Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 

Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6

XI

Ângelo ameaçado

Era a antecâmara da formosa Alzira rigorosamente posta ao caprichoso gôsto da época.

Guarneciam-na móveis de madeira, esculpida e pintada de branco, com arabescos de ouro, que variava entre o fusco e o luzente, formando torturados desenhos de ornato. Pombas aos pares e anjinhos rechonchudos serviam de adorno às guarnições das portas. Sôbre peanhas e cantoneiras havia jarras de Sevres, com pinturas assinadas, em que se viam pastôres enfeitados de fitas azuis e côr-de-rosa, na cinta, nos joelhos, no pescoço e nos tornozelos, tocando avena e flauta, ao lado de roliças raparigas de saia curta listrada com sôbre-saia de tufos de seda clara, chapéu de palha, coberto de flôres, uma corbelha enfiada no braço, sapatinhos quase invisíveis, e um dos peitos à mostra, branco e levemente rosado, como trêmula gôta de leite sôbre uma pétala de rosa.

As cortinas de estôfo alvadio, adamascado de prata, eram arrepanhadas ao meio por grandes florões de penas multicores.

Os espelhos tinham cercaduras de florinhas de porcelana, primorosamente acabadas e coloridas com muita arte. Era uma recordação do luxo de Luís XIV.

Em cima do fogão, dourado quase todo, havia um grande relógio de Boule, tirado por leões de ouro, entre várias lâmpadas e espevitadores também de ouro.

Nas paredes, forradas de uma tapeçaria azul celeste, destacavam-se suavemente, por cima das portas e contornando os móveis, desenhos do mesmo azul um pouco mais escuro, representando alegorias pastoris.

Prendiam a tapeçaria cordões de arame de prata entrançando, com grandes nós de espaço a espaço, terminando em amplas borlas do mesmo metal, que afinavam admiràvelmente com os bordados das cortinas.

O tapête era felpudo e azul sombrio, à moda dos volutuosos tapetes da Turquia. Os batentes das portas eram forrados de veludo cor de pérola e fechavam como tampas de estôjo.

Alzira, ainda em penteador, estendida negligentemente num divã fofo e rasteiro, fumava uma dourada cigarrilha oriental, e acompanhava distraída as espirais do fumo com as pálpebras semicerradas.

O relógio marcava meio-dia. Ela acabava de levantar-se do leito, onde fizera a sua refeição da manhã; uma pequena xícara de chocolate e dois biscoitos de Reims.

Um rico dominó de seda negra, arremessado sabre uma cadeira, e uma meia máscara caída sôbre o tapête, diziam que nessa madrugada se recolhera ela depois de um baile; e um pobre lenço de rendas preciosas, que jazia a um canto estraçalhado em tiras, denunciava todo o frenesi de tédio com que a linda condêssa, à volta do baile, entrara nos seus aposentos.

Mas agora, sòzinha no perfumado e tépido remanso da sua antecâmara, parecia já esquecida dos aborrecimentos da véspera, alheia a tudo que a cercava, e só entregue e abandonada, volutuosamente, à memória do venturoso sonho dessa manhã.

Pensava em Ângelo. Via o em meio dos esplendores da igreja, cercado de ávidos olhares, surgindo, todo paramentado de ouro, dentre uma nuvem de incenso. Via-o, formoso e cândido, de braços abertos, defronte do altar, com os olhos virginais voltados para o céu. Via o trêmulo sorrir da sua bôca de anjo, via o melancólico balancear dos seus negros cabelos de meridional. Tinha-o todo inteiro e todo vivo defronte da sua alma, pela primeira vez enamorada; tinha-o ali, defronte dela, com a sua misteriosa palidez de flor de estufa; tinha-o com aquêles lábios tão divinos e tão puros, com aqueles gestos donairosos e tranquilos, com aquela voz embriagadora, que parecia sair de uma garganta de cristal e sândalo.

Tinha-o todo inteiro, e sentia-lhe até os perfumes do damasco da sua vestimenta, o aroma do seu hábito e o bálsamo dos seus cabelos.

E Alzira espreguiçou-se com um profundo suspiro, de olhos fechados e lábios entreabertos, dilatando o pescoço, como se procurasse alcançar com a boca a sombra de uma outra boca fugitiva.

E deixou-se cair sobre a almofada do divã, suspirando de novo, inconsolável na sua deliciosa mágoa de amor.

O que em Ângelo a fascinava daquele modo, o que a arrastava para êle tão irresistivelmente não era, todavia, a singular formosura do pálido presbítero, mas a sua fenomenal pureza de corpo e de alma; era aquela sedutora virgindade, ligada a tão altiva e clara inteligência.

Ela, que vira rendida a seus pés a fina flor de espírito parisiense e a flor brilhante de toda a fidalguia do seu tempo, e que nunca se deixara escravizar pelo ouro dos nababos, nem pela vermelha glória dos heróis vitoriosos, ou pela glória azul dos poetas endeusados; ela, que até aí jamais entregara os pulsos, sequer por um instante, a uma dessas paixões, que fazem da pessoa amada o dono e senhor exclusivo da nossa vida e dos nossos pensamentos; ela, a insensível Alzira, a cortesã de mármore, sentia-se agora cativa de Ângelo, o casto; e seria capaz de trocar, por um beijo daqueles lábios imaculados, todos os seus tesouros, todas as suas joias, todas as suas baixelas e todo o valimento do seu corpo escultural.

Era a primeira vez que amava, era a primeira vez que todo o seu ser desejava alguém; a primeira vez que ela se sentia pequena, humilde, miserável, defronte de um homem; a primeira vez que se supunha capaz de ajoelhar-se aos pés do seu amante e beijá-lo doida de amor, pedindo ternura como um cão pede carícias aos pés do dono, suplicando-lhe que a fizesse morrer sufocada nos seus braços, para que fôsse dele a última vibração daquela frágil carne de mulher, e dele fôsse o extremo beijo daquela pobre alma apaixonada.

E começou a soluçar.

Era mulher pela primeira vez: pela primeira vez chorava.

Daí a instantes, agitou-se o reposteiro de uma das portas, e um negro, de libré vermelha, entrou na antacâmara, com os braços cruzados e os olhos baixos.

—Que é, Amilcar?. . . perguntou Alzira sem tirar o lenço dos olhos.

—O Dr. Cobalt. .. respondeu o africano com a sua acentuação etíope.

—Cobalt, sim, pode entrar. . . E mais ninguém, ouviste? nem o marques!

O negro retirou-se. E o médico entrou pouco depois, risonho e prazenteiro como sempre.

Foi logo beijar a mão da condêssa e ficou a tomar-lhe o pulso.

—Então?... indagou, olhando-a no fundo dos olhos. O mal tem progredido?

Ela respondeu com um suspiro, e ofereceu-lhe um lugar a seu lado no divã.

Cobalt assentou-se e deu um estalo com a língua.

—Não estou nada contente com isto, sabe?... declarou ele, em ar de paternal censura. No seu melindroso estado de sobreexcitação nervosa, produzida pelo excesso dos prazeres, pode ser-lhe fatal êste singular capricho da fantasia, porque nunca poderá ser satisfeito. Ângelo, como homem, é um caso perdido. . . não podemos contar com ele para nada E receio que esta circunstância traga perigosas consequências. . . Ora, a condessa nunca amou, nunca sofreu êsse adorável gênero de loucura; o seu organismo não tem por conseguinte a menor prática da moléstia de que agora se sente atacado, e aquilo que para outra mulher nada valeria, pode nestas condições transformar-se em cousa muito séria! . . .

—Mas que hei eu de fazer, meu amigo?

—Oh! Se fosse possível, receitava-lhe: "Ângelo em estado simples, duas doses por dia, uma antes e outra depois do sono. E' bom sacudir o remédio antes de o tomar." E pronto! Afianço que ficaria boa!

Alzira teve um gesto de impaciência, e o médico, percebendo-o, tomou-lhe as mãos e disse, como se falasse com uma criança caprichosa e doente:

—O que há de fazer?. .. Ora essa! nada mais simples: evitar semelhante preocupação!. . .

— É impossível!

—Viaje! Vá até à Itália! Corra o mundo inteiro, se for preciso; e leve o marquês. . .

—Não me fale no marquês!

—Aqui é que não convém ficar, deixando-se consumir por um desejo, que naturalmente nunca será satisfeito. .. Pelos seus olhos, percebe-se que já hoje chorou! É muito bonito, não há dúvida!

—Não ralhe comigo, doutor!

—Ralho com razão! Sempre lhe perdoei as fantasias, mas. ..

—Sabe se é verdade o que disseram?

—A respeito de que?

—A respeito dele. Parte?

— Sim. É exato; parte para Monteli.

—Quando?

—Não sei. Por estes dias.

—Monteli! Irei também!

—Está sonhando, condêssa?... Monteli é hoje o lugar de mais peste! Não irá, que não consinto!

—Há de consentir e até há de acompanhar-me. . .

—Eu?! qual! —Nesse caso irei só. Vai ver! E foi ao tímpano e vibrou-o. Reapareceu Amílcar.

—O marquês já está visível?... perguntou-lhe ela. Vai a ver, e, se estiver, dize-lhe que faça o favor de vir cá.

Quando daí a pouco o marques, com a sua desafinada figura de homem muito alto e muito gordo, entrou na perfumada antecâmara de Alzira, esta, antes que ele tivesse tempo de apresentar-lhe uma galanteadora frase de saudação, e antes que êle correspondesse ao cumprimento do Dr. Cobalt, disse-lhe sem mais preâmbulos e no tom de quem dá uma ordem irrevocável.

—Meu amigo, de hoje até depois de amanhã o mais tardar, preciso de uma casa de campo nas imediações de Monteli! Vá! não se descuide! É caso urgente!

O marques contentou-se, na sua surprêsa, de fazer uma cara de assombrado.

E sorriu constrangidamente.

O médico também sorriu, mas sem nenhum constrangimento.

 

XII

Florans em telas de aranha

Na subseqüente quinta-feira achava-se no salão de Alzira a roda do costume, e conversava-se ainda a respeito de Ângelo e da sua perturbação ao terminar a missa em Notre-Dame, quando Amilcar apareceu para anunciar que a ceia estava servida.

—Meus amigos, disse a condêssa, não faço

Afastaram-se os comensais para a sala de jantar, e o Dr. Cobalt correu a encontrar-se com a dona da casa.

—Sente alguma cousa, minha amiga?... perguntou-lhe solìcitadamente, apoderando-se de uma das mãos dela.

—Não, doutor. E diga-me: sabe se ele partiu ontem, como estava previsto?

—Ainda não. Foi detido por uma febre.

—Moléstia grave?...

—Qual! Sobreexcitação nervosa, produzida naturalmente pelo fanatismo.

—E quando parte?

—Não sei, condêssa, Logo que possa fazer a viagem. O marques já comprou a casa?

—Já.

—Onde?

—Em Raismes.

—Bom.

E vendo que o marques se aproximava:

—Aí vem o seu verdugo. Vou tomar chá. . .

Afastou-se.

—Pensei que não nos deixassem um momento em liberdade!. . . disse o amante de Alzira, encaminhando-se para ela.

—Ah! Estava aí, marques? Não vai à mesa?. . . perguntou a formosa mulher, afetando um gesto de interesse.

Florans franziu a testa.

—Minha presença a incomoda, condêssa, segredou ele, chegando-se mais. Impacientava-me por me ver a seu lado. . . sòzinhos. . .

—Está no seu direito...

—Não me fale em direito, minha flor. Não é por um direito que eu desejo privá-la dos seus momentos de solidão . . .

—Então por que mais é?...

—Desejava que fosse por seu gosto, pelo prazer que a condêssa, encontrasse em conversar a sós comigo. . .

—Isso não é cousa que dependa só da vontade. . .

E como o marques fizesse um triste ar de ressentimento:—Não se pode queixar, meu amigo, creio que, depois que estamos juntos, ainda não deixei uma só vez transparecer má vontade em suportar a sua companhia . . .

—Suportar!. . . repetiu o pobre marques com um suspiro. Suportar!... eis um termo que, só por si, patenteia toda a indiferença que a senhora tem por minha pessoa. . .

—Suportá-lo é a minha obrigação, e faço por cumpri-la o melhor que me é possível. . . Repito que o marques não tem o direito de queixar-se...

—Ah! suspirou êle de novo. Não! não tenho! Sou tão infeliz que nem esse direito possuo. . . Juro-lhe, entretanto, que preferia menos zêlo no que fala, e um pouco mais de escrúpulo no que me diz às vezes. A franqueza, minha cara amiga, em certos casos e usada de certo modo, é ofensa. . . e a senhora, creio eu. . . não tem motivo algum para me ofender. . .

—Ah! que o senhor hoje está num dos seus maus dias! . . . respondeu ela, meneando a cabeça com impaciência.

E, notando que ele se afastava, acrescentou a meia voz, como se receasse detê-lo com as palavras:—Desculpe se o ofendi. . .

Mas o marques voltou, e ela então acudiu desabridamente: —Se a sua intenção é dizer-me qualquer cousa, ou exigir de mim seja o que for, fale logo com franqueza e por uma vez. Bem sabe que estou às suas ordens! . . .

—Às minhas ordens!... resmungou o infeliz. Às minhas ordens!. . . Tem graça! Preferia estar eu às suas, como estou, mas que lhe não ouvisse a cada instante palavras duras apoquentadoras. . .

Alzira perdeu a paciência.

—Oh!basta!exclamou. Que impertinência! Está sempre a queixar-se. . .

—Queixo-me com razão—retorquiu êle, por sua vez irritado, e fazendo-se vermelho. A condêssa bem sabe que a minha ligação com a senhora não foi um simples impulso dos sentidos!...

—E que tenho eu com isso?... interrogou ela, apertando os olhos. Que tenho eu com os motivos que o levaram a ligar-se comigo?. . .

O marquês, coitado! já se não podia conter, e prosseguiu com a voz trêmula:

—A senhora bem sabe que, para ficar a seu lado, tive de sacrificar tudo que de melhor e mais sagrado possuía no mundo! Sabe que êsse amor invencível que a senhora me inspirou, foi a causa da morte de minha espôsa e será a desgraça de meus filhos.

—Mas o marquês também sabe e há de convir, replicou Alzira, que eu não tenho culpa alguma em tudo isso! Há de convir que não dei o menor passo, nem empreguei o menor esfôrço, para provocar esta união!. . . O marques viu-me um dia, apaixonou-se; fêz-me uma proposta, que eu aceitei porque me convinha. . . Nesse contrato não me comprometi a amá-lo, comprometi-me apenas a não pertencer a outro, enquanto estivesse na sua dependência. . . Ora, creio que até hoje ainda não faltei com a minha palavra!. . .

—Tem razão, condêssa... disse o marquês, já vencido. Tem tôda a razão. Mas tudo isso é porque a amo, muito, loucamente!

Quis tomar-lhe as mãos; ela não deixou, e respondeu virando-lhe as costas:

—Ama-me muito! Isso não diminui a impertinência de suas palavras! Não é a primeira vez que o senhor me lança em rosto a morte de sua mulher e o futuro de seus filhos!. . .

—Perdoe, Alzira...

— Se lhe não convenho, se lhe sou perniciosa, afaste-se de mim! Ninguém o obriga a ficar a meu lado!

E arredou-se dêle, para ir assentar-se em um divã. O marquês acompanhou-a.

—Se o traísse, vá! continuou ela; se lhe desse ocasião de ter ciúmes, ainda vá; mas, que diabo, eu cumpro lealmente com o que prometi e, quando não estivesse disposta a fazê-lo, di-lo-ia com franqueza, porque afinal sou livre! Como, pois, admitir que me exprobre fatos, pelos quais não sou responsável O senhor, se fêz sacrifícios para obter-me, não foi sem dúvida com o intuito de praticar uma boa ação, mas simplesmente para proporcionar a si mesmo um prazer que lhe apetecia. Se fez sacrifícios, não foi por mim, foi pela sua própria pessoa; e, se não tinha elementos para a empresa, por que a empreendeu?. . .

—Porque a amava!

—E amava-me, porque sou bela, sou môça e estou na moda! Ora, meu caro marquês, há de convir que com isso não teve originalidade alguma!... (E soltou uma risada de escárnio). Original seria se tivesse a desvairada pretensão de ser, durante algum tempo, o amante exclusivo da condêssa Alzira, sem despender alguns milhões de francos!. . .

—A senhora bem sabe que não é o dinheiro despendido o que eu deploro. . .

—Pois eu com o resto nada tenho que ver!... São-me indiferentes a morte de sua mulher e o futuro de seus filhos!. . . Quando o senhor se descuidou dêles, quanto mais eu! . . . O senhor que fosse melhor marido e melhor pai! Se há um criminoso entre nós, não sou eu decerto: na minha qualidade de cortesã, sou lógica, não me afasto uma linha do meu programa; o senhor é que se afastou dos seus deveres, na qualidade de chefe de família. Queixe-se por conseguinte de si mesmo e não me aborreça!

—E é a senhora quem me diz isto?!. . . exclamou o marques, abrolhando os olhos.

—Certamente, respondeu Alzira, com toda a calma.

—No entanto, volveu ele, a condêssa, sabe perfeitamente que eu a tudo me resignaria, se a senhora fosse para mim um pouco mais amorosa... eu tudo perdoaria, se. . .

—Perdoaria?. . . mas eu é que não quero o seu perdão para cousa alguma. . . Não me sinto absolutamente culpada.

—Pois devia sentir-se! disparatou o fidalgo, fazendo-se outra vez vermelho. Tenho o direito de ser tratado melhor nesta casa!

Alzira olhou para êle sem voltar o rosto.

—Minhas palavras são amargas?... disse. É o senhor quem as provoca. . . Quantos aos meus atos— são irrepreensíveis!...

Esta última frase teve o encanto de transformar 0 marquês.

—Tudo isso, resmungou o queixoso, prova que a senhora nunca sentiu por mim o menor vislumbre de amor . . .

Alzira soltou uma gargalhada sincera.

—Ora, marquês, não me faça rir! disse depois, cobrindo o rosto com o lenço.

—Não é debalde que todos a citam como a mulher mais insensível do mundo!

—Mas por que razão queria o marquês que o amasse? . . .

—Quando por mais não fosse, por gratidão. . .

A condêssa, já séria, mediu-o de alto a baixo.

—Nunca lhe pedi obséquios! disse

—Mas aceitou-os. ..

—Engana-se!

—Com a senhora despendi o necessário para enriquecer cinco famílias!. . .

—Basta! (E ela desta vez bateu com o pé). Já me tardava que o senhor me lançasse também em rosto esse dinheiro que supõe ter gasto comigo!

E encaminhou-se lentamente até ao tímpano e vibrou-o com fôrça.

—A senhora vai pôr-me fora?... gaguejou o marques, fazendo-se pálido.

—Não, explicou ela, muito tranqüila. Vou ordenar ao criado que não o receba quando o senhor voltar. Não tenho o direito de o mandar sair, mas tenho o de nunca mais o receber!

Um raio não fulminaria tanto o marques como estas palavras. De pálido passou novamente à côr de cereja. Hesitou um instante, limpou o suor da testa e, afinal, foi ter com Alzira, e disse empregando todo o esforço para sorrir:

—A senhora dessa forma obriga-me a não voltar. .. (Ela sacudiu os ombros.) E, para evitar que isso aconteça. . . só vejo um meio. . . é não sair mais daqui . . .

Foram interrompidos pelo criado, que exclamou da porta, fazendo uma continência:

—O cavalheiro Bouflers!

—Bouflers?. . . repetiu Alzira.

—Bouflers aqui!... resmungou entredentes o marquês.

E acrescentou, dirigindo-se à condêssa:

—Eis aí um. . . com quem a senhora não usaria da franqueza que usa comigo. . .

—Por que não?

—Porque é môço, é belo e tem talento. . .

Alzira gritou para o pajem:

—Dizer-lhe que ainda desta vez o não recebo. . .

—Não lhe convém recebê-lo em minha presença condêssa?. . .

—Ah! Sim?. . . disse ela.

E voltou-se de novo para o criado:

—Faze-o entrar.

O criado saiu.

—Mas eu, exigiu o marquês, quero ficar ali, por detrás daquela cortina. . .

—Com uma condição, propôs a condêssa, haja

o que houver, o senhor não se baterá com ele. . .

—Prometo, mas a senhora não lhe dirá que o ama. . .

—Ah! Não! Isso não direi com certeza. . .

—Pois então juro que me não baterei.

—Pode esconder-se.

O criado reapareceu, erguendo o reposteiro, para dar entrada ao satírico e famoso poeta Bouflers.

XIII

Ah, mulheres! mulheres!

Bouflers entrou aos pulinhos. Estacou no meio do salão e fêz a mais extraordinária mesura que é possível imaginar, mesmo conhecendo os complicados e genuflexórios salamaleques dêsse tempo galante. Os altos e empoados canudos da sua cabeleira roçaram-lhe três vêzes pelos joelhos, e o rabicho, guarnecido por um laço de fita preta, três vezes se agitou no ar, como a irrequieta cauda de um cãozinho fraldiqueiro.

Vinha vestido a rigor e com extrema elegância.

Trazia uma casaca de sêda côr de pérola. forrada de branco e guarnecida de botões de prata. Bofes de rendas de Veneza, nobremente salpicados de pó de tabaco espanhol, saltavam-lhe do peito por entre um colête de veludo côr de âmbar; tinha calções da mesma sêda da casaca e meias bordadas a ouro, sapatos de salto vermelho, e espada, não de barba de baleia, como então alguns usavam, mas de bom e bem temperado aço de Toledo, com bainha de couro, forrada de veludo branco, e guarda coberta de vistosa pedraria multicor.

Deu alguns passos para Alzira, e, assim que se viu defronte dela, perfilou-se de novo e pôs a mão esquerda sôbre o punho da espada, de modo a arrebitar com a ponta desta a grande aba da sua casaca à la Ramponeau.

E, empertigado, conservou-se um instante com o chapéu de três bicos debaixo do braço, e disse depois fazendo um passo de minuete:

"Ora graças a Cupido,

Neste empíreo da beleza

Enfim me foi permitido

Entrar, sem maior

despesa!..."

— Trazia a musa em sua companhia Bouflers?. . . Nesse caso devia ter pedido licença para dois. . . —Descanse, formosa estrela; minha musa é rapariga discreta. . . não contará ao marquês o que entre nós dois se passar aqui... —Discreta?... —Não diz mal de ninguém. . . — Informe a pobre senhora de Dufort. . . —Uma sátira inocente. . . —Oh! muito inocente! . . . — Tão inocente como o padre Ângelo. —Ah! Já o conhece?. . . —Pudera!

E, armando de novo a sua coreográfica mesura, improvisou:

"Dizem que Paris

inteira,

Após o célebre sermão

Da sagrada quinta-

feira,

Anda tôda em

devoção...

Traz no peito as mãos cruzadas, Os olhos fitos no céu, Calça meias encarnadas, Põe estola e solidéu!

Até consta que a

marquesa

De Pompadour vai além;

Quer obrigar sua alteza

A tomar ordens

também..."

E, chegando-se mais para Alzira, segredou intencionalmente:

"Que certa moça galante, Ouvindo a missa, fitou Por tal modo o celebrante, Que o celebrante... corou!

E ficaria engasgado

Com o próprio corpo de

Deus,

Se não bebesse, coitado!

Duas gotas de Bordéus..."

—Isto é uma sensaboria de mau gosto!. . . declarou a condêssa.

—Por que? Dar-se-á o caso de que a insensível e tirana condêssa Alzira também esteja com o peito ferido pelo casto pregador de quinta-feira?...

—Como "também"?... Há então muitas que o estejam?

— Oh! oh!

"Foi o caso que o sujeito,

Tendo as damas convertido,

Tanto as fez bater no peito,

Que o peito lhes pos ferido!.. ."

—Fale antes em prosa Bouflers! O verso fatiga muito.

—Pois seja! exclamou ele, encaminhando-se para a condêssa com um belo sorriso de namorado, e disse tomando-lhe uma das mãos que levou aos lábios: Eu te amo, Alzira, flor insensível! flor dos meus sonhos! flor das minhas desventuras! e quero saber quando será o dia venturoso em que receba eu de tua formosa boquinha . . .

—Um sorriso?...

—Não! Uma palavra de animação. . .

—Bravo!

—Bravo?!

—Não conheço melhor palavra de animação. . .

—Não zombe de mim, condêssa!...

—Zombar de Bouflers!. . . Oh!. . . Se o conseguisse, vingaria meia humanidade, tão ferozmente satirizada pelos seus versos maus e pelos seus maus versos!

—Conclua-se destes trocadilhos, que sairei daqui sem ouvir uma palavra de esperança. . .

—Está falando sério, meu pobre amigo?. . .

—Juro-lhe que sim, condêssa. Juro-lhe pelas musas, que a minha maior felicidade seria merecer-lhe uma palavra de amor. . .

—E por que razão havia eu de amá-lo?. . .

—Ora essa! Por que razão é que os outros se amam? . . .

—Mulheres da minha espécie, caro poeta, só amam, quando as fascina qualquer cousa extraordinária, muito extraordinária! Seja o que fôr, mas que seja— extraordinária!

—Paciência!. . . Todavia, quero crer que o marquês de Florans nada tem em si de extraordinário, e no entanto. . .

—É meu amante... Ah! O caso é outro! O marquês é muito rico... pode dar-se a êsse luxo!... Ama-me, daí porém a ser amado—vai um abismo!

—Se o marquês a ouvisse?. . .

Alzira sacudiu os ombros.

—Êle sabe disso tão bem como eu; a ninguém engano! . . .

—Nem ama, tampouco!

—Quem sabe lá?.. . Talvez...

—A condêssa? Qual! Duvido! A senhora não é mulher! Não tem coração!. . .

—Então que sou eu?. . .

—E um lindo cofre de marfim rosado, com o competente orifício para receber o ouro dos papalvos.

—E era para dizer-me semelhante galanteria, que o poeta há tanto tempo fazia empenho de vir à minha casa?

—Não! Era na esperança de ser correspondido no meu amor. . .

—O cavalheiro às vêzes não me parece um homem de espírito...

—Em questões de amor todos os homens são igualmente estúpidos!...

—Mas, valha-me Deus, Bouflers! por que razão havia eu de amá-lo?.. . O senhor é um bonito rapaz, não há dúvida; está na flor da idade, não lhe falta talento, mas. . . é só isso!. . .

—E acha pouco?. . . môço bonito e com talento. Tenho os encantos das três graças—mocidade, amor e beleza, e ainda me sobra um!

—Não—dois—o talento e a vaidade.

—Ou isso!

—Mas falta-lhe o principal. . .

—O que não falta ao marquês. . . dinheiro?. . .

—Qual! O dinheiro não se conta. . .

—Não se conta?. . .

—Gasta-se!

—Então que me falta? Juízo, talvez. ..

—Ainda menos! O juízo é a negação do espírito! . . .

—Então não sei que me falta!...

—Sei-o eu! exclamou uma voz grossa.

E o marquês surgiu defronte de Bonflers, fulo e trêmulo de raiva.

—Oh! Oh! interjeicionou este, zombeteiramente e sem se alterar. Estava escondido, senhor marquês?. . . Divertia-se a escutar-nos. . . Magnífico!

E voltando para Alzira:—Obrigado, condêssa! Depois resmungou de si para si:

—Pagá-lo-ão bem caro!

O marques, sem poder domar a cólera que o sufocava, prosseguiu no tom em que começou:

—A qualidade que lhe falta, senhor poeta, não é dinheiro, nem juízo; é prudência! É grande temeridade dizer mal de quem quer que seja à própria amante dessa pessoa!

—Não é só temeridade... respondeu Bouflers, pondo a mão na cintura e empinando a cabeça: é insolência. Estou às suas ordens! Avie-se!

A condêssa correra para junto de Florans.

—Lembre-se do que me prometeu!... disse-lhe ela ràpidamente e em voz baixa.

—Só não me baterei. . . segredou o marquês ao ouvido da amante, se a senhora não me fechar a sua porta. . .

—Não fecharei, marquês!

—Pois não me baterei, Alzira!

Bouflers, que durante êste curto diálogo, media os dois com ar de desprezo, entortando a cabeça e sacudindo a perna gritou para o marquês, como se falasse ao seu cocheiro:

—Olá, senhor pregador de prudência, é esta que o aconselha a consultar a sua amante, antes de pôr a limpo as injúrias que lhe fazem. . . Creio ter dito bem alto que estou às suas ordens!

—Não me bato com o senhor... balbuciou o outro.

—Ah! Ah! escarneceu o poeta. Já o desconfiava! . . .

E calçando de novo a luva, que ele havia principiado a despir: — Pois chega-me a vez de dar-lhe também um conselho: quando não se reconhecer com animo de assumir dignamente a responsabilidade dos seus atos, meça melhor as palavras e não se apresente como se apresentou defronte de mim!

—Insolente! bradou o marquês, avançando de punho fechado sôbre Bouflers.

—Então!... interveio Alzira, metendo-se entre os dois.

—Mas êste atrevido afronta-me! exclamou Florans.

—Pois é desafrontar-se! retorquiu o poeta. Para isso tem uma espada à cinta!

Alzira chegou os lábios ao ouvido do marquês.

— Se aceitar o duelo, disse-lhe; não ponha mais os pés aqui!

O fidalgo fêz-se côr de cêra e murmurou imperceptivelmente:

—Esta mulher despoja-me de tudo!. . .

Bouflers sorriu e acrescentou:

—Registre, condêssa, mais esta qualidade a meu favor:—a coragem!

—Vale menos que as outras neste instante... desdenhou Alzira.

E tomando as mãos do marquês: —Em certos casos, o forte é aquele que resiste à provocação. Obrigado, meu amigo! Poupou-me remorsos!... Ah! já os tenho em demasia!. . . Creia que lhe estou grata!. . . Quanto ao senhor, cavalheiro. . .

E voltou-se para Bouflers, fazendo-lhe um gesto de despedida.

—Obrigado! respondeu êste. Antes, porém, de sair, permita que a felicite pela bela escolha que fêz para seu amante!... liste adorável palerma merece bem uma cínica da sua ordem!

E pondo o chapéu na cabeça, encaminhou-se para a saída.

—Miserável! exclamou o marquês, correndo sôbre ele.

—Infame! disse Alzira acompanhando-o.

Mas foram detidos pelo conde de Saint-Malô, Artur Bouvier, Cobalt e as damas que acudiram lá de dentro em sobressalto.

—Que foi?!

— Que significa isto?!

—Bouflers!

—Um escândalo?!

—Que sucedeu?!

— Covarde! covarde! covarde! exclamou Alzira, procurando chegar até onde estava Bouflers.

—Todos os teus insultos, respondeu êste. armando a carreira para fugir, não valem uma palavra, uma só, que qualquer homem tem o direito de atirar-te à cara!

E rápido, chegando a bôca ao rosto dela, segredou um têrmo que a fulminou.

E fugiu.

—Ah! gritou a cortesã, levando as mãos ao peito e cambaleando.

E correu ao marques para bradar-lhe, segurando-lhe o braço:

—Vá! Siga-o! Alcance-o ainda que no inferno! Não me volte aqui sem o haver matado!

—Oh! Obrigado, condêssa! exclamou Florans.

E, desembainhando a espada, desapareceu da sala e bateu pelas escadas, ligeiro como um raio.

XIV

Era o amor

Quando Bouflers chegou à rua, lançou para o palácio de Alzira um olhar de indiferença e disse, cruzando a capa sôbre os ombros:

—Ora! Não perdi grande cousa! Alzira e o marquês que vão para o diabo!

E depois cantarolou, seguindo em direção da tavolagem do conde de Charolais, príncipe de sangue:

"Corramos ao

jogo,

Que o provérbio

diz:

Amor sem ventura,

—É jogo feliz!..."

Mas, ao dobrar a esquina, o marquês, que desgalgara a escada a quatro e quatro, assomou à porta da rua e gritou-lhe, correndo:

—Olá! Ó poeta bêbado! Se não és um covarde, espera!

Bouflers voltou-se incontinenti e levou a mão aberta sôbre os olhos.

—Quem é?!

Reconheceu o marquês, e perguntou com impaciência:

—Que queres de mim, basbaque?. . .

—Castigar-te, miserável, como se castiga um perro!

—Ah! Ah! Chegou-te afinal a indignação?. .. Ainda bem! (E desembainhou a espada). Vá lá! Antes tarde do que nunca!. . . Já fizeste a tua oração, bruto?. . . Não te quero despachar para a eternidade com a alma suja! Vamos! Dei-te tempo de sobra!

—A rua é escura e deserta!... considerou o marquês. Não precisamos ir mais longe. Aqui defronte da porta de Alzira, temos a claridade suficiente. . .

Aproximaram-se da porta, procurando colocar-se no foco da luz que vinha do corredor.

—Vê lá onde queres que te fira, fanfarrão! exclamou Bonflers pondo-se em guarda.

Artur Bouvier, o conde de Saint-Malô e o Dr. Cobalt tinham descido a escada do palácio.

As damas o seguiram.

—Marquês, disse o conde, tem em mim uma testemunha.

—E eu por ti, Bouflers! exclamou Artur.

—E o médico, pronto! acrescentou Cobalt.

—Não é preciso!... faceciou Bouflers. De qualquer modo se mata o cão! . . .

—Defende-te, poeta libertino! bramiu o marquês; porque a minha intenção é matar-te!

O outro retrucou, aparando-lhe destramente os golpes:

—Antes guardasses tanto empenho para defender tua mulher, alma de Menelau!

E gritou, caindo-lhe em cheio:—Toma!

Florans desviou o tiro e fez-lhe pontaria de fundo. —Toma tu lá êste. em paga da tua insolência, bandido!

Mas Bouflers soltou uma risada, e, depois de um salto para trás, desferiu-lhe um bote certeiro, que lhe atravessou o peito.

—Ai! gemeu o marquês

E caiu estatelado no chão.

—Já?... perguntou o poeta, inclinando-se. É

pena! Principiava a tomar interêsse pela brincadeira!

E tirou do bôlso o seu lenço de rendas, para limpar a lamina da espada que escorria sangue.

Alzira acudira com um grito e lançara-se de joelhos ao lado do amante, beijando-lhe a fronte.

—Meu bom amigo, dizia entre soluços; perdoe-me! perdoe-me! Oh! Quanto sou desgraçada!

Bouvier, o conde e o médico aproximaram-se também e cercaram o ferido.

—Ai! Eu morro! gorgolejou o marquês, aflito virando a cabeça de uma banda para outra.

—Agradece-o a êsse demônio que aí tens a teu lado! . . . exclamou Bouflers, lançando fora o lenço com que limpara a espada.

E voltando-se para as damas: —Boas noites, gentis mulheres!

Depois falou aos outros: — Cavalheiros, boas noites!

E bateu no ombro de Artur:—Obrigado, Bouvier!

Em seguida traçou a capa e perdeu-se na sombra da rua, cantarolando de novo:

Corramos ao jôgo,

Que o provérbio

diz:

Amor sem ventura,

—É jôgo feliz!..."

E desapareceu.

—Marquês! marques! chamava o conde de SaintMalô, enquanto Alzira, desesperada, levantava soluçando os braços para o céu.

—Ó meu Deus! ó meu Deus! lamentava-se ela. É mais um que me vai pesar na consciência! É mais um que morre por minha causa!

Nesse instante, do lado contrário ao que Bouflers tomara, surgiam na treva da noite dois vultos negros, que lentamente se aproximavam, silenciosos e tristes como duas sombras.

Vinham envoltos, da cabeça aos pés, em grandes capas talares, que lhes davam ao aspecto um tom sinistro.

—Anda, meu filho. . . dizia um dêles ao companheiro. Tem resignação, e apresse os passos, que precisamos alcançar a diligência de Raismes, para chegarmos a Monteli antes de raiar o dia. . .

—Sim, meu pai. . .

—Ai! gemeu de novo o marquês, debatendo-se no seu estertor. Morro sem confissão! Morro sem confissão! . . .

Ouvindo isto, um dos dois embuçados precipitou-se sôbre o moribundo, exclamando aflito:

— Que vejo?.. . Um corpo coberto de sangue!

E, arriando o capuz, para mostrar a sua veneranda cabeça de cabelos brancos, interrogou ao grupo que o cercava:

—Quem feriu este homem?

—Um adversário em duelo. . . murmurou o próprio marquês. Ai! morro! morro!

O misterioso velho arrancou do seio um crucifixo, e levou-o com a mão trêmula à bôca do agonizante.

—Pede a Deus perdão das tuas culpas. . . segredou ele com a voz comovida. Entrega-lhe a tua alma em plena confiança, porque eu rogarei por ela ao Senhor misericordioso!

E ouviu-se o débil sussurro de um gemido de amor esvoaçar entre os lábios do moribundo.

Era o nome de Alzira, que êle chamava pela última vez.

O médico abaixou-se para auscultar-lhe o coração.

—Está morto. . . disse.

Houve uma triste concentração em que se ouviram prantos abafados.

E o negro vulto de barbas brancas pôs-se a rezar, ao lado do cadáver, com as mãos postas, o pálido rosto pendido sôbre o seio.

Entretanto, Alzira, num transporte de aflição, correra a ter com a outra sombra, que se quedava à distancia, de cabeça baixa e rosto escondido sob o capuz, e exclamou entre soluços, estendendo-lhe os braços suplicantes:

—Meu padre! Meu padre! Sou eu a culpada de tudo isto! Sou muito, muito desgraçada! Peça perdão a Deus por mim!

O vulto se agitou e tremeu todo, através do mistério da sua negra túnica.

Ouvia-se-lhe o ansioso arquejar do peito.

Depois, como se precisasse de ar, arremessou para traz o capelo do hábito e recuou aterrado.

Alzira soltou um grito.

—Êle!

E teria caído no chão, desfalecida, se Ângelo a não amparasse nos braços.

Acudiram todos e se apoderaram dela.

O presbítero puxou de novo o seu capuz sôbre o rosto, deu o braço à outra sombra, e começaram os dois de novo a seguir o seu caminho.

Ângelo tinha afinal compreendido bem a verdadeira causa da sua perturbação.

A sua perturbação era o amor.

 

XV

Duas vêzes enjeitado

Ângelo chegou a Monteli, acompanhado por Ozéas, às sete da manhã.

Veio recebê-lo à porta da casa uma velha chamada Salomé, antiga criada que fôra do falecido pároco do lugar.

—Então? então, meu filho?... perguntou-lhe o egresso. Que em ti significa tamanha tristeza?... Pareces-me um vil criminoso sobrecarregado de remorsos!. . . Vamos! Não te convém êsse aspecto! Dize-me com franqueza o que sentes. . .

—Nada! Nada, meu pai! São íntimas tristezas sem razão de ser!. . . são desgostos só meus, que só eu mesmo compreendo! . . . A viagem fatigou-me. Preciso repousar... Bem sabe que ainda não estou bom de todo . . .

—Pois sim, recolhe-te! Ali está o teu quarto. Já mandei pôr lá a imagem da Virgem. Eu ficarei aqui. Até breve.

—Até breve, meu pai.

E Ângelo, arrastando a sua melancolia, entrou no pequeno aposento que lhe era destinado.

Um triste quarto, em que a formosa imagem da Virgem se destacava, como na outra cela do convento de S. Francisco de Paulo. Paredes nuas e velhas, teto esborcinado e sem fôrro.

Ângelo sentou-se no catre que havia a um canto, e começou a soluçar, com o rosto afogado nas mãos.

Chorava, e não sabia dizer por quê. Sofria e não se animava a confessar a si mesmo de onde lhe vinha aquela dor, que assim lhe arrancava tão quentes lágrimas do coração.

Mas seu desejo era poder naquele momento apertar nos braços alguém, cujo nome seus lábios não se atreviam a balbuciar, receosos de magoarem a candidez da sua alma virginal, branca noiva de Deus! O seu desejo era poder dizer o que lhe ensinara a Bíblia, era poder cantar a capitosa música do Cântico dos Cânticos, que nunca alma nenhuma jamais no mundo sonhou e repetiu sòzinha. O seu desejo era poder dizer: "Eu te amo!" e sentir a miragem desta doce palavra refletida inteira nuns lábios de mulher, que lhe não falavam, porque já não tinham voz senão para soluçar de amor.

O seu desejo era Alzira!

Era Alzira de carnes brancas e olhos negros! O seu desejo eram longos cabelos nus, soltos no vendaval de todos os desejos. O seu desejo eram lábios trementes e vermelhos, eram doces braços de veludo, eram a funda morte do supremo gôzo, bebido de barco sabre um níveo colo de Eva paradisíaco!

O seu desejo era o pecado.

E Ângelo chorava.

Mas, de repente, como se o espetro do dever lhe tocara no ombro, êle ergueu-se estremunhado e trocou um olhar, ansioso e suplicante, com o triste e quieto olhar da Virgem.

Correu para junto dela e ajoelhou-se a seus pés, mesquinho de remorso e trêmulo de arrepentimento.

—Valei-me! disse, erguendo para a imagem os olhos lacrimosos. Valei-me a mim, a mais desgraçada de tôdas as vossas criaturas!

E soluçava.

—Maria! Maria puríssima! exclamou êle depois, como um desprezado amante aos pés da sua cruel amada. Vêde! Atendei, flor dos céus! Vêde bem que sou eu quem aqui vos fala e quem vos chama neste momento!

E arrastando-se de joelhos, com os lábios estendidos para alcançar-lhe a fímbria do vestido:—Mãe casta! mãe sempre virgem, valei-me! Vós sois o meu último recurso, a minha última salvação! Escondei dentro da urna de marfim da vossa misericórdia a pureza da minha pobre alma, que a bêsta imunda a cerca, farejando! Salvai-me, virgem mãe sem mácula; abrigai-me numa das dobras do vosso manto azul, constelado de estrelas! Defendei-me contra mim próprio e contra o meu sangue traiçoeiro! Vós, que sois o eterno prodígio da castidade, protegei a minha castidade contra os meus íntimos inimigos! Não me deixeis cair em pensamentos depravados! Exorcizai de dentro do meu corpo o demônio que me morde as carnes e cospe fogo no meu sangue! Enxotai a luxúria, que baba minha alma para sorvê-la depois!

Salvai-me! Salvai-me, rainha de bondade! Se quereis abandonar-me assim, à mercê dos meus sentidos, por que pois me aninhastes carinhosa, durante tanto tempo, sob as asas brancas da vossa divina graça?. . . Se a vossa intenção era atirar-me assim às garras do pecado, por que pois, me ensinastes a amar-vos tão castamente desde a minha infância mais inocente?. . . Dormi tão confiante em vossa guarda, respirando as rosas místicas do vosso divino amor, e de repente acordo, sobressaltado, entre uivos de fera que me cerca, para devorar-me!

"Onde estais vós, mãe puríssima, onde, que desde aquêles malditos olhos tão formosos e tentadores, já me não ouvis as súplicas e já me não enxugais, com o vosso alvo sudário côr de neve, as lágrimas dêste desespêro?

''Ó peito de amor! entranhas de piedade! como é que assim vos fechais para quem vos ama?... Oh! volvei para mim os vossos lindos olhos misericordiosos! Voltai a ter comigo, a sós, na minha cela, como dantes, quando eu era um dos anjos rubicundos do vosso trono de nuvens!... Tornai a ter comigo, Maria, cheia de graça!

"Se tínheis de abandonar-me e perder-me num segundo, para que então vos dei tôda a minha existência de vinte anos, mais brancos do que a torre de David?. . . Se assim tinha de ser, amada minha, não valia a pena então conservar-me tão puro e tão cândido!. . .

"Maria! Virgem amorosíssima! vida e doçura' esperança nossa! se não quereis vir em meu socorro, matai-me! eu aqui estou a vossos pés, e não me levanta rei dos meus joelhos senão por um ar da vossa divina graça! . . . "

E Ângelo, de olhos fitos na Virgem, esperava um milagre, esperava alguma cousa que lhe restituísse a sua antiga tranqüilidade de espírito.

Nada! A imagem parecia surda ao seu desespêro de salvação.

"Oh! por piedade! por piedade, minha mãe querida! envia-me do vosso peito de amor a inspiração do meu resgate!"

Nada! Nada!

Ângelo deixou cair o rosto para a terra; abandonou os braços, com as mãos entre os joelhos, e quedou-se pensativo.

Infeliz! infeliz!

Não era a primeira mãe que o enjeitada! . . .

E as lágrimas de abandonado correram-lhe tristes pelo mármore das faces, e o mísero deixou-se levar de rastos pelas garras da sua dor imensa, para o inferno da sua desesperança sem consôlo.

Foi despertado pela velha criada, que, depois de bater várias vezes, resolveu-se a entrar no quarto.

— Perdão, senhor vigário. Queira desculpar interromper as suas orações, mas. . .

—Fale, minha irmã. . .

—É que está aí uma dama toda vestida de negro e coberta por um longo véu, que deseja falar a vossa mercê. . .

—- Uma mulher?. . . E não disse quem era?. . .

—Não quis dizer, senhor vigário.

—Bem, minha filha, faça-a entrar para a capela e diga a frei Ozéas que tenha a bondade de vir cá.

A criada saiu e o egresso apareceu pouco depois.

—Há, aí, disse-lhe o presbítero, uma mulher que me procura. Devo escutá-la, meu pai?. . .

—Que estranha pergunta, Ângelo!... Deves, decerto! É talvez alguma desgraçada que precisa de quem a conduza ao arrependimento. A consciência pura e bem apoiada na fé jamais teme as ciladas do inferno. Vai! Fala-lhe! E, se for uma pecadora, suplica a Deus, noite e dia, até conseguires o perdão para sua alma.

—Bem, meu pai. . .

E Ângelo afastou-se lentamente, tomando a direção da capela.

XVI

Diabo, mundo e carne

Ângelo aproximou-se vagarosamente da misteriosa mulher que o esperava na capela, e perguntou-lhe a que vinha.

Ela, cuja comoção se percebia, apesar do espêsso véu que a ocultava da cabeça aos pés, respondeu indicando-lhe o confessionário. Êle encaminhou-se então para lá, sentou-se, e, com um gesto, convidou-a a que se ajoelhasse a seus pés.

O vulto tremia todo, quando vergou os joelhos e abaixou o rosto, para rezar entredentes o confiteor.

—Não se amedronte, minha pobre irmã. . . disse o presbítero com a voz amiga; não trema dêsse modo, que por mais fundas que sejam as chagas do seu coração? e por maior que seja o remorso da sua alma, a misericórdia divina há de chegar até lá, se o arrependimento já lhe abriu o caminho e franqueou as portas. Não se assuste, porque não é a mim que vai falar, é a Deus, cujo seio de amor e de bondade jamais se fechou uma só vez aos que sofrem e pedem a remissão das suas culpas. Vamos! Abra-me a sua alma de par em par. Confie-me as suas dores, que eu as farei minhas, e ajudá-la-ei a carregá-las até aos pés do nosso pai supremo!

A embuçada, em vez de responder às palavras do confessor, deixou cair a cabeça sôbre os joelhos dêle, e abriu a soluçar desesperadamente.

Era um pranto convulso e sem tréguas, que lhe agitava o corpo inteiro, e que menos parecia a dor silenciosa e triste dos arrependidos, do que a explosiva revolta de quem chora pela ausência de uma ventura sensual e terrestre.

Ângelo, por sua vez, estremeceu perturbado e tolhido de alheios sobressaltas. Daquela misteriosa carne de mulher que palpitava a seus pés, erguia-se um quente eflúvio, traiçoeiro e lascivo, que lhe entontecia a alma, um odorante e luxurioso vapor de estranhos vinhos que o enleavam. Dir-se-ia que aquelas lágrimas recendiam a volúpia e que aquêles soluços eram soluços de amor, chorados no sigilo de uma alcova.

Êle ergueu-se, a embuçada segurou-lhe as mãos, cobrindo-as de beijos apaixonados.

Ângelo quis fugir. Ela, com um gesto rápido,

rejeitou o véu que lhe rebuçava as formas, e ali, no sagrado retiro daquela pobre capela de aldeia, surgiu a perigosa Alzira, a terrível condêssa de gêlo, mais pálida e mais sedutora do que nunca, assim humilde e triste sob a dura violência daquelas queixas de amor.

— Ó meu Deus!. . . balbuciou Ângelo de si para si, abaixando os olhos, como se estivesse defronte do demônio. Ó meu Deus, dá-me coragem! dá-me coragem!

E recuou alguns passos, estendendo o braço, como para isolar-se daquele abismo.

Nesse instante, Ozéas acabava de surgir ao fundo da capela, observando os dois, escondido por detrás de um altar. Seu peito arfava tão convulso como o peito de seu filho, mas nêle o sobressalto era de outra espécie.

Ângelo, todavia, parecia calmo e senhor absoluto de si mesmo. Apenas o traíam a súbita palidez das faces e um ligeiro tremor de lábios.

—Creio, minha irmã, que nada mais tem que fazer aqui. . . disse êle pausadamente, apontando-lhe a saída. Queira retirar-se... não é êste o lugar que convém às suas lágrimas... Vamos... saia, e, em benefício de sua própria alma, não torne a cometer semelhante desatino, que a faz muito mais culpada do que tôdas as outras maldades cometidas. Vamos! Retire-se! Êste sagrado e tranqüilo recanto pertence sòmente aos arrependidos que sofrem!. . .

—Mas eu sofro! exclamou ela. Eu sofro muito! sofro infernalmente!

—Sofre?! inquiriu o padre, transformando-se. É talvez o arrependimento! Fale, minha irmã!

—Não! não sofro pelos delitos cometidos, não sofro pelas mortes que provoquei: sofro porque te amo, Ângelo! porque te amo loucamente!

E quis chegar-se para êle. Ângelo tornou a apontar-lhe a saída.

—Retire-se! Eu pedirei a Deus que se compadeça dos seus desvarios...

—Oh! eu te amo! eu te amo! eu te amo! soluçou ela, caíndo novamente de joelhos, e procurando beijar-lhe a fímbria da samarra. Amo-te: eis o meu crime! Eis a minha grande culpa! Perdoe-me, já que tens um coração de santo! Sei que devia esconder o meu segrêdo e morrer com êle fechado dentro dos lábios!. . . Sei que nenhuma esperança tenho de ser algum dia correspondida no meu desgraçado amor, porque nada mereço de um ente tão puro como és!... Mas perdoe-me! sou uma fraca mulher que nunca a mais ninguém amou, e tu o homem que pela primeira vez me acordaste o coração, e me encheste a alma de sonhos de ternura! Perdoe-me, se te amo tanto, Ângelo.

Êle escutava-a, imóvel e pálido como um cadáver. Não se lhe percebia nas feições a luta homicida que se lhe travava na alma.

—Se me amas... disse, quase em segrêdo cumpre com o que te vou pedir. Volta para Deus, minha desgraçada irmã, todo o teu amor de mulher! . . . Ama-o! ama-o extremosamente, e no seu peito de pai encontrarás perene manancial de consolações! Sê honesta, e serás feliz! . . . Se tens mêdo de ti mesma e dos que te cercam, recolhe-te a um asilo religioso e faze-te monja! E principalmente nunca mais tornes aqui, nunca mais me procures ver, se queres possuir o meu amor de irmão e o meu reconhecimento de sacerdote. Vai, e não tornes nunca mais. Adeus.

Dito isto, voltou-lhe as costas e afastou-se vagarosamente, como tinha vindo.

— Ângelo! exclamou ela com a voz suplicante.

Êle virou-se, pôs o dedo nos lábios, impondo silencio, e saiu.

Alzira, ainda de joelhos, conteve-se um instante; depois ergueu-se e precipitou-se de carreira para alcançá-lo.

Mas a veneranda figura de Ozéas cortou-lhe a passagem, surgindo-lhe de improviso pela frente.

A formosa cortesã estacou defronte daquelas barbas brancas, abaixando a cabeça e cravando os olhos no chão.

Ozéas, sem dizer palavra, alongou o braço, apontando-lhe a saída, e quedou-se imóvel nessa postura, até que ela desapareceu, lenta e silenciosamente.

Por êsse tempo Ângelo ganhava o seu quarto e, caindo de joelhos aos pés da Virgem, agradecia-lhe a vitória que êle alcançara sôbre os seus próprios sentidos, postos naquele dia em tamanha provação.

— Ó mãe de bondade! dizia êle com as mãos cruzadas no peito; fazei com que ela nunca mais volte a ter comigo, que nunca mais soluce sôbre os meus joelhos!... Se soubesses, mãe querida, como lutei para não tomá-la nos braços e estancar-lhe com a minha bôca os seus dolorosos soluços de amor!... Se soubesses como o meu coração chorava enquanto meus lábios a repeliam!... Oh, por piedade! que ela nunca mais, nunca mais me volte a ver!

E, deixando cair o rosto sabre os pés da Virgem, pôs-se a rezar com todo o fervor e reconhecimento da sua alma dolorida.

Alzira, entretanto, ao sair da capela, metera-se no carro que a esperava lá fora, c atirara-se para o fundo das almofadas, a soluçar aflita. O carro tinha de seguir para Raismes; ela mandou tocar para Paris.

Ia com o coração despedaçado. Já lhe não restava a menor esperança!. . . Ângelo a repudiava. . . Ângelo, o primeiro homem que ela amava, repelia-a, como quem repele um réptil venenoso!

Todos os sonhos daquele seu primeiro amor ruíram por terra, antes mesmo de bem vingados.

Oh! como nesse momento Alzira desejava ser pura! Como desejava ser casta!. . .

Doía-lhe fundo aquêle tranqüilo desprêzo com que o padre rejeitara os seus sinceros protestos de amor, acendendo-lhe, sem saber, o desejo da luta para conquistá-lo.

Se Ângelo a tivesse recebido com palavras duras, se a enxotasse da sua presença como o arcanjo do Paraíso enxotou a Eva pecadora, é possível que ela não levasse tão longe o empenho de ser amada por êle; mas só a idéia daquela frieza, daquela inalterável superioridade de ente puro e forte, que não teme solução de espécie alguma, só isso era o bastante para levá-la a não desistir da campanha e lutar até vencer ou cair morta.

—Sim! disse ela, cerrando os punhos, desesperada. Agora, dê por onde der, sofra quem sofrer, hei de vencê-lo, hei de possuí-lo, ou buscarei na. morte o completo esquecimento desta fatal paixão!

SEGUNDA PARTE

Si nous révions toutes les nuits la même chose, elle nous affecterais peut-être autant que les objets que nous voyons tous les jours.

PASCAL — Pensées.

I

Emurchecer de uma flor

Seis meses são decorridos depois que Ângelo foi para Monteli, e poucas cousas extraordinárias se têm passado com as personagens que figuram nesta amorosa narrativa.

O Dr. Cobalt, durante êsse tempo, apresentou à Academia Francesa um livro de fisiologia e de filosofia, revolucionando a ciência de então com as suas novas idéias materialistas. A obra fêz grande alvorôço e foi condenada a um tempo pela Sorbona, pelo Papa e pelo Parlamento. Mas êle, sustentado entusiàsticamente pelos discípulos de Moraud, Picard e Hecquet, não desanimou e prometeu voltar a campo, armado agora para a luta com um novo trabalho, ainda mais formidável que o primeiro, em que se propunha provar que as famosas convulsões, provocadas pelo milagroso diácono Paris, no cemitério de Saint-Médard, nada mais eram do que fenômenos nervosos da histeria, moléstia que só então começou a ser estudada e conhecida em França.

Bouflers, êsse, coitado! havendo escrito uma sátira contra o duque de Choiseul, que nunca mais o perdeu de vista, caiu na tolice de aceitar os ternos favores de demoiselle Tiercelin, então mantida pelo rei no seu famoso serralho do Parc-aux-cerfs, e teve a infelicidade de ser descoberto nos seus amôres por aquêle ministro, que o denunciou a Luís XV, e o fêz prender e encerrar na Bastilha. Lá ficou.

Frei Ozéas, pelo seu lado, três meses depois de permanecer em Monteli, fôra acometido pela peste; estêve à morte, e vira-se forçado a separar-se do filho por algum tempo. Persistia muito enfêrmo, e ainda em perigo de vida, num hospital para onde o levara o Dr. Cobalt.

Quanto a Alzira, depois de novas e inúteis tentativas para conseguir arrastar Ângelo a seus braços, precipitara-se de novo na antiga vida dos prazeres largos, e continuava em Paris a servir de retorta ao ouro dos libertinos, cada vez mais terrível e funesta para os seus amantes.

Diziam que a devorava uma implacável sêde de orgias e loucuras, a qual nenhuma virtude, por mais sólida, resistia.

Ângelo, entretanto, ia resignadamente cumprindo o seu estreito e obscuro destino de pobre pároco de aldeia.

Estava, porém, muito mais magro, mais pálido, mais concentrado e mais triste.

Fugira-lhe das faces a cândida frescura da sua mocidade, fugira-lhe dos olhos aquêle puro e ardente brilho, que era como o reflexo da sua apaixonada alma de inspirado asceta, fugira-lhe dos lábios a purpurina flor dos seus sorrisos virginais, e agora todo ele nada mais era do que a trêmula sombra do que dantes fôra.

Sombra lenta e misteriosa, que em silêncio se arrastava pela vida, ofegante e curvada, como se sôbre ela andasse a pairar eternamente o anjo da melancolia, roçando-lhe os cabelos com as suas asas úmidas de pranto.

Impressionava vê-lo, à hora do crepúsculo, errar no jardim entre as lousas mortuárias, com a fronte pendida para a terra, como se estivesse a procurar o derradeiro abrigo no seio dessa mãe melhor que as outras, que nunca enjeita os filhos.

Impressionava aquêle negro vulto, arrastando a túnica pela areia dos caminhos, para levar, aos que sofriam menos do que êle, a misericórdia da sua consolação e do seu amor.

Uma noite, já nove horas tinham dado, e Ângelo não aparecia em casa.

A velha Salomé, aflita, ia de vez em quando à janela e voltava desapontada, agitando os ombros e sacudindo a cabeça.

— Que digo eu?. . . exclamou ela sòzinha, olhando a estrada deserta. São quase dez horas, e o senhor vigário ainda fora!. . . Vão ver que está por aí à cabeceira de alguma vítima da peste, sem se lembrar de que não tem no estômago mais do que uma xícara de leite e um pedaço de pão! Ah! definitivamente. . .

Um relâmpago cortou-lhe a palavra.

—Chit! Santa Bárbara! Vamos ter tempestade! E o pobre homem por onde andará?. . .

Ia a sair da janela. Mas uma voz gritou-lhe lá de fora, estrangulada pela ventania.

—Ó tia Salomé!

—Ah! disse ela. É você, mestre Jerônimo?...

—Não pensei achá-la acordada!

—Pois se o senhor vigário ainda não chegou!. . . Entre.

Foi abrir a porta, e mestre Jerônimo, um hortelão da vizinhança, penetrou na modesta sala, trazendo seguro pelo braço um rapazola de uns doze anos, que mal se podia ter nas pernas de tão ébrio que estava.

—É que, declarou o hortelão, encontrei no caminho êste mariola no bonito estado em que o vê, e trouxe-o porque calculei que êle com certeza não acertaria com a casa!

—O Robino como vem!... Virgem santíssima! . . . exclamou a velha, pondo as mãos nas cadeiras.

Não sei quando êste rapaz tomará caminho! Por isso é que o maroto, mal acabou de ajudar a missa, desapareceu até agora!.. .

—Vinha da taverna do Bruxo, explodiu Jerônimo. Que quer? Os fidalgos do Roudier gostam de o ver assim, e não largam de lhe dar o que beber enquanto não o põem por terra! Súcia da vadios!

E, como Robino, no seu persistente cabecear, lhe desse um empurrão:—Fica quieto, ó rapaz! Ora já se viu que mona?. . . A êste não leva a peste!

Robino empertigou-se e resmungou alguma cousa entredentes.

—Cala-te, gritou-lhe Salomé. Merecias é que te deixassem na rua como a um cão sem dono! Mal faz o Sr. vigário em conservar em casa semelhante biltre! . . .

—Ora! gaguejou o emborrachado. Êle o próprio vigário quem todos os dias me abre o apetite!. . . Ele à missa escorropicha a sua pinga com tanto gôsto!. . .

—Cala-te, demônio! ralhou Salomé. Se estivéssemos no tempo do padre René, andarias mais direito! Isto te afianço eu!

—Ah! com certeza! afirmou o hortelão.

—O padre René bebia muito mais do que eu! . . . tartamudeou Robino.

—Não te calarás, cousa ruim?. . .

E Salomé voltou-se para o outro enquanto o pequeno, depois de um longo bocejo, adormecia encostado à parede.

—Tenho saudades do defunto vigário. .. declarou ela, com suspiro. Era uma boa alma!. . . Sempre bem disposto, alegre, amigo de pilheriar. . . E' o que não tem êste agora, o padre Ângelo! . . . Não há dúvida que é muito santa pessoa, mas nunca vi criatura tão triste! . . . Até mete pena, coitado! . . .

—Ainda o não vi rir uma só vez. . . considerou Jerônimo.

—Muito! muito triste!... continuou a velha. As vêzes, fica horas esquecidas à mesa, com os olhos pregados no teto, a cismar!... E a comida às moscas!.. Vão lá tirá-lo dali! Doutras vêzes dá-lhe pra passear no jardim ou no cemitério, e então, adeus! E' preciso ir buscá-lo quase à fôrça pra dentro de casa!

Põe-se então a andar pra baixo e pra cima, que nem uma alma penada, Deus me perdoe!

É que talvez esteja rezando... disse o hortelão, muito interessado com o que lhe contava a tia Salomé.

—Ainda ontem fui chamá-lo para falar ao filho do Mongol, que aí veio pedir-lhe que o casasse com a pequena do tio Jorge, e toquei-lhe no ombro. Pois acredita você, mestre Jerônimo, que o senhor vigário soltou um grito e ficou a olhar-me espantado, como se eu cá fôsse algum fantasma?...

—E por que, tia Salomé?

— Ora! sei cá por quê?. . . Ficou mais branco que aquela cal da parede! E todo a tremer!. . . Já se vè, pois, que não rezava, porque êle quando reza, ouve-se-lhe a oração e vê-se-lhe o movimento dos lábios... Nessas ocasiões é até quando fica ao contrário um poucochito mais tranqüilo e de melhor humor. Cá pra mim, ninguém me tira da cabeça que ali anda tentação do cão!. . . Ali anda rabo de demônio!

— Ou talvez de saia!. . . acudiu o hortelão, coçando a cabeça.

—Credo, mestre Jerônimo! Não diga isso nem brincando, que brada aos céus! Aquilo é um santo! Olhe! Se frei Ozéas estivesse ainda aqui, juro-lhe que o senhor vigário não chegaria ao estado a que chegou! Até o acho meio apatetado! Deus me perdoe!

—Apatetado, tia Salomé? . . .

—Pois se lhe disser que de uma feita o deixei ajoelhado no altar depois da missa e que, voltando só à tardinha à igreja, para reformar o azeite da Virgem, encontrei o homem ainda na mesma posição!... Os braços abertos, os olhos ferrados na santa, e tremendo de frio, coitadinho! que metia dó! Chamei-o, qual "Senhor vigário! Ó senhor vigário!" Respondeu você, que lá não estava?. . . Pois assim respondeu êle! Afinal agarrei-o pelo braço e disse-lhe que aquilo não tinha jeito!

—Não tinha, decerto tia Salomé!

—Acompanhou-me tiritando. Você sabe como a capela é fria!. . . E mal deu alguns passos pelas lajes, desatou num pranto de chôro, como eu nunca vi!

—Chorando?! Que me diz! tia Salomé?!

—Como uma criança, mestre Jerônimo! Nunca vi chorar tanto! Ao depois, meteu-se ali no quarto, não quis comer nada, e levou tôda a noite a andar de um para outro lado, até que. . .

Mas interrompeu-se, porque a porta acabava de abrir-se, e Ângelo entrava na sala, com o seu passo lento e o seu ar triste e acabrunhado.

Fez-se silencio.

 

II

Mal secreto

Ângelo vinha profundamente pálido e abatido, mas com a fisionomia serena. Um quê de tranqüilo cansaço imobilizava-lhe o rosto, não deixando distinguir bem qual a fonte da expressão que nêle predominava. Seria a piedosa resignação do justo que, seguro da sua fé, caminhava de olhos fitos no divino ideal, passando, sem rasgar os vestidos da alma, por entre todos os espinhais mundanos; ou seria o surdo desfalecimento de quem, a pura violência, esmaga dentro do próprio peito a fecunda semente das suas mágoas, como a mãe desnaturada sufoca nas entranhas o palpitante fruto dos seus amôres?

Vagarosamente atravessou a sala e foi sentar-se numa velha cadeira, ao lado da tôsca mesa de carvalho.

A criada e o hortelão acompanhavam-lhe os movimentos com um lastimoso olhar.

—Boas noites, tia Salomé, boas noites, mestre Jerônimo, disse êle, cumprimentando-os humildemente.

—Deus Nosso Senhor lhe dê as mesmas, senhor vigário! respondeu a criada, quase que ao mesmo tempo que o hortelão.

E a boa velha, pensando em Robino, que continuava a dormir a um canto, foi tratar de afastá-lo dali, para poupar a Ângelo o espetáculo daquela imoralidade.

Mal, porém, lhe pôs as mãos em cima, 0 pequeno gritou acordando:

—É de virar! É de virar! Hup! Hup! Hurra!

— Que é isto?. . . perguntou Ângelo, voltando o rosto.

— Ora! Que há de ser?... explicou a criada, enquanto Jerônimo carregava o pequeno lá para dentro. É o mariola do Robino que está que se não pode ter nas pernas! Se não fôsse o hortelão, ficaria aí estendido pelo caminho e talvez se afogasse na enxurrada, que vamos ter muita chuva! Seria bem feito!

—Coitado!. . . murmurou Ângelo.

—Coitado?! Ainda o sr. vigário diz: "Coitado!"?. . . nunca vi cousa assim! Isto já não é bondade é tolerância demais! ter pena de um maroto que se vai meter na taverna do Bruxo até ficar a cair!. . . O sr. vigário faz mal em proteger semelhante biltre, que para nada serve! Queria ver se o despedissem daqui, onde ele encontraria quem o aturasse!. . .

—Por isso mesmo não devemos despedi-lo... Observou o cura. Se êle não tem para onde ir, como quer a tia Salomé que o ponhamos fora de casa? Seria matá-lo de penúria!. . .

A criada abaixou a cabeça e disse, de si para si, a endireitar o seu avental:—E mesmo um coração de anjo! . . .

—Ouça, minha boa Salomé. . . acrescentou Ângelo, pousando-lhe a mão no ombro; você às vêzes finge-se má... aposto que, se eu expulsasse daqui o Robino, seu coração, minha irmã, sofria com isso mais CO que o dêle próprio. . .

—Não digo o contrário, sr. vigário, mas. . .

—Por que então há de fingir-se aquilo que não é?... por que há de dizer o que não sente?... por que fazer-se má, quando os seus sentimentos são humanos e compassivos?. . . Saiba, pois, que tanto se ofende a Deus com a falsa maldade, como com a verdadeira. Com a falsa ainda mais se ofende, porque a outra tem a sua absolvição na fatalidade dos instintos, ao passo que esta é tôda produto do raciocínio, e como tal deve ser punida. Se Robino é um miserável, é um perdido, por isso mesmo devemos socorrê-lo; se não dispõe de ninguém por si, devo eu estar ao lado dêle e, se eu também o abandonasse, ainda ficaria Deus, que não abandona nunca os desgraçados.

E prosseguiu, depois de uma pausa, doixando-se arrebatar no vôo do seu amoroso enlevo pelas cousas místicas:

— O santo missionário Francisco Xavier, quando percorreu a longa Índia com a sua esfarrapada sotaina, tocava uma campainha para atrair o povo, e entre êste ia escolhendo os desgraçados de tôda a espécie, para socorrê-los e dividir com êles a melhor parte do seu pão e do seu coração. Schwartz, Marshman, e quantos outros soldados de Jesus, afagaram tôda a escala das misérias humanas, como se percorressem o doce teclado de um órgão, entoando hino de amor à Virgem Puríssima! Vicente de Paulo, reduzido à escravidão em Argel, humilhou-se de tal modo e com tamanha devoção, que acabou convertendo o seu herético senhor à fé católica. E mais tarde, em Marselha, ei-lo que desdenha a honrosa companhia do conde de Joigny, para ir coabitar com os galés, até chamá-los, a todos, um por um, ao caminho da moral e da religião de Cristo! Mas o próprio Cristo?.. . Não foi êIe quem recolheu nos seus braços a pecadora das pecadores, a desgraçada repelida por tôdas as multidões? Não foi êle quem fêz de Madalena o louro arcanjo da regeneração?... Não foi êle quem dela fêz uma santa? Sim! Sim, Jesus, meu Mestre! tôda a tua religião e tôda a tua sabedoria se reduzem a esta palavra:—Amor!

E um longo suspiro saiu-lhe do fundo da alma.

Salomé, que do meio para o fim da divagação do presbítero se fôra comovendo progressivamente dava agora repetidos soluços, limpando os olhos com ò avental.

—Perdoe-me!... gaguejou ela; perdoe-me, sr. vigário!. . . Vossa reverendíssima tem tôda a razão. . . Vossa reverendíssima é um santo. . . mas que quer?. . . Eu estava contrariada... Eu estou muito zangada! Tenho que ralhar!

—Por que, minha boa irmã?. . .

—Ora, porque! porque vossa revendíssima pelo modo que vai, dá cabo de si!. . . Tem lá jeito! Levar até a estas horas com o estômago vazio, a andar por aí todo o santo dia, em risco de lhe acontecer como ao frei Ozéas!...

—E todavia não tenho fome. ..

—Mas há de sempre comer alguma cousa, senão é que me zango deveras!...

—Tenho é muito cansaço...

E assentou-se.

—Pudera não! Fazendo destas!... Isto até ofende a Deus!

E, de carreira, foi lá dentro em busca do que havia para cear.

Ângelo, mal se viu a sós, deixou pender a cabeça e pousou as mãos sôbre os joelhos.

—Ah!... pensou êle. Como estou transformado, meu Deus! . . . Como eu próprio me desconheço! . . . Como sou miserável e fraco!. . . (E agarrando o peito, desesperado). Carne traiçoeira e maldita! de que lama és tu feita?. . . E não poder quebrar-te num instante, imundo barro sensual e pobre!

Mas Salomé voltava com a ceia.

—Ingrato! exclamou ela. Eu que lhe havia preparado uma sopa tão apetitosa! . . . Vamos! Coma alguma cousa. . .

E enchendo-lhe o copo com o vinho que trouxe num cangirão:—Beba, sr. vigário! beba um bom trago de vinho! Êste ainda é da colheita do defunto padre René... Ah! o padre René!... Esse é que tinha sempre um apetite. . . que metia gosto vê-lo comer!. . . Comia tão bem o santo homem que, às vezes, vendo-o jantar, jantava segunda vez! Um dia pregou-me uma formidável indigestão!... Santa criatura!...

—Você o estima muito, não é verdade, tia Salomé?... perguntou Ângelo, tomando uma colherada de sopa.

—Como não?. . . Pois se o servi durante dezoito anos seguidos! . . . Se não fosse a congestão que o raspou, ainda. ..

—A congestão?! interrompeu o vigário. Pois ele não morreu atacado pela peste?. . .

—Qual o que! negou a criada, rindo. Isso foi uma balela que se arranjou aqui em Monteli!... Os amigos dêle entenderam que lhe não ficava bem, como sacerdote, morrer de congestão, havendo tanta peste na aldeia. . .

—Ah!

—Coitado! Foi lástima! Belo homem! Não parecia ter setenta anos! Forte, sadio e trabalhador como gente!. . . As vêzes, depois do almôço, agarrava-se a uma enxada e dava-lhe para labutar, que três ou quatro trabalhadores não lhe levariam a melhor! Não vê o senhor vigário tôda aquela parte do muro do cemitério que está reconstruída?. . . Pois quem foi que a levantou?. . .

—Ah! Êle também trabalhava de pedreiro?. . .

— Se trabalhava! Queria que o visse em mangas de camisa e calças arregaçadas, pé no chão, a fazer barro e a carregar terra! Mas também, quando caía na cama, era aquela certeza!

—Dormia bem?. . .

—E roncava, senhor vigário! roncava, que se ouvia de longe! Uma vez. . .

Um trovão mais forte estalou no espaço, fazendo tremer as fôlhas da janela.

—Chit! gritou Salomé, correndo até à porta; que tempestade vamos ter! Olha se o senhor vigário se demora mais um pouco!... Felizmente tenho aí alecrim bento para queimar!. . .

Mas Ângelo já não a ouvia. Tinha os olhos cravados no teto.

—Então que é isso?. . . perguntou ela, tocando-lhe familiarmente do ombro. Já caíu na cisma?... Vamos! coma ainda alguma cousa! Vá uma fatia de queijo. (Ângelo repeliu o prato). Sempre queria que me dissessem o que foi que o senhor vigário comeu!. . . Não sei do que se sustenta!. . . Se isto continua assim, mando pedir ao boticário o remédio que êle deu ao filho do tio Curvado. Aquele também não comia, nem à mão de Deus Padre, mas o boticário deu-lhe uns papelinhos, e o rapaz endireitou logo! Hoje, de gordo, não passa por aquela porta!

Interrompeu-a um novo trovão, mais forte ainda que o primeiro.

Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6


 Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.