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Continua o mencionado autor: "O tema deixa de ser assunto menor e vira problemática obrigatória para políticos, acadêmicos, a mídia e a população em geral, transformando-se, na falta de dados objetivos, em meras impressões" (SILVA, 2003, p. 484).
Assim, aparecem os discursos de violência no Brasil em dimensões erudita e popular. O discurso erudito, seja de direita, seja de esquerda, caracteriza-se por ser abstrato, normativo e jurisdicista, não indagando sobre as relações concretas entre os atores humanos da violência, o que diferentemente, vai aparecer no discurso popular.
Segundo Matta (1993, p. 175-197):
Se os seus produtores são de direita, o discurso encara a violência com um caso de ausência de repressão e de polícia. Quer dizer: é necessário mais polícias (e policiais) para liquidar a violência, que é uma conseqüência da indisciplina das massas, vistas como segmentos racionalmente inferiores, incapazes de disciplina e, por tudo isso, potencialmente perigosas. Se são de esquerda, o discurso não é mais de polícia, mas de "poder". Liga-se então violência, poder e sociedade de consumo para, em seguida, falar-se de capitalismo, autoritarismo e desmando governamental.
Bem por isso, o senso comum evidencia que a violência está fugindo totalmente do controle do Estado e da sociedade civil. O Estado demonstra estar esfacelado, notadamente o corpo político, com freqüentes notícias de escândalos de corrupção em todos os entes federativos. Assim, o Estado brasileiro, que seria o único a poder exercer legitimamente o uso da força, numa concepção weberiana, encontra-se incapacitado de administrar o dia-a-dia da sociedade civil e abre-se um campo temeroso para o aumento dos índices de criminalidade.
Partindo-se para uma teorização sobre violência, é necessário, por sua vez, analisar o comportamento do homem como produto da violência.
Após a criança ter aprendido a andar e falar, usar os músculos, e já ser capaz de entender o que se diz para ela, passa-se ao ensino das advertências: "Não faça isto, senão...". Para o ensino da criança, tais advertências são, freqüentemente, acompanhadas por castigo de dor física e isto carrega terrivelmente o futuro da criança. "Em tal sistema de educação, a moralidade do motivo, o qual deveria dirigir sozinha a atividade da criança, é ocultada pelo sentimento muito mais forte de medo e, dessa forma, surge no mundo a triste moralidade do medo" (HERRNSTEIN, 1971, p. 393).
Existem aqueles que educam as crianças, advertindo-as para um possível castigo de um tal "bicho papão" e, muitas vezes, fazendo analogia ao policial, dizendo: "Não faça isto, senão o policial (normalmente o fardado), te prende".
Nesse sentido, demonstra-se que violência é sinônimo de coerção, tal como utiliza o termo: com a presença de controle aversivo em nossas interações com outros homens e com a natureza. Controle aversivo envolve punição, reforçamento negativo (fuga e esquiva) e privações socialmente impostas.
O sentido de punição ocorre nos exemplos da polícia invadir uma favela em resposta à morte de um policial, ou invadir um presídio para conter uma rebelião, ou agredir um preso que não seguiu as normas estabelecidas.
O sentido de reforçamento negativo (fuga e esquiva) pode ocorrer quando alguém entrega uma carteira reagindo a um assalto, ou quando uma família paga o resgate de um seqüestro, ou quando se instala travas e alarmes em veículo.
Quando crianças tornam-se desnutridas por falta de alimento, quando a um trabalhador é pago um salário mísero, quando crianças são obrigadas a trabalhar a partir de tenra idade para ganharem seu sustento, quando, enfim, aumenta a desigualdade entre ricos e pobres, fala-se em privação socialmente imposta. Qualquer destas situações é uma situação de violência.
Vê-se, portanto, que o tema violência abrange vários campos de estudo e esse, evidentemente, não é a pretensão deste trabalho.
Entretanto, sob os aspectos do Direito, importante nesse contexto voltar à concepção weberiana para quem "[...] o Estado se caracteriza por deter o monopólio da violência física legítima, ou seja, a supremacia dos meios de coerção física coberta por uma legitimidade que se refugia no reino da lei" (BORGES FILHO, 1994, p.98).
Assim, o Estado é uma comunidade humana que detém o monopólio do uso legítimo da força física sobre um território.
Num sentido ideológico marxista, essa concentração de força por parte do Estado tem raízes nas relações de produção que favorece as relações políticas e ideológicas de denominação e subordinação, em que as classes sociais demonstram estarem em constante conflito na sociedade capitalista. Daí deduz-se que o trabalhador assalariado é despossuído dos meios de produção, enquanto que os capitalistas estão no controle direto dos meios de coerção, de tal forma que o aparelho de repressão do Estado utiliza-se de denominação econômica e ideológica para a manutenção do status quo.
Também nesse sentido, Goulart (1994, p. 29) critica a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão frente ao ideal de liberdade:
A Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão levada às últimas conseqüências na organização social e política da França e de outros Estados que se constitucionalizaram após a Revolução de 1789, ao invés de propiciar aos homens liberdade tão eloqüentemente proclamada, deixou-os no isolacionismo, no desamparo, desarmados e fracos, frente à força, à ambição e – irônico que pareça - à liberdade ilimitada de uma minoria economicamente forte.
A relação entre o Estado e a força é extremamente íntima. Todo Estado está fundado na força, mas a força não é o meio normal ou único do Estado, é o meio específico do Estado.
Nesse sentido, Moreira Neto (2005, p. 411), faz observar:
[...] a ordem coacta é garantida fundamentalmente a partir da atuação do Estado e a segurança, no mundo contemporâneo, nele se centra, disso resulta que o próprio Estado, como seus fundamentos de valor, como o direito, a democracia e toda a ordem jurídica que impõe são, simultaneamente, instrumentos e objeto da segurança (grifo do autor).
Num Estado Democrático de Direito, o Estado edita e pronuncia a lei, e por aí instaura-se um primeiro campo de injunções e de censura, criando o terreno para a aplicação e o objeto da violência. Portanto, a lei, como um dos recursos de dominação utilizados pelo Estado, exerce um papel fundamental na constituição e uso do poder e da violência física, pois toda forma estatal edificou-se sempre como organização jurídica.
Borges Filho (1994, p. 99), ainda assevera:
[...] convém salientar que, sem desejar opor a violência à lei, o poder Estatal não se baseia tão somente na violência organizada, mas também na manipulação ideológica-simbólica, na organização do consentimento, na interiorização da repressão e no uso da mentira como verdade política e "necessária".
Essa mentira provocada pelo Estado visa desviar a atenção da sociedade civil ao seu direito à informação exata e honesta do governo. O Estado mente acerca dos atos de violência por ele proporcionados, seja amenizando a crueldade, seja ocultando a verdade dos fatos. É o que se denomina de violência simbólica [14]uma total ofensa à democracia, a qual exige dos seus governantes a transparência do poder.
Assim, num Estado Democrático de Direito, espera-se que o próprio Estado se reencontre e controle a violência física, sem ocultar a verdade dos fatos, como forma de controlar a reação da sociedade. Espera-se, por sua vez, que a própria sociedade civil seja uma aliada do governo na busca de soluções mais exeqüíveis no combate à violência. O governo e a sociedade civil devem se aliar e juntos podem resolver vários problemas que se relacionam com as causas da violência e da própria insegurança.
As forças sociais não constituem e se estabilizam de uma só vez. Necessitam de acordos que resultem, como em quaisquer outros acordos, em concessões recíprocas, as quais durarão até o termo em que o Estado e a comunidade tenham interesse em respeitá-los. Procura-se sedimentar nesse contexto o ideal democrático. O homem busca incessantemente transformar a sociedade de modo a compatibilizar a ordem social com seus direitos e anseios mais legítimos, dirigidos no sentido da realização individual.
O ideal democrático parece que não se identifica sem a existência do Estado e sem que lhe seja atribuída à autoridade necessária. A autoridade, por ser natural, é necessária na democracia.
[...] o homem, impulsionado por sua natureza gregária, forma naturalmente a sociedade; esta não poderá subsistir sem organização; a organização, por seu turno, supõe, imperativamente, sob pena de tumulto e desagregação social, a presença de um órgão diretor ou guia. Aí está a função da autoridade de que poderá consubstanciar-se na pessoa de um homem ou de um grupo (GOULART, 1994, p. 26).
A presença da autoridade é uma necessidade inarredável; sem ela, não haverá Estado, nem sociedade, nem grupo organizado. O que torna essa autoridade legítima é o Direito. E, por isso, o "[...] Direito que se deve reconhecer aqui é aquele que o Estado não cria porque é anterior a ele, mas o reconhece e o oficializa através de normas escritas e o torna obrigatório pelo poder de coerção" (GOULART, 1994, p. 31).
Daí a relevância da polícia de segurança pública, como instrumento de poder do Estado, interando e interagindo num processo contínuo e aberto com a comunidade, deixando o contratualismo sempre aberto à análise do conteúdo da justiça e da legitimidade em processo de contínua renovação, diante da idéia de pacto social no mundo contemporâneo.
Necessário que a autoridade do Estado, por meio de seus órgãos e especialmente pela polícia de segurança pública, esteja presente e atuante nesse processo de interação e integração com a comunidade, pois um governo indiferente, contemplativo, desinteressado com as questões sociais será um governo ausente. É dentro da sociedade política que o homem, sob a égide da autoridade da qual ele próprio participa, encontra as condições necessárias ao exercício das liberdades individuais.
Não há razão para acreditar que o Estado contemporâneo nas democracias seria o ente soberano, dotado de poder de império, legitimamente capaz de declarar a positividade da lei a uma sociedade pluralista.
[...] a unidade do Estado e do Direito não é um ponto de chegada, à maneira do contratualismo clássico na sua explicação da origem da sociedade, do Estado e do Direito no paradigma do Direito Natural; nem um pressuposto não-problemático da Dogmática Jurídica, na linha do positivismo, mas sim um processo contínuo e aberto. Trata-se de um processo contínuo e aberto, pois as forças sociais não constituem e se estabilizam de uma vez por todas. Elas compõem-se e decompõem-se sem cessar, desempenhando o acordo das partes um papel fundamental neste processo (LAFER, 1988, p. 72).
Necessário, pois, diante da violência e insegurança reinantes principalmente nos centros urbanos, que se estabeleçam condições favoráveis à quebra de paradigmas entre os órgãos tidos como repressores estatais e a própria sociedade civil a partir da concepção de que a violência ilegítima não interessa a ninguém.
A mídia, os valores e a violência contemporânea
A mídia sensacionalista, por derradeiro, parece aproveitar todas as oportunidades para informar à população que a mentira e a violência estão cada vez mais próximas, ou seja, de um lado os aparelhos repressivos liderando a violência, de outro a sociedade política construindo a mentira produzida pelos aparelhos ideológicos oficiais.
Em seu papel de informação, a mídia utiliza os meios de comunicação, influenciando o comportamento das pessoas que refletem acerca das possibilidades de tornarem-se diferentes, induzindo-as ao consumismo exacerbado. As pessoas são influenciadas pela imagem de bens de consumo acessíveis a todos na sociedade.
A desigualdade social leva as pessoas menos informadas ou preparadas intelectualmente a terem uma visão de que os honestos, os trabalhadores e os inocentes são constantemente castigados e os malandros, os criminosos, são incentivados e vencedores.
Além de serem apresentadas como produto de características pessoais, as mensagens chegam misturadas, de forma ambígua, notadamente quando procuram induzir a busca do poder e do sucesso na sociedade por caminhos tortuosos.
A realidade nas ruas é traduzida pelo desejo de ser diferente e essas idéias levam as pessoas, sobretudo as mais jovens, a organizarem-se com visão própria de mundo e de individualidade. Andar em grupos, ter roupas e comportamentos visualmente agressivos são algumas estratégias que proporcionam a sensação de status e de dominação num pedaço de espaço, rompendo com a fórmula do isolamento.
Nesses espaços territoriais, as pessoas são influenciadas de diferentes maneiras. Os limites são diferentes e as experiências tendem a ser, também, totalmente diferentes. As pessoas de origem mais humilde e os mais pobres sofrem as experiências e as conseqüências do que fazem nesses espaços, podendo ser cruéis e definitivas, pois essas pessoas, notadamente os mais jovens, não conseguirão mais se desvencilhar dos braços da polícia, do traficante, da gangue de bairro.
Demonstra-se que a mídia ajuda a divulgar a idéia de que a violência é uma das formas de se conquistar um espaço ideal. A violência passa a ser demonstrada como um valor positivo de conquista de status. O mais esperto e, conseqüentemente, o mais bem-sucedido é aquele despontado por comportamento violento de torcidas organizadas, de gangues de bairros ou de grupos que se enfrentam em bailes, no centro da cidade e na periferia, de neonazistas, pit boys e de outros grupos que infernizam a vida das minorias. É o desejo de ser reconhecido o que leva essas pessoas a se digladiarem, a se desafiarem, assim como às autoridades públicas constituídas, numa total falta de respeito à ordem pública. Na realidade, uma falta de respeito à própria dignidade da pessoa humana.
O desejo de se distinguirem dos outros podem levar as pessoas a experimentarem a verdade concreta do inferno ou do paraíso.
Para muitos estudiosos, há uma espécie de casamento perfeito entre a criminalidade e o tipo de mensagem que se recebe dos meios de comunicação. Os crimes são episódios extraordinários, mas repetidos de maneira incessante pelos noticiários, banalizam-se. Os meios de comunicação, em geral, constroem as personalidades de suas notícias, apresentado-as como bizarras e, por isso, não merecedoras de respeito. As pessoas parecem não ter identidade: quem são, que espaços ocupam na cidade, quais os problemas que enfrentam no dia-a-dia, quais são seus papéis reais, enfim, de que processos específicos, econômicos, sociais, culturais e políticos resultam.
Nesse desejo frenético de informar, retira-se a história da notícia e a violência se torna apenas um fato. Retira-se esse fato de um contexto mais amplo que possa explicá-lo e se concentra toda a força da mensagem no estranho modo de vida dessas exóticas personagens. E o fato passa a ser uma coisa objetiva e verdadeira.
Esse é o efeito da mídia: os problemas e injustiças da sociedade são mascarados pela mensagem que se busca das desordens de cada um, ou em grandes imagens associando violência somente à criminalidade.
Nos estudos sobre a imagem do crime e da violência por meio da imprensa, na cidade de Marília, Mello e Toigo (2004, p. ?) concluíram que:
[...] cabe à mídia uma destacada contribuição na qualificação das informações sobre violência, pois ocupa na sociedade contemporânea um papel importante como mediadora social, como agente de socialização, ao lado da família, da escola e de outras instituições. E, de fato, não há dúvida do poder da notícia publicada ou divulgada.
Por isso, esse poder da imprensa deva ser encarado também com limites, tamanha a responsabilidade que tem em relação à violência.
A problemática: violência policial, corrupção policial e desvio de finalidade
Lazzarini (1995, p. 61), inclui a violência, a corrupção e o desvio de finalidade como os principais problemas relacionados ao aperfeiçoamento das polícias brasileiras:
[...] é necessário a reflexão sobre o ciclo da persecução criminal [15]por inteiro, que não se esgota na atividade policial, ou seja, desde o início do ciclo de polícia [16]em que se destaca a polícia preventiva, ou polícia geral, encarregada da ordem pública, até o fim desse ciclo, com a efetivação da repressão, com destaque o sistema prisional ou penitenciário.
Além dessa reflexão, Lazzarini (1995, p. 61), destaca: "Tais comportamentos desmoralizam os órgãos públicos envolvidos na segurança pública perante o povo brasileiro e comprometem a imagem do Brasil no exterior". Neste estudo, reforça-se essa assertiva, como se vê a seguir.
Violência policial
A história brasileira demonstra que o povo brasileiro viveu mais períodos de governos fortes, ditatoriais e anti-sociais do que democrático, comprometendo, por conseqüência, a atuação policial.
Silva (2003, p.518), ao tratar da violência policial, afirma:
É pouco provável que alguém discorde da afirmação de que a polícia brasileira ainda carrega as marcas da truculência; que não se livrou totalmente do papel de garante de uma ordem social historicamente calcada na hierarquia social e na discriminação. [...], sobretudo as tradicionais vítimas, pessoas pobres da periferia das grandes cidades. O que normalmente fica faltando nesses estudos é aprofundar a discussão no sentido de saber por que isto acontece, e porque o problema não se resolve.
É necessário repensar as condições em que as forças de segurança se inserem na sociedade. Isso significa assumir que a violência institucional faz parte do contexto da violência, a qual se tenta controlar democraticamente.
A violência institucional é em si mesma um risco para a vida e a integridade dos cidadãos. Existem propostas que se referem a controle administrativo, políticos e cidadãos. [...] E, em conseqüência, desincentivar as estruturas de corrupção e sua autonomia [...]. Além disso, é necessário levar em conta os direitos econômicos e sociais dos agentes dessas forças. A carência de direitos desvaloriza a noção que eles têm sobre os direitos dos cidadãos em geral. Tê-los, ao contrário, a revaloriza (PALMIERI, 2003, p. 20-21).
Um dos aspectos mais relevantes da violência policial refere-se à prática de atos arbitrários, uma vez que sempre a polícia, de forma geral, foi entendida como órgão executor da repressão institucional, sob o argumento de manutenção da ordem pública. E, sistematicamente, como órgão, produziu dentro dela uma linha de pensamento que tem legitimado o comportamento agressivo.
A violência policial pode levar a uma séria desordem pública, à qual a polícia de segurança pública deve, então, responder, podendo, assim, expô-la a situações perigosas e desnecessárias, fazendo com que ela se torne mais vulnerável aos contra-ataques, fragilizando a confiança na própria polícia por parte da comunidade, tornando prejudicial uma nova estratégia de policiamento efetivo. É neste ponto que os órgãos de segurança pública passam a preocuparem-se com as suas imagens perante a opinião pública.
Existem muitos casos concretos na história contemporânea brasileira que marcaram a violência policial quando do uso abusivo da coerção, devendo ser encarada como um grave problema a ser solucionado pela sociedade [17]
O problema crucial a ser levantando neste ponto é delimitar com clareza quando o uso da coerção é considerado legítimo e quando parte para a arbitrariedade.
Cabe lembrar nesse contexto a chocante explosão de violência que assolou Los Angeles, em abril de 1992, em decorrência da absolvição dos policiais do Departamento de Polícia de Los Angeles (LAPD), os quais espancaram o motorista negro Rodney King, em março de 1991. "O resultado final foi: 60 mortos; mais de 2.000 feridos; 8.000 incêndios; 10.000 postos de trabalho permanente perdidos; mais de 700 milhões de dólares de prejuízos" (BINNELL, 1994, p. 83-95).
No Brasil ainda não se chegou a tanto, mas protestos contra esse tipo de violência por parte da sociedade civil mereceram destaque pela mídia em casos recentes.
Em relação à revolta dos moradores da favela Vigário Geral, ocorrida em 30 de julho de 1993, em decorrência de assassinatos provocados por policiais, lembra Pedroso (2001, p. 72):
[...] quando alguns moradores revoltados fecharam a avenida que dava acesso à favela, usando pneus, pedras e paus, prejudicando o tráfego de trens, uma vez que a estação foi tomada pelos favelados. O comércio fechou as portas em sinal de luto e em repúdio ao massacre. Houve também conflitos com a Polícia Militar.
Em 1997, o famoso caso da Favela Naval foi o estopim que marcou a crise das polícias militares no Brasil. Policias Militares do 24º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano da Polícia Militar do Estado de São Paulo foram filmados agredindo transeuntes e matando um morador da região. Uma indignação que teve repercussão internacional, notadamente pelas comissões de Direitos Humanos.
Para esses exemplos e tantos outros, o destaque importante do controle externo da polícia de segurança pública por parte da sociedade civil. Não fosse a gravação em vídeo das cenas lamentáveis de violência, seria muito provável tais ocorrências passarem in albis.
Lazzarini (2001, p. 23) ensina, ao discorrer sobre os limites do poder de polícia, no entendimento de que não significa uma "carta branca" para os agentes que exercem atividades de polícia de segurança pública:
Norma legal [...] impõe barreiras ou limites que devem ser intransponíveis, pois abrigam atividades humanas, protegendo-as contra desmandos dos governantes e administradores, barreiras ou limites estes que são de três ordens [...]: os direitos do cidadão, as prerrogativas individuais e as liberdades públicas garantidas pelas Constituições e pelas leis (grifo do autor).
O uso abusivo ou excessivo dessa força a torna ilegítima, ou seja, arbitrária, e, por isso mesmo, é passível das mais severas críticas por parte dos órgãos ligados aos Direitos Humanos e, quanto a isso, não pode haver ninguém que possa concordar com o arbítrio no mundo contemporâneo, merecendo o Estado e os seus agentes as mais severas punições.
Ao Estado incumbe promover o bem comum, sendo essencial, para isso, a ordem pública. O uso da força, como poder coercitivo do Estado, por meio de seus órgãos repressores, é legítimo na medida em que, num Estado Democrático de Direito, e por isso mesmo, se obedeça ao disposto em lei [18]O uso da força coincide com o atributo da coercibilidade do poder de polícia, portanto, legitimado pelo direito.
Os agentes do Estado, que detêm o monopólio do uso da força, têm a lei como limite. É exatamente neste ponto que surge a maior dificuldade de se atribuir à ação policial legitimidade ou não, ou seja, interpretar uma ação de acordo com a lei. É uma linha tênue, mas muito visível quando a ação é arbitrária e deixa muitos vestígios.
Como analisa Balestreri (2000, p. 74): "A fronteira entre a força e a violência é delimitada, no campo formal pela lei, no campo racional pela necessidade técnica e, no campo moral pelo antagonismo que deve reger a metodologia de policiais e criminosos".
E em termos do inconsciente coletivo, assevera o mencionado autor: "[...] o policial desempenha função educativa estereotipada. Este deve ser o "mocinho", com procedimentos e atitudes coerentes com a firmeza moral oposta aos desvios nefandos que lhe contrapõe o bandido" (BALESTRERI, 2000, p. 74).
É preciso que a sociedade compreenda, nitidamente, as diferenças metodológicas, pois, na confusão entre os estereótipos, fica intensificada a crise de moralidade, exacerbando-se a violência, significando que a violência policial é causadora de mais violência da qual, constantemente, o próprio policial torna-se vítima.
Compete ao encarregado da aplicação da lei adotar comportamentos coerentes com a função. Usar a força como manda a lei, não se permitir ser cruel ao lidar com homens cruéis, não ser vingativo e nem liberar comportamentos similares aos delituosos e, com isso, licenciar a sociedade para adotar os mesmos comportamentos, nos quais se ensinam a matar quem quer que seja para preservar a vida. O encarregado da aplicação da lei não pode esquecer que também observa e é responsável pelo inconsciente coletivo.
A importância de assegurar o fim dos abusos de poder no uso da força não precisa ser enfatizada. A violência por parte dos encarregados da aplicação da lei, no entanto, pode resultar em sérias violações do direito à vida, também à integridade física e dignidade da pessoa humana. Além disso, ela exacerba as dificuldades e os perigos das atividades policiais, já bastante difíceis e perigosas em si mesmo, por causa das reações imediatas e de longa duração que podem provocar.
Assim sendo, pela lei, e somente por meio dela, é dado à polícia de segurança pública o poder do uso da força. Sem este e outros poderes, tal como aquele de privar as pessoas de sua liberdade, não seria possível à polícia impor a lei ou manter ou restaurar a ordem.
Embora o policiamento possa ser descrito como uma série de funções, como, por exemplo, fazer aplicar a lei ou manter ou restaurar a ordem, pode também ser definido como uma função só, aquela de responder a qualquer situação que aconteça no seio da sociedade, na qual a força deva ser usada para, pelo menos, restabelecer uma situação de normalidade temporária.
Sobre princípios que justificam o uso da força por policias, aduz Viana (2000, p. 75):
Ao mesmo tempo, princípios, como a aplicação de meios pacíficos antes do uso da força e emprego de níveis mínimos de força em qualquer circunstância, são fundamentais para o policiamento. Considerando esses princípios e a concentração da força, explícita ou implícita, para o policiamento; considerando a natureza do policiamento com suas incertezas e seus perigos; e considerando a importância do policiamento na sociedade, demonstra que o poder do uso da força só poderia ser atribuído àquelas pessoas qualificadas para exercê-la convenientemente. Isto implica uma seleção extremamente rigorosa e processos de treinamento, um comando efetivo, um controle e uma supervisão dos policiais pelos seus superiores, e uma estrita responsabilidade da polícia frente à lei quando há abuso de poder.
O uso da força é legítimo, o uso da violência não; e nessa distinção vale o ensinamento:
É curioso que a percepção do problema do uso da força pela polícia e a discussão de sua propriedade no Brasil se dêem com base na ingenuidade perigosa que não distingue – ou não quer distinguir – o uso da violência (um ato arbitrário, ilegal, ilegítimo e amador) do recurso à força (um ato discricionário, legal, legítimo e idealmente profissional). Esta situação é agravada pela ausência de um acervo reflexivo cientificamente embasado e informado pela realidade comparativa com outros países, o que abre espaço para comportamentos militantes e preconceituosos. De fato, intervenções tecnicamente corretas do ponto de vista da ação policial têm sido lançadas à vala comum da "brutalidade policial" e erigidas em símbolo de uma mítica banalização da violência, que explicaria o atual estado da criminalidade em nossas cidades. O ônus desta indistinção é imenso, sobretudo para as organizações policiais, que se vêem na situação impossível de ter que tomar decisões em ambientes de incerteza e risco sem qualquer critério que as oriente quanto à propriedade das alternativas adotadas (MUNIZ, et al, 1999).
As Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal, em razão de exercerem suas atividades ostensivamente, são as mais criticadas pelos órgãos e comissões de Direitos Humanos e, conseqüentemente, pela mídia, como se as Polícias Civis, ou mesmo a Polícia Federal, não cometessem arbitrariedade [19]
As polícias judiciárias, notadamente a Polícia Federal e as Polícias Civis, também são criticadas pela violência, notadamente acerca do indiciamento, como destaca Lazzarini (1995, p. 62):
[...] a violência ocorre nos porões, nas chefias de investigadores, durante o interrogatório, longe da vista do público. [...] estampa até mesmo no inquérito policial [...]". O indiciamento passou a ter conotação de uma condenação pública. O reconhecimento posterior da inocência afirmado pelo Judiciário não tem mais repercussão, é incapaz de apagar da memória a condenação policial anterior. O indiciamento marca a pessoa com cicatrizes que nenhuma sentença absolutória tem o poder plástico de apagar de sua alma e do seu nome. Pelo erro policial, permanece impune o "julgador" sem toga. O inocente, assim reconhecido pelo julgador togado, não recebe, pela lesão sofrida nenhuma reparação moral e material por parte do Estado [...].
O que se tem criticado, principalmente por parte de comissões de Direitos Humanos, pela imprensa e por organizações não-governamentais, é a atuação violenta das policias estaduais, especialmente da militar, acusada de atuar violentamente no exercício de suas funções como também fora delas. E, quando do exercício da função, a crítica é mais contundente diante dos registros de mortes ocasionadas sob o argumento da legítima defesa ou o estrito cumprimento do dever legal.
Evidentemente, há casos particulares cometidos pelos policiais, devendo ser apurados e reprimidos pelo sistema penal, e também administrativamente, com o rigor necessário. Aliás, essa é uma depuração que deve ocorrer em todos os órgãos públicos. Mas, salientar que essas organizações agem dessa forma sistematicamente demonstra uma leviandade e um preconceito absurdos. E, às vezes, com essa conotação espúria [20]alguns teóricos mais desavisados, precipitadamente, pedem a extinção das Polícias Militares, como se os problemas de violência fossem assim facilmente solucionados.
Há um preconceito em relação às Polícias Militares por parte dos cientistas políticos e da mídia em geral, pois alegam sempre que essas organizações teriam nascido sob a influência da ditadura militar e por serem "militares" e subordinadas ao Executivo eram tidas como o instrumento do Estado opressor para cometer abusos em nome da Segurança Nacional [21]Mas, não costumam incluir nesse rol as Polícias Civis e a Policia Federal. Daí a conotação preconceituosa e, por isso mesmo, descabida e que se constitui paradigmática.
Vale aqui lembrar Muniz (1999, p. 69), quando comenta um caso concreto ocorrido com um oficial superior de Polícia Militar no Estado do Rio de Janeiro, em pesquisa levada a efeito em sua tese de doutorado, demonstrando "uma estética do ressentimento alimentada pelo famoso "caldo de cultura autoritária"":
Um oficial superior, integrante da nova geração, contou-me que em um episódio recente, quando estabelecia contatos com profissionais do meio intelectual, sentiu-se "indignado" com a forma pela qual teria sido por eles "tratado e enquadrado". Disse-me que fora "injustamente acusado de colaborar com a ditadura" pelo simples fato de "ter escolhido ser policial e militar". Face ao que considerou uma "provocação desnecessária", meu confidente, visivelmente chateado teria respondido à interpelação afirmando que "não tinha motivos para não se orgulhar da farda" e durante o regime militar ele, como os referidos intelectuais, se encontrava nos bancos da universidade. Encerrando sua narrativa, o oficial PM apresentou uma resignada e preocupante consideração: "eles [o Exército] fizeram o serviço sujo e ficaram bem com a população. Quem se desgastou com o povo foi a Polícia Militar. O Exército sempre soube fazer a sua Propaganda.
Vieira (2001, p. 11), comentava acerca da violência da Polícia Militar, também com rescaldo ideológico:
A Polícia Militar parece ser o principal legado do regime que passou. Perdemos uma oportunidade ímpar de reformular o nosso sistema policial em 1988. [...] a violência e a corrupção tornaram-se parte do cotidiano de maus policiais [...]. A banalidade com que se mata ou tortura é incompatível com o ethos do regime. A solução seria a transformação das duas polícias [...].
O que se procura demonstrar é que casos pontuais de violência policial ocorrem e é possível que não deixem de ocorrer em face do aumento da criminalidade. Por sua vez, não pode haver permissivo a excessos no combate a criminalidade, inclusive com apoio das próprias autoridades ao legitimar a violência institucional, premiando ou promovendo aqueles policiais que agem na suposta prática de condutas nas quais se afere à legítima defesa ou estrito cumprimento do dever.
É necessário a apuração dessas condutas de forma transparente e que não se banalize o emprego de arma de fogo como instrumento letal, quando há outras alternativas mais modernas para se prender criminosos, inclusive utilizando-se estratégias de inteligência policial.
Deve-se preservar, sim, a instituição policial, mas jamais as suas "maçãs podres" [22]pois estas podem contaminar a todos e, contaminando-os, ai sim o prejuízo se torna institucional. A forma técnica de as polícias trabalharem numa sociedade democrática se legitimará principalmente com o pressuposto do respeito à cidadania, com dados estatísticos obedecendo a uma metodologia científica e com a mediação de conflitos. No entanto, preponderando-se o estilo absolutamente legalista das polícias diante de situações corriqueiras de preservação da ordem, a presença do policial, notadamente o policial militar, em vez de constituir-se em instrumento de mediação, constitui-se em instrumento de complicação e de ampliação dos conflitos. Assim, necessário uma metodologia científica para cada uma das situações previsíveis de atuação na preservação da ordem, com procedimentos operacionais padrão, ainda que a questão da discricionariedade esteja sempre presente.
Por sua vez, demonstra-se que a polícia de segurança pública brasileira, notadamente as dos Estados-membros, sempre sofreu com a politização da violência. Rumando para o campo ideológico, muitos candidatos aos governos de Estados, em seus discursos, afirmavam que a violência seria fruto do modelo repressivo e autoritário do Estado, do desrespeito aos direitos humanos e das condições de vida das populações periféricas e a culpa da violência sempre era atribuída aos governos anteriores. Outros, dependendo das pesquisas eleitorais, aproveitavam a situação e prometiam, durante as campanhas, acabar com a violência em curto espaço de tempo, todos eles mexendo com o emocional do eleitor, dizendo que a polícia iria voltar às ruas e coisas do gênero.
Diante dessa politização, havia promessas de proporcionar mais segurança e tranqüilidade à população, restituindo a autoridade da polícia, que passaria a contar com um efetivo mais bem preparado e devidamente reequipado, com o objetivo de prender traficantes, ladrões e seqüestradores. A politização espelhava nesse processo eleitoreiro a promessa de um "governo dos direitos humanos" e de outro um "governo da lei e da ordem".
Por outro lado, Silva (1993, p. 52), já comentava que as polícias e seus agentes sempre foram os "[...] culpados, responsáveis e algozes". Critica aqueles que apontam as mazelas das polícias e insistem em que estas têm a obrigação de respeitar os direitos humanos, repisando o óbvio, mas poucos acordam para o problema que situa a vitimização da polícia como instituição e dos policiais como cidadãos.
Não há como fugir à constatação de que não raro, a polícia tem sido usada como "solução" para questões sociais. Assim, por exemplo, se crianças e adolescentes ("menores...") perambulam pelas ruas, sem escolas e sem casa, entregues a toda sorte de vícios, sendo explorados, corrompidos e prostituídos por adultos (e às vezes roubando e matando), este não será um problema da sociedade, e sim um caso de polícia. Se jovens da classe média se entregam às drogas, em promiscuidade com traficantes, a "culpa" será dos traficantes, e não será um problema de suas famílias e da comunidade, e sim um caso de polícia. Se, nas cidades e no campo, hordas de brasileiros invadem a terra e a casa alheias (num dos países de maior extensão territorial do mundo...), este não será um problema da sociedade, e sim um caso de polícia. E lá vai a polícia para o "combate", de preferência armada de fuzil (SILVA, 1993, p. 524).
A indagação acerca dos resultados disso tudo é simples: de quem é a culpa?
A culpa é do governo e da polícia. Como o governo é um ente abstrato, materializando-se apenas neste ou naquele governante momentâneo; e como a polícia como instituição também é uma abstração, a "culpa" recai naqueles que materializam a polícia: milhares de homens e mulheres comuns do povo que a integram (SILVA, 1993, p. 524).
Não bastam indicar, na ponta da linha, os culpados pela execução dos eventuais casos isolados. Há de se identificarem os responsáveis pela orquestração da truculência. E responsabilidade se cobra do mais alto escalão da Administração, e não o contrário.
Pode-se citar uma inteligência estranha de comportamento quando os governantes, dirigentes, comandantes e chefes induzem os policiais à violência. E, depois, de um resultado desastroso, embora previsível, ajudam a execrá-los para se eximirem de responsabilidade, ou quando não os deixam ao risco da morte ou da invalidez, bem como aqueles particulares ou clandestinos que os usam para atividades de segurança ou serviços escusos, valendo-se de seus irrisórios salários.
Aprendendo com os seus próprios erros, as polícias de segurança pública demonstram que vêm, nesse processo contínuo de democratização, caminhando na busca de seu lugar efetivo, desenvolvendo outros padrões de comportamento que não os de uma cultura autoritária, com a que se praticaram desde o período colonial e que para muitos ainda não desapareceu.
O Relatório de Desenvolvimento Humano de 1994, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), já apontava a formalização do conceito de "segurança humana", baseado em outro conceito, o de "desenvolvimento sustentável", tendo como fundamento o universalismo do direito à vida.
Assim, o ser humano passou a ser colocado no centro das preocupações políticas, os desafios a enfrentar são de diferente natureza:
O foco deixa de ser a segurança do "território", da "democracia" e do poder, e passa a ser a segurança das pessoas, em qualquer parte do mundo, sem considerações de raça, origem, classe, religião, cultura, concepção de mundo, etc. (SILVA, 2003, p. 593).
Essa é a tendência contemporânea das políticas de segurança pública: valorizar a vida, a integridade física e a dignidade da pessoa pela sua condição humana.
Sobre essa tendência, alude Balestreri:
O velho paradigma antagonista da Segurança Pública e dos Direitos Humanos precisa ser substituído por um novo, que exige desacomodação de ambos os campos: Segurança Pública com Direitos Humanos. [...] O policial, pela natural autoridade moral que carrega, tem o potencial de ser o mais marcante promotor dos Direitos Humanos, revertendo o quadro de descrédito social e qualificando-se como um agente central da democracia. Direitos Humanos também é coisa de policial (BALESTRERI, 2000, p. 79).
A polícia contemporânea, portanto, deve ser um dos instrumentos em potencial da promoção dos Direitos Humanos e os policiais os agentes executores permanentes dessa promoção.
Corrupção policial
Em relação à corrupção, torna-se desenfreada na medida em que há instabilidade na hierarquia e disciplina, até pela crise de liderança, o que colabora para o fortalecimento do crime organizado, instalado em órgãos de alguns Estados da Federação, necessitando a Polícia como um todo rever sua estrutura. Demonstra haver uma crise de autoridade.
Silva (2003, p. 563) afirma ser necessário "[...] lutar contra a corrupção policial de forma objetiva, e não emocional".
As ações contra a corrupção policial normalmente são reativas, sobretudo, em face de divulgação pela mídia de casos pontuais, demonstrando que a polícia aparenta como um apêndice da sociedade, e os policias envolvidos, como exceção à regra de honestidade. O que se verifica, entretanto, é que todo aquele envolvido na corrupção e apanhado pelo sistema, livraria outros da sociedade e das organizações de qualquer responsabilidade, vale dizer, os corruptores.
Como lembra Silva (2003, p. 564):
Este quadro torna possível que pessoas participantes de esquemas de corrupção se apresentem publicamente dando apoio a campanhas moralistas anticorrupção como se fossem arautos da moralidade. Daí por que, sempre que explodem os escândalos, lá estão representantes seus, na verdade os beneficiários da corrupção sistêmica, institucional.
Não se pode tolerar a corrupção policial, pois os policiais devem ser os primeiros guardiões da lei e da ordem. Trata-se de uma concepção ética. A população sempre espera um comportamento íntegro da polícia, e, naturalmente, de seus policiais, a despeito dos níveis de corrupção que a mídia informa de vários entes federativos e políticos.
A corrupção tem sido abordada sob o aspecto moralista, como um desvio comportamental e, desta forma, deveria ser solucionada apenas punindo, penal e administrativamente, o policial corrupto.
Por sua vez, o problema pode não ter o cunho individualista, ou seja, apenas em relação ao policial corrupto, atribuindo-lhe um desvio moral. O problema surge quando a questão assume forma endêmica e alastra-se por toda uma sociedade ou organização, tornando-se sistêmica. E, quando sistêmica, além de envolver as organizações policiais, envolve também cidadãos supostamente honestos de diferentes setores da sociedade, das áreas pública e privada [23]
Speck (1998, p. 39), referindo-se aos países do hemisfério norte como exemplo de investigação da corrupção e resultado eficiente, aduz:
A institucionalização de uma burocracia eficiente e os mecanismos de controle do executivo por parte do parlamento e da sociedade civil seriam os principais mecanismos que garantiriam a integridade. Estes dois pilares teriam contribuído para o desenvolvimento de uma cultura política, na qual os políticos e administradores se dedicam ao bem público em detrimento dos interesses privados. Os casos isolados de corrupção nas democracias modernas, sob esta ótica, tinham sempre um caráter pitoresco.
Ratifica o mencionado autor seu posicionamento, demonstrando estratégias de controle da corrupção partindo de seu oposto, isto é, uma idéia normativa de como o processo político-administrativo deveria funcionar, afirmando a importância de um arranjo que atribui certa estabilidade e previsibilidade ao processo político.
Um dos principais meios para alcançar esta previsibilidade é a atribuição de funções e papéis a determinados atores políticos. Isto vale tanto para o funcionário público como também para ministro ou o deputado. Em relação a uma parte destes atores tais expectativas são codificadas e explicitadas. São cargos administrativos, que na formulação weberiana têm as suas atividades orientadas por regras procedimentais (SPECK, 1998, p. 48).
Omitindo-se, neste ponto, estratégias para os cargos e funções políticas, o que parece interessar é a corrupção em relação ao funcionário público, em cuja categoria incluem-se os encarregados da aplicação da lei, para os quais "[...] o exercício destas funções podem ser complementadas por incentivos positivos ou negativos em função do desempenho funcional" (SPECK, 1998, p. 48)
Os "incentivos positivos" para o desempenho íntegro do encarregado da aplicação da lei são os benefícios materiais, a estabilidade, a estima social e a expectativa de promoção. A opção pela aceitação do suborno pode ser avaliada como decisão racional, na qual o ator público compara estes benefícios morais e materiais do comportamento honesto com os benefícios e os custos do comportamento corrupto e a preocupação dos encarregados da aplicação da lei passa a ser sua avaliação, interpretando a probabilidade de um ato ser descoberto e provado. É por meio desse cálculo racional que se pode controlar a corrupção de qualquer policial, ou seja, ele deverá estar compromissado com a sua missão institucional, isto é, o senso de profissionalismo, tendo oportunidade de ver aumentar os incentivos positivos, tanto materiais como também imateriais, a exemplo da remuneração e estabilidade (materiais), e a sua auto-estima e reputação (imateriais).
O "incentivo negativo" está concentrado na probabilidade de desvendarem-se esquemas de corrupção, cuja proposta deve envolver a burocracia e a sociedade.
A criação de "disque denúncia" apresenta-se como uma proposta eficiente para desvendar comportamentos corruptos e isso já é realidade em vários Estados da Federação brasileira. Somada a essa proposta, parece também exeqüível a estruturação das corregedorias das polícias, compostas de profissionais (efetiva e comprovadamente) compromissados com as respectivas missões de suas instituições, além de comprovada conduta ética. As Ouvidorias [24]também criadas em vários Estados da Federação [25]parecem demonstrar um controle efetivo, na medida em que se procuram soluções rápidas diante das respostas aos reclamos da população.
Por fim, é necessário avaliar o custo do ato corrupto, cujos fatores principais são o tamanho da pena e a eficiência do processo de punição. No Brasil, a impunidade está sendo apontada pelos meios de comunicação e pesquisas científicas como principal responsável pelos problemas de corrupção.
Vale-se da fórmula apresentada por Speck (1998, p. 57):
[...] mais incentivos positivos para os encarregados da aplicação da lei, mais probabilidade de desvendar comportamentos corruptos e punições mais severas têm um peso reduzido se comparado com o volume de recursos que o outro lado, por exemplo, o crime organizado, pode jogar na balança dos custos e benefícios do comportamento do corrupto.
Assim, parece nada adiantar combater a corrupção sob o ponto de vista individual-moralista, mas, sobretudo, sob o ponto de vista organizacional ou sistêmico.
Desvio de finalidade
A terceira problemática ao aperfeiçoamento da polícia brasileira é o desvio de finalidade. Esse problema quase não é percebido pela opinião pública.
[...] vai desde o uso indevido de meios materiais postos à disposição da polícia, passa pelos efetivos retirados da atividade policial para atender interesses menores e chega ao exercício deliberado de funções policiais que não são exatamente de competência do respectivo órgão (LAZZARINI, 1995, p. 63).
"Desviar é distorcer o ato, orientando-o para o alvo diverso daquele que deveria ser seu objeto, encobrindo-se a ilegalidade pela competência existente e pela obediência à forma prescrita ou permitida" (ARAÚJO, 2005, p. 1128).
Ensina Waline (apud CRETELLA JÚNIOR, 2002, p. 57): "Todo uso dum tal poder com finalidade, mesmo de utilidade pública, mas diverso daquele previsto e desejado pelo legislador, constitui desvio de poder, configurando caso de nulidade do ato administrativo" (grifo do autor).
A finalidade na Administração Pública é o interesse público. O interesse público é confiado ao Estado, como seu único titular e como síntese dos poderes soberanos, e não a seus órgãos e muito menos a seus agentes ou particulares, cabendo ao encarregado da aplicação da lei, como administrador que é, a guarda ou fiscal da coisa pública, que é um bem que não pode ser disponível como se fosse seu.
É o legislador quem define a finalidade alcançada pelo ato administrativo, não havendo nesse campo nenhuma liberdade de opção para a autoridade administrativa. Isso também vale para os atos de polícia, como visto.
O problema do desvio de finalidade encontra-se na comprovação de imediato na qual o policial faz do poder discricionário, ou da competência que detém para atingir finalidade diversa da que a lei, explícita ou implicitamente preceitua. Os policiais, por vezes, notadamente os de maior hierarquia administrativa, movidos por interesses pessoais, cercam-se de todas as cautelas para evitar a descoberta da imoralidade e procuram mascarar a verdadeira finalidade de seus atos ou omissões, quer pela estrita e perfeita obediência aos requisitos formais, quer pela motivação falsa, não correspondente à verdadeira finalidade, embora simulada de interesse público. Por isso, de todos os vícios de ilegalidade, o desvio de finalidade é o inspirador de maior cuidado por vir sempre dissimulado sob forma de legalidade.
Esta finalidade pode ser também de interesse público, que não descaracterizará o desvio, basta que seja diversa, pois de qualquer forma se estará agredindo o princípio da legalidade, fundamental no Direito Administrativo (ARAÚJO, 2005, p. 1129, grifo do autor).
Torna-se, portanto, evidente que o problema envolve aspectos morais os quais influem na eficiência dos serviços policiais. E, nesse sentido, o ensinamento de Dias (2004, p. 75), referindo-se ao princípio da moralidade pública:
Cabe ao administrador público, de acordo com o princípio da moralidade administrativa, agir de forma imparcial, tratando a todos com igual respeito e consideração quando atuar em nome da Administração Pública, seja do ponto de vista da moral pessoal, ou mesmo sob o aspecto da moral crítica.
Além dos deveres dos administradores públicos de prestar contas e de eficiência, parece que o dever de probidade é o mais importante dos deveres. Bem por isso, o policial deve pautar-se pelos princípios da honestidade, moralidade, quer em face dos atos de polícia, quer em face da própria Administração. Do contrário, o policial, como qualquer agente da Administração, estará sujeito às sanções correspondentes, notadamente aqueles que concorram para as condutas de improbidade ou delas se beneficiem.
O controle da Administração, mesmo em se tratando improbidade administrativa, é realizado pela própria administração, denominado controle interno, que obedece ao princípio da autotutela, como pelo Legislativo e pelo Judiciário quando este for provocado pela parte interessada, que pode ser qualquer cidadão.
Não é por outra razão que o ordenamento jurídico oferece ao administrado, ou seja, ao cidadão, diversos meios de proteção do interesse e do patrimônio público. Qualquer pessoa poderá representar à autoridade administrativa ou ao Ministério Público para o fim de providenciar a apuração do fato denunciado. A ação popular, quanto à conduta inquinada de imoralidade, pode ser proposta por qualquer cidadão, titular do direito a uma administração legítima e adequada.
Os estatutos funcionais dos funcionários, incluindo dos policias, também prevêem deveres e obrigações administrativas, relativos ao dever de probidade. [26]
É necessário, para essa tarefa árdua de desmascarar a verdadeira finalidade, que a ausência do interesse público, a preponderância do favoritismo, a perseguição de forma geral, ou o proveito pessoal da autoridade se ressaltarão de tal forma das evidências probatórias, que será possível ao Judiciário firmar a ocorrência de desvio de poder, desde logo, ou, por outro lado, aguardar a esse resultado por meio de indícios ou sintomas que denunciam o ato viciado.
Desta forma, neste capítulo, procurou-se estabelecer uma conceituação da polícia em seu sentido estrito, delimitando a sua concepção em polícia de segurança pública. Estabeleceu-se, também de forma conceitual, a diferença entre as missões das polícias, como órgãos da segurança pública, pelo referencial do direito constitucional e pela doutrina, para que não houvesse nenhuma confusão entre as atribuições de cada uma delas. Assim, apresentou-se conceituação em relação às atribuições das polícias federais e estaduais, quais aquelas que devem exercer a polícia ostensivamente e aquelas que devem primar pela investigação policial.
Estabeleceu-se, ainda, a concepção de ordem pública, independentemente de sua conotação ideológica, que transcende o referencial legal, legítimo e moral do grupo social. A partir daí, havendo interações individuais no espaço público, ou seja, viabilizando a convivência pública, tem-se a segurança pública, que deve ser entendida como atividade meio para a garantia da ordem pública, que na verdade é a paz pública.
Demonstrou-se que a violência tem ocupado espaço no cotidiano. Suas causas são as mais variadas, e não há um consenso nesse mister. Mas, os resultados da violência são perceptíveis a todos. Como o agir, de acordo com os ensinamentos de Arendt, está diretamente relacionado com a palavra, esse campo de discussão vem ganhando espaço em todas as dimensões e a busca das soluções parece ser de consenso: a educação.
Por sua vez, em relação aos responsáveis pela segurança pública, soluções devem ser procuradas para vencer os problemas de violência, de corrupção policial e o desvio de finalidade, um verdadeiro desperdício de recursos que não resultam em melhoria para a busca de excelência na prestação de seus serviços. E, por isso mesmo, há uma certa dose de preconceitos e até mesmo discriminação pelas condutas praticadas por seus integrantes que violam, acima de tudo, a dignidade da pessoa humana, notadamente, o mais fraco e menos favorecido pelas políticas públicas reinantes no território brasileiro.
A solução para esses problemas caminha para a melhoria da educação, principalmente a educação institucional, com severos códigos de ética, certeza da punição daqueles que desviam de seus limites legais e a depuração interna, tudo por meio de um controle, tanto interno, como externo, a exemplo das Corregedorias e Ouvidorias, e do próprio Judiciário.
Neste capítulo, demonstra-se um breve histórico sobre os Direitos Humanos, a partir do século XVII, quando dos meios inquisitoriais desprovidos de um princípio relevante em relação aos direitos humanos: o da inocência. Não se descuidou de um breve histórico dos direitos humanos no Brasil, bem como algumas experiências adotadas pela Polícia Militar paulista, após repercussão internacional de atos de violência no final dos anos 90.
Além disso, destacam-se a relevância do Direito Internacional e seus reflexos no Direito pátrio, notadamente em relação à Emenda Constitucional nº 45/2004 nessa temática sobre os Direitos Humanos, sem se descuidar da posição brasileira diante do Tribunal Penal Internacional.
Por fim, estabelece propostas para a mudança estratégica das polícias diante dos Direitos Humanos, a partir da transversalidade e interdisciplinaridade.
Breves apontamentos sobre direitos humanos
A humanidade inicia sua reviravolta nos costumes desumanos que faziam parte de suas instituições já no século XVII com a obra de Grotius, De jure Belli act Pacis, portadora de elevada tendência humanista. Naquela época, havia o que se chamava Sistema Inquisitório Puro, ou seja, o poder prevalente nas mãos do juiz autoritário, centralizador, responsável pelas iniciativas processuais e sobre a integridade física e a vida do suspeito, sendo a tortura o meio processual para a obtenção da confissão, prova fundamental nesse sistema. A defesa e a busca da verdade material, bem como a própria dignidade do homem, eram abandonadas nesses atos processuais, em face da relevância diante do sigilo que imperava para se conseguir a prova. Ainda aqui, desnecessário lembrar a Inquisição que atuava desde o século XIII com a mesma receita de torturas, prisões e execuções motivadas por opiniões ou atitudes entendidas como contrárias à visão religiosa predominante.
Entretanto, foi a partir da Revolução Francesa, no ano de 1789, com base iluminista dos pensamentos de Voltaire, Rousseau e Monstesquieu, que os valores de respeito aos direitos humanos foram disseminados.
Além da Revolução Francesa, outros acontecimentos históricos marcaram a Idade Moderna e merecem, neste contexto, uma reverência especial, como a Revolução dos Estados Unidos da América, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e as primeiras Constituições dos Estados. Mas, é na Inglaterra que continuaram a surgir importantes documentos em defesa dos direitos humanos, talvez até por conta do poder dos reis locais, afinal: "os direitos do homem surgem e se afirmam como direitos do indivíduo face ao poder do soberano no Estado absolutista" (LAFER, 1988, p.126).
Em 1628, já no século XVII, a Petition of Right previa, dentre outras coisas, que ninguém seria obrigado a contribuir com qualquer dádiva, empréstimo ou benevolência e a pagar qualquer taxa, ou imposto, sem o consentimento de todos, ou seja, sem autorização do Parlamento.
Em 1679, o Habeas Corpus Act ou Lei de Habeas Corpus regulamentou o benefício do preso, em alguns casos, de se responder pelo crime cometido em liberdade, protegendo o direito de liberdade de locomoção.
Em 1689, os Lords espirituais e temporais e os membros da Câmara dos Comuns assinaram e declararam o Bill of Rights ou Declaração de Direitos, limitando ainda mais o poder do rei (autoridade do Estado), tanto que, no primeiro artigo consta que é ilegal a autoridade suspender as leis ou seu cumprimento. Também autoriza os súditos a terem armas para defesa, o direito de liberdade de imprensa, a livre iniciativa econômica, além de outras garantias e regulamentações.
Ainda na Inglaterra, o Act of Seattlement, de 12 de junho de 1701, asseverou que as leis do país representavam os direitos naturais do seu povo e que todos os reis e rainhas deveriam obedecer-lhas, consagrando o princípio da legalidade e o princípio da responsabilização política dos agentes públicos.
Em 1776, as treze colônias inglesas da América do Norte declaram independência e proclamaram a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, redigida por Thomas Jefferson, com o destaque à limitação do poder estatal e a proclamação do direito à liberdade. Posteriormente, em 1791, é adotada a Constituição dos Estados Unidos da América. Tudo começou em 12 de junho de 1776, com a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia que deixava claro que todos os homens eram, por natureza, igualmente livres e independentes e que toda a autoridade pertencia ao povo.
A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de autoria de Thomas Jefferson, foi adotada na Convenção de Filadélfia, em 4 de julho de 1776, e destaca-se por proclamar que os governos eram estabelecidos para assegurar os direitos dos homens, em limitar o poder estatal e por considerar os direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade inalienáveis.
A partir da queda da Bastilha, tem-se a Revolução Francesa, em 14 de julho de 1789 e, no dia 26 de agosto de 1789, a promulgação, pela Assembléia Nacional francesa, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, com 17 (dezessete) artigos.
Interessante observar que, pela primeira vez, contemplou-se uma força pública: "Artigo XII – A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública; esta força é instituída em benefício de todos e não para a conveniência particular daqueles aos quais é confiada" (grifo nosso).
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão referia-se à igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, possibilidade de associação política, princípio da legalidade, princípio da reserva legal e da anterioridade em matéria penal, princípio da presunção de inocência, liberdade religiosa, livre manifestação de pensamento e outros.
Em relação à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, Bobbio (1992, p. 93), afirmou que:
[...] o núcleo doutrinário da Declaração está contido nos três artigos iniciais: o primeiro refere-se à condição natural dos indivíduos que procede a formação da sociedade civil; o segundo, à finalidade da sociedade política, que vem depois (se não cronologicamente, pelo menos axiologicamente) do estado de natureza; o terceiro, ao princípio de legitimidade do poder que cabe à Nação.
Essa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamava a fraternidade, a igualdade e a liberdade como princípios que deveriam guiar todos os homens, em todos os tempos, tanto que ficaram conhecidos no lema da Revolução Francesa (CONCEIÇÃO, 1990, p. 39).
A Constituição Francesa, de 03 de setembro de 1791, apresentou inovações em relação ao controle do poder estatal e ao se analisar as revoluções na América e na França, fazendo com que as opiniões dos homens em relação ao governo mudassem em todos os países. Foi com esse intento que os enormes gastos dos governos levaram o povo a pensar, fazendo-o ter consciência da realidade.
Um importante documento foi a Constituição Francesa, de 24 de junho de 1793. Ressaltou textualmente que "o esquecimento e o desprezo dos direitos naturais do homem são as causas das desgraças do mundo", preocupando-se com os direitos de "igualdade, liberdade, segurança, propriedade, legalidade, livre acesso aos cargos públicos, livre manifestação de pensamento, liberdade de imprensa, presunção de inocência", dentre inúmeros outros (MORAES, 2002, p. 27-28).
Outros importantes documentos contribuíram para a efetivação dos direitos humanos no século XIX, como por exemplo, a Constituição de Cádis (Espanha), de 19 de março de 1812; a Constituição de Portugal, de 23 de setembro de 1822; a Constituição da Bélgica, de 7 de fevereiro de 1831; a Declaração de Direitos da Constituição da França, de 4 de novembro de 1848; e a Encíclica Rerum Novarum, publicada pelo Vaticano em 15 de maio de 1891.
Com as Constituições dos Estados sendo promulgadas, a positivação dos direitos naturais ocorre em instrumentos legais e surgem, em diversos Estados, para a proteção dos direitos humanos.
É ainda mais significativo diante da afirmação de que "quando os direitos do homem eram considerados unicamente como direitos naturais, a única defesa possível contra a sua violação pelo Estado era um direito igualmente natural, o chamado direito de resistência" (BOBBIO, 1992, p. 31).
No século XX merece destaque a Revolução Russa eclodida em 1915; a Revolução Mexicana que deu origem à Constituição do México, promulgada em 5 de fevereiro de 1917; a Declaração de Direitos da População Trabalhadora e Explorada ou Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, de 4 de janeiro de 1918; a Constituição da República Socialista Federativa Soviética da Rússia, de 10 de julho de 1918, também conhecida como a Lei Fundamental Soviética; a Constituição da República de Weimar (Alemanha), de 11 de agosto de 1919; além da Carta do Trabalho (Itália), de 21 de abril de 1927.
Após a Segunda Guerra Mundial, elaborou-se a Carta das Nações Unidas, assinada em 26 de julho de 1945, em São Francisco. Conhecida como a Carta de São Francisco, este importante documento inaugurou uma nova fase no respeito à vida e aos direitos essenciais da pessoa humana, contemporaneamente.
Em outro momento, em Paris, a adoção, pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, da Declaração Universal de Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, constituiu o principal marco no desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos. A Declaração Universal de Direitos Humanos contém um conjunto indissociável e interdependente de direitos individuais e coletivos, civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, sem os quais a dignidade da pessoa humana não se realiza por completo.
Direitos Humanos são os direitos fundamentais da pessoa humana. Pode-se afirmar, portanto, que Direitos Humanos são aqueles direitos inerentes à pessoa humana, visam resguardar a sua integridade física e psicológica perante seus semelhantes e perante o Estado em geral, de forma a limitar os poderes das autoridades, garantindo, assim, o bem estar social através da igualdade, fraternidade e proibição de qualquer espécie de discriminação. No regime democrático, toda pessoa deve ter a sua dignidade respeitada e a sua integridade protegida, independentemente da origem, raça, etnia, gênero, idade, condição econômica e social, orientação ou identidade sexual, credo religioso ou convicção política.
A Declaração Universal de Direitos Humanos tornou-se uma fonte de inspiração para a elaboração de cartas constitucionais e tratados internacionais voltados para a proteção dos Direitos Humanos e um autêntico paradigma ético a partir do qual se pode medir e contestar ou afirmar a legitimidade de regimes e governos. Os direitos ali inscritos constituem hoje um dos mais importantes instrumentos para a civilização, visando a assegurar um convívio social digno, justo e pacífico.
A "universalização" dos direitos humanos foi um considerável avanço em diversas legislações, notadamente na brasileira, a partir da Constituição de 1988, citando como exemplos: o Código de Defesa do Consumidor; o Estatuto da Criança e do Adolescente; os Juizados Especiais Cíveis e Criminais; a Lei contra a discriminação racial, de cor, de religião, étnica ou de origem; o Código do Idoso, além de outras garantias legais contra os abusos do poder, contra a prisão ilegal, a tortura, e tantos outros.
Os direitos humanos são reclamáveis, oponíveis ou opostos na medida em que se dirigem ao Estado para exigir seu cumprimento e a atuação da autoridade pública. Pode-se e deve-se reivindicar a intervenção do Estado para regulamentar as questões ainda não regulamentadas e, principalmente, proteger, apurar e punir as violações de direitos humanos. Vale aqui os ensinamentos de Bobbio (1992, p.128):
[...] foi solenemente aprovada a Declaração Universal dos Direitos do Homem, através da qual todos os homens da Terra, tornando-se idealmente sujeitos de direito internacional, adquiriram uma nova cidadania, a cidadania mundial, e, enquanto tais, tornaram-se potencialmente titulares do direito de exigir o respeito aos direitos fundamentais contra o próprio Estado.
Comparato (2003, p. 66), traz a idéia da "irreversibilidade" dos direitos humanos, pois esses direitos "ao serem declarados" ou institucionalizados pelo Estado "não podem ser revogados, ou seja, não pode uma lei ou convenção internacional suprimir os direitos fundamentais em vigor".
Direitos Humanos no Brasil e a relação com o Direito Internacional dos Direitos Humanos
A Constituição Federal brasileira, em seu artigo 4º, inciso II, fixou os direitos humanos como um dos princípios regentes das relações internacionais do Brasil. Reconhece-se o status constitucional dos direitos e garantias contidos nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, que não tenham sido incluídos no artigo 5º da Constituição.
O Brasil é, portanto, signatário dos mais importantes tratados internacionais de direitos humanos, tanto na esfera da Organização das Nações Unidas (ONU), como da Organização dos Estados Americanos (OEA), entre os quais o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; a Convenção Contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes; e a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos. O País não tem reservas a qualquer desses instrumentos jurídicos.
O Brasil participou da Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993, onde presidiu o comitê de redação da Declaração e do Programa de Ação, adotada consensualmente pela conferência em 25 de junho de 1993.
No dia 13 de maio de 1996, o Brasil lançou o Programa Nacional de Direitos Humanos, elaborado pelo Ministério da Justiça em conjunto com diversas organizações da sociedade civil. O Brasil é o primeiro país a por em prática a recomendação da Declaração e Programa de Ação de Viena.
O objetivo do Programa Nacional de Direitos Humanos é identificar os principais obstáculos à promoção e proteção dos direitos humanos no Brasil, eleger prioridades e apresentar propostas concretas de caráter administrativo, legislativo e político-cultural que busquem equacionar os mais graves problemas que hoje impossibilitam ou dificultam sua plena realização.
O Programa contempla iniciativas que fortalecem a atuação das organizações da sociedade civil para a criação e consolidação de uma cultura de direitos humanos e procura abrir uma nova dinâmica na promoção dos direitos humanos no Brasil. Governo e sociedade civil respeitam a mesma gramática de proteção de direitos e articulam esforços comuns. Demonstra ser um marco referencial para as ações governamentais e para a construção, por toda a sociedade, da convivência sem violência que a democracia exige.
Em relação à política atual sobre a segurança pública brasileira, o Ministro Nilmário Miranda, Secretário Geral dos Direitos Humanos da Presidência da República, fez um pronunciamento, no dia 15 de março de 2005, em Genebra, durante a 6ª Sessão da Comissão de Direitos Humanos, justificando as políticas públicas em relação às forças policiais (grifo nosso):
O Governo brasileiro está empenhado em aprimorar o respeito aos direitos humanos na atuação das forças policiais brasileiras. Com esse objetivo, está em fase de implantação o Programa de Capacitação das Forças Policiais para aperfeiçoar a capacidade de investigação e reduzir a letalidade. Há programas para estimular o controle externo sobre a violência policial com a disseminação das Ouvidorias pelo país e o fortalecimento das já existentes. Há Ouvidorias instaladas em 13 estados da Federação, sendo que a meta é alcançar todos os 27 estados.
Percebe-se, contemporaneamente, o esforço do governo brasileiro em prestar contas ao Comissariado de Direitos Humanos acerca das políticas em relação às polícias brasileiras, em cujo conteúdo não há novidade nenhuma. Por conta dos bons resultados de programas desenvolvidos em nível estadual, agora estão servindo de referências para as políticas públicas.
Vale ressaltar que a Carta de 1988 incluiu, dentre os direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais de que o Brasil fosse signatário: "Art. 5o [...] § 2o. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".
Esse processo de inclusão implicou a incorporação desses direitos pelo texto constitucional.
Ao efetuar tal incorporação, a Carta atribuiu aos direitos internacionais uma natureza especial e diferenciada, ou seja, a natureza de norma constitucional.
Verifica-se na Constituição de 1988 inúmeros dispositivos que reproduzem fielmente enunciados constantes dos tratados internacionais de Direitos Humanos. Isto pode ser exemplificado referenciando-se o disposto no art. 5º, inciso III, da Constituição de 1988, que, ao prever que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento cruel, desumano ou degradante", reproduz literalmente o art. V da Declaração Universal de 1948, o art. 7º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e, ainda, o art. 5º, (2), da Convenção Americana. Também o princípio de que "todos são iguais perante a lei", consagrado no art. 5º, "caput", da Carta brasileira, reflete cláusula internacional no mesmo sentido, de acordo com art. VII da Declaração Universal, art. 26 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e art. 24 da Convenção Americana.
Outro impacto jurídico decorre da incorporação do Direito Internacional dos Direitos Humanos pelo Direito interno, resultando na ampliação do universo de direitos nacionais garantidos. Afinal, os tratados internacionais de Direitos Humanos inovam, integram, completam e reforçam o elenco de direitos previstos constitucionalmente.
A Emenda Constitucional n° 45/04 prevê a incorporação com o status constitucional, na hipótese do parágrafo 3°, do artigo 5°, da Constituição Federal, dos tratados e convenções internacionais que versem sobre Direitos Humanos. No entanto, a observação de Moraes:
[...] a EC nº 45/04 estabeleceu que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais (MORAES, 2006, p. 628).
Verifica-se que para tal status constitucional, ou seja, à equivalência às emendas constitucionais dos tratados e convenções internacionais que versem sobre Direitos Humanos, há obediência ao mesmo processo legislativo especial das emendas à Constituição.
Por fim, conclui-se que os tratados internacionais de Direitos Humanos inovam significativamente o universo dos direitos nacionalmente consagrados ( ora reforçando sua imperatividade jurídica, ora adicionando novos direitos, ora suspendendo preceitos menos favoráveis à proteção dos Direitos Humanos.
O Tribunal Penal Internacional e seus aspectos relevantes no direito pátrio
A criação de um Tribunal Penal Internacional (TPI) é uma aspiração antiga:
Alguns acordos e tratados internacionais feitos para punir a violação de Direitos Humanos por governantes discricionários são tão velhos quanto o General Pinochet. Outros são muito recentes, como o que criou o Tribunal Penal Internacional, há dois anos. Existiam, mas não produziam efeito prático, porque, sendo o sistema internacional uma reunião anárquica de Estados soberanos e não havendo uma polícia internacional, o direito internacional tende a ser uma ficção.
Na última década, porém, a questão dos Direitos Humanos assumiu importância inédita na história da humanidade. Criou-se um movimento de opinião de âmbito universal capaz de condenar moralmente o indivíduo, o grupo, o governo, o país que viole tais direitos. Há 17 meses, esse movimento ganhou nova consistência quando um juiz espanhol expediu um mandado de prisão internacional contra o General Pinochet e a polícia britânica deteve o ex-ditador (PEREIRA, 2000).
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