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Análise da participação da iniciativa privada na potencial solução do déficit habitacional (página 2)

Eduardo Pachêco Pereira
Partes: 1, 2, 3, 4

Inerente a este objetivo situa-se a análise histórica das ações do poder público na seara habitacional, a título de investigação das deficiências encontradas.

Como objetivo adicional, o mapeamento das especificidades e dificuldades para a definitiva viabilização da participação do mercado imobiliário nas HIS torna-se relevante.

  • Metodologia
  • Este trabalho foi desenvolvido por meio de pesquisas bibliográficas, em variada gama de publicações, que englobaram, principalmente:

    • O histórico demográfico recente no Brasil e na cidade de Fortaleza;
    • O contexto do déficit habitacional no Brasil e na cidade de Fortaleza;
    • O contexto atual e histórico de fomento de habitação popular no Brasil e na cidade de Fortaleza;
    • As alternativas de financiamento público e privado para o setor habitacional, no que tange o consumidor de baixa renda;
    • Legislação referente aos deveres governamentais no provimento de habitação;
    • Diversos modelos privatistas de absorção de atribuições estatais;
    • Evidências estatísticas que traduzam a situação histórica e atual do mercado imobiliário e de construção no Brasil;
    • Evidências relativas às mudanças no panorama do cliente-alvo no mercado de imóveis;
    • Alternativas viáveis para a melhoria de atendimento do mercado nos estratos de baixa renda.

  • O DÉFICIT HABITACIONAL BRASILEIRO
  • Desde a segunda metade do século passado, o Brasil está imerso em uma fase de relevantes transformações estruturais e sociais. Publicações do IBGE mostram que o Brasil iniciou o século XX com uma economia agrário-exportadora, recém-saída de um regime escravista de trabalho, e se transformou em uma economia industrial apoiada no trabalho assalariado e com um alto grau de urbanização. Este movimento massivo para as cidades tem forte correlação com a precarização das habitações, já que o inchaço das metrópoles não foi acompanhado por eficazes planejamentos urbanos.

  • Demografia
  • O último Censo Demográfico do IBGE revelou que a população brasileira cresceu quase dez vezes no século passado: passou de 17 milhões em 1900 para quase 170 milhões em 2000. Em apenas três décadas (período 1950-1980), a população brasileira teve um acréscimo de 67 milhões de pessoas: passou de 52 para 119 milhões (Gráfico 1). Esse acréscimo é muito superior à população atual de alguns países, como, por exemplo, a França, Itália e o Reino Unido (cerca de 57 milhões, cada). Equivale, também, ao dobro da população atual da Argentina (33 milhões de pessoas).

    A expansão populacional de qualquer país se dá por duas vertentes: as imigrações e o crescimento vegetativo. O perfil do aumento da população brasileira na segunda metade do século, que é o período relevante ao inchaço das cidades, foi notadamente o vegetativo. A partir de 1940 e até 1980, período em que a imigração foi insignificante, as taxas de crescimento populacional situaram-se sempre acima de 2,3% ao ano. Na década de 50, a de maior crescimento, as taxas situaram-se próximas a 3% (Tabela 1).

    Gráfico 1 - Crescimento da população brasileira no período 1872-2000

    Fonte: IBGE - Anuários Estatísticos do Brasil - 2000

    Tabela 1 - Taxa de crescimento médio anual da população brasileira (1940-2030)

    Período

    Taxa de crescimento

    1940/1950

    1950/1960

    1960/1970

    1970/1980

    1980/1990

    1990/2000

    2000/2010

    2010/2020

    2020/2030

    2,35

    3,06

    2,87

    2,48

    1,93

    1,63

    1,35

    0,92

    0,58

    Fonte: IBGE - Anuários Estatísticos do Brasil - 2000

    No início do século XX, 52% da população ocupada trabalhava no campo. Em 2000, essa proporção caiu para 17%; e 80% da população vivia na área urbana. Ou seja, a canalização da explosiva natalidade dos anos 50 aos 70 para o seio das cidades foi imediata e constante durante todo o período. Apesar de a industrialização explicar este movimento, conhecido como êxodo rural, a distribuição de renda típica de uma sociedade provida de salários não o acompanhou, como explica o professor e pesquisador social Celso Furtado:

    O processo de urbanização da sociedade brasileira não é semelhante ao que se verifica na Europa e em outras partes do mundo. Na Europa, a urbanização decorreu da criação de um mercado de trabalho muito intenso nas cidades, que absorveu o excedente de população rural, transformando o continente ao longo dos anos. No Brasil, o processo migratório do campo para a cidade ocorreu de forma distinta: houve uma fase, na metade do Século XX, em que se criou muito emprego no setor industrial, mas nos últimos 30 anos o emprego industrial já não cresceu. O crescimento da população urbana inchou as cidades, mas nelas não se criou emprego suficiente para absorver toda essa gente, daí as taxas de desemprego crescentes, a marginalidade. (IBGE, ESTATÍSTICAS DO SÉCULO XX, p. 12)

    Por marginalidade, citada pelo professor, relaciona-se sobretudo à exclusão dentro do espaço urbano. Dessa exclusão se exprime de forma direta a ligação com a precariedade das moradias.

    Dentro da desigualdade social característica de todas as grandes metrópoles brasileiras, há de se salientar as diferenças entre as macro-regiões do país e suas cidades, bem como as conhecidas variações de acordo com componentes étnicos dentro de uma mesma sociedade. De acordo com as constatações de Hoffmann (2000), a proporção de pobres apresenta uma grande variabilidade geográfica no Brasil. A Região Nordeste, em 2000, participava com apenas 29% do total da população brasileira, mas contava com 53,2% dos pobres. No campo étnico, vale destacar que ser de cor preta ou parda diminuíam a renda do indivíduo e aumentavam sua propensão a pobreza. Este último quadro vem declaradamente sofrendo aliviantes nos últimos anos, mas sua importância prossegue enorme.

    Estas distorções produziram no Brasil uma distribuição de renda peculiar aos países subdesenvolvidos, porém mais exagerada do que a da maioria deles (Tabela 2).

    Tabela 2 - Proporções da população economicamente ativa (PEA) em relação aos rendimentos em salários mínimos (SM)

    Faixa Salarial

    % PEA

    até ½ SM

    ½ a 1 SM

    1 a 2 SM

    2 a 3 SM

    3 a 5 SM

    mais de 5 SM

    10,0

    17,8

    26,0

    13,0

    10,2

    10,3

    Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - 2005

    Observa-se, pela tabela, que 66,8% da população economicamente ativa do Brasil angaria mensalmente rendimentos inferiores a três salários mínimos, ou R$ 1245,00 (2008). Apesar de uma estatística importante, é preciso compará-la com os dados de renda familiar, que refletem maior relevância para o problema de moradias (Tabela 3).

    Tabela 3 - Distribuição percentual das famílias brasileiras, por faixas de rendimento familiar, em salários mínimos (SM)

    Renda Familiar

    % PEA

    Até 1 SM

    1 a 2 SM

    2 a 3 SM

    3 a 5 SM

    5 a 10 SM

    10 a 20 SM

    Mais de 20 SM

    14,71%

    23,33%

    16,94%

    17,61%

    14,38%

    5,89%

    2,66%

    Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - 2006

    Pelos dados acima, advém a notação de que quase 55% dos brasileiros têm rendimentos familiares cuja soma é inferior a 3 salários mínimos. Com base neste e nos demais parâmetros apresentados, pode-se lançar uma visão mais abrangente e humana sobre o problema do déficit de moradias do Brasil.

  • O perfil e os números do déficit de habitações
  • O inchaço populacional e a rápida concentração urbana gerida na segunda metade do século XX trouxeram sérias conseqüências para a estrutura habitacional das cidades brasileiras. Hoje, a questão apresenta-se como um problema sério, concernindo gama variada de populações urbanas: moradores de rua, de áreas de risco, de loteamentos, de ocupações irregulares, de conjuntos habitacionais, de favelas e de periferias carentes.

    Embora os efeitos mais visíveis da falta de moradias se pronunciem nas cidades, é importante frisar que o problema não se restringe às mesmas. Segundo dados da Fundação João Pinheiro (FJP), 18,7% do déficit se apresenta na zona rural. Este número, apesar de muito traduzir o perfil da questão, não carrega ineditismo ao se considerar que a população rural brasileira é de 18,8% do total.

    Apesar do citado, nas metrópoles o problema ganha contornos ainda piores. Não obstante as conseqüências típicas da favelização, outro fator decisivo que pesa nas cidades é o forte conceito de propriedade, em que as residências em geral são vistas como mercadorias. Esse fato contribui para a especulação imobiliária, prática comum com imóveis e terrenos, e considerado abuso pela legislação vigente. O cenário final é de um cada vez mais crescente volume de imóveis ociosos, que teoricamente poderiam servir como solução para boa parcela do déficit de moradias (Tabela 4).

    Tabela 4 - Número absoluto de domicílios vagos (2005)

    Região

    Domicílios vagos

    Norte

    Nordeste

    Sudeste

    Sul

    Centro-Oeste

    Brasil

    423.418

    1.827.988

    3.117.713

    876.036

    491.249

    6.736.404

    Fonte: IBGE - PNAD - 2005

    Destes quase 7 milhões de domicílios vagos, 89,7% teriam condições físicas de serem imediatamente habitados (o restante estariam arruinados ou em construção). Este montante corresponde a 12,7% do montante total de 53.052.621 habitações privadas existentes. Evidentemente, não se pode avaliar estes números como parte da solução das quase 8 milhões de novas moradias necessárias ao país, pois todo o montante está sob o direito de propriedade de milhares de pessoas.

  • Distribuição quantitativa
  • Nos anos recentes, importantes bancos de dados deram conta dos números do problema habitacional. Destacadamente, figuram os estudos da Fundação João Pinheiro (FJP) debruçados sobre os dados colhidos pelo IBGE em 2005, os mais recentes sobre o tema.

    A FJP, sob demanda do Ministério das Cidades, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), através do Programa Habitar-Brasil, elaborou o estudo "Déficit Habitacional no Brasil 2005", que teve por objetivo fornecer informações mais atualizadas sobre o setor habitacional no Brasil e ao mesmo tempo traçar a evolução dos seus indicadores ao longo dos últimos anos. O resultado foi a compilação de tabelas que cruzam números absolutos e proporções representativas do problema, nos âmbitos regionais e econômicos. A aferição multifacetada das pesquisas, por meio da multiplicidade de critérios, fidelizou o número total apresentado.

    O número total, divulgado em 2005, estimava a carência habitacional do país em 7.902.699 moradias, que representavam 14,9% do total de domicílios. Como já citado, a predominância urbana é marcante neste valor. Setorizando o montante total nas macro-regiões brasileiras, surge o dado de que as regiões Sudeste e Nordeste são, juntas, responsáveis por 71,4% da composição do mesmo (Tabela 5). A proporção condiz com a distribuição da população no território brasileiro.

    Tabela 5 - Déficit Habitacional por Regiões (2005)

    Região

    Déficit de moradias

    Proporção

    Norte

    Nordeste

    Sudeste

    Sul

    Centro-Oeste

    Brasil

    850.355

    2.743.147

    2.898.928

    873.708

    536.561

    7.902.699

    10,7%

    34,7%

    36,6%

    11,0%

    6,8%

    100%

    Fonte: Fundação João Pinheiro - Déficit Habitacional no Brasil (2005)

    Tão relevante quanto a composição regional é a análise da distribuição do déficit pelas faixas de renda. Este dado torna-se especialmente importante ao avaliar as políticas públicas para solução de moradias, já que os estratos de renda mais baixos sempre serão mais dependentes da iniciativa estatal. Com excessão de poucas unidades federativas, a distribuição é semelhante em todo o Brasil (Tabela 6).

    Tabela 6 - Participações no Déficit Habitacional (2005) por Renda Familiar em Salários Mínimos (SM)

    Renda Familiar

    Déficit de moradias

    Até 3 SM

    De 3 a 5 SM

    De 5 a 10 SM

    Mais de 10 SM

    90,3%

    6,0%

    2,9%

    0,8%

    Fonte: Fundação João Pinheiro - Déficit Habitacional no Brasil (2005)

    Com mais de 90% do déficit de domicílios concernindo às famílias com rendimentos mensais abaixo dos três salários mínimos (R$ 1.245,00), denota-se este como, de longe, o estrato de renda mais prejudicado. Cruzando este dado com a notação de que essa classe social corresponde a 55% da população brasileira (Tabela 3), têm-se a constatação do óbvio: a deficiência de moradias tem intensidade tão maior quanto a carência econômica da família.

    Conforme exposto, é possível afirmar que a crise de moradia no Brasil está associada ao imaturo modelo capitalista brasileiro. Sendo este demasiadamente concentrador e excludente (Tabela 2), denota-se que a falta de habitações populares é conseqüência direta dos baixos salários, do desemprego e do subemprego massivo. O déficit habitacional decorre, principalmente, de uma distribuição profundamente desigual da renda e também das condições específicas da produção e comercialização capitalista da moradia, que impõem um elevado preço a essa mercadoria.

    A partir desta premissa, o estudo da composição e comprometimento da renda destas famílias, em especial, passa a ser vital para a concepção de quaisquer soluções.

  • Tipificação
  • Embora a expressão "déficit habitacional" seja auto-explicativa no sentido de expressar um saldo negativo de residências, seu estudo exige critérios muito específicos. A obtenção de qualquer dado estatístico, para que denote a realidade, passa antes por uma obrigatória avaliação metodológica de pesquisa.

    Os estudos da Fundação João Pinheiro ditam a metodologia e estratificação mais aceita para o déficit habitacional no Brasil. O conceito de déficit utilizado está ligado diretamente às deficiências do estoque de moradias. Engloba aquelas sem condições de habitabilidade devido à precariedade das construções ou em virtude de desgaste da estrutura física, tendo necessidade de reposição. Inclui, ainda, a necessidade de incremento do estoque, devido à coabitação familiar ou à moradia em imóveis construídos com fins não residenciais, bem como ônus excessivo com aluguel. Sob esta ótica, para a FJP o déficit habitacional pode ser entendido e dividido, portanto, entre "déficit por incremento de estoque" e "déficit por reposição do estoque":

    O déficit por reposição do estoque refere-se aos domicílios rústicos acrescidos de uma parcela devida à depreciação dos domicílios existentes. Domicílios rústicos são aqueles sem paredes de alvenaria ou madeira aparelhada, o que resulta em desconforto e risco de contaminação por doenças, em decorrência das suas condições de insalubridade. Esses devem, portanto, serem repostos. A depreciação de domicílios está relacionada ao pressuposto de que há um limite para a vida útil de um imóvel a partir do qual são exigidos reparos em sua estrutura física, visando à conservação de sua habitabilidade. [...]

    O déficit por incremento de estoque contempla os domicílios improvisados e a coabitação familiar. O conceito de domicílios improvisados engloba todos os locais construídos sem fins residenciais e que servem como moradia, o que indica claramente a carência de novas unidades domiciliares. O componente coabitação familiar compreende a soma das famílias conviventes secundárias que vivem junto a outra família em um mesmo domicílio e das que vivem em cômodos [...]

    A esses dois componentes, agregou-se o que se denominou ônus excessivo com aluguel, que corresponde ao número de famílias urbanas, [...], que moram em casa ou apartamento [...] e que despendem mais de 30% de sua renda com aluguel (FJP, DÉFICIT HABITACIONAL NO BRASIL, 2005, p. 13)

    Além de definir critérios para a idéia de déficit, a este o órgão contrapôs o conceito de "inadequação de domicílios" para, por exclusão, melhor delinear os números do primeiro. A inadequação, também denominada "déficit qualitativo", é um grave problema, onde a proximidade entre as carências habitacionais mais básicas e a renda domiciliar se tornam mais nítidas:

    As habitações inadequadas são aquelas que não proporcionam condições desejáveis de habitabilidade, o que não implica, contudo, em necessidade de construção de novas unidades. [...]

    Como inadequados são classificados os domicílios com carência de infraestrutura, com adensamento excessivo de moradores, com problemas de natureza fundiária, em alto grau de depreciação ou sem unidade sanitária domiciliar exclusiva. (FJP, DÉFICIT HABITACIONAL NO BRASIL, 2005, p. 14)

    A FJP apresenta dados que quantificam o problema: 1.689.847 famílias moram com adensamento excessivo, que se caracteriza pela habitação de mais de 3 moradores por dormitório; 1.365.864 famílias têm suas habitações com inadequação fundiária (condição em que nenhum dos moradores possui a propriedade da moradia ou fração do terreno); e 9.828.716 famílias habitam domicílios carentes de infra-estrutura básica (abastecimento regular de água, atendimento da rede de esgoto, coleta de lixo, etc.). Apesar de expressivos, estes números não entram no cômputo do déficit habitacional clássico, segundo os conceitos apresentados.

  • Perfil
  • Dentro das facetas da carência de habitações citadas (habitação precária, coabitação familiar, ônus excessivo com aluguel), pode-se setorizar a insuficiência de moradias em perfis específicos. Essa divisão torna-se particularmente necessária no momento do tratamento das causas do problema.

    Os casos de ônus excessivo com aluguel são constatados, sobretudo, nas cidades. Dada a insignificância desta característica nas zonas rurais, a escolha dos perímetros urbanos no estudo do perfil do déficit torna-se acertada estatisticamente, dentro da acepção da participação do mercado imobiliário na solução do problema como um todo (Tabela 7).

    Tabela 7 - Participação dos componentes do Déficit Habitacional Urbano - Brasil (2005)

    Componente

    Participação

    Habitação precária

    Coabitação familiar

    Ônus excessivo com aluguel

    11,0%

    60,0%

    29,0%

    Fonte: Fundação João Pinheiro - Déficit Habitacional no Brasil (2005)

    Segundo a tabela supra, o perfil mais pronunciado da carência habitacional é a coabitação familiar, que caracteriza a convivência de várias famílias sob uma mesma unidade residencial. Os alugueis considerados demasiadamente dispendiosos configuram-se como outra causa relevante, relegando à habitação precária uma participação muito menor do que se poderia esperar.

  • Realidade da cidade de Fortaleza
  • A Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), a quarta do país em população, segue a predominância nacional de desordem urbana: as características do déficit habitacional são caras à metrópole.

    Na região Nordeste, Fortaleza carrega os genes mais autênticos do fenômeno do êxodo rural. Sobretudo nas décadas de 70 e 80, os demonstrativos populacionais do Ceará mostram que, nesta época, os habitantes urbanos superaram em número os residentes nas zonas rurais (Figura 1). Replicação fiel do histórico brasileiro, ora explanado.

    Gráfico 2 - Evolução da população residente no Ceará, por situação de Domicílio

    Fonte: Fundação João Pinheiro - Déficit Habitacional no Brasil (2005)

    Evidentemente, um dos preços que a cidade de Fortaleza pagou pelas altas taxas de urbanização do estado cearense foi a explosão do seu déficit habitacional. O crescimento desordenado da capital aliado ao baixo poder aquisitivo dos migrantes se traduziram em imensos conglomerados subnormais de habitação. Na Região Metropolitana, a carência estimada é de 156.335 residências (FJP 2005).

    Este déficit, na classificação ora comentada, possui perfil sutilmente alterado em relação ao panorama nacional. Observa-se na RMF, em relação à média brasileira, uma ainda maior preponderância da coabitação familiar (mais de 66%). Este avanço se dá sobre a participação dos ônus excessivos com aluguéis, já que a representação das habitações precárias permanece inalterada em relação ao verificado no país (Gráfico 3).

    Gráfico 3 - Participação dos componentes do déficit habitacional - RMF x Brasil (2005)

    Fonte: Fundação João Pinheiro - Déficit Habitacional no Brasil (2005)

    Não obstante este montante de residências necessárias, o problema habitacional da capital cearense também se expressa de forma significativa na inadequação de domicílios. Nada menos do que 67.054 moradias estão com problemas fundiários e 45.652 unidades registram adensamento excessivo (FJP 2005).

  • O DIREITO À MORADIA E A INSUFICIENTE AÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO
  • O direito à habitação e o dever do Estado
  • É consenso universal que a habitação adequada é condição fundamental para o indivíduo exercer plenamente a sua cidadania, estando inserido na concepção de um padrão de vida adequado. Desta forma, o direito à habitação tem grande relevância na instituição dos direitos humanos.

    O tema é tratado tanto em legislações nacionais como internacionais. Referem-se ao direito variados documentos internacionais, sendo os mais importantes: a Declaração Universal dos Direitos Humanos; o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; a Convenção sobre todas as Formas de Discriminação Racial; e a Convenção sobre os Direitos da Criança. Todos estes documentos foram ratificados pela sociedade brasileira, por meio de chancelarias do Congresso Nacional ou da Presidência da República.

    Dentro dos direitos humanos, o direito à habitação enquadra-se no rol dos direitos econômicos e sociais. Esses direitos caracterizam-se, geralmente, por exigirem dos Estados maior atuação para que sejam implementados. Eles exigem um maior gasto de recursos para que saiam da condição de simples teoria.

    Assim exposto, há uma tendência de se concluir que o direito do indivíduo à moradia torna-se um dever do Estado, na figura das esferas do poder público. Este dever se divide em quatro níveis de obrigações: respeitar, proteger, promover e preencher.

    A obrigação de respeitar impede que os órgãos e agentes do governo possam adotar práticas ou medidas legais que infrinjam a liberdade dos indivíduos de usar materiais ou recursos disponíveis para a construção ou compra de habitações; enquanto o dever de proteger requer que não se poupem esforços para evitar a violação desta liberdade, por quem quer que seja. O dever de promover refere-se à ênfase que o governo deve dar ao reconhecimento do direito à habitação nas diversas legislações, e na sua inclusão nas políticas públicas.

    A obrigação de preencher é a que mais exige intervenção. O dever do preenchimento inclui medidas ativas pelo governo, necessárias a garantir, para cada pessoa, oportunidades de acesso ao direito à habitação, que não pode ser obtido, por alguns indivíduos, exclusivamente através de esforços particulares. Esta obrigação é à que mais se refere qualquer política de solução do déficit habitacional. Tambem clama o Estado, de forma definitiva, como direto responsável por esta dianteira.

    Apesar desta premissa, a proclamação dos direitos humanos em nenhum momento conclama os governos a tornarem-se agentes construtores massivos de habitações populares.

  • A legislação brasileira
  • A Constituição brasileira, quando da sua promulgação, não previu expressamente um direito à moradia, embora tenha estabelecido como dever do Estado, nas esferas Federal, Estadual e Municipal, promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (artigo 23, inciso IX). O dever de construir moradias certamente decorreu de ter o Estado brasileiro, como fundamentos, "a dignidade da pessoa humana", e como objetivo "construir uma sociedade justa e solidária", "erradicar a pobreza", e "promover o bem estar de todos" (artigos 2º, inciso III, e 3º, incisos I e III).

    No ano 2000, doze anos após a edição original da Constituição, foi promulgada emenda que promoveu o direito à moradia à categoria de direitos sociais, junto com a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, e outros. Ou seja, ficou expressamente consagrado, na lei maior, o direito à residência como dentre aqueles que conferem dignidade ao cidadão. A emenda representou verdadeira alteração na relação que se estabelece entre o Poder Público e seus administrados. A moradia no Brasil nunca antes foi percebida como um direito humano, mas como um problema social, dentre tantos outros que permeiam o subdesenvolvimento.

    O direito à moradia como integrante da categoria dos direitos sociais, para ter eficácia jurídica e social, pressupõe a ação positiva do Estado por meio de execução de políticas públicas. No caso, da promoção de política urbana e habitacional.

    A constituição afirma, ainda, em seu artigo 21, inciso XX, que compete à União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos.

    Os artigos 182 e 183 do documento tratam da política urbana, com este último artigo dando uma autorização de usucapião urbano para aquele que utilizar uma área urbana de até 250 metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente, e sem oposição, para a sua moradia ou de sua família. Excluem-se deste direito aqueles que já sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.

    Denota-se, portanto, a importância e reconhecimento, de forma indireta e direta, dados pela constituição brasileira ao direito à moradia. Apesar disto, a lei brasileira não prevê obrigações estatais na construção ou no livre provimento de unidades residênciais. Tão somente trata da necessidade de providência de políticas públicas que se traduzam no atendimento do direito à habitação, sem especificar quais seriam.

  • A insuficiente atuação estatal no Brasil
  • Até o início do século passado, no Brasil, a interferência do governo na questão da habitação era quase inexistente. O que havia era uma forte preocupação com a condição sanitária das cidades, a fim de se evitar a propagação de doenças. Cenário este imaginável, considerando o vasto histórico de graves epidemias da época, em todo o mundo.

    Com o início da industrialização no país, a partir da década de 30, e a crescente concentração populacional nas cidades, a oferta de moradias diminuiu. Nessa época o estado brasileiro deu os primeiros passos nessa seara, intervindo na oferta de habitação.

    As políticas públicas para o assunto notadamente se distinguem em dois planos: as ações dos municípios e as frentes federais. As primeiras referem-se ao posicionamento das prefeituras no problema, dentro do contexto do planejamento urbano. As segundas representam, em geral, a criação de normatizações nacionais e de organismos que interferem não somente no plano físico de habitações construídas, mas também nos meandros financeiros que estas empreitadas requerem.

    Os governos estaduais costumam permear as duas frentes, ora na parceria com determinados projetos municipais, ora auxiliando na execução dos planos nacionais. Com base na competência legislativa concorrente, podem editar tanto uma lei estadual de política habitacional como urbana, de modo a aplicar estas políticas de forma integrada com seus Municípios. Aos estados cabe instituir um sistema de política estadual com organismos e instrumentos próprios, cujo foco deve ser destinado em especial para as áreas metropolitanas.

  • Histórico das ações do Governo Federal
  • Conforme já comentado, a década de 30 marcou o início das políticas públicas nacionais na área habitacional. Até o início desta década, os anseios dos trabalhadores brasileiros se dava, principalmente, por melhores salários, ou seja, não havia uma discussão clara sobre a questão da habitação e sua vinculação com o Estado. A partir desta época, entretanto, a grande migração para as cidades e o cada vez menos proporcional número de casas disponíveis para aluguel provocou uma crescente situação de animosidade pública.

  • Institutos de Aposentadorias e Pensões
  • O momento histórico requeriu que os grupos políticos no poder criassem uma imagem de Estado benfeitor, que atendia caridosamente às demandas da sociedade, quaisquer estas fossem (FARAH, Marta, 1983). Foi desencadeada a criação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), órgãos setoriais de operários filiados ao sistema de previdência social, instituído no país neste período. Os IAPs tinham como uma de suas premissas a disponibilização dos recursos previdenciários na construção de moradias para os associados. Apesar da criação dos IAPs tenha se dado no início da década de 30, somente em 1937 a utilização dos recursos em moradias foi regulamentada.

    O Regulamento de 37 permitiu, através das medidas assinadas, que se inaugurassem as atividades dos IAPs no setor habitacional, podendo, portanto, ser considerado o marco inicial da atuação dos institutos neste campo. (FARAH, MARTA, 1983)

    A partir disso, o próprio Estado, cada vez mais, se colocou como o responsável pelo tema da habitação. Entretanto, deve-se destacar que esta atividade, no que compete os IAPs (que na década de 40 já englobavam boa parte do funcionalismo), se restringia ao objetivo de render o capital previdenciário por meio de rendimentos imobiliários. As moradias construídas pelo instituto poderiam tanto ser habitadas pelos titulares dos recursos previdenciários como disponibilizadas por aluguel para a sociedade.

    Apesar do ufanismo governamental que girou em torno das construções por parte dos IAPs, o comparativo do número de unidades habitacionais construídas versus o número de associados das instituições, no auge do programa, mostra o quão pífio foi o atendimento à demanda habitacional da época (Gráfico 4).

    Gráfico 4 - IAPs - Habitações construídas até 1950 x Associados (1950)

    Fonte: GAWRYSZEWSKI, Alberto, A crise habitacional e o Estado na construção de moradias na cidade do Rio de Janeiro, 1996.

    Seja por incompetência administrativa, incapacidade executiva ou desinteresse velado, o fato é que os resultados dos IAPs foram inexpressivos na solução do déficit habitacional da época, estimado em 5 milhões de moradias (FCP, 1952).

    Mesmo se o tentassem, não poderiam os institutos solucionar o difícil problema da moradia. Na melhor das hipóteses, poderiam essas instituições atender a dez por cento das necessidades de seus sócios, obrigando os demais a contribuir sem a esperança sequer de serem um dia atendidos. (SONDY, Leopoldo, Bons votos. Revista de Arquitetura, nov. 1948, p. 6)

  • Fundação da Casa Popular
  • Em 1946, no governo de Getúlio Vargas, foi criada a Fundação da Casa Popular (FCP), que visava o atendimento à população que não participava do mercado formal de trabalho e, por isso, não tinha acesso aos IAPs. Representou o primeiro esforço declarado do Estado no trato do problema de moradias. Subordinada ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, tinha por finalidade:

    Proporcionar a brasileiros ou estrangeiros com mais de dez anos de residência no país ou com filhos brasileiros a aquisição ou construção de moradia própria, em zona urbana ou rural.

    Este objetivo era regido por premissas secundárias, descritas no decreto de criação da FCP. A fundação faria cumprir sua razão através de: financiamento da construção ou aquisição de residências do tipo popular; financiamento às prefeituras na construção de residências ou em serviços de melhoramentos urbanos ligados à habitação popular; financiamento de indústrias de matérias primas de construção.

    À parte da destinação direta de recursos citada, o decreto tambem previu a atuação da fundação como construtora, no que se refere à: projeto e execução de obras residenciais; delegação da construção às prefeituras ou instituições assistenciais; empreitada de obras ou frações destas; fiscalização e assistência de execução de obras.

    Desta forma, ficou patente a extensão das atividades da FCP, de financiar desde casas de tipo popular até indústrias de materiais de construção, passando por serviços de urbanização. Tambem denota-se a suposta participação das prefeituras na execução de projetos, criando uma relação de financiamento e acessoria com a FCP. As intenções pareciam bem fundamentadas.

    Essa orientação, [...], tem grande importância econômica, passando a Fundação, de certo modo, a funcionar como instituição de fomento para a economia local. Nesse caso, as inversões de capitais que promover, corresponderão a uma política municipalista e regional, bem interessante, capaz de ajudar a impulsionar, eficientemente, a morosa máquina do progresso nacional. (GODOI FILHO, Armando. A casa popular no Brasil. Observador Econômico e Financeiro, Ano XII, n. 130, nov. 1946, p. 152)

    Ao pretender o atendimento dos numerosos indivíduos não cobertos pelas categorias de operários das IAPs e, tentar financiar habitações para pessoas com rendimentos tão mínimos, o Estado brasileiro, com a criação da FCP, se lançou em empreitada muito maior e ainda mais delicada financeiramente do que a que se prestou com as IAPs. E foi exatamente diante de tão mal dimensionada concepção que o projeto não encontrou bases de sustentação, culminando no fracasso e sua extinção em 1964.

    O problema foi originado desde o decreto de criação da entidade, em que se previa a origem dos recursos através de taxação das transações imobiliárias em todo o país. A falsificação dos valores negociados, diminuindo bases de cálculo, e a inépcia e desinteresse dos governos estaduais em recolher as contribuições minaram o caixa da fundação. A FCP, por não captar sequer 10% dos recursos originalmente estipulados န que já eram insuficientes (Gráfico 5) န acumulou dívidas com concessionárias públicas e com diversos órgãos do próprio governo federal (como a Previdência).

    Gráfico 5 - Dotação orçamentária FCP x Recursos necessários para o déficit de 1952

    Fonte: GAWRYSZEWSKI, Alberto, A crise habitacional e o Estado na construção de moradias na cidade do Rio de Janeiro, 1996.

    Segundo registros da época, a Fundação da Casa Popular teve ainda sua atuação norteada pelo clientelismo político, sendo utilizada por dirigentes como instrumento político-eleitoreiro. Não obstante, as condições da FCP para obter o financiamento das moradias eram obstáculos para grande parte da população de baixa renda. Com pouco mais de 17 mil residências construídas em 18 anos de existência, ficou patente a total desqualificação da fundação na solução do déficit habitacional na metade do século passado.

  • O Banco Nacional de Habitação e o Sistema Financeiro de Habitação
  • Os fracassos dos IAPs e da FCP no trato do problema de moradias, aliados à questões conjunturais, como a grande inflação da década de 1950, conferiram a esta época um declínio no interesse do Governo Federal na seara habitacional.

    Este cenário sofreu total inversão com a tomada do poder federal pelos militares, em 1964. O Estado autoritário procurou encontrar na habitação um instrumento de legitimação do regime militar, com a meta escancarada de "espalhar o sonho da casa própria para toda a sociedade brasileira". Dessa forma, pensavam os governantes que estariam garantindo a simpatia dos setores populares. Acima disso, porem, muito se confiava ao crescimento da construção civil a elevação dos índices de emprego e a saúde geral da economia.

    A construção veio como aquela atividade que mais abriga mão-de-obra desqualificada. Guardadas as proporções, algo similar ao new deal norte-americano, que ajudou aquele país a se recuperar dos efeitos da Grande Depressão de 1929. (OLIVEIRA, Thiago. Revista Construção e Mercado, Ed. PINI, Nº 81, Abril 2008)

    Neste contexto, foi criado o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), e, para operá-lo, o Banco Nacional de Habitação (BNH). A configuração dessa nova política foi regimentada com o referido banco disciplinando, gerindo e direcionando os recursos do SFH. Assim, o BNH passou a nortear uma nova política habitacional no país, centralizando toda a ação do setor န agrupando, em um sistema único, todas as instituições públicas e privadas.

    O SFH foi gerado contando inicialmente com recursos provenientes de contribuição, a fundo perdido, de 1% da folha de pagamento de todos os empregados sujeitos ao regime da CLT. A exemplo da mal dimensionada dotação orçamentária da FCP (Gráfico 5), logo se pôde perceber que este montante era insignificante frente a empreitada habitacional.

    Foi em 1967, três anos após sua criação, que o SFH consolidou suas bases de auto-sustentação: neste ano foi criado o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), espécie de "fundo-desemprego" destinado a substituir as indenizações de demissões sem justa causa. A partir da sua criação, passou a garantir o confisco regular de 8% do salário mensal dos trabalhadores, a título de "capital imobiliário". Na mesma época também foi criado o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), com o objetivo de aumentar a captação de recursos das poupanças privadas. Com estas duas medidas, o Estado reuniu o capital necessário ao financiamento do consumo e da produção de moradias, com base nas poupanças compulsórias (FGTS) e voluntárias (SBPE). Tudo isso, segundo o discurso oficial, disponível para atendimento prioritário à população de baixa renda.

    Durante sua existência, o BNH tocou uma série de programas voltados para a habitação popular, como as Companhias Habitacionais (COHABs), o Plano de Habitação Popular (PLANHAP) e o Sistema Financeiro de Habitação Popular (SIFHAP). Ainda, sistematicamente orientou seus recursos para o financiamento de governos estaduais e municipais na produção de obras de infra-estrutura urbana. Grandes transformações nas cidades brasileiras puderam ser conferidas na década de 1970, período denominado como "milagre econômico", época em que os negócios da construção civil cresceram a taxas próximas de 10% ao ano.

    Embora a economia do país tenha crescido a um ritmo alucinante na década de 1970, é notória a absolutamente desigual distribuição de renda acentuada nesta época. Apesar das origens da deterioração da distribuição de renda estarem ligadas às crises que antecederam o golpe militar, não se pode negar a contribuição do período para a piora desse cenário. Assim, observou-se um intenso achatamento dos rendimentos da massa assalariada, a base fundamental dos recursos do FGTS, o que progressivamente comprometeu o volume de financiamentos do SFH para as classes de renda mais baixas. Analogamente, a crescente participação do SBPE significou uma alocação dos recursos do SFH proporcionalmente maior às famílias de renda mais elevada (Gráfico 6).

    Gráfico 6 - Participação percentual do FGTS e SBPE nos recursos do SFH (1967-1984)

    Fonte: Boletim do Banco Central, várias edições.

    Apesar da maior participação de recursos do SBPE oferecer uma estimativa apenas subjetiva sobre a destinação com característica pouco social das verbas, o cruzamento com os dados de renda familiar dos beneficiados confirma a tendência (Gráfico 7).

    Gráfico 7 - Distribuição dos recursos do SFH por faixa de renda (1964-1979)

    Fonte: Boletim do Banco Central, várias edições.

    Conclui-se pelo gráfico um forte paradoxo existencial do BNH, em função da sua proposta inicial de atendimento às camadas desfavorecidas da sociedade န mais sujeitas ao enquadramento no déficit habitacional. O banco destinou mais de 76% dos seus recursos para as famílias de renda superior a 5,85 salários mínimos.

    Apesar desta distorção, o BNH, até sua extinção em 1986, capitalizou a construção de diversos complexos habitacionais e empreendeu financiamentos para mais de 4,8 milhões de moradias, número representativo de quase 25% do total de residências construídas no Brasil ao longo de 22 anos. Ou seja, como negócio do capitalismo o SFH foi um sucesso inquestionável န e um fiasco como projeto social.

    O sucesso do SFH se deveu exatamente por tratar a habitação como uma mercadoria a ser produzida e comercializada em moldes estritamente capitalistas e o fato de ignorar os setores de menores rendimentos: os aproximadamente 77% da população que ganha de cinco salários para baixo.

    Apesar deste histórico de sustentabilidade, em 1982 foi montado o cenário de declínio do BNH. Turbulências na economia internacional, puxadas por moratórias de países em desenvolvimento e a alta do petróleo desencadearam no Brasil o período que depois viria a se chamar de "década perdida". O aumento do desemprego desencadeou uma massiva onda de saques das poupanças e do FGTS, as duas principais fontes de recursos do banco. Em outra frente, a escalada dos juros como tentativa de conter a inflação no mercado interno inviabilizou os financiamentos habitacionais.

    Insustentável, o Banco Nacional de Habitação foi extinto em 1986 deixando dívidas vultuosas. Apesar de seu fim ter representado um vácuo no financiamento de habitações, não provocou mudanças significativas nas camadas mais pobres. Estas nunca tiveram verdadeiramente acesso ao sistema, ora pelos baixos saldos do FGTS, quando assalariadas pela CLT, ora por não participarem do mercado de trabalho formal. Independente da atuação do BNH, o que se viu nas décadas de 1970 e 1980 foi o agravamento da situação habitacional, concomitante com a maximização das precárias condições de vida das classes populares brasileiras.

    Com o colapso final do sistema, representado pela extinção do BNH, se iniciou um tortuoso processo de reestruturação do financiamento do setor habitacional. O Governo Federal manteve seu controle sobre o financiamento ao setor habitacional ao centralizar os recursos financeiros necessários ao setor na figura da Caixa Econômica Federal (CEF) e pela função regulatória que exerce sobre os dois subsistemas do SFH (FGTS e SBPE), principalmente no que se refere à definição das taxas de remuneração dos recursos captados (Castro, 1999).

  • Limites e possibilidades da ação Municipal
  • Dentro da ainda forte mentalidade de que o poder público deve ser responsável por construir habitações para a população marginalizada, muito recai sobre os ombros das administrações municipais. Estando as prefeituras já envolvidas com as mais variadas obras de infra-estrutura urbana, como saneamento e pavimentação, e com a construção de escolas e praças, a idéia do provimento de habitação soa natural ao senso comum. Com a extinção do sistema BNH/SFH essa expectativa ficou ainda mais evidente, cabendo aos municípios a responsabilidade mais direta de enfrentamento da questão habitacional, sem que pudessem, entretanto, arcar com o ônus dessa dívida social.

    Legalmente, as prefeituras, para desenvolver as políticas urbanas e habitacionais municipais, devem instituir o plano diretor como o instrumento básico destas políticas. Com isto, busca-se o estabelecimento das diretrizes e dos instrumentos sobre o uso e ocupação do solo urbano, as formas de cooperação entre o setor público e privado e os critérios para o uso social da propriedade urbana. O município, em sua autonomia, também pode adotar como instrumentos leis específicas para HIS e planos de urbanização para assentamentos em condições precárias de habitabilidade, bem como a concessão de direito real de propriedade para fins de regularização fundiária (Estatuto da Cidade). Esta última, de uma forma geral, vem sendo o principal enfoque das prefeituras das metrópoles brasileiras, pelo considerável retorno político e o baixo custo administrativo atrelado a essa operação.

    Desta forma, os municípios têm se firmado como agentes atenuantes do problema da inadequação habitacional, dadas suas atuações na regularização fundiária e no provimento de saneamento básico para os assentamentos subnormais. Estes, segundo levantamentos da Fundação João Pinheiro, concentram de 20% a 50% da população de qualquer grande cidade do Brasil. Este dado não é difícil de ser conferido ao se analisar a paisagem das metrópoles do país (Figura 1).

    Figura 1 - Assentamento subnormal na cidade de Salvador

    A pesar da relativa inocuidade dos esforços dirigidos à solução do déficit quantitativo, faz-se importante comentar estas tentativas dos municípios, as mais importantes delas disciplinadas pelo poder federal.

  • O advento das COHABs e os conjuntos habitacionais
  • O início da atuação das Companhias Habitacionais (COHABs) confunde-se com a trajetória do BNH. As companhias, de âmbito regional ou municipal, iniciaram suas atividades como o elo entre os recursos do SFH às camadas mais pobres da população, por meio da construção e financiamento de grandes conjuntos habitacionais localizados nas áreas periféricas das cidades. Embora o capital emanasse do sistema federal, o planejamento, execução ou empreitada das obras esteve nas mãos das administrações municipais.

    O ápice da atuação das COHABs se deu justamente no auge das atividades do BNH. Embora estas tenham sido pensadas para atender a população de rendimentos de até 5 salários mínimos, logo o sistema bancário notou que este estrato tinha capital insuficiente para bancar a compra financiada das unidades. Em 1974, o BNH alterou a faixa de atuação das COHABs, caracterizando seu público-alvo na faixa de renda de 3 a 10 salários mínimos.

    Gráfico 8 - Unidades financiadas pelo SFH para as COHABs (1968-1980)

    Fonte: BNH - Relatório de Atividades

    Com esta alteração as COHABs experimentaram uma verdadeira explosão no volume de unidades construídas. Mas, obviamente, perdeu-se a característica social dos empreendimentos construídos, visto que, aos dados de hoje, a esmagadora maioria do déficit habitacional concentra-se no estrato que as COHABs não mais passaram a atender.

    As COHABs mantêm funcionamento até hoje, quando ainda são responsáveis por boa parte da política habitacional de muitos municípios, e sobrevivem ora como agentes executores de moradias, ora concedendo financiamentos à cooperativas. Sutis melhorias na qualidade das novas unidades têm sido notadas, em contraste com as práticas de construção dos conjuntos habitacionais dos anos 70, apesar da área construída pelas companhias atualmente ser infinitamente menor န e, portanto, insuficiente para suprir a demanda quantitativa de residências dignas nas cidades brasileiras.

    Enquanto as COHABs concentram seus esforços em empreendimentos pontuais, os conglomerados subnormais se multiplicam em todo o perímetro das cidades e os números do déficit habitacional prosseguem sua escalada. É aí onde se evidencia o principal problema do poder público como agente construtor: os conjuntos habitacionais, embora demandem quantidade razoável de recursos financeiros e administrativos, não conseguem transformar a realidade dos bairros subnormais. Muito pelo contrário, costumam atrair bolsões de favelas para seus entornos, fenômeno notório em cidades como Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo.

    De outro ângulo, de uma forma geral, é visível a baixa qualidade técnica dos projetos empreendidos pelo poder público brasileiro. Ou seja, não obstante a falta de abrangência sobre a população necessitada, aqueles que acabam tendo acesso a uma residência do poder público comumente se deparam com especificações técnicas escandalosas e acabamento sofrível. Apesar de isto sugerir um contingenciamento e cautela na utilização dos recursos, o que se observa é que os conjuntos habitacionais acabam saindo muito mais caro do que seria imaginável para construções desse nível.

  • Mutirões e ajudas de custo
  • Alguns agentes públicos, principalmente prefeituras e COHABs, e Organizações Não-Governamentais (ONGs) têm se dedicado na organização de mutirões ou no provimento de ajuda de custo para compra de materiais de construção pela população de baixa renda. Ainda, pratica-se a modalidade de financiamento direto de valores estipulados ao morador-construtor que apresentar um terreno legalizado e disposição para construir.

    Sobre os mutirões, estes representam opção viável somente para determinados tipos de projeto e, resumidamente, inquirem no barateamento do ciclo imobiliário por meio da exploração do trabalho informal. O conceito de o Estado patrocinar esse tipo de prática န adotando o mutirão como política oficial de enfrentamento do problema န é completamente absurdo e impróprio:

    O mutirão é uma espécie de dialética negativa em operação. A dialética negativa age assim: ao invés de elevar o nível da contradição, ela o rebaixa. Elevar o nível da contradição significaria atacar o problema da habitação pelos meios do capital. Rebaixar o nível da contradição significa atacar o problema da habitação por meio dos pobres trabalhadores. [...] Se a solução do mutirão se generalizasse, nós estaríamos caminhando para um inferno urbano. Se ela se universalizar, será a negação da solução da habitação. É nisso que o mutirão vai dar quando for transformado em política oficial. (OLIVEIRA, Francisco)

    A natureza do mutirão de construção de moradias vai à contramão do ideal de distribuição de renda e empregabilidade. A utilização de desempregados na mão de obra deste tipo de empreitada baseia-se em um pressuposto de que a população carente de teto deve estar e permanecer desempregada, para oferecer seu tempo de trabalho. A utilização dessa força de trabalho desmistifica a distribuição de renda, já que os futuros proprietários estão aplicando ali um capital barato e invisível, traduzido do seu suor. No final, não estarão angariando uma unidade de valor agregado: mas sim recebendo uma residência de baixíssimo ou nenhum valor de mercado, este sendo apenas um magro retorno do trabalho investido. Além disso, as futuras contribuições dos proprietários sobre suas fontes de renda, necessárias para complementar o suprimento dos demais custos da obra, representam apenas outra modalidade de financiamento habitacional.

    Naturalmente, estas constatações são relativas à generalização do sistema de mutirão como política pública. Existem fortuitos casos no país de bons projetos empreitados dessa forma, gerando resultados satisfatórios no que tange a qualidade do produto. Entretanto, nestes casos é factual a acepção de que tiveram sucesso exatamente pela sua unicidade e por sistemas organizacionais muito pontuais.

    O mutirão é virtuoso porque é excepcional. Para ser generalizável ele supõe que as pessoas sejam capazes de seu tempo de trabalho para a autoconstrução. Isso não pode ser o objetivo de uma política de habitação. [...] Exatamente porque ele é excepcional ele pode ser bonito, pode ser uma boa solução arquitetônica, pode ser urbanisticamente interessante, mas não pode ser generalizável. (OLIVEIRA, Francisco)

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