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Quanto à ajuda de custo na compra de materiais e ao financiamento de valor em dinheiro mediante intenção de construção denotam as mais primitivas tendências enraizadas na cultura habitacional brasileira. Estas modalidades favorecem diretamente o fenômeno da autoconstrução, ainda responsável por 80% da produção anual de unidades. Como já citado, autoconstrução é sinônimo de obra sem apoio técnico e de baixa qualidade. Neste contexto, denota-se que o próprio Estado acaba por favorecer a ocupação irregular e, mais uma vez, financiar uma cadeia danosa à economia formal.
É um equívoco dar material de construção num país onde grande parte da população está em condição de ilegalidade fundiária. A Caixa Econômica Federal diz que consegue administrar esse tipo de situação. Eu tenho dúvidas quanto a isto. (MARICATO, Ermínia)
Como comentado anteriormente, as iniciativas de regularizar a posse de assentamentos irregulares são previsões constitucionais. Os núcleos e vilas irregulares são os espaços urbanos habitados por indivíduos que não possuem a posse legal do terreno, e, em decorrência, não têm quaisquer garantia da permanência no local ocupado. Irregularidade esta é considerada apenas no aspecto da propriedade legal. Importante salientar que os conglomerados irregulares concentram tanto a maior parte das famílias atingidas pelo déficit habitacional como as classificadas na inadequação.
Baseando-se em levantamentos do Instituto de Políticas Sociais (Polis) e Universidade Ibirapuera de São Paulo (Unib) sobre os casos de conflitos urbanos existentes na cidade de São Paulo, foi possível identificar os seguintes tipos relacionados com a inadequação fundiária:
As áreas inadequadas geralmente são sumariamente ignoradas pelas ações urbanizadoras do poder público. Essa realidade tem gerado o agravamento do quadro de degradação ambiental e das desigualdades sociais e territoriais nas cidades brasileiras, devido à existência de duas cidades num mesmo território: a cidade legal, onde vivem os incluídos, e a cidade informal န a realidade ignorada, onde vive a maioria da população na condição de excluídos e marginalizados.
Às prefeituras, exclusivamente, é reservada a obrigação de promover a legalização de habitações com irregularidades fundiárias. Todas as administrações de grandes cidades brasileiras denotam algum nível de atenção para este problema, seja com secretarias exclusivas ou na instituição de programas e leis orgânicas municipais.
Neste contexto, a principal ferramenta jurídica e conjuntural é a aplicação do direito constitucional de usucapião urbano. Este cumpre simultaneamente duas finalidades diante da realidade de milhões de famílias brasileiras que vivem nas favelas, cortiços, conjuntos habitacionais invadidos e loteamentos irregulares na chamada cidade clandestina. A primeira, como um instrumento de regularização fundiária para assegurar o direito à moradia desses segmentos sociais. A segunda finalidade é garantir o cumprimento da função patrimonial da propriedade através da promoção de uma política de regularização fundiária. Ou seja, a aplicação de usucapião atua tanto no atendimento a um direito social como na promoção do patrimônio real de famílias pobres န garantindo justiça social e distribuição de renda, objetivos primários da atuação do Estado.
Obviamente, não se deve confundir o incentivo às políticas de adequação fundiária com a conivência do Estado com invasões de patrimônio público ou privado. Para a preservação da legalidade no espaço urbano, representada pela manutenção do estado de Direito, não devem ser poupados esforços jurídicos e policiais. Ações de despejo e reintegração de posse emitidas pela Justiça merecem toda a atenção das autoridades executivas.
Quando corretamente aplicado, o direito de usucapião urbano favorece melhoria real de vida das famílias. O benefício da propriedade garante patrimônio e a certeza, para o novo proprietário, que as melhorias realizadas em sua residência não serão fundo perdido, mediante eventual ação de despejo.
Não somente para as famílias beneficiadas, a atuação do poder público na garantia destes direitos confere proveito para todo o conjunto da sociedade. O correto loteamento e a aplicação de conceitos urbanísticos em áreas subnormais devolvem grandes áreas à cidade oficial, à administração pública e, o que é mais caro ao desenvolvimento, ao mercado imobiliário formal.
Ainda no século XIX, Friedrich Engels, famoso filósofo político alemão, escreveu em seu livro "A Questão da Habitação" (1873) que a solução para a problemática habitacional das classes proletárias poderia residir na adoção de três modelos: a autoconstrução, a produção pelo Estado ou a produção pelo capitalismo. Embora hoje pareça uma trivialidade, isto denota o quão antiga é a discussão de modelos de fomentação de moradias.
Naturalmente, com o passar do século passado os efeitos nefastos da autoconstrução se observaram na urbanização das nações, em especial as subdesenvolvidas. As seqüelas e inadequações típicas deste modelo construtivo são caras a todas as cidades brasileiras, e demonizam qualquer tentativa de adoção desta primeira opção listada por Engels como política habitacional viável.
Quanto à produção pelo Estado, o longo histórico de ações ineficazes na seara habitacional, por parte das administrações estatais, denota a fragilidade do modelo comum a todas as políticas adotadas. Como visto, o conceito do Estado construtor sofre todo tipo de constrangimento quando do levantamento de seus resultados.
Seja no proporcionalmente baixo contingente de habitações providas (IAPs, FCP, COHABs), seja no desvirtuamento da função social dessas práticas (BNH, SFH), a análise histórica mostra um Estado inócuo frente o desafio do déficit de moradias.
Quando construtora, a administração pública apresentou resultados pífios. A verdade é que o caráter pontual que rege a construção de conjuntos habitacionais do governo compromete este tipo de política: enquanto o Governo, como agente construtor, é só um, a carência de domicílios é monstruosa. Diferentemente de outros focos dos governos, como a saúde, um conjunto habitacional não resolve as carências de moradias de uma região inteira န como o faria um Hospital, nos termos da saúde pública.
Por outro lado, visto que o número do déficit habitacional mantém sua ascendente há varias décadas, valem as questões: até quando o governo terá de empreender novas construções? Quantos empreendimentos deverão ser construídos? E a principal: como se obterão as vultuosas verbas necessárias, considerando o ainda patente subdesenvolvimento brasileiro?
As respostas destas perguntas se confundem em única conclusão: o Estado, por esforço centralizado de empreendedor, nunca irá solucionar a problemática da falta de moradias no Brasil.
Quando agente financiador, definitivamente a administração pública tem melhores números a mostrar. O volume de residências financiadas no período de atuação do Banco Nacional de Habitação, embora descaracterizadas como política social, é vistoso até para os padrões populacionais de hoje.
Mesmo hoje nós ainda não atingimos o volume concedido naquela época. Foram mais de 500 mil moradias financiadas pelo SFH em 1980, 1981. (CHAP, Romeu)
À parte dos problemas conjunturais que derrocaram na extinção do BNH, o financiamento habitacional público mostrou boa liquidez tanto na operação deste banco como no funcionamento de seu sucessor nesta área, a CEF. Como problema considerável, entretanto, paira a burocracia e as condições de participação incompatíveis com a população de baixíssima renda, a mais necessitada de políticas públicas.
Com a falência declarada de dois dos três modelos previstos por Engels, resta ao último, a produção pelo capitalismo, uma análise estendida de seus potenciais. Por produção capitalista entende-se a participação do mercado imobiliário formal na construção de habitações populares.
Na defesa da participação do mercado imobiliário na solução de uma temática social, como é o déficit habitacional, torna-se inevitável a analogia com o histórico da participação privada em outros setores outrora estatizados. Em comum, posiciona-se que grande parte destes domínios eram antes tidos como incompatíveis com modelos capitalistas de gestão.
Diversos são os motivos que podem levar o Estado a sair da atividade econômica produtiva, desde as considerações de natureza fiscal, até a simples demanda pelos recursos que podem ser obtidos com a venda ativos. Esses motivos passam também por questões de caráter puramente ideológico, opondo a idéia de um "Estado grande e justo" contra uma melhor embasada crença de que o setor privado é mais produtivo e eficiente que o governo na produção de bens e prestação de serviços.
A necessidade de se privatizar as empresas estatais é baseada no desapontamento com o desempenho real dessas empresas, sugerindo que a atratividade dos incentivos financeiros e a disciplina do mercado de capitais trazem maior eficiência. (MEGGINSON, 1994)
As privatizações de empresas estatais se fizeram presentes em todo o território nacional, sobretudo no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, quando várias empresas estatais regionais ou das unidades federativas tornaram-se de capitais particulares. Isso, à época, acabou por resultar em muita polêmica e discussões em determinadas classes intelectuais da sociedade brasileira.
À parte de discussões ideológicas que levantem as privatizações como tradução irrevogável de um "enfraquecimento total do Estado", o movimento de desestatização da economia brasileira mostra-se como uma das principais transformações estruturais do país nas duas últimas décadas. O abandono da visão de um Estado centralizador, como prioritário agente econômico, inseriu o Brasil no onipresente cenário neoliberal internacional fomentado no século XX. O país, assim, assumiu de forma definitiva os ônus e bônus associados a uma economia de mercado.
A partir de análises comparativas dos períodos pré e pós-privatista, conclui-se que os benefícios da desestatização, para a sociedade brasileira, foram imensamente superiores aos problemas incorridos. A transferência dos setores para matrizes com maior capacidade e dinamicidade de investimentos, aliada ao impacto de gestões corporativas livres de amarras legais e administrativas típicas do Estado, explica boa parte desse êxito. A outra parte pode ser atribuída ao alívio de influências políticas e corrupção sobre as empresas, tão comuns em negócios estatais.
A escassez de recursos e a má administração das empresas públicas, em decorrência da utilização de técnicas gerenciais ultrapassadas ou desconexas e de administrações de cunho político, impõem-lhes um ritmo de gestão pouco eficiente e com baixo nível de produtividade. (MATOS FILHO, 1996)
Desta forma, em ordem de prever o potencial da iniciativa privada como política pública oficializada para o provimento de habitações, faz-se justa a comparação com modelos já aplicados de desestatização de serviços públicos. Apesar de existir no Brasil um histórico impressionante de sucesso empresarial em companhias desestatizadas, traduzido em fomento de lucros e valor de mercado das mesmas, mais interessa para a questão habitacional a análise de casos que tenham correlação com temáticas sociais န como universalização e melhoria de serviços prestados à população, sobretudo aos estratos sociais mais baixos. Nesse contexto, as inserções do setor privado em setores como telecomunicações e saneamento urbano são modelos emblemáticos no país.
Segundo NOVAES, a telecomunicação brasileira, operada na década passada pela estatal Telebrás, representava o maior sistema telefônico da América Latina. Dividido em 26 subsidiárias operadoras, o sistema Telebrás controlava 95% das linhas telefônicas do Brasil.
Apesar de uma gigantesca estrutura, a distribuição social da malha era extremamente desigual. Mais de 80% dos terminais residenciais concentravam-se em 16% da população mais rica, restando aos estratos mais baixos de renda a disposição de telefones públicos em número insuficiente e muito mal distribuídos geograficamente. O atendimento às áreas rurais também não era adequado, com apenas pouco mais de 2% das propriedades rurais dispondo de telefone.
Em 1997, o sistema Telebrás foi desmembrado em lotes setoriais e regionais, e privatizado por pregão público. Metas de universalização dos serviços de telecomunicação, definidas em contrato, garantiram um alto nível de investimentos por parte dos consórcios compradores. Estes investimentos logo se traduziram em profundas mudanças no cenário das telecomunicações no Brasil, apoiando inexoravelmente seu crescimento sobre o mercado de renda mais baixa (Gráfico 9).
Gráfico 9 - Evolução das telecomunicações no Brasil após a desestatização - R$ bilhões investidos x milhões de telefones (1995-2007)
Fonte: Telebrasil (2008)
Pela análise do gráfico, observa-se que, em determinado período, os investimentos gerados pela administração privada chegaram a quintuplicar os valores investidos em 1995 pelo Estado; ao passo que o número de linhas instaladas cresceu mais de 40 vezes desde a desestatização da telefonia em 1997.
Foi a privatização da Telebrás que levou o telefone às camadas mais pobres da população, dando aos marceneiros, encanadores, mecânicos, costureiras, cozinheiras e outros profissionais um imprescindível instrumento de trabalho. (GUANDALANI, Giuliano. Revista Veja, Edição 1978, Outubro de 2006)
O arranjo institucional do setor de saneamento no Brasil ainda apresenta parcela significativa das características ditadas pelo Plano Nacional de Saneamento (Planasa), de 1971, quando toda a provisão de serviços de água e esgoto foi colocada nas mãos do setor público.
Apesar de o Planasa ter possibilitado um grande aumento no acesso à água tratada (principalmente durante a década de 1970), ao início da década de 1990 já existiam evidências que as restrições orçamentárias do Estado brasileiro impossibilitariam que o setor de saneamento básico pudesse continuar a se desenvolver sem a presença do capital privado (Parlatore, 2000).
Contudo, o Brasil apresentou um processo extremamente tímido de privatização dos serviços de saneamento básico. Segundo a Associação Brasileira de Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Saneamento Básico (ABCON), apenas 63 dos mais de cinco mil municípios brasileiros apresentavam alguma concessão ou permissão privada em operação em 2004. Sobre isto, Parlatore (2000) aponta que, em 1998, apenas 2% da população brasileira era atendida por serviços privatizados de saneamento básico (Parlatore, 2000).
A pequena presença do setor privado no saneamento básico brasileiro tem como principal causa a indefinição do marco regulatório do setor, que faz com que a concessão privada de saneamento básico constitua "uma verdadeira aventura" (Mello, 2001). Mesmo assim, a análise das participações da iniciativa privada possibilitadas por alguns estados e prefeituras retorna uma impressão otimista sobre a ampliação do modelo ao nível nacional.
Mediados pela instituição de metas, os contratos de concessão de serviço público forçam as empresas a investirem patamares mínimos de recursos, e a atingirem desempenhos reais e visíveis, no que toca o atendimento à população. Essas premissas contratuais regem o benefício retornado pelas companhias aos anseios da sociedade. No caso do saneamento, são comuns metas crescentes de universalização da coleta de esgoto ou da canalização de água, medidas em porcentagem do montante atendido sobre a população total. O acompanhamento destes indicadores faz parte do contrato de concessão, e o histórico das experiências no Brasil dá voz ao êxito destas empreitadas, com pontuais exceções.
A eficácia ou alcance social dos serviços melhorou com a concessão à iniciativa privada, pois as redes de água e esgotos foram estendidas não apenas aos bairros de classe média da região, mas também às periferias pobres.
Com relação à dimensão econômico-financeira, podemos dizer que, nos casos analisados, a "privatização" revelou-se uma alternativa para alavancar investimentos na expansão e/ou melhoria dos serviços. [...] Nenhuma das concessões examinadas resultou, até o momento, em aumentos reais de tarifas significativamente acima da inflação. (VARGAS, 2004)
Em análise criteriosa, o economista Thomas Fujiwara expôs o impacto que a desestatização do saneamento básico gera em uma importante estatística social: a mortalidade infantil. Baseado em estudos internacionais nesta mesma seara, Fujiwara adaptou a metodologia aos casos brasileiros e obteve um resultado expressivo a favor da desestatização, o que estende os benefícios deste modelo a questões qualitativas, e não meramente quantitativas. Isto partindo da aproximação cabal entre a melhoria das condições de esgotamento sanitário, bem como das condições de tratamento da água canalizada, e a saúde da população.
A privatização dos serviços de água e esgoto teve um efeito médio significativo, da ordem de 12%, na redução da mortalidade infantil nos municípios dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. O fato de a privatização estar associada apenas com a redução da mortalidade causada por doenças infecciosas ou parasitárias indica que o efeito médio estimado de fato muito provavelmente identifica uma relação causal entre desestatização e mortalidade. (FUJIWARA, 2007)
O setor imobiliário é extremamente suscetível às situações da ordem econômica vigente em um país. Caracterizado por diversas incertezas que envolvem desde a disponibilidade de crédito até as imprevisibilidades do mercado de construção civil, o setor ainda depende do humor do poder público, representado pela regulação e legislação que permeiam qualquer contrato imobiliário.
No que tange a ordem econômica, sobressaem-se os conceitos de inflação e taxas de juros. A primeira afeta diretamente o poder de compra do mutuário, e é crítica dado o longo período necessário para amortização de grandes dívidas comumente contraídas na compra de uma habitação. Este tempo é igualmente importante para contabilizar o impacto das taxas de juros, já que estes encarecem os financiamentos e podem inviabilizar negócios.
As características citadas ajudam a explicar a relativa míngua que o mercado imobiliário brasileiro sofreu da segunda metade dos anos 1980 até o fim da década de 1990. Combalido por sucessivas crises econômicas, o país experimentou inflações avassaladoras até a criação do Plano Real, em 1994. Acompanhando o tratamento da inflação foram fixadas altíssimas taxas de juros. Mesmo com a estabilização da economia promovida pelo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, seqüelas trazidas por turbulências internacionais marcaram o final do século XX e os primeiros anos do século XXI, o que continuou emperrando uma maior oferta de crédito imobiliário.
A partir de 2003, com o início da expansão da economia fundamentada no crescimento do consumo interno e num ambiente internacional favorável, puxado pelo crescimento acelerado dos países asiáticos, iniciou-se um processo de queda das taxas de juros. Este processo, aliado à já estabilizada inflação, abriu um caminho de retomada de negócios para o até então combalido setor imobiliário.
A este panorama foi somada, em 2004, uma grande pressão dos agentes envolvidos na construção e venda de habitações pela implementação de marcos regulatórios relacionados aos seus negócios. Esta pressão resultou principalmente na regulamentação da Lei Federal 10.931, de agosto de 2004. A lei aperfeiçoou o instrumento de patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias, bem como outros artifícios jurídicos que passaram a oferecer maior segurança aos ofertantes e demandantes de crédito habitacional.
Dados relativos ao mercado de imóveis da cidade de São Paulo traduzem a influência das mudanças conjunturais na venda de habitações (Gráfico 10).
Gráfico 10 - Histórico de imóveis vendidos na cidade de São Paulo (1990-2007)
Fonte: Departamento de Economia do Secovi-SP
Com as condições necessárias satisfeitas, tornou-se cada vez mais relevante o crescimento da oferta de crédito para habitações. Alimentada não somente pela conjuntura criada, a oferta de crédito passou a ser impulsionada pelo aumento da renda média dos brasileiros, que se viram mais confortados a tomar e pagar financiamentos. Em outra vertente, o crescente excedente de renda da população passou a ser direcionado para instrumentos de poupança e rendimentos, o que passou a capitalizar os agentes financeiros na oferta de crédito (ABECIP).
O movimento de aquecimento do mercado imobiliário, unido às adequações das normas de crédito vistas em 2004, possibilitou que uma variedade de instituições financeiras န antes ausentes nesse mercado န passassem a ter condições de se envolver. A diminuição dos riscos envolvidos nas operações envolvendo imóveis atiçou o apetite dos bancos privados, que vislumbraram nesse nicho uma oportunidade de fomentar ganhos para suas tesourarias. Este interesse se deu, sobretudo, mediante a progressiva queda da rentabilidade das operações financeiras tradicionais por conta da queda dos juros (CHIARA, 2006).
As novas normas são inovações que buscam articular o setor imobiliário com o mercado financeiro, estabelecendo um processo de intermediação bancária para o financiamento da produção, ao mesmo tempo em que oferecem possibilidades de ganhos financeiros aos investidores.
[...] O mecanismo da securitização das operações amplia as possibilidades de captação de recursos e acesso a financiamento aos originadores desses créditos (as empresas que produzem os ativos a serem securitizados, como as incorporadoras, construtoras etc.), dando acesso direto ao mercado de capitais, reduzindo, teoricamente, os custos e riscos da captação. (BOTELHO, 2005)
Antes majoritariamente restrito às modalidades governamentais, o crédito habitacional encontrou na oferta privada espaço para crescer. A posição de dominação das atividades financeiras em habitações, protagonizada pela CEF, passou a ser ameaçada pela participação dos bancos privados dentro do próprio âmbito do SBPE. A CEF viu sua participação de 95% dos empréstimos habitacionais cair em pouco mais de três anos para 63% (SECOVI-SP). O acirramento da disputa entre os bancos passou a gerar um crescente volume de recursos, com condições de financiamento န notadamente prazos e porcentuais န cada vez mais facilitadas.
Dessa forma, os recursos do SBPE apresentaram uma ascendente impressionante a partir de 2004, chegando a ultrapassar e em muito se distanciar dos resgates de FGTS em 2007 (Gráfico 11). Dados do Banco Central para os primeiros meses de 2008 apontam pela continuação e extrapolação dessa tendência.
Gráfico 11 - Volume de crédito habitacional recente: FGTS x SBPE (1996-2007)
Fonte: Banco Central do Brasil, Caixa Econômica Federal
A participação ascendente dos bancos no mercado de crédito imobiliário, induzida pelo crescimento da oferta de crédito, é comprovada e refletida na análise de dados relativos à natureza das vendas de imóveis. Há algum período realizando acompanhamentos periódicos sobre o mercado do Rio de Janeiro, a Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário da cidade (ADEMI-RJ) oferece indícios claros sobre a entrada dos bancos (Gráfico 12).
Fonte: ADEMI-RJ
Aliado aos recordistas recursos do SFH consta ainda um volume tímido, mas crescente, de fundos próprios dos agentes financeiros no provimento de empréstimos imobiliários. Segundo a ABECIP, o panorama total resulta hoje em uma relação estimada de 3,5% do crédito imobiliário frente ao PIB brasileiro, em contraste com os 2% de 2004. Como já citado, o terreno de crescimento ainda é enorme.
Com a alavancada do crédito imobiliário disponível, observa-se na atividade da construção civil um incremento em proporção igualmente alta. Com tamanha demanda, baseada na expansão do mercado, as maiores construtoras do país se viram diante da real oportunidade de crescimento dos seus negócios.
Com a finalidade de expansão logística rápida unida à urgente necessidade de incremento na oferta de unidades construídas, as grandes empresas de construção do Brasil apressaram projetos e garantiram o aporte de recursos das mais diversas formas. A mais destacada foi representada pelo fluxo de companhias do setor abrindo capital na Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA) a partir de 2005. Segundo a BOVESPA, desde este ano mais de 20 construtoras ou incorporadoras realizaram operações de abertura de capital na bolsa, captando recursos da ordem de 12 bilhões de reais. Estima-se que 70% desse montante seja oriundo de investidores estrangeiros.
Naturalmente constituindo um setor fragmentado no Brasil, a construção civil começou a enfrentar uma fase de consolidação. Um movimento de fusões, aquisições e parcerias de empresas do ramo foi delineado, baseado, principalmente, na expansão territorial das atividades daquelas que foram capitalizadas. Analistas presumem que a próxima etapa será a própria bolsa de valores tornar-se palco destas fusões, já que, julgam, o número de construtoras presentes na bolsa é incompatível com o atual tamanho do mercado.
O aumento do mercado de crédito imobiliário possibilitou a ampliação da base de clientes potenciais para um patamar nunca antes visto no Brasil. Nota-se pelo Gráfico 11 uma mudança real na natureza das compras de imóveis. Se antes mais de 80% dos imóveis novos de uma cidade como o Rio de Janeiro eram adquiridos por financiamentos das construtoras ou mediante pagamento à vista, modalidades características de uma clientela abastada, em menos de dois anos pôde ser vista uma radical transformação deste panorama.
Essa nova realidade apresenta duas facetas: uma é representada pela diminuição da participação das construtoras em questões financeiras, que passaram a ser mais freqüentemente geridas por instituições bancárias. A outra, mais sinuosa e interessante, trata da efetiva entrada de novos elementos na clientela imobiliária. Com condições de financiamento mais facilitadas, há evidência de que os estratos de renda mais baixos, sobretudo a classe média, foram naturalmente beneficiados por esta transformação.
As empresas do setor abriram seus capitais, gerando a necessidade de expandir suas atuações, tanto regionais quanto na tipologia de seus produtos. Passando a atender a uma demanda reprimida durante vários anos, a classes C e D. Isto tudo fez o mercado em São Paulo, o maior do país, duplicar de tamanho em menos de dois anos e o mercado brasileiro, como um todo, assistir a um forte aumento de produção de unidades residenciais. (MACHADO, 2008)
A grande ressalva que reside na transformação do mercado de crédito são as classes beneficiadas. No que tange o seu aumento, a oferta democratizou o acesso aos financiamentos, mas não no nível que se espera a título de déficit habitacional. O crescimento dos financiamentos por SBPE evidenciam a maior utilização dos recursos da poupança na seara habitacional, e quanto a isso cabe a reflexão: a população afetada pelo déficit de moradias tem a cultura e, principalmente, a capacidade de manter uma carteira de poupança?
O levantamento do perfil dos financiamentos por SBPE evidenciam que os recursos desta modalidade são massivamente utilizados para a compra de residências de valor incompatível com a baixa renda. Enquanto pelo Gráfico 10 se vê que os valores envolvidos pelo SBPE representam mais do que o dobro dos utilizados pelo FGTS para habitações, o número de moradias financiadas toma proporção inversa (Gráfico 13).
Na comparação entre os gráficos de unidades financiadas (Gráfico 13) e volume de recursos alocados (Gráfico 11), denota-se sobre 2007 que, enquanto o FGTS despendeu aproximadamente sete bilhões de reais em trezentas mil habitações, o SBPE financiou algo próximo de dezoito bilhões para atender cerca de duzentas mil moradias. No cálculo do valor médio de cada unidade financiada no ano de 2007, chega-se em valores próximos de 23 mil reais para o FGTS e 90 mil reais para o SBPE.
Gráfico 13 - Volume recente de habitações financiadas: FGTS x SBPE (1995-2007)
Fonte: Banco Central, ABECIP
Esta constatação comprova a ainda grande dificuldade do mercado de crédito atingir a real baixa renda. Enquanto o SBPE vem crescendo continuamente desde 2003, os valores financiados dão luz a um panorama animador para o mercado imobiliário, que é o estímulo da entrada definitiva da classe média na clientela das grandes incorporadoras. Por outro lado, vê-se que a distância dessa modalidade para a baixa renda ainda é considerável. Não obstante, da análise temporal dos valores médios financiados (Tabela 8) retorna o dado de que o crescimento do SBPE está se fundamentando na inserção do crédito bancário no setor imobiliário como um todo, e não somente para imóveis de valores mais baixos.
Tabela 8 - Evolução do valor médio financiado de habitações pelo sistema SBPE (2002-2007)
Período |
Valor médio financiado |
2002 2003 2004 2005 2006 2007 |
R$ 61 mil R$ 61 mil R$ 56 mil R$ 79 mil R$ 82 mil R$ 90 mil |
Fonte: ABECIP
Os notáveis crescimentos de unidades financiadas pelo FGTS em 2000 e em 2004 se devem à edição de ajustes, nestes períodos, que flexibilizaram a utilização do mesmo, como ampliação do limite de renda para uso habitacional e diminuição de taxas de financiamento (CEF). Dessa forma, o Fundo ainda prossegue como o principal instrumento de concretização do "sonho da casa própria" para a maior parte da população carente de moradias, que é a população cuja renda familiar não ultrapassa cinco salários mínimos.
Ao falar do mercado de baixa renda, deve-se procurar a definição sobre que tipo de imóvel está relacionado a esse estrato de renda. Na inserção destes grupos na condição de tomadores de crédito, única forma de possibilitar a aquisição de bens de elevado valor agregado, entra em cena o conceito de comprometimento da renda familiar, que representa o montante máximo mensal que as famílias de baixa renda podem despender com assuntos de ordem habitacional.
A distribuição do orçamento familiar entre despesas totais e despesas com habitação da população de baixa renda no Brasil, segundo o IBGE, na pesquisa de orçamentos familiares de 2003, tem a seguinte composição:
Itens do Orçamento |
Até 2 SM |
De 2 a 3 SM |
De 3 a 5 SM |
Habitação Despesas Gerais do Lar Alimentação Vestuário Transporte Higiene e Cuidados Pessoais Assistência e Saúde Educação, Recreação e Cultura Serviços Pessoais Aumento de Ativos Diminuição de Passivos Despesas Diversas |
19,70% 19,88% 32,68% 5,29% 6,49% 2,40% 4,08% 1,61% 0,64% 1,69% 0,39% 5,15% |
20,25% 19,06% 29,76% 5,70% 6,71% 2,37% 4,66% 2,10% 0,68% 1,91% 0,33% 6,45% |
20,98% 18,27% 25,44% 5,80% 8,00% 2,35% 4,95% 2,67% 0,78% 2,96% 0,43% 7,37% |
Fonte: IBGE, Pesquisa de Orçamentos Familiares (2002/2003)
Representando uma dos três maiores pesos no orçamento das famílias de baixa renda, os gastos com Habitação န que engloba despesas com aluguel, aquisição e reforma de habitações န têm participação regular próxima de 20%. Na lógica da política habitacional, este valor é relevante para o cálculo do poder de compra imobiliário destas famílias. Inserido em qualquer regulamentação de tomada de crédito para financiamento, o conceito de limite de comprometimento de renda é geralmente calculado por 20% a 25% da renda familiar do mutuário.
Em estudo de 2007, o engenheiro civil Fábio Medeiros estipulou em R$ 25.260,00 o preço de referência para uma habitação popular inserida no mercado formal de produção (HPR). Utilizando o valor do salário mínimo vigente à época, então R$ 350,00, e um prazo de amortização do financiamento entre 6 e 20 anos, Medeiros executou simulação financeira para encontrar os máximos juros suportados por cada classe de renda, considerando comprometimento mensal máximo de 20% (Figura 2).
Para as famílias com renda mensal de 1 SM, a parcela de qualquer financiamento habitacional, mesmo sem juros, implicaria em um comprometimento de renda acima de 20% do orçamento familiar para a aquisição da HPR. As faixas de renda de 2 SM, 3 SM e 4 SM conseguiriam adquirir a HPR com taxas de juros máximas, para amortização em 20 anos, de até 3% a.a., 8,2% a.a. e 12,8% a.a., respectivamente, que teriam de ser subsidiadas, pois estão abaixo dos juros de mercado, considerado aqui como 13% a.a.. Somente as famílias com renda mensal de 5SM conseguiriam adquirir a HPR a juros de mercado, para amortização a partir de 14 anos. (MEDEIROS, 2007)
Após dois aumentos do valor do salário mínimo, hoje em R$ 415, o cenário traçado por Medeiros certamente sofreu mudanças, mas a relevância das contas persiste. Os patamares de juros praticados no mercado sofreram pequena variação, enquanto certos custos da construção civil sofreram significativas altas no último ano; o que ajuda a neutralizar o efeito da elevação do salário mínimo sobre seus cálculos.
Percebe-se pelo estudo que o problema habitacional não pode ser dirimido apenas pelas forças próprias do crédito farto. Evidentemente, o excesso de crédito no mercado força a competição e a flexibilização das taxas praticadas; mas observa-se que mesmo com a redução dos juros à taxas hoje impensáveis para o mercado financeiro, ainda existirá parcela da população que não terá acesso aos financiamentos.
Para as famílias com renda mensal até 3 SM, que são a maioria da população brasileira e respondem pela maioria do crescimento populacional, a capacidade de financiamento é pequena em relação ao preço de uma habitação adequada. Isto força as famílias a buscarem o setor informal ou financiamentos parciais, que não atendem por completo sua necessidade. (MEDEIROS, 2007)
Utilizando a mesma lógica de simulação usada por Medeiros, adotando cálculo financeiro para encontrar o máximo valor de uma unidade habitacional, baseado nas condições de pagamento por nível de renda, obtem-se os valores seguintes:
Faixa de renda |
20 anos |
30 anos |
1 SM 2 SM 3 SM 4 SM 5 SM 6 SM 7 SM 8 SM 9 SM 10 SM |
7.538,01 15.076,02 22.614,03 30.152,05 37.690,06 45.228,07 52.766,08 60.304,09 67.842,10 75.380,12 |
8.069,12 16.138,24 24.207,36 32.276,49 40.345,61 48.414,73 56.483,85 64.552,97 72.622,09 80.691,21 |
Fonte: Elaboração própria
Os valores acima foram simulados também em 30 anos por já se admitir nos financiamentos praticados no mercado este prazo maior. O valor do salário mínimo usado foi de R$ 415, diferentemente dos R$ 350 considerados por Medeiros em 2007. Há de se ressaltar que a simulação em juros de 12% ao ano refere-se a uma situação limite, visto que diante de determinados tipos de contrato e condições iniciais, certas instituições bancárias oferecem atualmente juros bem menores.
A Tabela 10 traduz a tendência mostrada na Figura 2: somente os mutuários com renda a partir de quatro salários mínimos mensais têm condições de, sem parcela de entrada, financiar uma unidade residencial de R$ 25.260,00. Daí advém o mais importante modelo de aquisição capitalista de moradias para esta população hoje em voga, que refere-se à utilização de recursos poupados န por poupança simples ou FGTS န como parcela prévia ao financiamento, de forma a com este somar-se para totalizar o valor da habitação interessada.
Entretanto, sabe-se que os recursos do FGTS estão relacionados à perenização do emprego formal na economia, e os do SBPE são estritamente relacionados ao poder de poupança. Tendo em vista a forte aproximação da população afetada pelo déficit habitacional com as modalidades informais de renda e sua fraca tendência e capacidade de poupança voluntária, deduz-se uma patente dificuldade de estas pessoas, às suas próprias custas, se inserirem no mercado imobiliário.
Com as mudanças do panorama do crédito habitacional, sobretudo no que toca as taxas de juros praticadas e os prazos para financiamento, o grande mercado imobiliário começou a vislumbrar os potenciais dos imóveis para a baixa renda. O atendimento da demanda reprimida da massa inserida no déficit habitacional trouxe aos grandes investidores a oportunidade de apostar em empreendimentos populares no Brasil.
Agora, com juros adequados e prazos apropriados, o que deve acontecer é a migração das empresas para fazer oferta nesse mercado, não porque cresce, mas porque ele ainda é muito pouco suprido. (LIMA JÚNIOR, 2008)
As grandes construtoras iniciaram uma fase de adaptação dos seus processos, para comportar a realidade dos compradores emergentes. Em paralelo, construtoras de foco específico no mercado de baixa renda multiplicaram seus negócios. O envolvimento do mercado de incorporação no estrato de residências de até 100 mil reais, antes um nicho subestimado, parece irreversível.
Segundo diversos analistas do mercado, o movimento dito popular hoje no ramo imobiliário se concentra nas habitações que custam na faixa entre 50 mil e 100 mil reais. Nota-se que esta faixa é a que concentra a média de valor de unidades financiadas pelo sistema SBPE, em qualquer período citado pela Tabela 8.
Entretanto, em concordância com o perfil traçado na Tabela 10 sobre o máximo valor de financiamento para famílias de baixa renda, denota-se que o patamar de valores hoje definido como popular é, efetivamente, incompatível com a capacidade de compra da baixa renda. Pela tabela, somente famílias de renda acima de sete salários mínimos teriam condições de financiar, sem recursos prévios, uma habitação disponibilizada pelos moldes do alto mercado imobiliário. Considerando o fato de 72% da população brasileira se concentrar nas famílias cuja renda não ultrapassa cinco salários mínimos, conclui-se o ainda negligente posicionamento da maior parte do mercado de imóveis em relação ao déficit habitacional.
Mesmo para a classe média, a atuação do mercado ainda não é apropriada. Segundo o Ministério das Cidades, apenas 2% dos lançamentos imobiliários da cidade de São Paulo em 2007 são de unidades de valor abaixo de R$ 60 mil.
A alta produção de imóveis de classe média verificada nos últimos dois anos não está atendendo à maior demanda no País, que são unidades na faixa entre R$ 40 mil e R$ 60 mil. (VIANA NETO, 2007)
Evidentemente, o custo de uma moradia está diretamente relacionado à sua área privativa. É comum no mercado de construção e incorporação imobiliária a estipulação de preços baseada na unidade do metro quadrado construído ou privativo. Ou seja, na determinação de um preço global de uma unidade comumente entram em cômputo duas variáveis: o tamanho da área, expressa na quantidade de metros quadrados privativos, e o valor unitário de um metro quadrado, expresso na moeda corrente. Essa duas variáveis se multiplicam, e do valor resultante pode-se sobressair uma referência de preço.
A redução da área da habitação é um dos conceitos que garantem o barateamento do valor final de um imóvel, e, portanto, seu enquadramento no setor popular.
A tendência, agora, é erguer apartamentos apertados, em que três quartos, sala, cozinha e banheiro caibam em 50 metros quadrados. (MEYER, C., 2007)
Apesar da necessidade de redução da área construída para se atingir preços de venda menores para habitações, existem parâmetros estudados de arquitetura que definem o mínimo desejável para cada cômodo de uma residência. Definições compiladas por Fischer em 2002 tratam do tema no âmbito da habitação popular, e condensam num mínimo de 33 metros quadrados para uma moradia de dois dormitórios (Tabela 11).
Tabela 11 - Diretrizes de projeto arquitetônico para uma Habitação de Interesse Social (HIS)
Ambiente |
Área mínima recomendada (m²) |
Proposta de mobiliário mínimo |
Sala
Cozinha e Área de Serviço
Quarto de Casal
Quarto de Solteiro
WC Total |
10,19
6,20
7,30
7,30
2,20
33,19 |
Um sofa de três lugares e outro com dois lugares, um rack e mesa com 4 lugares. Balcão com pia, um refrigerador e um fogão. Um tanque e máquina de lavar roupas. Guarda-roupa com 4 portas, cama de casal, 2 criados mudos. Duas camas de solteiro, um guarda-roupas com 4 portas. Um lavatório, vaso sanitário e chuveiro.
- |
Fonte: FISCHER, 2002.
A questão do número de dormitórios é preponderante. Hoje, o mercado faz distinção do destino social de um imóvel muitas vezes baseado no número de dormitórios, sendo os de dois dormitórios comumente associados a lançamentos para a baixa renda. Os balanços imobiliários confirmam essa percepção.
Os números parciais de 2007 confirmam a mudança de rumo do setor, que até 2006 era principalmente voltado ao mercado de alto padrão. Conforme balanço parcial divulgado pela Empresa Brasileira de Estudos do Patrimônio (Embraesp), a fatia do segmento de dois dormitórios subiu de 31% em 2006 para 36% em 2007. [...] Se olhado apenas o segmento de dois dormitórios, a área útil média baixou de 53,6 metros quadrados para 52,1 metros quadrados. ("Mais habitações para a baixa renda.". Jornal O Estado de São Paulo, 6 de Janeiro de 2008)
Entretanto, nota-se no grande mercado uma rejeição na adoção do patamar mínimo de área proposto por Fischer. Os lançamentos concentram-se na faixa dos 50 metros quadrados, com poucas iniciativas atendendo a proposta do mínimo de 33 metros quadrados. Isto possivelmente tem a ver com questões de cautela do mercado imobiliário em relação à clientela disponível, já que a redução de 17 metros quadrados de área pode não ser suficiente para viabilizar a compra de um imóvel por famílias de renda inferior. Apesar de ser um mínimo aceito tecnicamente, a área proposta por Fischer esbarra em conceitos mercadológicos, já que as famílias que aceitariam morar em espaço tão exíguo precisam de outras caracterizações que barateiem objetivamente a habitação.
Naturalmente, a mudança das especificações qualitativas de uma unidade imobiliária altera de forma significativa seu custo de construção. Tanto isto é verdade que o mercado adota uma nomenclatura de qualidade para seus produtos, tais como "imóveis para a baixa renda" ou "imóveis de alto padrão". Mais do que a concepção geral do produto vendido, esta tipificação gera impacto notável nas técnicas construtivas, no zelo de acabamentos e na qualidade de materiais impregnados.
Desta forma, uma das formas que têm encontrado o mercado imobiliário na satisfação de um preço sensível para seus clientes de baixa renda é a adequação de especificações que encaixem no seu poder de pagamento. O que mais perfeitamente ilustra o impacto deste tipo de modificação são os informes mensais divulgados pelos Sindicatos da Construção (Sinduscon) de todo o país. Amparados por norma técnica específica, que detalha os padrões para cada tipo de habitação, os sindicatos divulgam os Custos Unitários Básicos referentes aos seus estados. Como exemplo, abaixo os valores designados pelo Sinduscon de Minas Gerais:
Padrão |
CUB (R$) |
HIS Baixo Normal Alto |
499,77 746,55 900,41 1.120,92 |
Fonte: SINDUSCON-MG, 2008.
Observa-se que, ao passo que uma habitação de interesse social custa à construção um valor de R$ 499,77 por metro quadrado, uma residência de alto padrão pode chegar a R$ 1.120,92, um acréscimo de 124%. Mesmo na comparação de custos de uma residência de padrão baixo com uma habitação de padrão normal, obtém-se uma diferença da ordem de 20%.
Na competência de produção de habitações com espaço privativo cada vez menor, busca-se uma aumentada taxa de multiplicação de unidades dentro de um mesmo empreendimento, buscando os benefícios típicos da produção em escala e industrialização do processo construtivo. Dentro deste conceito, o custo de construção das áreas comuns pode ser diluído entre o número superlativo de unidades privativas.
Na linha que conquistou a classe média, trazem mini-clubes, com piscinas adulta e infantil, quadras cobertas, pista de cooper e skate, e mais de dez torres em um mesmo projeto. (Revisa Forbes, 2007)
A partir da adoção de uma escala de obra maior, torna-se possível uma negociação mais vantajosa com os fornecedores de material e mão de obra, a respeito do que acontece em qualquer objeto comercial. Com a intensa repetição dos mesmos materiais e especificações, o barateamento dos processos torna-se cabal para os empreendimentos para a baixa renda.
Os fornecedores e prestadores de serviços são os mesmos para produtos super-econômicos, econômicos e de classe média - incluindo os escritórios de arquitetura. É a mesma qualidade, mas com volume diferenciado. No segmento inferior, por exemplo, não são viáveis projetos com menos de 250 unidades habitacionais. O supereconômico caminha para uma industrialização da construção. (Revista Forbes, 2007)
É evidente a influência que o valor venal de um terreno tem sobre o valor de venda de um imóvel nele construído. É inadmitido no mercado imobiliário, por exemplo, a construção de habitações para a baixa renda em bairros muito privilegiados, estes destinados a empreendimentos que conservem taxas de lucro mais elevadas. Assim, torna-se pré-requisito para um projeto de habitações populares sua instalação em terrenos menos centrais em relação ao perímetro urbano, geralmente favorecidos por valores venais mais baixos.
Com a multiplicação do número de unidades em um mesmo empreendimento popular, torna-se imediatamente necessária a adoção de terrenos que comportem grandes projetos. Dada a escassez de lotes com grandes dimensões nas áreas centrais das metrópoles, as incorporadoras não vêem alternativa que não seja a procura por terras distantes do apertado miolo urbano.
A combinação destes dois fatores fomenta a maximização do efeito individual de cada um. A busca por grandes lotes, aliada à necessidade de que sejam excessivamente baratos, criam uma nova demanda por propriedades muito distantes do centro urbano. Cabe a avaliação e adaptação destes empreendimentos à inserção no cenário da infra-estrutura urbana, geralmente carente nas áreas periféricas.
Dadas as circunstâncias do déficit habitacional brasileiro e atual incapacidade de atendimento do mercado imobiliário tradicional a esta demanda, muito se tem especulado no Brasil relativo às soluções. Em comum, nestas soluções propostas, se apresentam mecanismos que buscam a viabilização e solidez de um mercado de imóveis apropriado para a redução do déficit de moradias. Para tal, o foco em medidas crédito-financeiras se sobressai.
Viabilizar a construção de habitação popular utilizando-se canais de financiamento disponibilizados pelo mercado significa, em resumo, construir habitação popular enquadrada na capacidade de pagar deste público-alvo e de maneira que configure um negócio economicamente atrativo para a iniciativa privada, na figura do mercado imobiliário. Sendo possível essa conformação, estará disponibilizado o incentivo à produção de moradias que contribuam na extinção do déficit habitacional.
Em relação aos financiamentos, que determinam de forma fundamental os limites do poder de compra dos mutuários, insinuam-se duas variáveis: o prazo para pagamento do valor emprestado e os juros cobrados. No que tange aos prazos de pagamento, encontra-se hoje no Brasil uma configuração bastante favorável: as instituições já disponibilizam recursos com tempo de retorno de até 30 anos.
No que diz respeito às taxas de juros, a realidade impressa pela Figura 2 e pela Tabela 10 revela uma distorção entre as condições ofertadas pelo mercado e as capacidades financeiras dos atingidos pelo déficit habitacional. O estudo de Fábio Medeiros sacramentou que, em 2007, os máximos juros efetivos anuais suportáveis para um mutuário de renda de dois salários mínimos eram da ordem de 3,5%; quando os níveis dos praticados pelos financiamentos habitacionais das instituições bancárias situavam-se em 13%.
Podem-se obter resultados e curvas diferentes das apontadas por Medeiros com a adaptação dos cálculos à realidade de 2008. As instituições de crédito já permitem um comprometimento da renda mensal de 25%, diferentemente dos 20% comuns em 2007. Ainda, estas instituições hoje já trabalham com taxas de juros mais modestas que, embora sejam direcionadas aos clientes que ofereçam maior poder de pagamento, vislumbram que o mercado financeiro tem cacife para suportá-las.
Assim, bancos privados já oferecem em 2008 empréstimos habitacionais com taxas de juros nominais da ordem de 8% ao ano. Utilizando recursos indiretos do FGTS, a Caixa Econômica Federal disponibiliza financiamentos de até mesmo 6% de taxa nominal. Com parâmetros econômicos estabilizados e a expectativa de crescimento do PIB brasileiro para os próximos anos, espera-se que os juros, sobretudo das instituições financeiras privadas, continuem a cair.
Outra variável que sofreu alteração foi o valor do salário mínimo. Apesar da mudança no seu valor não significar real aumento dos rendimentos das famílias afetadas pelo déficit de moradias န já que boa parte está encaixada no mercado de trabalho informal န a modificação é sentida nas simulações, que se utilizam do valor do mínimo como referência.
Com a alteração dos juros efetivos para um patamar de 9% (média atual do mercado para condições favoráveis de financiamento) e a elevação do comprometimento da renda para 25%, os valores da Tabela 10 sofrem mudança significativa (Tabela 13). Os resultados demonstram que mudanças sutis na taxa de juros desencadeiam enormes transformações em empréstimos tão longos, como o são os de 20 a 30 anos praticados pelo financiamento habitacional.
Faixa de renda |
20 anos |
30 anos |
1 SM 2 SM 3 SM 4 SM 5 SM 6 SM 7 SM 8 SM 9 SM 10 SM |
11.531,29 23.062,58 34.593,87 46.125,16 57.656,44 69.187,73 80.719,02 92.250,31 103.781,60 115.312,89 |
12.894,24 25.788,49 38.682,73 51.576,97 64.471,22 77.365,46 90.259,70 103.153,95 116.048,19 128.942,44 |
Fonte: Elaboração própria
As diferenças entre as condições da Tabela 10 e 13 geram impacto positivo no valor possível de financiamento de 53% para a modalidade de 20 anos e de 60% para a modalidade de 30 anos. Nesta última, por exemplo, as famílias de renda de 2 salários mínimos já podem arcar com o financiamento de uma HPR de R$ 25.260,00; diferentemente das condições de 2007, que só permitiam esta empreitada para uma renda mínima de 4 salários mínimos.
Em análise reversa, percebe-se que a quitação de uma HPR em um financiamento de 20 anos requer uma prestação mensal de R$ 227,27, ou 55% de um salário mínimo; e um empréstimo de 30 anos requer uma amortização mensal de R$ 203,25, ou 49% do salário mínimo vigente de R$ 415,00.
O patamar de 9% de juros anuais, entretanto, ainda é inacessível para a grande parte da população interessada no financiamento de 100% de uma unidade residencial. A simulação da Tabela 13 refere-se a um potencial imediato do mercado financeiro, caso este estenda suas capacidades de financiamento para toda a base de clientes, desconsiderando as análises de risco hoje envolvidas. Caso o mutuário tenha condições de ofertar uma parcela de entrada da ordem de 20% ou 30% do valor do imóvel, entretanto, esta taxa é perfeitamente praticável pelas principais instituições de empréstimo habitacional.
Importante frisar que parte da inclusão das famílias de renda de dois salários mínimos no potencial de compra da HPR se deveu, além da redução da taxa de juros, à elevação do comprometimento de renda para 25%. Apesar de esta margem ser praticada em diversas modalidades de contrato em 2008, pode ser considerada antinatural pela análise do orçamento familiar (Tabela 9), que prevê um comprometimento médio de 20% do referido estrato de renda em habitação. A percepção de que essa diferença inevitavelmente gera um esforço de contingenciamento médio de 5% do orçamento familiar não pode ser desconsiderada.
Denota-se que, apesar das otimistas condições oferecidas na Tabela 13 possibilitarem significativa melhoria no panorama de financiamento de uma habitação de R$ 25.260,00, ainda há um grande distanciamento da população de renda inferior a dois salários mínimos no alcance de um empréstimo desse valor.
Diante da indisposição do mercado financeiro de hoje suprir as demandas de financiamento habitacional da população de renda inferior a três salários mínimos, e a incapacidade do atendimento àquelas de renda inferior a dois, toma corpo, de forma inevitável, a necessidade da participação do Estado como provedor de uma modalidade de crédito de função social. Sendo esta população provavelmente a maior parte constituinte do déficit habitacional, denota-se a urgência de ações objetivas do governo no sentido do atendimento de crédito apropriado.
O Governo Federal brasileiro implementou nos últimos anos uma seqüência de programas direcionados para a necessária oferta de crédito social. Sobressaem-se nestes as iniciativas da Carta de Crédito, do Programa de Arrendamento Residencial (PAR), do Programa de Subsídio à Habitação (PSH) e do Programa de Crédito Solidário. Alternando os clientes-alvo e as condições de financiamento, estes programas procuram atender a população de baixa renda mediante a oferta de crédito a juros de 0% (Crédito Solidário) a 6% (demais). Estas iniciativas, apesar de recorrentemente utilizadas de maneira tímida pela população inserida no déficit, revelam o potencial de ação que o Estado tem na viabilização da compra de moradias por quem não pode ser atendido pelo mercado financeiro privado.
A maior parte dos recursos que possibilitam esta oferta de crédito barato atualmente é obtida pelo governo federal no montante acumulado pelas contas do FGTS. Sendo o FGTS um fundo que capta dinheiro de forma compulsória a partir dos empregos formais, e o remunera a taxas muito aquém das praticadas no mercado financeiro, a utilização de seus recursos para quem sequer tem conta no fundo já representa em si uma forma de subsídio.
Os recursos do FGTS são extraídos dos titulares das contas vinculadas, dos trabalhadores do setor formal, que, sendo depositantes compulsórios, não têm como se evadir das responsabilidades reais negativas que lhes estão sendo impostas. Entre janeiro de 2000 e dezembro de 2004, para uma variação de 51,01% no IPCA, os depósitos do FGTS tiveram uma rentabilidade total de 32,89%. Isso equivale a uma perda real anual de 2,5%. (Köhler, 2005)
Ou seja, deve-se ter o entendimento que ao lançar mão de capital do FGTS para financiamentos habitacionais, o governo opta por um modelo que os trabalhadores formais, a certo nível, financiam habitações para terceiros mediante ônus financeiro.
Portanto, mesmo quando um financiamento mostrar-se adequado a uma certa classe de renda, utilizando recursos do FGTS, é importante saber que estes recursos de financiamento já são subsidiados implicitamente, neste caso, pela própria população em geral, que os paga, mas que também tem acesso a eles para o financiamento das suas habitações. (MEDEIROS, 2007)
À parte dos detalhes referentes aos requisitos necessários para a adesão a estes programas, mas considerando os detalhes financeiros que envolvem cada um, Medeiros simulou os máximos valores financiáveis por cada faixa de renda, para cada programa (Tabela 14). A adaptação dos seus cálculos à realidade de 2008 naturalmente retornaria algumas diferenças, embora presumidamente insignificantes para a visão geral.
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