se uma regra de exceção, debilitando o seu caráter definitivo, ou declarando-se inválida, pelo menos, uma das regras. Com efeito, uma norma vale ou não vale juridicamente. E se ela vale e é aplicável a um caso, significa que vale também sua conseqüência jurídica.
A diferencia de lo que sucede con el concepto de validez social o de la importancia de una norma, el concepto de validez jurídica no es graduable. Una norma vale o no vale jurídicamente. Que una regla vale y es aplicada a un caso significa que vale también su consecuencia jurídica. Cualquiera que sea la forma como se los fundamente, no puede ser el caso que valgan dos juicios concretos de deber ser recíprocamente contradictorios. Si se constata la aplicabilidad de dos reglas con consecuencias recíprocamente contradictorias en el caso concreto y esta contradicción no puede se eliminada mediante la introducción de una cláusula de excepción, hay entonces que declarar inválida, por lo menos, a una de las reglas (ALEXY, 1993, p. 88).
Daí que o conflito entre duas regras há de ser solucionado por outras regras, como lex posterior derogat legi priori e lex specialis derogat legi generali. E conclui Alexy: lo fundamental es que la decisión es una decisión acerca de la validez.
Por sua vez, a colisão de princípios se resolve na dimensão de peso, tal como Bonavides expressa em Ronald Dworkin. Quando dois princípios entram em colisão - por exemplo, se um diz que algo é proibido e outro, que é permitido - um dos dois deve ceder frente ao outro, porquanto um limita a possibilidade jurídica do outro. O que não implica ser o princípio desprezado considerado inválido, pois a colisão de princípios ocorre apenas entre princípios válidos.
Bonavides (1998, p. 251) aduz:
A colisão ocorre, p. ex., se algo é vedado por um princípio, mas permitido por outro, hipótese em que um dos princípios deve recuar. Isto, porém, não significa que o princípio do qual se abdica seja declarado nulo, nem que uma cláusula de exceção nele se introduza.
O princípio estabelece uma direção estimativa, em sentido axiológico, de valoração, de espírito e exige que tanto a lei como os atos administrativos, incluindo, por derradeiro, os atos de polícia, lhe respeitem os limites e que além do mais tenham o seu mesmo conteúdo, sigam a mesma direção, realizem o seu mesmo espírito.
"Em verdade, os princípios são o oxigênio das Constituições na época do pós-positivismo. É graças aos princípios que os sistemas constitucionais granjeiam a unidade de sentido e auferem a valoração de sua ordem normativa" (BONAVIDES, 1998, p. 259).
Em face da teoria dos princípios, é que se procura a normatividade e o exercício do poder contra o arbítrio, favorecendo as mais arraigadas exigências da natureza humana, procurando, assim, a fundamentação de legitimidade à ordem jurídica com fundamento na Constituição. Os princípios fazem a congruência, o equilíbrio e a essencialidade de um sistema jurídico legítimo.
A dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental, pois indica que os interesses das pessoas devem ser respeitados quando da prossecução dos interesses públicos, ainda porque, o encarregar-se da satisfação de interesses individuais inclui-se entre as incumbências do Poder Público, como fica evidente em matéria social. E nessa colisão entre princípios e conflitos de regras sob a argumentação alexyana, a prática nas relações jurídicas entre Estado e indivíduo.
Além dos princípios expressos na Constituição Federal, há os princípios informativos, ou implícitos, como claramente prescreve no seu artigo 5º, parágrafo 2º, com respeito aos direitos e garantias dos administrados, os quais receberão destaque diante da temática pretendida. Esses princípios alcançam o ato administrativo naquilo que lhe é inerente.
A finalidade é um princípio já mencionado, à vista das suas co-relações e interpretações sobre a concepção "interesses públicos".
Legalidade
Sobre o princípio da legalidade, sempre debatido nessa temática, aduz Pessoa (2003, p. 498), relacionando-o com a atividade de polícia:
Deve-se, contudo, neste particular, fugir a uma visão reducionista do princípio da legalidade, que redundaria em legítimo e dessintonizado com as exigências dos tempos atuais. O princípio da legalidade, mesmo quando diretor da atividade de polícia, implica, mais do que tudo, a busca da satisfação do interesse público segundo a solução ótima, ou seja, aquela mais adequada, a que melhor satisfaz tal interesse numa dada situação específica. Dado o caráter preventivo da atividade, seu escopo maior se traduz evitar danos à coletividade.
É nesse sentido que o autor se expressa ao dizer: "[...] é impossível que a lei preveja todas as situações de risco para determinada sociedade, passíveis de desencadear a atividade de polícia" (PESSOA, 2003, p. 498).
É necessário conferir valor normativo aos valores e princípios que adensam o princípio da legalidade, quais sejam, moralidade, boa-fé, razoabilidade, proporcionalidade, entre outros, embora também não expressos na Constituição Federal.
A correção por ilegalidade pode derivar-se internamente, quando se invoca o princípio da autotutela, no qual a própria Administração Pública anula seus atos eivados de vícios, ou externamente, pelo princípio do controle do Poder Judiciário, o qual anula os atos ilegais, desde que a esse poder lhes sejam apresentados.
Ensina Justen Filho (2004, p. 386): "O que não se admite é que as competências de poder de polícia administrativa sejam utilizadas de modo antidemocrático". Daí a necessidade imperiosa de condicionar a atividade de poder de polícia à produção concreta e efetiva da realização de direitos fundamentais e da democracia. Num Estado de Direito, a Administração não se encontra apenas na impossibilidade de agir contra legem ou praeter legem, mas é obrigada a agir secundum legem e, por assim dizer, sujeita ao controle também externo.
Proporcionalidade
O princípio da proporcionalidade é relevante quando se trata do poder de polícia. Se o ato de polícia for desproporcional, a conclusão é a de que alguém ou algumas pessoas serão prejudicadas por excesso de poder, revelando-se ausente o verdadeiro interesse coletivo a ser perseguido e configurando-se ilegalidade merecedora de correção.
O próprio princípio de proporcionalidade, de certo modo, deriva do poder de coerção de que dispõe a Administração Pública ao praticar atos de polícia. Não se permite desobediência de uma linha proporcional entre os meios e os fins da atividade administrativa, de tal forma que, não havendo proporcionalidade entre a medida adotada e o fim a que se destina, incorrerá a autoridade administrativa em abuso de poder.
Mas, não é porque o poder de polícia tem a compreensão da utilização da força e a estruturação de um aparato estatal destinado à coerção dos particulares, que perderá sua acepção democrática.
Evidentemente que, ao limitar o exercício de liberdades, o que propiciaria uma atividade dotada de grande potencial antidemocrático, o poder de polícia encontra-se sujeito aos princípios constitucionais e legais disciplinadores da democracia republicana, como qualquer atividade administrativa, inclusive, e principalmente, o da proporcionalidade, embora, ainda, tal princípio não esteja expresso na Lei Maior.
Dignidade da pessoa humana
O princípio da dignidade da pessoa humana se torna crucial nesse contexto. É a partir daqui que se pode indagar acerca da relação coercitiva do poder de polícia diante dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana. Esse é o cerne da questão que leva a buscar a razão de que polícia, notadamente de segurança pública, e direitos humanos são temas relevantes no direito contemporâneo.
O poder de polícia na visão clássica, como instrumento de manutenção da ordem, ou seja, da segurança, da tranqüilidade e da salubridade, sofreu duas modificações importantes. Dentre elas, a instrumentalização à proteção dos direitos fundamentais.
Lebreton (apud JUSTEN FILHO, 2005, p. 388) demonstra:
"[...] a ordem pública não possa ser concebido senão sob a medida desse conceito de dignidade... sempre que a ordem pública é expressamente invocada, a dignidade da pessoa humana não está longe".
Em relação à instrumentalização à proteção dos direitos fundamentais, a ordem jurídica e o direito sob os aspectos contemporâneos vêm sendo apreciados por uma série de valores sob a medida do conceito de dignidade.
"A dignidade é um valor de uma tal disposição de espírito e põe-na infinitamente acima de todo o preço, com o qual não pode ser confronto nem em cálculo comparativo sem um modo ou de outro ferir a sua santidade" (KANT, 2003, p. 66).
Kant (2003, p. 65) asseverava:
No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende dignidade.
Esse é o sentido da dignidade humana em relação à coisa, ou seja, a coisa tem um preço, o homem, a dignidade.
A relação entre o princípio da dignidade humana e o poder de polícia foi trazida à luz num famoso precedente francês, conhecido como o "caso do arremesso de anões", decidido em 1995.
Gomes (S.d.), discorrendo sobre a temática, elaborou algumas indagações:
A par desses conceitos, podem-se extrair algumas características essenciais do poder de polícia contemporâneo, tais como: existiria, em princípio, alguma vinculação entre o conceito jurídico de ordem pública e o princípio de salvaguarda da dignidade da pessoa humana? Em que circunstâncias pode o Estado fazer uso do seu poder de polícia para, em nome da preservação da dignidade da pessoa humana, restringir o exercício, pelo cidadão, de alguns dos seus direitos fundamentais?
Gomes (S.d.) diz que a resposta a estas e outras questões foi dada em decisão da Justiça administrativa francesa que remonta a outubro de 1991. Uma conhecida empresa do ramo de entretenimento para jovens decidiu lançar, em algumas discotecas de cidades da região metropolitana de Paris e do interior, um inusitado certame conhecido como "arremesso de anão à distância". Em princípio, não havia risco à integridade física dos interessados, os quais se prestavam a participar da atividade mediante remuneração. A municipalidade proibiu a atividade, invocando o poder de polícia, motivada pela natural repugnância que uma iniciativa tão degradante provoca.
O prefeito de uma das cidades, a Morsang-sur-Orge, interditou o espetáculo, fazendo valer a sua condição de guardião da ordem pública na órbita municipal. Do ponto de vista legal, o ato de interdição teve como fundamento o Código dos Municípios, norma de âmbito nacional - a França é um país unitário – o qual disciplina de forma minuciosa o exercício da ação administrativa estatal no plano municipal. Em julgamento de primeira instância, houve o que se denomina "recurso por excesso de provas", entendendo que o espetáculo objeto da interdição não tinha, por si só, o condão de perturbar a "boa ordem, a tranqüilidade ou a salubridade pública".
Em outubro de 1995, em grau de recurso, o Conselho de Estado francês, órgão de cúpula da jurisdição administrativa, reconheceu que o poder de polícia é orientado, também à proteção da dignidade da pessoa humana e reformou a decisão do Tribunal Administrativo de Versailles, declarando que "o respeito à dignidade da pessoa humana é um dos componentes da (noção de) ordem pública; (que) a autoridade investida do poder de polícia municipal pode, mesmo na ausência de circunstâncias locais específicas, interditar um espetáculo atentatório à dignidade da pessoa humana".
A dignidade é um valor absoluto pela própria condição da natureza humana, daí um princípio merecedor de uma instrumentalização no temático poder de polícia e direitos humanos.
Instrumentalização do dever de fazer
Desse conteúdo, o conceito de poder de polícia contemporâneo deve seguir a instrumentalização à proteção dos direitos fundamentais e a imposição de deveres de fazer.
Além da instrumentalização do poder de polícia à proteção dos direitos fundamentais, a evolução social conduziu à insuficiência da mera abstenção privada. Surge, então, a imposição de deveres de fazer. A promoção da ordem pública envolve também deveres de colaboração ativa. A funcionalização dos direitos e garantias individuais e sociais exige que os sujeitos adotem cautelas omissivas, non facere, e também comissivas facere, sem as quais se coloca em risco a integridade alheia, um valor de dignidade humana a ser perseguido.
Modernamente, observam-se vários exemplos da imposição de deveres de fazer. Passou ser comum o poder de polícia materializar-se preventivamente em eventos desportivos ou em grandes espetáculos. Exigem-se, em face de objetividades jurídicas, como preservação da integridade alheia, ou da preservação da incolumidade física das pessoas, vistorias por agentes públicos competentes que expedem laudos, atestando condições técnicas para a realização de espetáculos públicos, ante o registro de graves episódios dos quais resultaram mortes, lesões corporais e danos aos bens públicos e particulares, comprovadamente por negligência.
A própria segurança das edificações em geral, onde espera-se que existam saídas de emergência, edificadas segundo normas apropriadas, é outro exemplo, assim como a própria manifestação de polícia à segurança alimentar, exigindo a adoção de providências, pelo comerciante, que impeçam a deterioração de alimentos perecíveis.
Evidentemente, não se busca meramente evitar que um particular produza lesões a terceiros, mas promova condutas que satisfaçam, de modo mais eficaz as necessidades humanas.
Legitimidade
Assim como a legalidade, a legitimidade é um atributo essencial do poder num Estado Democrático de Direito. A diferença fundamental entre esses dois princípios, ou atributos, ou qualidades do poder, encontra-se no fato de que legalidade representa a qualidade do título, enquanto a legitimidade fundamenta-se na qualidade do exercício do poder, ou seja, a legalidade representa o título do poder e a legitimidade o seu exercício.
Não se descura da legitimidade dos atos de polícia. Para sua validade, deverão ser praticados por agentes no exercício regular de sua competência, sendo, ainda, indispensável que tais atos sejam produzidos com a forma imposta pela lei, além dos requisitos de validade, motivo e objeto.
Os requisitos ou elementos de validade dos atos de polícia os tornam legítimos. Aliás, legitimidade é uma das características do ato administrativo, logo, também do ato de polícia.
Parte-se do pressuposto de que o ato de polícia nasce em conformidade com as devidas normas legais, sob o fundamento de que os atos de agentes detentores de parcela do Poder Público têm por objetivo alcançar os interesses públicos, os quais lhes competem proteger. E, para se tornarem legítimos, é indispensável verificar os requisitos da competência regular dos agentes, da forma imposta pela lei, bem como o da finalidade, do motivo e do objeto. Assim, será estabelecida a legalidade ou não do ato de polícia.
A competência deriva de lei, ou seja, na Administração Pública não é competente quem quer, mas quem a norma assim expressa. A lei, portanto, é a fonte primária da competência administrativa e, por conseguinte, do ato de polícia. Por isso, a legitimidade está intimamente ligada à legalidade.
São características da competência a inderrogabilidade e a improrrogabilidade, ou seja, a competência não se transfere por acordo entre as partes, nem pode um ato de polícia derivado de agente incompetente transformar-se em ato superveniente de agente competente, a menos que a norma definidora seja alterada.
A forma é o meio pelo qual se exterioriza a vontade do agente administrativo competente para o ato de polícia.
Numa concepção mais ampla, Di Pietro (2005, p. 200) explica que a forma é também "[...] todas as formalidades que devem ser observadas durante o processo de formação da Administração, e até os requisitos concernentes a publicidade do ato". E só será válida se compatível expressamente com a lei ou ato equivalente com força jurídica, sob pena de ficar o ato inquinado de vícios de legalidade e suscetível de invalidação.
Em regra, a forma será escrita, já que a obediência à forma e ao procedimento constitui garantia jurídica para o administrado e para a própria Administração Pública com o fim de controle, mormente quando se refere aos direitos dos administrados. Por outro lado, principalmente no ato de polícia, há formas de conteúdo variado e são comuns formas verbais, por gestos, por apitos, sinais luminosos, permitidos, a exemplo, nas normas de trânsito.
A finalidade é outro elemento importante para a validade do ato de polícia. Genericamente, como visto, trata-se até de um princípio norteador dos interesses públicos, do bem comum. Deste modo, o ato de polícia não pode ser direcionado a qualquer finalidade. Deve-se obedecer ao que está estabelecido em lei e que seja dos interesses públicos e não diversa destes, porque, senão, ocorreria o desvio de finalidade, tornando o ato de polícia inválido. Há aqui, diante da finalidade, um modo de fixar limites à discricionariedade do poder de polícia.
O motivo é outro elemento relevante do ato de polícia. Importa verificar a existência do motivo suscitador do ato de polícia, bem como sua congruência com o teor da decisão de polícia tomada. Assim, a inexistência dos motivos do ato de polícia, sua insuficiência ou incongruência com a decisão de polícia tomada (razoabilidade e proporcionalidade), importa em nulidade do ato por vício de legalidade.
A pertinência do motivo direciona-se aos atos de polícia vinculados, mas se forem atos discricionários, uma vez motivados pelo agente de polícia, os motivos invocados vinculam-se ao teor da decisão tomada.
Por fim, o objeto também é um requisito ou elemento do ato de polícia. Alguns autores mencionam "conteúdo" do ato em vez de objeto, como Justen Filho (2005, p. 194). Meirelles (1987, p. 114), menciona: "[...] o objeto identifica-se com o conteúdo do ato, através do qual a administração manifesta o seu poder, e a sua vontade, ou atesta simplesmente situações preexistentes".
Por finalidade e objeto, afirma Carvalho Filho (2003, p. 99):
[...] o objeto representa o fim imediato, ou seja, o resultado prático a ser alcançado pela vontade administrativa. A finalidade, ao contrário, reflete o fim mediato, vale dizer, o interesse coletivo que deve o administrador perseguir (grifo do autor).
Havendo a ilicitude do objeto do ato de polícia o torna viciado. A própria declaração de vontade constante do ato de polícia não guarda conformidade com a regra legal ou com valores e princípios por ela albergados. Assim, por exemplo, trata-se de objeto ilícito permitir o ingresso de pessoa portando arma de fogo em recintos onde haja grande concentração de pessoas, ou submeter uma pessoa em trajes de banho a uma busca pessoal, alegando-se estar em atitudes suspeitas, por trazer consigo nas vestes grande quantidade de entorpecentes e armas. Desta forma, revela-se que o objeto é inválido.
Atributos do poder de polícia
A doutrina não é unânime diante da concepção "atributos". Alguns autores denominam "princípios", ou "características" do poder de polícia, ficando ao talante de cada um deles. Mais modernamente, vê-se abandonando o termo "atributos" do poder de polícia.
Meirelles (1987, p. 97), apresentou como "atributos" do Poder de Polícia o seu discricionarismo, a auto-executoriedade do ato de polícia e, por fim, a coercibilidade deste mesmo ato. Entende-se que o referido doutrinador teve como fonte inspiradora a doutrina francesa, ao denominar atributo às características do poder de polícia, aliás, da Administração Pública. Não se trata de um atributo como discorre parte da doutrina, pois tal concepção só encontra guarida no direito francês, priviège du préalable, embora não exista nela, tecnicamente, qualquer privilégio, pois nenhuma norma jurídica é derrogada em seu benefício.
Carvalho Filho (2003, p. 69), comenta acerca das "características" do poder de polícia, não lhe atribuindo, nem mesmo motivando o não emprego do termo "atributo", afirmando haver alguma controvérsia em relação à vinculação ou discricionariedade do poder de polícia, entendendo que a matéria deve obedecer ao enfoque a ser dado à atuação administrativa.
Discricionariedade e vinculação
A discricionariedade existe quando a Administração Pública tem a lei diante de si e em face dela leva em consideração a área de atividade na qual vai impor restrição em favor do interesse público e, depois de escolhê-la, o conteúdo e a dimensão das limitações.
A discricionariedade para Meirelles (1987, p. 98):
[...] se traduz na livre escolha, pela Administração, da oportunidade e conveniência de exercer o poder de polícia, bem como de aplicar sanções e empregar os meios conducentes a atingir o fim colimado, que é a proteção de algum interesse público. Nesse particular e desde que o ato de polícia administrativa se contenha nos limites legais, e a autoridade se mantenha na faixa de opção que lhe é atribuída, a discricionariedade é legítima.
Na vinculação, por sua vez, já está fixada a dimensão da limitação, de tal sorte que a Administração Pública, utilizando-se do poder de polícia, não pode, sem alteração da norma restritiva, ampliá-la em detrimento da pessoa humana. Assim, a atuação de polícia se caracteriza como vinculada.
Em relação à interpretação doutrinária sobre o assunto, Carvalho Filho (2003, p. 70), confirma a assertiva de Caio Tácito:
A doutrina tem dado ênfase, com cores vivas, à necessidade de controle dos atos de polícia, ainda quando se trate de determinados aspectos, pelo Poder Judiciário. Tal controle inclui os atos decorrentes do poder discricionário para evitar-se excessos ou violência da Administração em face dos direitos individuais.
Tanto a discricionariedade como a vinculação do ato de polícia sofrem o controle externo da Administração Pública, mormente pelo Poder Judiciário sem, contudo, substituir, nesse sentido, as funções do próprio administrador no uso do poder de polícia, porque, assim, estaria invadindo funções não lhes atribuídas constitucionalmente.
Ressalta-se, por fim, que a discricionariedade e não a vinculação é um dos atributos consagrados pela doutrina.
Auto-executoriedade
Outra característica do poder de polícia é auto-executoriedade. Moreira Neto (2005, p. 102), por sua vez, enuncia a executoriedade como um "princípio" geral de Direito Administrativo, explicando:
A executoriedade consiste na aptidão jurídica, reconhecida à Administração, de deflagrar a aplicação executiva, direita, imediata e concreta da vontade contida na lei, empregando seus próprios meios executivos, até mesmo a coerção, quando se faça necessária e com a devida proporcionalidade, daí ser também chamado, este princípio, da auto-executoriedade.
A auto-executoriedade aqui como princípio, e não atributo, deve ser entendido como execução de ofício, característica ordinária no Direito Público, derivada diretamente da interatividade imanente do Estado e que se justifica pela presunção de validade de seus atos, indistintamente em qualquer de seus ramos de atuação, notadamente nos atos de polícia.
Gasparini (2004, p. 129), também não concede à auto-executoriedade atributo algum, ou seja, não qualifica o ato de polícia. Nesse sentido, apenas o menciona como "prerrogativa", referindo-se a jurisprudência:
A Administração Pública pode promover, por seus próprios meios, humanos e materiais, a submissão do administrado às determinações editadas, para vê-lo conformado à legislação a que deve obediência, sem necessidade de recorrer a qualquer outro poder, conforme já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo (RDA, 93:188).
A Administração Pública pode tomar as providências que modifiquem imediatamente a ordem jurídica, impondo desde logo obrigações aos particulares, com vistas ao interesse coletivo, dentro do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular e também da legalidade. Essa prerrogativa de praticar atos e colocá-los em imediata execução, sem dependência à manifestação judicial, representa a auto-executoriedade. Verificada a presença dos pressupostos legais do ato, a Administração Pública pratica-o imediatamente e o executa de forma integral. Quando a lei autoriza o exercício do poder de polícia com auto-executoriedade, é porque se faz necessária a proteção de determinado interesse coletivo.
Justen Filho (2005, p. 395), trata da auto-executoriedade como medidas de polícia em diferentes graus de eficácia, até expor o seguinte:
A Administração Pública pode promover as medidas concretas e materiais necessárias à satisfação das determinações impostas. Admite-se que o ato administrativo já nasça com esse grau de eficácia máximo, em vista da urgência ou gravidade da situação a ser atendida. Assim, a Administração pode promover a apreensão de medicamentos deteriorados, simplesmente por descobrir que se encontram à venda.
Essa característica, para o referido autor, é a que se trata de auto-executoriedade, ou seja, não há necessidade de a Administração Pública recorrer ao Judiciário para impor a produção dos efeitos jurídicos dos atos produzidos unilateralmente, como se tem demonstrado.
Mello (1993, p. 408), em relação à auto-executoriedade do poder de polícia, ensina:
[...] não há como se desassociar de três hipóteses: expressa autorização legal; a urgência da medida para a defesa do interesse público que não comporta delongas para manifestação judicial sem o sacrifício ou risco para a coletividade; e inexistência de outra via de direito capaz de assegurar a satisfação do interesse público que a Administração está obrigada a defender em cumprimento à medida de polícia.
Daí decorre, no campo do Poder de Polícia, o exercício da coerção administrativa.
Coercibilidade
A coercibilidade é um ato de polícia no sentido imperativo para seu destinatário, de tal forma que não é facultativo ao administrado, uma vez que, para a Administração Pública, tal característica tem o condão de efetivar o ato. Possibilita, pois, ao agente público detentor do poder de polícia adotar todas as medidas cabíveis para a realização do que decidiu, removendo os eventuais obstáculos opostos pela pessoa do administrado, sem se descurar, para isso, dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, diante da realidade do caso concreto.
A salvaguarda do interesse público, quando em confronto com o interesse particular, ao mesmo tempo quando exige esta força especial, supõe a utilização de instrumentos com intensidade e finalidades muito variadas, incidindo sobre a esfera jurídica dos particulares em múltiplas variações.
Essa característica estampa o grau de imperatividade de que se revestem os atos de polícia. A Polícia Administrativa, como é natural, não pode curvar-se ao interesse dos administrados de prestar ou não obediência às imposições. Se a atividade corresponder a um poder, decorrente do ius imperii estatal, há de ser desempenhada de forma a obrigar todos a observarem os seus comandos (CARVALHO FILHO, p. 72).
"Todo ato de polícia é imperativo", ou seja, obrigatório para o seu destinatário, como já ensinava Meirelles (1987, p. 100).
Nesse sentido:
É intrínseco a essa característica o poder que tem a Administração de usar a força, caso necessário para vencer eventual recalcitrância. É o que sucede, por exemplo, quando, em regime de greve, operários se apoderam manu militari da fábrica e se recusam a desocupá-la na forma da lei (CARVALHO FILHO, p. 72).
A força material destina-se a constranger fisicamente os sujeitos envolvidos e só é admitida quando expressamente autorizada em lei ou quando configurar, em vista do princípio da proporcionalidade, como a única alternativa apta a evitar o sacrifício dos direitos fundamentais ou da convivência democrática.
Em sua essência contemporânea, podemos afirmar que o poder de polícia:
a) É exercido pelo Estado;
b) É atividade administrativa;
c) Sua atuação é subordinada à ordem jurídica, ou seja, não é eminente, nem superior, mas regida pelo ordenamento vigente, sobretudo pelos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, eficiência, moralidade e, sobretudo, da dignidade da pessoa humana;
d) Produz realização dos direitos fundamentais e da democracia;
e) Acarreta limitação direta à liberdade e à propriedade dos particulares;
f) O limite ao direito do particular, de regra, significa um obstáculo ao seu exercício pleno, ou a retirada de uma faculdade pertinente ao conteúdo do direito ou uma obrigação de fazer;
g) Situa-se na face da autoridade, considerando a configuração da Administração Pública, dividida entre uma face de autoridade e uma de prestadora de serviço;
h) Abrange o controle da observância das prescrições e a imposição de sanções em caso de desatendimento;
i) Deve ater-se ao princípio da proporcionalidade que está na base dos direitos à limitação.
À vista do exposto neste capítulo, verifica-se a importância de se ter estabelecido a evolução histórica da polícia e do poder de polícia. Não se pode olvidar que a polícia sempre existiu de alguma forma na relação humana, ora com o condão de se estabelecer uma autoridade que persuadia aqueles que viviam na polis, portanto, delimitado por critérios filosóficos, ora com a necessidade da coerção para se estabelecer a segurança e a paz entre os homens. Por sua vez, mesmo diante desses aspectos filosóficos, necessário foi demonstrar alguns conceitos relevantes sobre poder, autoridade, liberdade e violência, termos muito comuns na relação entre indivíduo e Estado.
Entende-se que a polícia deve exercer sua autoridade, essa é a sua razão de ser, pois seu exercício deve ser de conhecimento de todos que vivem em sociedade.
A polícia contemporânea não despreza princípios que lhe proporcionam a base para a legitimidade de suas ações, nem regras que lhe dão o sustentáculo para agir sob uma ética e, por conseguinte, valorizando o ser humano pela sua própria condição de ser.
Arendt soube com muita propriedade ensinar que, como a ação, o discurso é que faz o ser humano político. É pela palavra que a ação se torna relevante, no qual o autor se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer. A violência é definida como o agir sem argumentar. A polícia existe porque conserva a autoridade e nem por isso deva ser violenta.
No conjunto da sociedade, a violência surge quando as pessoas não têm acesso à palavra e prevalece a forma mais radical à tradição autoritária. Quando a palavra não é possível, a violência se afirma e a condição humana é negada.
A polícia contemporânea entende esse problema, talvez não de forma científica. Mas, demonstra que colabora na oportunidade dos sujeitos de se expressarem acerca de suas necessidades e reivindicações, possibilitando que os espaços coletivos de discussão, pela sadia busca do dissenso e da diferença diminuam a questão da violência.
Para delimitar Polícia e Poder de Polícia na temática pretendida, não se atem neste capítulo todos os campos de atuação da polícia administrativa, nem os seus diversos setores de atuação. Por assim dizer, será enfocado o Direito Administrativo da Segurança Pública e a Proteção dos Direitos Humanos, deixando-se para um outro estudo os setores de polícia dos costumes, polícia da comunicação, polícia sanitária, polícia da aviação, polícia do comércio e da indústria, polícia das profissões, polícia ambiental, polícia de estrangeiros, polícia edilícia e tantas outras, uma vez que se distribuem segundo critérios legais ditados pela política e pelas conveniências da organização administrativa do Estado.
Polícia de segurança pública na Constituição Federal
Delimitando esta temática, daqui por diante não se referirá acerca da atribuição de polícia em sentido amplo, o qual alcança os atos do Executivo e Legislativo, mas o seu sentido estrito, alcançando atos do Executivo para assim dizer polícia de segurança pública.
Partindo-se para a questão da segurança, Chiavenato (1997, p. 86), quando tratou das teorias sobre motivação, ressaltou que "[...] as necessidades humanas residem no próprio indivíduo e que algumas dessas necessidades são conscientes, enquanto outras não". Assim, dentre várias teorias motivacionais, destaca a de Maslow, baseado na chamada hierarquia de necessidades humanas.
Para Maslow (Apud CHIAVENATO, 1997, p. 86):
[...] as necessidades humanas estão arranjadas em uma pirâmide de importância e de influenciação do comportamento humano, tendo em sua base as necessidades mais baixas e recorrentes, as chamadas necessidades primárias, enquanto no topo estão as mais sofisticadas e intelectualizadas, as chamadas necessidades secundárias.
Nessa hierarquia das necessidades humanas, um destaque importante refere-se à segurança, pois para esse teórico, imaginando-se a base da pirâmide, tem-se as necessidades fisiológicas e, logo em seguida, a segurança, ambas pertencentes às necessidades primárias. Seguindo ao topo da pirâmide, ter-se-iam as necessidades secundárias, ou seja, as sociais, as ligadas à estima e as de auto-realização.
Portanto, depois das necessidades fisiológicas, a segurança aparece como necessidade primária do ser humano. E, Chiavenato, nesse campo de estudos psicológicos, argumenta acerca das necessidades de segurança:
[...] constituem o segundo nível das necessidades humanas. Levam a pessoa a proteger-se de qualquer perigo real ou imaginário, físico ou abstrato. A busca de proteção e ameaça ou privação, a fuga ao perigo de estabilidade, a busca de um mundo ordenado e previsível são manifestações típicas destas necessidades. Surgem no comportamento humano quando as necessidades fisiológicas estão relativamente satisfeitas. Como aquelas, também estão intimamente relacionadas com a sobrevivência da pessoa [...] (CHIAVENATO, 1997, p. 87).
Nessa abordagem intra-orientada, depois que a pessoa consegue controlar suas necessidades fisiológicas, como fome, sede, ciclo sono-atividade, sexo, entre outras, ingressa em uma longa trajetória de aprendizagem de novos padrões de necessidades. Surgem as necessidades de segurança, voltadas para a proteção contra o perigo, contra as ameaças e contra a privação e, juntamente com as necessidades fisiológicas, são voltadas para a sua conservação pessoal. Só depois de controladas essas necessidades primárias, a pessoa buscará lenta e gradativamente as necessidades secundárias, quais sejam: sociais, auto-estima e realização.
Partindo-se, por sua vez, a uma concepção jurídica em torno da segurança, torna-se necessária uma análise sobre os aspectos da Segurança Pública na Constituição Federal.
Em nosso ordenamento jurídico, a Constituição de 1988, em seu artigo 144, disciplina a questão de Segurança Pública e pela primeira vez trouxe como norma constitucional uma definição nominal e estipulativa de Segurança Pública, logo em seu caput, procurando não contrariar a doutrina do direito administrativo comparado, de modo a não provocar maiores polêmicas acadêmicas.
O referido artigo constitucional, ao falar em "responsabilidade de todos" e indicar de forma genérica, os bens a "preservar" (a ordem pública, a incolumidade das pessoas e do patrimônio), atribuiu até mesmo ao cidadão comum, individualmente, responsabilidade na promoção da segurança pública. Advirta-se, entretanto, que o objetivo do constituinte foi o fortalecimento da participação comunitária e da sociedade civil e isso é relevante no mundo contemporâneo, como será demonstrado.
Foram criadas, em nível constitucional, novas polícias federais: a Polícia Rodoviária Federal, antiga Patrulha Rodoviária Federal, e a Polícia Ferroviária Federal, esta até hoje não saída do papel, sem que essas duas organizações fossem órgãos da Polícia Federal.
Pela primeira vez, ainda na história constitucional do Brasil, são inscritas na Constituição Federal as Polícias Civis, institucionalizando o anacrônico inquérito policial, de forma indireta [5]Às Polícias Civis dos Estados e do Distrito Federal, excetuando a competência da União, competem as funções de "polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares" [6]
Por outro lado, às Polícias Militares incumbiu, observando rigorosamente a linguagem constitucional, a "polícia ostensiva e a preservação da ordem pública" [7]Portanto, todo o policiamento ostensivo preventivo e, em particular, o uniformizado ou fardado, que proteja o cidadão e mantenha o bom estado da coisa pública, está, por assim dizer, mais bem definido nos papéis das Polícias Militares.
Em relação aos corpos de bombeiros militares, existem algumas exceções polêmicas, uma vez que o legislador constitucional tem, através dos tempos, reconhecido que o Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro foi e é um órgão independente da Polícia Militar do Rio de Janeiro por razões históricas, da mesma forma que o Corpo de Bombeiros de Brasília. Em Minas Gerais, por exemplo, ocorreu em 1999.
As Guardas Municipais surgem pela primeira vez na Constituição Federal, na condição de órgãos de vigilância patrimonial municipal, sem integrarem o elenco dos órgãos de Segurança Pública, isto é, não respondendo à condição de polícia e sim de vigilância no âmbito do Município, conforme dispõe o "caput" do artigo 144, da Constituição Federal.
A Constituição Federal de 1988 possui o mérito de haver tratado o tema Segurança Pública de forma sistemática e transparente, fugindo da linha de omissão normativa constitucional, ao entender que as normas reguladoras dos órgãos integrantes do sistema Segurança Pública são classificados como normas constitucionais materiais e não meramente formais, pois sobre esses órgãos repousa também a estrutura do Estado, particularmente na época contemporânea das sociedades pós-modernas, região do tempo e do espaço, onde crescem a criminalidade, o narcotráfico, a degradação e a dissolução paulatina da família, instituição fundamental da comunidade, por meio de condutas caracterizadoras das linhas de fuga nos termos da filosofia contemporânea.
Em se tratando de um dos campos de atuação da polícia administrativa, a segurança tem um valor de autuação e principal responsabilidade do Estado.
Assim ensina Moreira Neto (2005, p. 401):
[...] tanto o Estado como o direito são ambos instrumentos da segurança, considerada esta sob seus dois aspectos fundamentais: a manutenção das ordem social e a manutenção da ordem jurídica.A manutenção da ordem social , entendida com um conceito concreto, referido às pessoas, aos bens e às suas instituições espontâneas, e a manutenção da ordem jurídica, como um conceito abstrato, referido ao Estado e a suas instituições estabelecidas (grifo do autor).
A função de polícia de segurança pública, que aparenta ser pleonástica, pode ser considerada como a atividade destinada a manter a ordem social, referida às pessoas, bens e instituições sociais em geral, e a ordem jurídica referida ao Estado e suas instituições.
A segurança pública enquanto atividade desenvolvida pelo Estado, traduz-se em empreender ações e oferecer estímulos ativos para que os cidadãos possam conviver, trabalhar, produzir e usufruir o lazer, protegendo-os dos riscos a que estão expostos.
As instituições responsáveis por essa atividade atuam no sentido de inibir, neutralizar ou reprimir a prática de atos anti-sociais, assegurando a proteção coletiva e, por extensão, dos bens e serviços.
Para o cumprimento de suas respectivas missões constitucionais ligadas à segurança pública brasileira, há uma linha de diferenciação entre o que seja polícia administrativa e polícia judiciária. Essa linha traduz-se sempre a partir da ocorrência ou não do ilícito penal. Porém, essa divisão é doutrinária, como ensina Lazzarini (apud DI PIETRO, 2005, p. 112):
[...] a linha de diferenciação está na ocorrência ou não do ilícito penal. Com efeito, quando atua na área do ilícito puramente administrativo (preventiva ou repressivamente), a polícia é administrativa. Quando o ilícito é praticado, é a polícia judiciária que age.
Na prática, é impossível de ser efetivada. No ciclo de polícia, o órgão policial que está exercendo atividade de polícia preventiva, ou seja, polícia administrativa da ordem pública, diante do ilícito penal que não conseguiu evitar, passa, automática e imediatamente, ao exercício da atividade de polícia repressiva, isto é, à polícia judiciária.
As Polícias Militares, no ciclo de polícia, embora tenham de cumprir sua missão de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública, atuam em função de polícia administrativa preventivamente, até a ocorrência da infração penal. Daí, prosseguindo nesse ciclo, as Polícias Militares atuam em atividade de repressão imediata, desempenhando função de polícia judiciária, tal como diligências em decorrência de estado de flagrância, perseguição e detenção de criminosos, apreensão de materiais objetos do crime, apresentando-os às autoridades de polícia judiciária federal, ou estadual, conforme o caso. Os delegados de polícia são os responsáveis pela formalização e a devida apuração do ilícito penal, por meio do inquérito, a ser remetido oportunamente à Justiça Criminal. Obedecem eles, nesse contexto, o estabelecido no Direito Processual Penal.
Portanto, as Polícias Militares exercem atividades de polícia judiciária quando da ocorrência do ilícito penal, ou seja, atividade de repressão imediata, no momento em que encaminham o infrator e as provas indiciárias coletadas, principalmente em casos de flagrante delito, à polícia judiciária comum, estadual ou federal.
Ocorrendo crime militar [8]as Polícias Militares encaminham as partes e as provas iniciais à autoridade de polícia judiciária militar competente, estadual ou federal, uma vez que há impeditivo constitucional de as autoridades de polícia judiciária comum apurarem crimes militares. Há o que se pode chamar de uma área de intersecção entre as atividades de polícia administrativa e judiciária quando da ocorrência do ilícito penal, e, desta forma, a Polícia Militar age em funções de polícia judiciária legitimamente.
Da mesma forma, as Polícias Civis, quando da infração penal militar, devem encaminhar as partes às respectivas autoridades de polícia judiciária militar, uma vez existir a vedação constitucional para apuração dos crimes militares, como visto.
Percebe-se, nesse contexto, que não há exclusividade de atividades de polícia judiciária atribuída às Polícias Civis.
Além da polícia ostensiva de preservação da ordem pública, o próprio Poder Judiciário, quando houver indício de prática de crime por parte de magistrado, se encarrega das investigações, isso através do Tribunal ou Órgão Especial competente, vedado à autoridade policial, civil ou militar, fazê-lo [9]
Também o Ministério Público [10]da União, dos Estados e do Distrito Federal, incumbe às atividades de polícia judiciária sobre seus membros.
Tudo isso demonstra a impossibilidade de prever-se em norma legal a exclusividade nas funções de polícia judiciária destinadas constitucionalmente às Polícias Civis, embora elas devam ser entendidas de forma ampla, mas não exclusiva, mormente no que tange à atuação repressiva imediata.
Há uma impropriedade no artigo 144, inciso IV, da Constituição Federal, a qual fixou exclusividade para a Polícia Federal exercer funções de polícia judiciária, embora na esfera de poder da União, quando possui as mesmas características e limitações das polícias judiciárias estaduais.
Por sua vez, em que pesem opiniões contrárias sob o argumento politizado de melhor ostensividade de polícia na busca de sensação de segurança à comunidade, não parece acertado às Polícias Civis praticarem atos típicos de polícia ostensiva executados por seus integrantes, mediante uso de viaturas, equipamentos, armamento pesado, coletes, bonés, todos caracterizados, para identificação imediata do policial, numa ostensividade contrastante com o caráter discreto que deve merecer qualquer investigação policial bem conduzida.
Percebe-se que há um desvio de finalidade ou de competência nessa prática, pois é esperado que as Polícias Civis cumpram o seu papel constitucional, ou seja, "a polícia judiciária e a apuração das infrações penais", por meio de investigação mais eficiente na busca de provas criminais, e não com afazeres que não dizem respeito à polícia judiciária, em concorrência com a polícia ostensiva.
Se as Polícias Civis cumprissem seu papel e merecessem do poder público uma estrutura organizacional adequada à realidade com melhoria de recursos humanos e materiais, um sistema de depuração interna contra policiais corruptos e improbos, para o exercício de polícia judiciária e apuração das infrações penais, não se desviando de sua missão constitucional, provavelmente não teríamos tantas reclamações do público acerca do número de crimes conhecidos e o número dos elucidados.
[...] a eficiência na investigação dos casos de homicídio em que a polícia descobre os autores, em 3% dos casos de homicídio. Por sua vez, 97% a taxa de elucidação de homicídio e 75% a taxa de elucidação para de roubo no Japão, contra 72% e 23%, respectivamente, nos Estados Unidos (7 SOLUÇÕES..., 2005, p. 72).
No Brasil, há uma ausência de dados sobre o desempenho na busca de autoria e materialidade delituosa.
Lamentavelmente, embora no Brasil não se dê maior atenção a esse ponto, tem-se que essas taxas são ridículas, a considerar a histórica desproporção entre o número de crimes conhecidos, o de inquéritos efetivamente instaurados, e o número destes sem solução. Um analista descuidado poderia concluir que a diminuição de processos enviados às varas criminais [...] significasse a diminuição do número de crimes, e não a incúria da polícia (SILVA, 2003, p. 331).
O objetivo aqui não é detalhar um provável despreparo daqueles que têm a incumbência de investigar, nem mesmo detalhar acerca da incúria por parte de alguns agentes encarregados da investigação, ou mesmo levar adiante um problema cultural de se procurar no suspeito de um crime a sua confissão, sem observar outros métodos menos inquisitoriais para se chegar à autoria ou mesmo à materialidade da infração penal. Cabe, por oportuno, não deixar de observar o problema, uma vez que é senso comum a necessidade de aperfeiçoar o sistema de repressão policial a partir da ocorrência do ilícito penal, para não ocorrer uma das principais causas da violência: a impunidade.
No que tange a ostensividade de polícia, também não há exclusividade às Polícias Militares no desempenho da polícia de segurança pública preventiva, até porque a Constituição de 1988 atribuiu também à Polícia Rodoviária Federal e à Polícia Ferroviária Federal a limitação ao patrulhamento ostensivo nas rodovias e ferrovias federais, respectivamente.
No entanto, a "polícia ostensiva", não o policiamento, é exclusividade das Polícias Militares dos Estados-membros e do Distrito Federal, eis que essas corporações exercem a exclusividade de vários tipos de policiamento ostensivo geral, urbano e rural [11]e a impossibilidade de sua transferência, quer por delegação, quer por acordo ou convênio [12]
Essa afirmação é corroborada por Moreira Neto (apud LAZZARINI, 1995, p. 36), que assevera o seguinte:
A polícia ostensiva, afirmei, é uma expressão nova, não só no texto constitucional, como na nomenclatura da especialidade. Foi adotada por dois motivos: o primeiro, já aludido, de estabelecer a exclusividade constitucional e, o segundo, para marcar a expansão da competência policial dos policiais militares, além do "policiamento" ostensivo. Para bem entender esse segundo aspecto, é mister ter presente que o policiamento é apenas uma fase da atividade de polícia. A atuação do Estado, no exercício de seu poder de polícia, se desenvolve em quatro fases: a ordem de polícia, o consentimento de polícia, a fiscalização de polícia e a sanção de polícia.
Dessa alusão, verifica-se que o policiamento corresponde apenas à atividade de fiscalização e, por esse motivo, a concepção de polícia ostensiva. O adjetivo ostensivo refere-se à ação pública de dissuasão, característica do policial fardado e armado, reforçada pelo aparato militar utilizado, evocação do poder de uma corporação eficientemente unificada pela hierarquia e disciplina. É a polícia que o cidadão vê.
No plano federal, as mais importantes funções de segurança pública estão cometidas à Polícia Federal [13]destacando-se a fiscalização de fronteiras terrestres e da orla marítima; a fiscalização dos passageiros procedentes do exterior ou que se ausentem do País; o registro geral dos estrangeiros; a direção da polícia preventiva de guarda aeroportuária; a expedição de passaportes; a segurança pessoal do Presidente da República, de diplomatas, de visitantes oficiais e de outras autoridades e a coordenação e interligação no País dos serviços de identificação datiloscópica, civil e criminal, além da polícia judiciária da União, numa atribuição de polícia administrativa e judiciária.
No plano municipal, as funções de segurança pública se restringem à atividade de vigilância, voltada à segurança patrimonial de bens, serviços e instalações dos Municípios que instituírem as Guarda Municipais.
Aliás, as Guardas Municipais não são consideradas polícia municipal e, portanto, não se destinam prioritariamente à proteção de pessoas.
O constitucionalista Silva (1992, p. 661), confirma essa asserção:
Os constituintes recusaram várias propostas no sentido de instituir alguma forma de polícia municipal. Com isso, os Municípios não ficaram com nenhuma específica responsabilidade pela segurança pública. Ficaram com a responsabilidade por ela na medida em que sendo entidade estatal não podem eximir-se de ajudar os Estados no cumprimento dessa função. Contudo, não lhes autorizou a instituição de órgão policial e menos de polícia judiciária.
Os municípios, por sua vez, têm a faculdade de criarem Guardas Municipais.
As referidas Guardas não podem ter atribuições concorrentes com o serviço de segurança prestado pelo Estado através das Polícias Militares. Os Municípios que a criaram vêem grande utilidade à coletividade, notadamente na proteção de escolas, hospitais, pronto-socorros, creches, centros educacionais e esportivos, centros de saúde, mercados, monumentos, prédios públicos municipais em geral, cemitérios, portanto, em toda a infra-estrutura municipal que pode sofrer ações de vândalos.
Como não há lei ordinária federal regulando as Guardas Municipais, elas deverão limitar-se ao texto constitucional e à correspondente lei federal em vigor. Por isso, não podem exercer patrulhamento nas ruas, realizar barreiras policiais, identificar transeuntes, uma vez que as normas jurídicas não lhes reservaram o poder de polícia.
No ensinamento de Gasparini (apud LAZZARINI, 1995, p. 49):
Os serviços de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública, a toda força, não são predominantemente locais, dado destinarem-se a coibir a violação da ordem jurídica, a defender a incolumidade do Estado e dos indivíduos e a restaurar a normalidade de situações e comportamentos que se opõem a esses valores. De fato, a quebra da ordem jurídica e os atentados contra o Estado e os indivíduos são comportamentos que repercutem além dos limites do município, que transcendem suas fronteiras. Escapam, pois, do predominantemente municipal e determinam, em razão disso, outra ordem de competência as cujos integrantes cabem presta-los (grifo do autor).
Por isso mesmo, os municípios não são obrigados a criar e manter as Guardas Municipais. Se criarem, jamais podem as guardas agir como polícia de ordem pública ao arrepio da Constituição e das leis, pois, os mandantes e executores, assim agindo, incorrerão à responsabilidade penal, civil e administrativa, de tudo sob o controle do Poder Judiciário.
Ordem pública e segurança pública
Há várias interpretações jurídicas acerca da concepção da ordem pública. Buscar uma conceituação de ordem pública também não é tarefa fácil, tamanha a conotação que se possa compreender, notadamente no campo ideológico.
Para Moreira Neto (2005, p. 410), a quem se rende fonte doutrinária muito especial nesse contexto:
[...] a ordem, considerada em seu sentido pleno, é uma situação de harmonia desejável e necessária à vida das sociedades, sendo, por isso, objeto do Direito que, para garanti-la, institui a sua correspondente ordem jurídica. [...] guarda o sentido de situação a ser alcançada e mantida, tanto podendo significar a ordem espontânea, gerada pelas sociedades, como a ordem coacta, imposta pelas superestruturas de poder por elas desenvolvidas.
Para esse autor, quando a ordem se refere a toda organização política de uma sociedade, tem-se a ordem política, ou seja, uma disposição interna da organização política que viabiliza a existência do Estado e do Direito. Em conseqüência, quando a segurança se refere à garantia de toda ordem política de uma sociedade, tem-se a segurança política. Esse referencial político demonstra que toda organização política pressupõe, portanto, uma ordem política mínima que a prescreve.
Delimitado o referencial político, que é geral, passa-se ao referencial público, que é especial. Assim, quando a ordem se refere a toda a organização da convivência pública de uma sociedade, tem-se a ordem pública.
Silva (1993, p. 657), lembra que a "[...] ordem pública requer definição, até porque [...] a caracterização de seu significado é de suma importância, porquanto se trata de algo destinado a limitar situações subjetivas de vantagem, outorgadas pela Constituição".
A preocupação coerente desse autor é no sentido de se evitar, em nome da "ordem pública", as arbitrariedades que foram registradas pela história brasileira, principalmente durante o regime militar, pois o que ocorreu nesse período foi desrespeitar direitos fundamentais da pessoa humana, quando ela apenas autoriza o exercício regular do poder de polícia.
A ordem pública "é uma situação de harmonia desejável e necessária à vida das sociedades, sendo, por isso, objeto do Direito que, para garanti-la, institui a sua correspondente ordem jurídica" (MOREIRA NETO, 2005, p. 410).
"Será uma situação de pacífica convivência social, isenta de ameaça de violência ou de sublevação que tenha produzido ou que supostamente possa produzir, a curto prazo, a prática de crimes" (SILVA, 1993, p. 657).
A ordem pública transcende o referencial legal, legítimo e moral, uma vez que se compatibiliza com uma dimensão moral diretamente referida às vigências sociais e, por isso, própria de cada grupo.
É a disposição interna da organização social das interações interindividuais públicas, permanentes ou ocasionais, que viabiliza a convivência pública. Quando a segurança se refere à garantia de toda a ordem pública de uma sociedade, tem-se a segurança pública.
A segurança pública "é [...] uma garantia, e, por extensão, vem a ser um conjunto de atividades que a salvaguardam em favor de indivíduos, grupos, nações, Estados e grupos de Estados, contra tudo que lhes possa oferecer perigo à sua existência e a seu progresso" (MOREIRA NETO, 2005, p. 410).
Ainda, em se tratando de segurança pública, alude Silva (2003, p. 236):
[...] estamos falando de bens e interesses difusos, relativos a titulares dispersos, sem qualquer vínculo especial a não ser o fato de serem residentes de cidade, região ou país. Estamos falando de "ordem pública" como bem coletivo; "da incolumidade das pessoas e do patrimônio" em geral, e não destes e daqueles indivíduos. Estamos falando das situações em que o Estado, nas suas relações com os particulares, faz uso do seu poder soberano para atuar na tutela desses bens coletivos, como ensina Maria Helena Diniz.
Se segurança pública é a garantia da ordem pública, o Estado vale-se dessa atividade-meio, transformando-as em funções de segurança pública que demandam a concentração de poderes estatais específicos em órgãos de segurança pública.
Para que exista essa garantia, lembra Moreira Neto (2005, p. 411):
[...] as sociedades civilizadas sujeitam-se a disciplinas costumeiras de convivência que instituem, em seu conjunto, uma ordem social espontânea que, no processo de sofisticação da cultura e da civilização, se vai desdobrando em aspectos específicos, surgindo então a ordem política, a ordem jurídica, a ordem econômica etc. (grifo do autor).
A prestação administrativa de segurança pública é função do Estado, logo, trata-se de um poder-dever, pois o monopólio da coerção foi transferido ao Estado pela sociedade a qual tem, ainda assim, o dever de colaborar, ou, pelo menos, de não estorvar aquela prestação estável de segurança pública.
Violência, insegurança e o resgate da autoridade
A violência e seu impacto na sociedade contemporânea brasileira merecerão destaque neste item. Analisa-se a participação do Estado e da própria comunidade na busca incessante na resolução desse problema, pois que violência gera insegurança, e quando o cidadão sente-se inseguro diante da violência, abalam os seus direitos fundamentais.
No cotidiano, violência aparece associada ao caos, à falta de regras, à imprevisibilidade. Está em todos os lugares e atinge as mais diversas situações. Uma situação de violência caracteriza-se pela ruptura da normalidade, da estabilidade, do equilíbrio. A violência, ou a vivência em situação violenta, revela a vulnerabilidade, confrontando o ser com a fragilidade da condição humana.
Arendt (apud BORGES FILHO, 1994, p. 101), como uma das expressões intelectuais deste século mais preocupada com a questão da violência, menciona:
[...] todo aquele que se dedica à meditação sobre a história e política não poderia se manter ignorante do enorme papel que a violência sempre desempenhou nas atividades humanas, admitido que a violência não era objeto de muita consideração. Isso mostra [...] até que ponto tornou-se a violência e sua arbitrariedade como fatos corriqueiros e foram, portanto negligenciados: ninguém questiona ou examina aquilo que é óbvio para todos.
A violência no mundo moderno tornou-se mera estatística policial, sendo poucos os dedicados ao estudo desta temática ou, no mínimo, questionadores de sua origem.
Os mais céticos imaginam que na própria síntese das contradições sociais do Brasil, que atravessa uma visível crise de Estado, incapaz de responder as demandas mínimas dos expropriados, excluídos e miseráveis, o país poderá ingressar no pesadelo da convulsão social, ou que já está convivendo com uma guerra civil instalada de proporções avassaladoras, principalmente nas grandes capitais (BORGES FILHO, 1994, p.97).
Demonstra-se que cada cultura e cada sociedade têm seus valores e dão limites e soluções diferentes para seus problemas. Assim, a noção de violência também varia de cultura para cultura, o que é violento para uma sociedade pode ser absolutamente normal para outra. Mas, há um consenso nessa concepção:
[...] todas as formas pelas quais os homens perdem seus direitos e têm sua integridade moral e física ameaçada, seja por outros homens, seja pela sociedade. Estamos acostumados a pensar, porém, que a criminalidade é a verdadeira violência (BUORO, et al, p. 36).
No Brasil, quando os efeitos da violência são perceptíveis, não se pode esquecer de suas causas, também se relacionam ao crime.
Lazzarini (1995, p. 8), analisando o relatório dos juristas do Fórum da Criminalidade e Violência, de 1980, já apontava como fatores sociais geradores da insegurança o seguinte:
a) o crescimento populacional;
b) a má distribuição demográfica;
c) a distribuição inadequada de rendas;
d) a falta de planejamento familiar;
e) as favelas e conglomerados;
f) o problema do menor.
O professor Baracho (Apud LAZZARINI, 1995, p. 8), por sua vez, já relacionava os seguintes:
a) a facilidade do cidadão em se armar;
b) o menor abandonado;
c) a proliferação dos entorpecentes;
d) a violência urbana.
Por fim, Lazzarini (1995, p. 8), cita Moreira Neto, o qual entende ser:
a) a miséria e sua exploração política;
b) a provocação ao consumo pelos meios de comunicação;
c) a natalidade irresponsável;
d) o abandono pela administração púbica da infra-estrutura sanitária e educacional.
Percebe-se haver uma confusão entre causas da insegurança, da criminalidade e da própria violência, ou seja, a violência é tida para alguns como causa de insegurança. De outro modo, poderia indagar se a violência não é o efeito de uma sociedade insegura, que traz o medo, e que desperta uma reação violenta diante disso.
Em estudos sobre o tema violência e sua complexidade para efetivas análises, Zaluar (S.d.), demonstra o aspecto de se explicar esse tema numa visão de causa e efeito em dois campos da Ciência:
Na Antropologia e na Sociologia contemporânea não se busca mais a explicação numa visão linear de causa e efeito. Antes, busca-se num conjunto de fatores que desencadeiam um conjunto de dispositivos que têm uma cadeia de efeitos que se cruzam entre si, uma interpretação mais adequada, mais convincente, mais próxima das realidades extradiscurso ou dos seus referentes. São os entrecruzamentos dos fluxos, as interseções de diferentes processos que se precisa reter, ou seja, trabalhar na interseção das teorias macrossociais da exclusão social, da pobreza, da globalização do crime e sua natureza transnacional e empresarial, assim como do quadro institucional e cultural no qual se desenvolvem as práticas ou hábitos e se formam as imagens e idéias dos policiais e demais atores desses novos dramas urbanos.
Numa análise apriorística, partindo-se para a geografia do crime, Felix (2002, p. iii), afirma:
Há consenso de que esta violência começou a aumentar com o fenômeno da metropolização (grande concentração humana nas cidades), que escancarou as desigualdades sociais responsáveis por profundas frustrações humanas. [...] a mobilidade espacial da população também ajuda a enfraquecer os mecanismos de controle social informal. O contrário ocorre com o habitante de zonas rurais ou de pequenas cidades, onde há um compromisso mais firme com os valores comunitários, com maior controle social e pouca criminalidade [...].
Por sua vez, também não se pode creditar a criminalidade e a violência na conta de certas minorias, como pobres, nordestinos, negros, favelados, pois apresenta manifesto preconceito que, por si, efetivado na prática da discriminação, pode explicar grande parte da violência e da criminalidade.
Os sinais deixados pela violência revelam os limites do homem em controlar o mundo à sua volta, mas, em contrapartida, impelem-no a procurar novas maneiras de se proteger. Aparecem, após momentos de grandes turbulências, os discursos, novos diálogos, novas reuniões e encontros entre as pessoas para repensarem os caminhos e as saídas para a construção da nova regularidade, do novo equilíbrio. Aparecem sempre a conotação de resolução imediata para o problema e as posições dos "salva-pátrias" de plantão.
A análise da violência sob aspectos objetivos contribui de modo significativo para um nível de polarização ideológica. Essa observação é destacada por Silva (2003, p. 484), quando menciona:
É certo que o embate ideológico em torno do tema violência não é exclusividade do Brasil; porém o que singulariza a polarização entre nós é o fato de os defensores destas ou daquela corrente não sentirem a necessidade de se apoiar em números para sustentar seus argumentos. Então, convencer o público de que a criminalidade diminuiu ou aumentou, ou de que o risco da vitimização é maior ou menor, é tarefa que vai depender de incontáveis fatores, mas raramente de taxas e percentuais.
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