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—Oh! replicou o que recebera a objeção. Nada de sentimentalismo!. . . Queremos as idéias etéreas vivamos pura e exclusivamente para os sentidos. Nada de amôres platônicos ou exclusivistas! Nada de ciúmes e nada de egoísmos! Entre nós, as mulheres, seja qual fôr, é um instrumento de prazer, de que cada um se serve como melhor gosta e lhe apraz. Aqui, neste feliz recinto, as mulheres não têm dono; são como as flôres do caminho: pertencem ao primeiro que se debruça sôbre elas para lhes sorver o aroma. . .
E derreando-se entre as duas mulheres que estavam ao lado dêle, passou-lhes o braço na cintura e perguntou-lhes, beijando-as, uma e depois outra:
—Não é verdade, encantadoras amigas, saborosas flôres, cujo perfume nos embriaga de prazer? Não é verdade que não guardais egoisticamente, só para um homem, o vinho dos vossos lábios e os tesouros dos vossos corpos adoráveis?. . .
Uma das mulheres respondeu sorrindo:
—Somos altruístas... Com os encantos que possuímos, poderíamos, por interêsse, dar a felicidade a um homem... preferimos dá-la a muitos. É mais generoso. . .
—Decerto! confirmou o cavalheiro que falara por último. A castidade não passa de uma torpe especulação! . . .
—A mulher, reforçou o outro, só é verdadeiramente sublime, quando se dá a todos, sem preferência de nenhum. . .
—Não concordo convosco! declarou Alzira.
Ângelo sentiu-se irritado com aquelas idéias, e disse, erguendo-se:
—Degradante filosofia é a vossa, escravos da luxúria! Desvirtuastes o amor, prostituístes a mulher! Amaldiçoais assim a melhor obra de Deus!
—Ou do demônio... corrigiu com uma gargalhada um dos comensais.
—Não! teimou Ângelo. O demônio inventou o ódio e não o amor, descobriu a inveja e não a ambição, descobriu o desespêro e não a felicidade, descobriu a luxúria, que é o desespêro da carne, e não o amor, que é o orvalho da alma!
—Ou estás muito ébrio já, disse aquêle; ou és um poeta!
—Não! sou um homem que ama, e nada mais, repontou o amante de Alzira.
—Eis um sonhador!. . . interveio outro com uma nova gargalhada. Um amante das estrêlas!... Mau lugar escolheste tu para os teus idílios sentimentais!. . .
—Segue o teu caminho, visionário! aconselhou outro. A tua loucura faz-nos pensar, e nós não queremos dar-nos a êsse trabalho. . . Vai-te embora!
—Enxotam-me?! exclamou Ângelo.
E puxou um punhado de moedas de ouro, que atirou sôbre a mesa, acrescentando:—Tenho o direito de cá estar! Pago os meus prazeres! E, se alguém há entre vós, que a isso se queira opor, fale, que imediatamente lhe taparei a bôca.
Um dos convivas ergueu-se, encaminhou-se tranqüilo para êle e disse-lhe, com os olhos meio fechados pela embriaguez:
—Tens o direito de estar aqui, não há dúvida alguma. . . mas o que não tens, desgraçado, é o direito de incomodar-nos. ..
—Desgraçados sois vós, míseros sensualistas! replicou Ângelo.
—Deixa-me! tornou o outro desdenhosamente. A tua moral enjoa-me! Se quiseres seguir o nosso exemplo, aí tens o teu copo, é beber até caíres ébrio nos braços da mulher que te ficar mais perto; qualquer destas. . . Não temos ciúmes!. . . E se isso não te convém, toma então de novo a tua gôndola e segue adiante, que trazes ao teu lado uma mulher formosa e não prometemos respeitá-la mais que às outras.
—Ai daquele que lhe tocar com um dedo! exclamou Ângelo no auge de cólera.
Alzira interveio.
—Acalma-te disse ela, dando-lhe um beijo. A noite é curta, meu amor; não vale a pena perdê-la com outra cousa que não seja o prazer!
E, voltando-se para os que estavam à ceia:
—Encham-me a taça, amigos, que a noite ainda é melhor assim regada com o capitoso e dourado moscato italiano!
— Tens muito mais espírito que o teu sentimental amante!... observou rindo um dos convivas. E és formosa demais para pertencer a um só homem!
Ângelo deu um salto sôbre o libertino que acabava de falar e, desembainhando a sua espada, exclamou, pondo-lhe a mão esquerda fechada em frente do rosto:
—Mais uma palavra e arranco-te a alma, miserável!
—Acalmem-se! suplicou Alzira, colocando-se entre êles. Acalmem-se por quem são! Bebamos e folguemos, antes que o sol venha de novo tirar-me a carne de cima dos ossos!. . .
—A beleza, disse o contendor de Ângelo, esvaziando ainda uma vez a sua taça espumante; a beleza é uma divindade! E uma divindade deve ser adorada por todos!
—Bravo! bravo! gritaram os que se tinham deixado ficar no chão. Adoremos a divindade da beleza!
—À Beleza! À Beleza!
E entre risos, as taças chocaram-se, tilintando.
—É demais! gritou Ângelo desprendendo-se dos braços de Alzira, e saltando em meio do banquete. E demais! Êste miserável deve morrer!
A cortesã procurou detê-lo.
— Ângelo! Ângelo!
—Deixa-me! bradou este. Quero punir aquêle; infame! quero esmagar aquêle; estúpido libertino!
Houve um geral sobressalto. Ergueram-se todos. Puxaram pelas espadas, e as damas empalideceram, soltando gritos de pavor.
Ângelo parecia possesso. A lamina do seu aço florentino reluzia no ar, ameaçadoramente. E ele sem deter-se um instante no mesmo lugar, varria aos pontapés os estorvos que encontrava nos seus saltos de esgrimista.
—Venham todos! bradava, sacudindo os cabelos. Venham todos, cáfila de brutos sensuais! Venham, que os rejeitarei na ponta dêste ferro!
— Ângelo! Ângelo !
—Com a vida o pagarás! exclamou um hércules veneziano, que acabava de erguer-se sacando o punhal.
—Morrerás como um javali! gritou outro, acudindo de arma em punho.
E ouviu-se um côro de imprecações e frases de terror.
—Um conflito?! . . .
— Calma! calma!
—Diabos levem os intrusos!
—Morra quem perturba o nosso gôzo!
— Matem-no e lancem o cadáver ao mar!
— Fiquemos com a mulher, que é bonita!
Entretanto, um cavalheiro colocara-se defronte de Ângelo, com a espada em desafio.
Mediram-se as laminas, os ferros cruzaram-se no ar: os dois fizeram uma rápida oração entre os dentes cerrados pela cólera, e o combate começou feroz.
Abriu-se um instante de silencio, em que o retintim metálico das duas espadas era o único que se ouvia.
Os contendores arfavam, desesperado cada qual pela destreza e galhardia do seu adversário.
—Agora! bramiu Ângelo, caindo a fundo contra o inimigo.
E atravessou-o de lado a lado.
—Oh! gritaram todos, correndo para o lagar do duelo.
E cercaram Ângelo numa trincheira de espadas nuas.
—O meu punhal! berrou o perseguido, desembainhando a terrível arma, que lhe dera o Demônio do Ouro. Assim o querem?... Assim seja!
E abriu aos pulos para todos os lados, cravando unia punhalada a cada salto.
Um a um, iam caindo todos em volta dele, expirando cada qual entre gritos de agonia e uivos de cólera sequiosos de vingança.
Do meio para o fim desta singular hecatombe, os que não tinham recebido o golpe fatal, fugiram, lançando-se do cais às águas da baía. As mulheres rolavam pelo chão, estrebuchando espavoridas, ou jaziam sem sentidos, pálidas e estateladas como cadáveres.
Ângelo viu-se afinal senhor do campo e, ofegando de cansaço, limpou o punhal tinto de sangue nas roupas de uma das suas vítimas.
—Fujamos! disse Alzira, a enxugar-lhe com o lenço de rendas a fronte ressumbrante de suor. Fujamos antes que amanheça!
—Não! opôs Ângelo. Vamos beber ainda, e esperamos a aurora abraçados os dois sobre estes coxins feitos para a volúpia!. . .
Mas, no momento em que levava aos lábios a ânfora de vinho, arromessou-a para o lado, soltando um terrível grito de pavor.
Defronte dele, com os braços cruzados, os olhos faiscantes e o rosto fulo e sinistro como uma caveira, erguia-se o espectro do macilento cura de Monteli.
Ângelo recuou fulminado.
E o pároco, sem descruzar os braços, caminhou para ele atravessando-o com o seu claro olhar de sacerdote intransigente.
— Crápula! exclamou, chegando-lhe a bôca ao rosto. Assassino! Bêbedo! Ladrão!
O amante de Alzira pôs-se a tremer.
O outro prosseguiu:
—Em que imundo esgôto perdeste tu a tua vergonha e a tua consciência, miserável?. . . para andares sem pudor a vagabundear ao lado de uma infecta prostituta? . . .
—E que tens tu com isto, hipócrita?. . . interrogou o Ângelo boêmio, recuperando o sangue frio. Acaso vou eu tomar-te contas das ridículas pantomimices que levas a praticar durante o dia em Monteli?. . . Interrompo porventura a farsa das tuas missas, quando charlataneias o teu irrisório latim e ergues ao ar, espetaculosamente dois dedos de vinho e três de obreia, proclamando que é sangue e corpo de Cristo. . . o que vais ingerir?. . . Já fui eu lá dizer-te ao ouvido que isso é uma truanice, tão digna de desprêzo quanto de lástima?. . . Já fui eu lá insinuar aos teus devotos que os teus milagres são mentiras, como é mentira a tua fé, como é mentira a tua ciência, como é mentira a tua religião?. . . Não me venhas pois aborrecer, onde não és chamado, e volta para a tua pestilênta aldeia, que tens lá quem precise dos teus desvelos e dos teus conselhos. Dá-los ao filho da viúva Thevenet!
O presbítero, ouvindo este nome, estremeceu por sua vez.
Sacudiu a cabeça e disse revoltado:
—Até tu, alma perdida! até tu finges não compreender a verdade a respeito dessa infeliz criança.
—Não sou eu quem te acusa; são todos! Nada mais faço do que repetir a voz do povo, que é a voz de Deus! Some-te da minha presença!
—Sim! mas deixa essa mulher!
—Por que? Ah! compreendo! são os ciúmes que te agitam, hein? Magnífico!
—Deixa essa mulher, já disse!
—Queres que a deixe contigo, talvez!. . .
—Obedece-me ou eu tomar-ta-ei à força!
—Não tentes experimentá-lo, porque ficarias aqui mesmo estendido por terra com esses outros imprudentes que aí estão! Vai-te embora, desgraçado!
O pároco foi ter com Alzira e tomou-lhe as mãos.
—Acompanha-me, disse, com ar de súplica.
A cortesã olhou para ele, olhou para o outro, e abaixou os olhos, hesitando perplexa.
—Não vens comigo?... interrogou o padre, arfando de cólera e ciúme.
—E êle? balbuciou a cortesã. Como deixá-lo?. . . Bem vês que não posso!. . .
—Aqui! A meus braços! ordenou o outro Ângelo, batendo o pé. Já! Não dês ouvidos a esse embusteiro!
Alzira chegou-se para o amante folgazão, obedecendo submissa.
Então o pároco, sem dominar a cólera, atirou-se contra o rival, tentando estrangulá-lo.
Alzira, percebendo que aquele arrancava o punhal da cinta, apoderou-se do ferro traiçoeiramente e lançou-o ao mar.
O desarmado soltou um formidável grito de desespêro e engalfinhou-se com o outro Ângelo, rolando ambos ao chão, por entre os cadáveres ensangüentados, enquanto um sino ao longe principiava a badalar, chamando para a missa, e a aurora acordava a natureza, cantando um hino de gorjeios e murmúrios de floresta.
O infeliz vigário acordou afinal, na vida real, banhado de suor, sufocado e aflito, a debater-se no seu leito com a própria sombra, que o estrangulava.
XII
A tarde sucumbia lentamente, enchendo a natureza com a sua triste alma lamentosa. As cigarras estridulavam nas sonolentos frondes dos arvoredos, como um contínuo gemido do crepúsculo que agonizava. O sol, cansado do seu esplendor, fugia ao longe, cambaleando por uma escadaria de púrpura real. Os lavradores recolhiam-se à casa, com a ferramenta ao ombro, e crianças brincavam no eirado ouvindo às Trindades.
Entretanto, na modesta sala de jantar do cura de Monteli, a velha Salomé, com o queixo apoiado à mão, o olhar perdido ao acaso, meneava a cabeça defronte do Dr. Cobalt, e parecia deveras desconsolada.
O médico tomava notas na sua carteira.
—Êle não se queixa de nada?... perguntou depois de uma pausa, a estorcer nos dedos o lábio inferior.
—Não, senhor doutor, não se queixa de nada!. . . E é isso o que eu estranho!. . .
—Não tem dores de cabeça?. . . Vertigens, achaques nervosos?. . . insistiu aquêle.
—Se tem, não sei. . . respondeu a criada, porque êle não se queixa nunca...É outra outra que eu estranho! . . .
—Come com apetite?. . .
—Tão pouco como dantes. . .
—Está mais expansivo?. . . Conversa?. . .
—Está na mesma. . . E isso também não deixa de causar-me certa estranheza!
—Dorme bem?. . .
—Ah! Quanto a isso, acho que até dorme demais!. . . Ultimamente, mal toca às Trindades, já o senhor vigário está procurando a cama!... Só nisto mudou durante a ausência do sr. doutor... Dantes levava às vezes acordado até que horas da madrugada, e agora, é anoitecer, e já ninguém o detém de pé! Deu para isso desde aquela célebre noite em que o vieram buscar para ir à Avenida de Blancs-Manteaux.
O médico tomou novas notas e perguntou depois, sem desfilar o olhar de onde o tinha pregado:
—Êle anda muito durante o dia?... Fatiga-se?...
—Não sai agora de casa senão para os seus deveres . . .
—Não passeia?...
—Agora, nunca. Dantes ainda o fazia algumas vêzes, e quase sempre demorava-se por aí, margeando o rio ou percorrendo a serra; mas depois da ida ao castelo d'Aurbiny, nunca mais fêz dêsses passeios. Mal acaba o que tem de aviar aí por fora, volta logo para casa e, chegando a noite, deita-se, haja o que houver! . . .
—E dorme logo?. . .
—É deitar-se e pegar logo no sono.
—E o sono é sossegado?. . . é profundo?. . .
—Pode vir a casa abaixo, que ele não dá por isso! Só desperta na manhã seguinte, ao raiar do dia. E nunca vi procurar a cama com tamanha sofreguidão! . . . Até parece moléstia, Deus me perdoe!
—Singular!.. . muito singular!. . . resmungou o doutor, sem largar o lábio.
—Nem sei o que me parece aquele modo de dormir!... tornou a criada, com um suspiro em que denunciava tôda a sua tristeza pelo estado do amo. Tenho meus receios de que haja praga! Virgem Santíssima! Há no mundo tanta boca danada, e o senhor vigário tem sido perseguido pelos padres que vieram de Paris!...
Cobalto, interrompeu-a.
—Êle não lhe tem contado nada a seu respeito, minha boa amiga?. . . perguntou.
— Qual nunca estêve comigo tão fechado como agora. . .
—É singular!... resmungou o médico. É singular!... Os fenômenos que observo neste enfêrmo, desmentem as minhas experiências já feitas nos hospitais! . . . É um caso singularíssimo de histeria no homem! . . . Ah, meus colegas, meus colegas obstinados em que a histeria tem a sede no útero!. . . Queria vê-los aqui, e haviam de confessar que ela não passa de uma nevrose encefálica!... Platão com o seu sistema de útero desesperado por conceber, com o seu útero que dana e faz cabriolas até ao cérebro, é um visionário, como todos os seus discípulos espalhados pelas nossas academias!... No século dezenove compreenderão talvez o que hoje negam tão obcecadamente! Caturras! Não percebem que o vasto mundo dos nervos é tão grande, tão complicado e tão extraordinário, como todo um mundo planetário!. . . Falam em psicologia, falam em intelecto, e não falam nessa cousa ainda hoje sem nome—a vida autônoma dos nervos; isso, cujo conjunto pressinto e vejo pelas suas fenomenais manifestações, e habita uma parte material de nosso corpo, tão importante que pouco conhecida e estudada até hoje! isso, que há de encher uma época no mundo dos sábios e produzir uma grande revolução científica! Ah! não poder eu viver daqui a cem anos!. . . ou não ter talento, gênio, para poder adivinhar o que os outros mais tarde descobrirão. Maldita seja esta minha cabeça inútil, e maldita seja a medicina! E maldita principalmente seja esta minha ausência de Monteli, durante a qual tantos progressos fez o meu doente na sua desconhecida moléstia!... Ah! mas hei de chegar a um resultado, ou enforco-me no primeiro lampião ou na primeira árvore que encontrar pelo caminho! E, voltando-se vivamente para a tia Salomé, a limpar, ofegante, o suor da testa, perguntou:
—E ele em que estado acorda?. . .
—Ora, sr. doutor. . . Cada vez mais acabrunhado e abatido. . . respondeu a boa velha, sarapantada de todo com o ar perplexo do médico. As tais horas de sono do senhor vigário, em vez de lhe darem novas fôrças e fazê-lo rijo, a modo que o deixam mais prostrado. . . Acorda cansado nem que se chegasse de uma viagem muito longa, ou que então largasse naquele instante um serviço muito forte!. . . Levanta-se da cama quase cambaleando, as suas orações fá-las ele tão fatigado como se passasse a noite em claro, barbeia-se caindo de sono, e depois assenta-se um bom tempo, descansando. Se eu não vier chamá-lo para a missa, é capaz de ficar aí todo o santo dia, a cismar!. . .
—Diabo! exclamou o médico com uma palmada na perna. Diabo! esta minha ausência foi um transtorno infernal! A nevrose chegou a um ponto em que se torna quase incurável!. . . Ah! mas, haja o que houver, carrego-o amanhã mesmo para o novo hospital de nevropatas que acabei de abrir, e vou fazer nele as minhas primeiras experiências da aplicação da água fria por meio de duchas graduadas! Está decidido! E é bem possível que eu, daqui a pouco tempo, esteja apresentando à Academia de Ciências o meu livro novo sôbre o grande mundo dos nervos! . . .
E voltando a ter com Salomé:
—Não veio de Paris ninguém visitá-lo, além dos devotos do milagre?. . .
—Ninguém. . . respondeu ela.
—Diga-me uma cousa, tiazinha. . . mas fale com franqueza, que é para o bem do nosso doente. . . Nunca descobriu no vigário qualquer inclinação por alguma mulher? . . .
—Credo, senhor doutor!... exclamou Salomé, benzendo-se. Credo, Pai Santíssimo! Pois então o senhor vigário seria lá capaz de?... Êle, que é um santo! Valha-me a Senhora dos Aflitos, que até senti um engulho no estômago!
—Não há dúvida! Carrego-o amanhã mesmo para o hospital!. . . Vou daqui tratar do que me falta para poder levá-lo!
Salomé, que tinha ido até à janela, voltou para segredar apressada ao médico:
— Êle aí vem!. . .
Cobalto, pôs-se logo em retirada, e disse precipitadamente à velha:
—Continue a observá-lo. Volto em breve. Segrêdo, hein?... E tome lá para o seu rapé!
Atirou-lhe uma moeda e fugiu; enquanto Salomé, indo abrir a porta, considerava de si para si:
—O vigário estará sofrendo da cabeça, mas este médico, pelos modos, não regula melhor que êle. . .
E abriu a porta a Ângelo, que entrou da rua, mais taciturno e mais sonâmbulo do que nunca.
A criada foi ter ao seu encontro e deu-lhe as boas noites.
O infeliz não respondeu.
—Coitado!... pensou ela, considerando-o da cabeça aos pos com um olhar de lástima. Como ele está hoje!. . . Nem deu pela minha presença!. . .
E tomou-lhe o braço, para perguntar-lhe, gritando, como se falasse a um surdo:
—O senhor vigário quer que eu vá buscar a sua refeição? . . .
E, como êle. ainda desta vez não respondesse, a boa velha afastou-se lá para a cozinha, resmungando:
—É melhor mesmo que o doutor o leve, para ver se o endireita!. . .
A intriga dos invejosos vingara finalmente. Angelo era já pelos seus superiores considerado louco; o arcebispo suspendera-lhe as ordens por tempo indefinido, e ameaçava de excomunhão todo aquêle. que fôsse a Monteli em romaria devota.
Entretanto, êle parecia indiferente e alheio a tudo isso, e continuava escravo dos seus dolorosos enlevos, como se o seu espírito vivesse com efeito em um outro mundo, um mundo só dêle conhecido, um mundo longe da terra e longe das suas duras melancolias religiosas.
E, cada vez mais taciturno e sombrio, seu vulto, quando agora vagava pelas estradas, já se não detinha aos gemidos dos desgraçados, nem ao riso alvar dos imbecis que escarneciam dêle.
Salomé tinha razão: a cousa única que o preocupava agora, era o sono. Ângelo queria dormir tanto quanto possível, para sonhar muito. O delírio conquistara-o de todo. O sonho vencera a vida real.
Ângelo foi até ao seu quarto e parou junto à cama.
—Eis enfim o momento de dormir!... pensou êle. Dormir!—estranho modo de morrer! . . . Sonhar! —estranho modo de viver!. . .
E atirou o chapéu para o lado, desfez-se do capote e continuou a meditar:
—Sim, murmurou, sacudindo a cabeça; sim, eu vivo nos meus sonhos, e mentiria se dissesse que os não desejo... Desejo-os ardentemente; volto dêles com a consciência aflita e dolorida, mas durante as longas horas do dia, nada mais faço que chamar pela noite, para poder correr aos braços de Alzira!... Será vida o sonho?. . . E por que não?. . . por que supor que esta é vida verdadeira e a outra não?. . . Por que, se ambas têm a mesma razão de ser? as mesmas dúvidas, as mesmas incertezas! . . . Não são ambas um mistério?. . . Saberei por acaso o que eu era antes de nascer e o que serei depois da morte?. . . De onde vim?. . . Para onde vou?. . . Eis o mistério!. . . A vida, qualquer que ela seja, não será sempre um ligeiro sonho que se esvai entre dois nadas? Sair de um ventre de mulher, para entrar no ventre da terra! . . . Eis tudo o que se sabe! . . .
E começou a espacear pelo quarto, gesticulando.
— Sim! Qual das duas vidas será a verdadeira?... Qual das duas será mentira e sonho?... Poderei afirmar que existo nesta?. . .
E começou a apalpar as mãos, e a estorcer, uns contra os outros, seus dedos magros e pálidos.
—Este meu corpo será com efeito meu, e será com efeito um corpo?. . . Ele com efeito existirá?. . . Eu o estarei vendo, ou tudo isto será ilusão?... (E apertou com força, entre os dedos, a carne do seu braço.) Todos êstes objetos que me cercam, existirão com efeito?... Sim! Eu os vejo! eu os apalpo! Eu os sinto com o meu tato!
Salomé, que entrara com a merenda, estacou a olhar para êle. desconsoladamente.
—Que estará o senhor vigário a fazer às voltas com aquela cadeira?... resmungou ela, notando que Ângelo tinha uma cadeira erguida nas mãos e a examinava com suma atenção. Parece admirar uma raridade! . .
— Sim, exclamou o pároco. Isto existe!
E arremessou a cadeira ao chão.
—Mau! mau! resmungou a criada. Hoje está para quebrar as cousas!. . .
E foi ter com êle. carinhosamente, depois de largar sôbre a mesa a bandeja da merenda.
—Por que não trata de comer alguma cousa e recolher-se, senhor vigário?. . . Olhe que já são quase sete horas!. . .
Ângelo despertou:
—Sete horas? Já? Sim, sim, vou deitar-me! Preciso dormir! dormir muito!
—Mas há de primeiro tomar a sopinha de leite com pão! Vamos! venha para a mesa! (E conduziu-o até lá, puxando-o pelo braço). Assim! Agora beba um trago de vinho!
Ângelo obedecia, como uma criança, sem dizer palavra.
—Bem, disse a criada, quando viu que não conseguia fazê-lo comer mais nada. Agora pode recolher-se. Boa noite!
E saiu, soltando um fundo suspiro de lástima.
O presbítero continuou perdido nas suas cismas.
—Sonhar!. . . Sonhar!. . . Estarei eu sonhando agora, para daqui a pouco acordar nos braços de Alzira? . . não! mas isto existe!
E tomou de cima da mesa o canjirão de vinho.
—Tanto existe. .. prosseguiu êle. que eu posso quebrar êste objeto! destruí-lo! (E despedaçou o canjirão contra a parede). Eu tenho um corpo que sente…tenho uma alma que dói! Ah! mas na outra vida palpita-me também o sangue dentro das veias! na outra vida a minha bôca beija, os meus olhos choram, a minha carne treme de prazer e de dor! na outra vida governo os meus membros, dirijo os meus pensamentos, e piso a terra, e repiso o ar, e como, e bebo, e amo!
Nisto abriu-se surdamente a porta que dava para o interior da casa, e a veneranda figura do velho Ozéas desenhou-se contra a sombra.
Vinha abatido pela sua longa enfermidade; parecia mais velho e macilento. Afundaram-se-lhe de todo as faces e cavaram-se-lhe os olhos, onde transparecia agora, em vez do brilho místico que o iluminava dantes uma triste luz de mortal desesperança.
Imóvel, de braços cruzados sôbre o peito, quedou-se a observar em silêncio o espectro do seu discípulo amado.
Ângelo que não dera por ele e continuava a monologar, gesticulando:
—Sim... sim... por que acreditar que esta miserável existência de cura de aldeia é a vida real, e a outra não? a outra que aliás é tão superior?. . . Sim! sim! Ou ambas são vida, ou são ambas sonho!... A única diferença é que lá eu vivo e gozo, ao passo que aqui. . . apenas choro o sofro. . . Ah! sonho por sonho, prefiro o outro! no outro sou feliz, sou livre, sou um homem como qualquer! não tenho senhor! não tenho Deus! Lá—eu amo—eu sou amado! Sim! sim! Prefiro a outra vida! Corramos aos braços de Alzira!
E encaminhou-se para o quarto com avidez.
Mas frei Ozéas, que lentamente se aproximara do discípulo, fê-lo estacar, interpondo-se-lhe na passagem.
—Oh! meu pai? . . . exclamou o pároco.
—Ângelo! disse o frade, abrindo os braços, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas longas barbas brancas.
—Meu pai aqui!
— Sim! Venho em teu socorro, meu filho!
E Ângelo atirou-se-lhe nos braços, soluçando.
XIII
Passado o abalo da primeira impressão, um constrangido silêncio fêz-se entre Ângelo e Ozéas.
O presbítero tinha os olhos baixos, como um criminoso, e o outro acompanhava-lhe os menores movimentos, tremulando a cabeça.
—Sim, meu filho. . . disse o velho afinal, venho em teu socorro!... Dize-me como estás e dize-me o que sentes. . .
Ângelo não ergueu os olhos.
—Eu?... Nada!... tartamudeou. Creio que estou bom. . .
—E eu tenho a certeza do contrário, meu pobre Ângelo . . .
E Ozéas acrescentou a um gesto negativo do discípulo:
—Ah! Não tentes enganar-me!... Tens, seja qual fôr, uma preocupação bem grave, que inùltimente procuras esconder aos meus olhos! . . . Há alguns instantes que te observo, que acompanho todos os teus movimentos, cheguei mesmo a ouvir muitas palavras do teu monólogo de louco! Ah, sim! tens uma dor secreta, e eu hei de arrancar-te e destruí-la, custe o que custar!... Vamos! É melhor que fales com franqueza!
—Nada! Não tenho nada!. . . insistiu o pároco, visivelmente perturbado.
—Negas?!... Desconheço-te, Ângelo!... Já não és o mesmo casto discípulo, que eu cerquei durante vinte anos com a dedicação dos meus desvelos e da minha fé!. . .
—Creia que se ilude, meu pai!. . .
—Tu é que me queres iludir, Ângelo. . . Ah! mas não o conseguirás! Não suponhas que vim aqui às apalpadelas. . . Tenho-te acompanhado de longe, desde que a enfermidade me obrigou a separar-me de ti. . .
E recuperando de súbito o seu antigo ar enérgico, exclamou:
—Exijo que me confesses abertamente a causa dêste teu estado atual!
—Mas...
—Exijo!
—Mas que lhe hei de dizer?. . .
—Fala-me, por exemplo, das consequências daquele estranho sobressalto, que te aconteceu quando celebravas a tua primeira missa. . . Ainda até hoje não me deste conta disso!. . .
Ângelo estremeceu, balbuciando alguns sons ininteligíveis .
E Ozéas acrescentou:
—Sim, nunca me confessaste que êle foi provocado por uma mulher que se achava na igreja. . .
O pároco estremeceu ainda.
—E por que tremes agora?.. . bradou o velho. Por que abaixas os olhos?... Por que desse modo empalideces?. . . Por que as lágrimas estão a correr-te pelas faces?. . . Ah! eram bem fundados os meus receios de então!... são bem certas as minhas desconfianças de agora!.. .
—Desconfianças?... De que?...
—De que Alzira te preocupa ainda!.
—Alzira já não existe. ..
—Sim, já não existe para o mundo... Quem sabe, porém, se ela não continuará a existir para a tua imaginação enferma e desvairada?...
O pobre maço tomou-lhe as mãos.
—Por que diz isso, meu pai?. .
—Porque vejo e compreendo que uma idéia fixa te rói o cérebro e devora-te a razão! Quero saber o que é! Fala!
Houve uma pausa.
Ozéas prosseguiu, mudando de tom:
—É a primeira vez que bato ao teu coração, e ele se não abre logo de par em par!. . . Compreendo: já te não possuo. . . já não és o mesmo que fôste para mim... já não és o meu filho submisso e casto!... Perdi tudo! Paciência! Nada mais me resta a fazer aqui... Adeus.
Ângelo prendeu-o nos braços.
—Perdoe! perdoe, meu pai!
—Então fala!
—Ah! se soubesses quanto eu sofro!.
—E não obstante ainda há pouco sustentavas o contrário. . . Bem vês que tenho razão!. . .
— Sim, mas, por amor de Deus, não exija que eu fale!...
—Ao contrário, quero que me abras o teu coração com toda a confiança, quero que mo despejes em confissão, como o fazias dantes!
—Mas é tão estranho o que se passa comigo!. . .
—Conta-me tudo!
— Sou um imperdoável pecador!
—Maior serias se não me falasses com sinceridade! . . .
—Sou um desgraçado!. . .
—Não tanto, como se eu não estivesse agora a teu lado, disposto a salvar-te!. . .
—Mas o meu crime é traiçoeiro. . . só se apodera de mim durante a inconsciência do sonho. ..
Ozéas, fixou-o, e, concentrando a atenção, disse depois surdamente:
—Continua...
—Vou dizer-lhe tudo com franqueza!...
E Ângelo olhou para os lados, e acrescentou, abafando a voz:
—Vou contar-lhe tudo. . .
—Fala, meu filho. ..
—A perturbação que eu senti no dia em que me ordenei, era com efeito causada por uma mulher. . .
—Alzira...
—Sim. . . confirmou o pároco, meneando lentamente a cabeça. Sim. . . Alzira. . . Soube logo que esse era o seu nome, em volta de mim na igreja todos o repetiam quando ela me fitava da tribuna. . .
—Eu notei. E depois!...
— Só a tornei a ver naquela noite em que deixei Paris. . . E no dia em que ela veio procurar-me aqui.
— Sei. Adiante.
— Sua imagem, porém, nunca mais me saiu da memória, até que, uma noite, sonhei que vinham buscar-me para socorrer um moribundo. ..
—Não foi sonho, foi a realidade. . .
—A realidade?!... exclamou Ângelo, com os olhos pasmados. Então é real que a estreitei nos meus braços?. . . Então é real que a ressuscitei com os meus beijos?! . . .
—Isso é que já foi sonho, ou melhor, delírio!
—Meu Deus! onde começa o sonho?... onde termina a realidade?. . . Alzira teria com efeito vindo buscar-me no dia seguinte ao seu enterro?.. . (Ozéas redobrou de atenção). Eu ter-me-ia transformado em um cavalheiro e ela em formosa dama? Teríamos saído por aí afora, montados em fogosos cavalos, que nos levaram a mundos desconhecidos para mim?. . . Teria eu percorrido com ela todas essas paragens maravilhosas?. . . Teria eu provado de todos os venenos do prazer e bebido de todos os vinhos do amor?. . .
Ozéas apoderou-se do braço de Ângelo.
—E ela continua a voltar?. . . exclamou, sobressaltado.
—Sim, sim, volta sempre! Ainda não faltou uma só noite até hoje! Mal adormeço, ela vem logo e carrega comigo! É ela a pessoa com quem eu mais convivo neste mundo.
—Neste, não! no mundo da tua loucura!
—E por que acreditar que este é o verdadeiro e o outro não?!... Ambos me ocupam longas horas o espírito, ambos palpitam de sentimento e de verdade, ambos tem as suas consolações e os seus desgostos!
—Mas, meu filho, não te lembras que cresceste a meu lado, que viveste sempre comigo?. . .
—Também no outro mundo tenho reminiscências de uma vida inteira. Lembro-me do colégio, das férias passadas com parentes, dos afagos de meus pais... sim! porque lá não sou um miserável enjeitado.. . tenho família e tenho amigos... E' uma vida completa e perfeita! Esta outra existência obscura, de pároco de aldeia, apresenta-se-me então ao espírito como um sonho extravagante e ridículo!. . .
—É preciso que Alzira nunca mais te apareça! bradou o velho.
—Ah! disse Ângelo. Creio que só com a morte deixarei de vê-la!. . . E, ainda assim, quem sabe?... Quem sabe se Alzira não virá ter comigo, quando esse outro sono me adormecer para sempre?... E quem poderá afirmar que eu vivo?. . . quem me dirá que não sou, como ela, um pobre espírito errante, um espectro, uma sombra, condenado a nunca repousar?. . .
—Cala-te, louco! Não a verás hoje!
—Ela virá logo que eu adormeça!. . .
—Hoje não dormirás!
—Ela me espera!. ..
—Desgraçado! Já não és senhor de tua vontade?.. . Acaso negociaste tua alma?...
—Não, meu pai, minha vontade é a sua... minha alma pertence a quem ma confiou, pertence a Deus!
—Pois então, obedece-me! Põe o teu capote e o teu chapéu, toma um alvião e uma enxada, e acompanha-me!
—Aonde vamos?
—Depois o saberás. Ajoelha-te e pede ao Criador que te proteja!
O discípulo obedeceu.
E o velho acrescentou, erguendo os braços e os olhos para o céu:
—Ó meu Deus! Ó senhor misericordioso! não nos desampareis nesta terrível excursão que vamos empreender! . . .
XIV
Ozéas muniu-se de uma lanterna furta-luz e fez-se acompanhar por Ângelo, que levava o alvião e a enxada.
Saíram.
A noite era bonita e frouxamente iluminada por um luar de abril. A aldeia dormia já, e apenas algumas árvores rumorejavam, sonhando talvez, ainda tontas da quente carícia do último sol que as sufocara com os seus beijos de fogo.
Cães ladravam, de pescoço estendido, provocando o céu. As estrelas bruxuleavam tristemente no azul da abóbada misteriosa. Não se ouvia o pio de uma ave noturna.
E os dois religiosos lá se iam pela estrada, silenciosamente, projetando longas sombras na areia dos caminhos.
Pareciam dois espectros filhos da mesma noite.
Andaram durante algumas horas. Atravessaram a aldeia, sem dizer palavra. E afinal chegaram a um cemitério, que já não pertencia a Monteli e sim a Blancs-Manteaux.
—É aqui, meu filho. .. disse o velho, parando, extenuado de fadiga.
Ângelo nada respondeu. Encostou-se ao sinistro moro da casa dos mortos e respirou descansando.
—O que viemos aqui fazer. . . perguntou depois.
—Entremos... deliberou o outro, procurando o lado mais baixo do muro para galgá-lo.
E penetraram no cemitério.
Era um bem triste lugar aquele, com a sua dura simetria de túmulos enfileirados, branquejando ao luar. Canteiros de flôres, mais fúnebres que as sepulturas, pareciam dizer na muda linguagem das perpétuas e das margaridas, todo o segredo das dores e das saudades, que ali gemeram junto aos que fugiram para debaixo da terra.
Mas agora, nem o eco de um soluço, nem a cintilação de uma lágrima!. . .
Mudo esquecimento e paz absoluta! A lágrima nasceu líquida para secar depressa, e o soluço não tem asas para acompanhar a memória dos que morrem!
Ozéas e Ângelo puseram-se a andar vagarosamente por entre os mausoléus, até chegarem ao campo raso dos mortos anônimos, para os quais só há uma cruz de ferro, com um simples número, fria como o coração do coveiro que os sepultou.
O cemitério era grande, mas de aspecto miserável. Um vasto campo, que se estendia, subindo em rampa, até parar de súbito num formidável despenhadeiro, onde nunca descia a luz do sol nem das estrelas.
O frade, ao chegar a certo sepulcro, coberto por uma lousa de mármore, deu luz à sua lanterna, e alumiou a lápide.
—Lê!.. . disse ao companheiro.
—Ah! exclamou Ângelo, retraindo-se.
Na laje funerária estava escrito "Alzira".
—Aqui jaz o que dela resta. . . segredou o velho.
E depois de um silencio, acrescentou:—Levanta a lousa. . .
—Profanar uma sepultura!. . . Eu?. . . protestou Ângelo, recuando. Não! Nunca!
—Assim é preciso! Obedece!
—Meu pai! . . .
—Obedece!
O presbítero hesitou ainda.
—Obedece, ou eu te amaldiçoarei para sempre! insistiu Ozéas.
Ângelo abaixou a cabeça e começou a levantar com o alvião a pedra sepulcral.
Conseguiu-o no fim de algum esfôrço.
—Agora, tornou o velho, quando viu a tumba descoberta, tira com a enxada o que está lá dentro.
O pároco voltou o rosto, exclamando:
—Oh, não! não! por amor de Deus!
Ozéas tomou a enxada, e retirou com ela uma caveira de dentro da sepultura.
Limpou-a ao hábito e levou-a até aos olhos do discípulo, dizendo:
—Ve! Vê bem!.. .
—Uma caveira!
— Sim! Uma caveira! É tudo que resta da beleza da tua Alzira!. . . a terra comeu-lhe os olhos, o nariz, a boca, as faces cor-de-rosa. . . Só ficaram os dentes, para se rirem de ti, louco!
Ângelo tomou a caveira entre as mãos, e ficou a contemplá-la, abstrato e mudo.
Ozéas chegou-se mais para ele e disse-lhe, avizinhando a boca do seu ouvido e abafando a voz como quem conspira:
— Vê bem!. . . É uma caveira vulgar. . . confunde-se com todas as outras!. . . Foram-se-lhe os encantos... foram-se os cabelos com os seus perfumes sensuais, os lábios com os seus sorrisos sedutores, os olhos com as suas chamas de amor!. . .
—Meu Deus! soluçou Ângelo.
— Restam apenas ossos... insistiu Ozéas. É tudo que dela resta neste mundo!... O mais que suponhas que exista, o mais que vejas nos teus sonhos libertinos, é loucura! Compreende bem, Ângelo! — Loucura!
—Meu Deus! exclamou o môço, deixando cair a caveira dentro do túmulo, e sentindo fugir-lhe a luz dos Olhos. Meu Deus, valei-me.
E baqueou no chão, abraçando-se à lápide.
Ozéas precipitou-se sôbre ele, para socorrê-lo.
—Ângelo! chamou. Animo! animo, meu filho!
O pároco não deu acordo de si.
E o pobre velho apalpou-lhe o rosto e o coração.
—Perdeu os sentidos! disse aflito. Valha-me Deus! Valha-me Deus! Como lhe hei de valer? Se eu tivesse ao menos um pouco de água. A sua fronte escalda de febre!
E correu os olhos em torno, desesperado por ver sòmente a morte em volta do seu desespero.
—Ah! exclamou com uma idéia. Na capela! Talvez encontre o guarda! . . .
E procurando estugar os seus cansados passos de ancião, afastou-se deixando Ângelo abraçado à lousa de Alzira.
Ângelo ergueu a cabeça ao fim de algum tempo e contraiu-se todo, ajoelhando-se na terra.
Todo ele tremia.
Aos seus olhos desvairados, um terrível espetáculo se patenteada naquele instante.
Alzira surgia da cova, lentamente. Vinha toda de branco, no seu longo roupão funerário, em que ele a vira estendida no seu leito de morta, quando, louco de amor, a estreitara nos braços. Tinha os cabelos soltos sobre as espáduas, os olhos repreensivos e tristes, a bôca entreaberta por um sorriso amargo, mostrando a embaciada pérola dos dentes.
—Ah! gritou o pároco, fitando-a.
E um singular diálogo travou-se entre os dois:
—Para que vieste profanar esta sepultura?... perguntou o branco espectro de Alzira.
Ângelo respondeu, sempre de joelhos e sem despregar o solhos dela:
—Para me convencer de que não és mais do que vil despojo! Para me convencer de que és pó e lodo! . . .
—E que lucraste com isso?. . .
—A razão, porque tu me enlouqueces. . . Tu és a minha loucura, sedutor demônio!
—Loucura! E conheces, por acaso, alguma cousa no mundo que não seja delírio e loucura?. . . O que é a tua virtude senão loucura?... o que é a tua ciência?... o que é a tua religião?... Tudo isso é insânia!... Tudo isso é a febre dos doidos!... é o desvairar dos loucos!.. .
Ângelo arrastou-se para ela, exclamando suplicante:
—Então não me deixes viver outra vida senão esta em que eu te tenho ao meu lado, ao alcance dos meus lábios!. . . Leva-me, como nas outras noites, para os teus palácios encantados, para as tuas grutas misteriosas, leva-me para onde quiseres. Eu serei o teu pajem! o teu amante! o teu donzel!
—É tarde! replicou Alzira, desviando-se dele, sem fugir de onde estava!
—Não! insistiu o pároco! não é tarde! Venha a minha espada de cavalheiro! Venha o meu fogoso ginete de longas crinas flutuantes! Arranca-me desta abominável mortalha preta, em que me envolveram desde o berço! Arrancam-me desta vida estúpida, e dá-me a outra ideal e sonhadora! Vamos! quero ser de novo um aventureiro, quero as minhas paixões, quero o meu punhal, quero a formosa mulher que palpitava de amor nos meus braços! Vamos! Vamos, minha Alzira, meu doce enlevo, poesia e sonho de minha vida, encanto da minha alma! Vamos! atende-me!
—É tarde!
—Ah! gemeu o mísero, deixando cair a cabeça entre as mãos, a soluçar.
—Ouve, desgraçado! tornou a sombra de Alzira, com uma voz triste e plangente. O amor que te votei era tão grande, que ninguém jamais amou tanto sôbre a terra! . . . tão grande, que eu consegui, das invioláveis profundezas dêste mundo dos mortos, criar um novo modo de viver contigo! Dei-te a vida ideal do sonho, onde não terias nunca as tristes misérias dessa outra vida em que vegetas!. . . Mas tu, insensato! acabas de destruir o que eu com tamanho amor criei para a tua felicidade!. . . Que lucraste em desfazer a nossa vida fantástica?. . . Que vantagens descobriste nessa miserável existência que te resta agora, tão carregada de tédios e mesquinhas necessidades?... Onde melhor poderíamos gozar a suprema ventura de nos amarmos, de que em um mundo ideal inventado pelo nosso próprio amor? . . .
— Sim! sim! exclamou Ângelo. Eu quero viver eternamente contigo!. . . Eu quero continuar a ser uma sombra! Eu quero sonhar!
—É tarde! repetiu o espectro. Mira-te na tua sombra! . . .
E o seu rosto começou a fazer-se pálido, e mais pálido, até tornar-se côr de osso, e os seus olhos foram-se esfumando, a cobrirem-se de sombra, até que nada mais eram do que dois negros buracos apagados, e seu nariz desapareceu, e os seus cabelos abandonaram o crânio amarelento e nu, e os seus lábios sumiram-se, deixando a descoberto os dentes já sem brilho.
E a caveira ressurgiu afinal, sorrindo para Ângelo, pavorosamente.
E por debaixo do alvo roupão mortuário, foi, pouco a pouco, fugindo a carne que o enchia. Desfizeram-se as voluptuosas curvas dos quadris e do colo. A túnica engelhou bamba como um sudário sôbre um esqueleto.
E Ângelo ouviu um sinistro cascalhar de ossos, e, soltando um grito, viu cair e sumir-se o desfeito espectro na aberta e tenebrosa bôca do sepulcro.
Debruçou-se sôbre a cova, olhando lá para dentro.
Nada mais viu do que um punhado de lôdo.
Ozéas acudira de carreira, e lançou-se para êle com os braços abertos.
— Que tens, meu filho? Que tens. . . Fala! exclamou, erguendo-o.
Ângelo pôs-se de pé, passou a mão pela fronte, e disse, amargamente:
—Acabou-se tudo. . . Nunca mais, nunca mais a verei!...
—Por Deus que nunca mais! confirmou o velho. Os céus ouviram minhas súplicas e acabam de restituir-te à razão!. . .
O pároco olhou em tôrno de si, como um alucinado que em verdade recuperasse naquele instante o entendimento.
—Ah!... disse depois. Eu estava louco!... Sim... agora compreendo... Era tudo desvario... Era tudo ilusão!. . .
E calou-se durante algum tempo.
—Sonhos!... sonhos!... prosseguiu quase em segrêdo, meneando a cabeça desconsoladamente. Sim eu existo…eu sou o seminarista Ângelo…o pupilo de frei Ozéas. . . a criança encontrada à porta do convento de São Francisco de Paulo... aquêle. amor, tôda aquela felicidade, eram sonho, eram loucura! . . .
E apontando para dentro da sepultura:
—Isto aqui... é a realidade... isto aqui é a verdadeira vida!. . .
— Sim! confirmou o frade.
Ângelo tomou-lhe as mãos, perguntando-lhe ansiosamente:
—Então, nunca mais a verei?.. . nunca mais a estreitarei nos meus braços, peito a peito, lábio a lábio?
—Não!
—Então, nesta vida real, nunca mais terei um raio de amor, que aqueça minha alma?. . .
—Tens o amor de Deus!
—Deus?... E onde está êle, que nunca o vi, apesar de lhe ter dedicado a vida inteira?. . .
Ozéas ergueu o braço, apontando para o céu.
—Lá? perguntou Ângelo, como uma criança, apontando também. Mas lá é tão longe, tão longe. . . que minha voz, nem o meu entendimento alcançam!
—Mas alcança tua alma!...
—Não! minha alma é irmã gêmea do meu corpo, e ambos são filhos da terra! Sou um homem!
Ozéas estremeceu ouvindo estas palavras, e bradou com energia:
—Não és um homem, és um padre!
Ângelo fitou-o, aproximando o seu rosto do dêle.
—E quem me tirou o direito de ser homem?. . . interrogou. Quem me obrigou a ser padre?. . . Qual bárbara violência foi essa de me trocarem um direito por uma responsabilidade?. . . Quem foi que cometeu êste crime?!
E, segurando violentamente o braço de Ozéas, bramiu com os lábios trêmulos e os olhos ferrados sôbre êle.
—Ah! ah! fôste tu, bem sei!. . . Encontraste-me pequenino, desamparado, sem ter nada no mundo, nem mãe ao menos!. . . e carregaste-me para a tua sombria furna, tal a fera carrega com a mesquinha prêsa... Encerraste-me naquele tenebroso convento, e aí me deformaste a alma, como um saltimbanco ao corpo do enjeitado que lhe cai nas garras!
E, cruzando os braços, interrogou com voz terrível, perfilado defronte de Ozéas:
—E quem te deu o direito de deformar minha alma?! Quem te deu o direito de fazer de mim um padre?! Quem?! Responde!
—As minhas sagradas convicções, as minhas crenças! . . . respondeu o egresso.
Ângelo sorriu irônicamente.
—Crenças! . . . convicções! . . . disse. E tudo isso de que me serve agora?!. . . Eu quero viver! eu quero o quinhão de vida a que tenho direito! Restitui-me a minha mocidade, o calor do meu sangue, o meu talento! Entrega-me o que me roubaste, ladrão!
Ozéas deixou-se cair de joelhos e abriu os braços, volvendo para o céu os olhos lacrimosos.
—Ó meu Deus! suplicou. Ó meu Deus! piedade para êle! Socorrei-o! Iluminai-o com a vossa divina graça! . . .
—É tarde!.. . rouquejou Ângelo. A sombra de Alzira bem o disse!. . . É tarde, roubador de crianças, salteador de almas! Já nada tenho a perder, porque me roubaste afinal a última ilusão! Nada mais me resta a fazer neste mundo de nojentas misérias! Sê maldito! Adeus!
E lançou-se de carreira para o abismo onde terminava o cemitério.
— Meu filho! meu filho! atende-me, por amor de Deus!
—Não sou teu filho, não sou nada, sou um padre! respondia Ângelo, debatendo-se para arrancar-se dos braços dêle. Deixei de ser um vivo entre os mortos, sou um morto entre os vivos!
— Que vais fazer, Ângelo!
— Completar naquele abismo a tua obra, bandido!
—- Não! gritou Ozéas, fazendo um supremo esfôrço para desviar o filho do precipício. Não te matarás!
E engalfinhados numa tremenda luta, rolaram até à sepultura de Alzira.
—Não hás de morrer!
—Pois morrerás tu! exclamou o pároco, ofegante, pondo-lhe o joelho sôbre o peito.
E arrancou uma cruz da terra.
—Vês?. . . disse, bramindo-a com o braço erguido. É com a própria arma da tua religião que te vou ferir!
E cravou-lha na garganta.
—Ah! gemeu Ozéas. Perdoai-lhe, Senhor!
E vendo que Ângelo galgava a rampa do precipício,
tentou ainda arrastar-se para lá, inutilmente. Gorgolhava-lhe forte o sangue da ferida.
—Ângelo! meu filho! Atende! vagiu agonizando. Não procures a morte!
—Não é a morte, é o sono eterno! respondeu o pároco. Eu quero sonhar!. . .
E de um salto precipitou-se no abismo.
F I M
Fonte:
AZEVEDO, Artur A capital federal , O badejo , A jóia , Amor por anexins. [Estabelecimento de texto: Prof. Antonio Martins de Araújo]. Rio de Janeiro: Ediouro. (Prestígio).
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Selma Suely Teixeira, Curitiba – PR
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para <bibvirt[arroba]futuro.usp.br>.
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