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III

Virgindade no homem

Logo que Ozéas deixara a sombria cela do convento de S. Francisco de Paulo e a porta se fechara sôbre êle silenciosamente, Ângelo, em obediência às suas ordens, ajoelhara-se defronte do oratório e começara a rezar.

Na sua alma inocente não passava a idéia da responsabilidade que o esperava. Sem nunca ter saído à rua, sem conhecer Paris e os parisienses, não podia desconfiar sequer do que era nesse tempo um sermão pregado na capela real, defronte do rei e da côrte.

Não sabia que nesse tempo, piedoso e devasso, fazia-se da religião um prazer requintado, e que o púlpito era, como o palco, ou como o livro, ou como o salão e o álbum, um meio de exibições de talento esquisito e complicações de arte. Não sabia, o pobre Ângelo, que o pregador do que menos precisava, nesse bom tempo do estilo equilibrado em cinco palitos, era de ser sincero e convicto, mas sim de ter originalidade na maneira, graça na exposição da frase, elegância nos gestos e naturalidade galante nos soluços e nos gemidos de pecador.

Essa mistura do sagrado áspero com o profano macio, do prazer aveludado com a devoção capitosa, produziu as célebres festas híbridas, que então se organizavam em uma das salas das Tulherias durante a quaresma, e as quais deram gamenhamente, o nome de Concertos espirituais.

Luís XV gostava de presenciá-las, sentado a um canto entre algumas formosas mulheres, e bebendo vinho da Síria, que era o seu vinho predileto. Pestanejava e sorria para todos os lados. Liam-se versos ternos e religiosos, cantavam-se o Miserere, o De profundis, o Stabat, e outras cousas tristes, mas tudo com muita graça e requebros faceiros.

Era o amor temperado com óleo cheiroso de Santa Luzia.

Havia sempre para estrear, no púlpito dêsses concertos, um ou mais jovens eclesiásticos, sempre moços bonitos, aos quais, durante o sermão, serviam água rosada e licor de violetas. E o que deles se exigia, era apenas voz doce, olhar meigo, dentes bem claros, lábios vermelhos, rendas alvíssimas na camisa, e mãos brancas de unhas limpas. Às vezes criava-se uma bela reputação e fazia-se uma bonita carreira, só com uma palavra feliz ou com um gemido suspirado com chiste em ocasião oportuna. O caso era que as gentis devotas se impressionassem. E só se falava à meia voz, só se namorava a meio sorriso e só se andava lentamente aos pulinhos, abafando os passos nos arminhosos tapêtes a que Pompadour deu o seu nome.

Ângelo, coitado, nada conhecia disso nem por notícia sequer; como igualmente não conhecia o outro gênero de pregadores, não menos comum nesse tempo, o do pregador terrível, de pulso forte e cabeça dura, que ia para o púlpito de cacête escondido debaixo do capote, e cujos sermões eram por via de regra uma descarga política e uma tremenda descompostura, contra o partido dos Jansenistas ou contra o partido dos Molinistas, conforme a filiação do orador, e que, em geral, acabavam também por soluços e gemidos, mas êstes agora bem sinceros e bem reais, e grossa pancadaria no átrio da igreja.

Até certa idade, Ângelo chegou a acreditar que o mundo se resumia no seu convento, e que a humanidade se compunha apenas daquela meia dúzia de frades, ingênuos e quase santos, que êle conhecia. Ozéas, com um cuidado enorme, um zêlo de guarda do Paraíso, isolava-o dos seminaristas e dos empregados do seminário, e lhe não deixava cair nas mãos a mais inofensiva página de qualquer livro que não fosse religioso.

E, no entanto, Ângelo era dotado de um poderoso talento de assimilação e devorava sôfregamente tudo, bom ou mau, que lhe davam para ler. As matérias religiosas que plantaram no fundo do seu espírito, desabrocharam logo, produzindo uma intrincada floresta de filosofia teológica, que abismava aos próprios seus professôres.

Aquela criança, diziam êstes, estava destinada a fazer o verdadeiro renascimento da religião cristã.

E cresciam os desvelos em torno de Ângelo, orçando já pelo fanatismo. Não lhe permitiam olhar para o pátio do convento, onde havia uma criação de galinhas e coelhos. Receavam, e com razão, que o espetáculo dos instintos procriadores dos inocentes bichos despertasse no outro inocente idéias que a igreja reprovava. Escondiam-lhe o próprio sol em dias de grande calor, como se a exibição daquela vida que se derramava sôbre a terra para fecundar com a luz germinadora e benéfica, fôsse bastante para acordar na carne pálida do seminarista a revolucionária centelha do amor.

Entretanto, Ângelo bem pouco se impressionava com essas cousas, e tinha para tôdas essas lubrificações com que a natureza estimula a vida, um profundo olhar de indiferença, como se todo êle estivesse perenemente voltado para a fria religião ideal e azul, em que os anjos, únicos que a povoam e habitam, não têm idade nem sexo.

Não era uma criatura humana, não era um môço que ia entrar na adolescência; era a sombra incolor de um obscuro beijo que se fizera carne, e que o crepúsculo da tarde, pedia-lhe que o não deixasse corromper-se à sensual e perturbadora luz do sol.

As vêzes, ao cair da noite, quando a natureza parece abrir o peito, para chorar em gotas de orvalho as misteriosas dores do seu parto de todos os dias, êle o pálido enjeitado, que vivia à sombra das paredes sonolentas e úmidas de um claustro, saía a passear pelo maltratado jardim que havia nos fundos do convento. E aí, entre as cheirosas moitas das rosas silvestres, tépidas ainda do derradeiro sol que as dourara no último poente, o seu vulto triste e meigo transparecia, como um sonho de poeta ou um fugitivo devaneio de donzela.

Pobre Ângelo! De tudo que sua alma podia conceber, só uma cousa lhe não esconderam—a Bíblia. E era com o auxílio dêsse poema quente e cheiroso como os perfumes de Cedar, que êle, o infeliz, enchia de estrêlas os seus devaneios de sonhador impúbere.

Nesses momentos, o canto que o seu coração cantava chorando, e chorando lhe fazia agitar da bôca as pétalas trementes, era o Cântico dos Cânticos, o livro do poeta rei, amante de tôdas as mulheres formosas do Oriente.

Ironia dolorosa! Ângelo, o casto, arrebatava-se nas asas da inspiração do poeta de mil amantes!

"Eu durmo e o meu coração vela; eis a voz do meu amado que bate, dizendo:—Abre-me, irmã minha, amiga minha, pomba minha, imaculada minha; porque a minha cabeça está cheia de orvalho, e me estão correndo pelos anéis do cabelo as gotas da noite."

"Eu abri a minha porta ao meu amado, mas êle já se tinha ido, era já passado a outra parte. A minha alma se derreteu, assim que êle falou: busquei-o, mas não o achei; chamei-o, e êle me não respondeu."

E Ângelo, quando êstes versetes lhe vinham ao espírito, misturados com os suspiros da vaga saudade, que êle mal definia e em que mal acreditava, caía em fundas cismas, para as quais só havia uma consolação: —escrever. Não versos, dêsses que o público exige dos poetas mundanos, porque Ângelo não conhecia regras de arte, mas lançava sôbre o papel frases como as que lia no livro de Salomão, ao correr da pena, e impregnados da quente virgindade de sua alma.

Quem roubasse da escura cela as tiras de papel, esquecidas sôbre a tôsca mesa de pinho, leria nas trêmulas linhas, aí traçadas tôdas as noites com mão nervosa, estranhos pensamentos como os que foram o capítulo a seguir.

IV

Vem! Que te chamo!

"Amado da minha alma, aponta-me onde é que apascentas o teu gado, onde te encostas pelo meio-dia, para que não entre eu a andar feito uma vagabunda atrás dos rebanhos dos teus companheiros.

"O meu amado é para mim como um ramilhete de mirra. Êle morrerá entre meus peitos.

"Meu amado, vem comigo pelos campos, dá-me a tua mão; que eu perfume nela os meus cabelos e que eu sôrva tremente o cheiro da tua bôca, como a cabra montesa que morde os lírios da ladeira.

"Tu és belo e forte como o cedro, suave como a ribeira, e tua voz é como o gemido das pombas.

"As tuas faces têm tôda a maravilha de um prado iluminado por dois sóis, e onde os meus beijos, como um rebanho, descansam à sombra dos teus cabelos.

"Vem, amado meu do meu coração, que eu por ti definho de amor e morro de tristeza.

"O amado do meu coração é bonito que nem essa cabra arisca, que grimpa à tardinha pelos escaldados outeiros sem relva, e que de noite e de manhã a gente não bispa mais. êle é como o veadinho branco, que corre mais depressa e se some, se lhe querem pôr a mão em cima. êle é como aquilo que nós mais queremos, e que não está dentro dos nossos braços e junto dos nossos lábios.

"Mas não, alma minha mentirosa, ei-lo que ali está ele, todo amoroso e rubicundo, pôsto de pé por detrás da parede do meu quarto, olhando o meu leito pelas frestas da janela, chorando de amor e estendendo a vista dos seus olhos por entre as gelosias.

"Lavei os meus pés assentada no meu leito. Como os hei de sujar agora?

"O sândalo e a murta estão recendendo.

"Vem, amado de minha alma, as vinhas já puseram o primeiro cacho de seus frutos, e as môças de Jerusalém estão dormindo à sombra das parras, para sonhar com aquêles que as querem para amar.

"Eu só, amado das minhas entranhas; eu só, a mais mesquinha entre filhas de Jerusalém, não durmo o sono da noite, e estou à espera que a minha vinha amadureça e tome côr, para te puxar para meu lado e repartir contigo a minha uva doce.

"Virás, que te chamo com as minhas mãos, e te abro meus peitos.

"Tu és, amado de minha vida, o escolhido do meu coração. Tua cabeça é como a espiga de ouro que o sol beija de manhã, pensando que beija a mesma cabeça de seu filho, os teus cabelos são como as fibras que as palmeiras choram, quando lhe arrancam as pencas dos seus frutos que elas produziram. São leves, macios, correntes e ondulosos, são como os cabelos do milho doce, e mais doce que o mel gostoso da flor da banana.

"Eu te amo, porque tu és formoso. Mira-te, tu, nos meus olhos amorosos, e verás se te mentem minhas palavras. Não me fujas como a ave que deseja a irmã sozinha no ninho, sem o companheiro para cobrir os ovos. Teu rebanho não se perderá na montanha, enquanto tu dormires com a cabeça entre meus peitos de amor.

"Vem, amado meu. As nossas noites serão como os regatos tranqüilos, em que se abrem os nenúfares, brancos e perfumados como sonhos de amor. Teus lábios serão dos meus lábios, teus cabelos serão dos meus cabelos, teu seio do meu seio, como a raiz é da terra, como a flor é da abelha. Vem, põe a cabeça em cima de mim e dorme o teu sono, que eu também dormirei, mas desfalecida de amor. Dá o teu último pensamento vivo para os meus lábios, para que eu o guarde dentro de mim, e te o restitua depois na tua bôca. Fala-me para dentro, e minha alma te ouvirá cativa e amorosa.

"Conjuro-te, amado meu, que desças da montanha pelo teu pé e venhas até a mim, que te quero. Traze tu o teu rebanho branco, e iremos, nós juntos, apascentá-lo muito longe pelas campinas, até que morra o sol e a noite chegue sacudindo os cabelos orvalhados de estrêlas.

"Junta-te comigo, que eu sou o mel de que teus lábios gostam. Bebe a doçura da minha bôca, e tu me pedirás o favo inteiro.

"A asa procura a flor, porque a flor esconde o mel doce nos seus seios. Vem; vem e fecha nas tuas asas de sol as pétalas do meu desejo.

"Desce donde estiveres, vem, que te espero eu, sem poder fechar o meu tormento, enquanto não chegares para me amar.

"Mas quem és tu, amado de minha alma, que meus olhos te não distinguem por entre as sombras da minha vida, nem meu braço te alcança, quando de noite te busco nos meus sonhos?. . . Quem és tu, amada visão, que eu busco e que me acompanha?. . . Quem és tu, que te evoco e me não vales, quando todo meu desejo é que me desejes e me tenhas?

"Minha porta dorme tão aberta como meu peito. Meu leito não tem muros, e meus braços não se cruzarão para o teu encontro, posto sejas tu o senhor e eu escrava que te espera.

"Tu me reconhecerás na sombra, se chegares; basta que ponhas a mão sobre minha carne. E isso será um sêlo para que tu nunca mais me percas.

"Vem, amado do meu coração! Vem! Vem, que tôda eu te quero!"

E, no entanto, Ângelo era um inocente, ou, pelo menos, nunca tinha visto uma mulher.

V

Triunfo inconsciente

Dotado, como ficou dito, de grande atividade intelectual e poderoso talento de assimilação, Ângelo aos quinze anos já embasbacada os seus ingênuos professôres, com as argúcias das suas réplicas e com os engenhosos comentários que fazia do Velho e do Novo Testamento.

Ozéas, cada vez mais profundamente convencido da procedência divina do seu pupilo, guardava-o e escondia-o afinal com o respeitoso carinho e desvêlo com que se guarda uma relíquia consagrada.

E a crença de que Ângelo era um inspirado por Deus, foi ganhando o espírito de todos que com êle praticavam no convento.

Havia com efeito no ar daquele pobre adolescente prisioneiro de um claustro, alguma cousa que impressionava a quem o observasse de perto. Os seus grandes olhos azuis, muito escuros, quase negros, tinham uma híbrida expressão feita de inocência e perspicácia; eram vivos como os da águia, mas transparentes e doces como os de uma criança, e tinham, ao mesmo tempo que deixavam transluzir tôda a virgindade daquela alma imaculada, súbitos clarões, Inteligentes, que denunciavam um espírito agudo e forte. Na suavidade das suas faces de môço, havia a sombra das duras penitências e das grandes vigílias místicas sôbre as páginas do breviário, ou defronte do altar da Virgem Santíssima, mas havia também uma juvenil frescura de flor, dessas misteriosas e pálidas, que só à noite desabrocham e recendem. A sua bôca imberbe era um conjunto fascinador de graça e de tristeza, seus lábios, um tanto cheios e sangüineos, pareciam todavia talhados mais para os beijos de amor do que para o frouxo balbuciar das orações. Seus cabelos negros, crescidos à nazarena, como então usavam os religiosos de França, derramavam-se-lhe em fartos anéis sôbre a brancura do pescoço e caíam-lhe em trêmulas madeixas de lado a lado do rosto.

Devia ter sido um rapaz muito forte, se não fôra a enervadora clausura a que o condenara seu infeliz destino. Era de natural esbelto e airoso, tinha os dentes brancos e rijos, o queixo enérgico, o nariz feito de uma só linha, a fronte alta e severa.

As macerações dos jejuns e das ásperas disciplinas não conseguiram desfibrar-lhe de todo a sólida compleição com que a natureza o dotara. Apesar de tudo, era ainda, nos seus cândidos vinte anos, uma garbosa e gentil figura, que havia fatalmente de impressionar às damas sensuais da côrte de Luís XV.

Efetivamente assim foi.

Conduzido até ao púlpito por seu pai espiritual, Ângelo, mal se mostrou e percorreu com os olhos inexperientes o auditório que o aguardava ansioso, um súbito rumor de simpatia percorreu tôda a igreja. As mulheres, instaladas nas tribunas, alongaram o pescoço para o ver melhor. O rei sorriu interessado, e logo tôda a sua côrte sorriu também.

A capela, completamente cheia, palpitava de curiosidade. Paris elegante estava todo ali, entre aquelas bonitas paredes de mármore côr-de-rosa, guarnecida de florões e filetes de ouro rebrilhante. Sentia-se o tilintar dos pingentes de cristal dos imensos lustres de mil velas, e sentia-se por entre o farfalhar dos veludos e das sêdas, o fremir dos leques de tartaruga e madrepérola, suavemente agitados contra os adereços preciosos. O cheiro sagrado da mirra e do incenso confundia-se no espaço com os voluptuosos perfumes do toucador.

Ângelo, imóvel, de pé, mãos pousadas no retôrdo do púlpito, olhos postos no alto e lábios entreabertos, fazia a sua oração preparadora, inteiramente alheio a tôda aquela luzida e refulgente côrte que o cercava.

Compreendia-se que sua alma, arrrebatada no enlevo da prece, vagava naquele instante pelos infinitos páramos do céu.

Tôda a sua fé, tôda a sinceridade das suas crenças e tôda a pureza do seu corpo e do seu espírito, vieram-lhe ao sembrante naquele momento de profundo êxtase.

Parecia um arcanjo em dulcíssimo idílio com a Divindade. Dir-se-ia que êle, de um instante para outro, ia desprender-se da terra e partir lentamente para Deus, como a própria suplica que lhe agitava as rosas da bôca e se evaporava como um perfume.

Quando as suas primeiras palavras sairam-lhe do coração, num doce murmúrio de voz angélica, houve em tôdas aquelas pobres criaturas, estafadas pelo vício e pela libertinagem, uma inesperada comoção que lhes umedecia os olhos.

E êle, sempre arrebatado no vôo do seu enlêvo religioso, continuava a falar, como se estivesse sonhando, cercado de uma nuvem de anjos.

A sua voz, de cristal e ouro, virgem e sonora, enchia o recinto, produzindo naquele extático e maravilhado auditório o efeito de uma estranha música desconhecida, que baixasse dos céus para acordar-lhe, no corrompido e morto coração, uma idéia generosa e consoladora.

Foi geral e profunda a comoção. As mulheres arfavam, sem despregar os olhos da encantadora figura de Ângelo. O rei deixara pender a cabeça sôbre o peito e cismava, possuído de uma expressão de bondade, que até aí ninguém lhe tinha jamais visto. A condessa de Pampadour, debruçada no seu genuflexorio de veludo carmesim, tinha a fisionomia paralisada e parecia orar contritamente.

Entretanto, Ângelo falava sempre, e sempre alheio ao que o cercava. Suas frases vinham-lhe aos lábios naturalmente, sem que houvesse nêle a mais ligeira preocupação de agradar ao público ou armar ao efeito. Era nada mais do que a confissão do seu entranhado amor pelo mártir do Gólgota, um descrever de dores cruciantes, que êle sofria dizendo-as ali, como se naquela ocasião as experimentasse possuído de uma revolta de arcanjo fiel e cheio de piedoso entusiasmo por êsse Deus humilde, que abandonou o seu trono celeste para vir padecer, na terra ingrata, como o derradeiro dos homens.

Falava de Jesus como se falasse de um desgraçado companheiro, a quem arrancaram de seus braços para levá-lo de rastos por essas ruas, cuspindo-lhe sôbre as feridas, rasgando-lhe as carnes nas pedras do caminho, e matando-o afinal num poste infame, onde se justiçaram os ladrões e os assassinos.

A sua dor era sincera, e por isso se apoderava do coração de todos que o escutavam; tanto que Ângelo, ao terminar a prédica, lançando o derradeiro lamento de desespêro pela morte do Redentor, e pedindo a Deus que o fulminasse também naquele mesmo instante, para nunca mais ter olhos, nem bôca, nem ouvidos para êste mundo de maldades, viu erguerem-se todos em volta dêle e um grito de entusiasmo acompanhar as suas últimas palavras, como se de repente acordassem em sobressaltos, depois da embriaguez em que os lançara aquela estranha e capitosa eloqüência.

Mas, antes que tivessem tempo de apoderar-se dêle, e antes que as damas descessem das tribunas para felicitá-lo, já frei Ozéas, cioso do seu tesouro, arrastava-o pelos corredores da sacristia e metia-se com êle no carro, mandando tocar a tôda pressa para o convento.

Quando o rei lhe mandou dizer pelo seu primeiro criado particular, o Sr. de Laborde, que viesse à sua presença para falar-lhe, já a sege de praça em que ele ia com o frade, havia desaparecido muito tempo antes.

V I

Um homem paro discutido por mulheres

O sermão de Ângelo foi um verdadeiro acontecimento, que logo se apoderou da curiosidade de Paris inteiro.

Por tôda a parte se falava em tal, e se comentava aquele pálido e meigo seminarista, que vinha, da sombra silenciosa de um pobre mosteiro, abalar o coração de tôda a corte de Luís XV.

Discutiam-lhe os olhos, a bôca, os cabelos. Falava-se do seu ar angélico, da sua encantadora expressão de santo inspirado, e da maravilhosa doçura da sua voz.

Formaram-se logo mil lendas a respeito dêle, e sabia-se que o rei, depois de lhe oferecer um lagar na capela real, o que foi imediatamente recusado pelo velho Ozéas, propôs-se a assistir à sua missa nova, graça que não tinha até aí concedido a nenhum outro iniciado, e prometeu também presenteá-lo com as vestes e paramentos que o seminarista tinha de pôr nesse dia, o que equivalia a dizer que Ângelo iria ordenar-se cercado de todos os esplendores.

E começaram, tanto os que presenciaram o famoso sermão de quinta-feira santa, como os que apenas ouviram falar dêle com insistência, a esperar o dia da iniciação de Ângelo, para ter, ao menos, o prazer de ver êsse imberbe e afortunado pregador, que assim abalava escandalosamente o alto e baixo público de Paris.

Ângelo era o assunto de tôdas as palestras da rua e das salas. No teatrinho que o duque de Orléans tinha no seu palácio de Bagnolet, célebre pelas cenas licenciosas que aí se representavam, tratava-se já de fazer subir à ribalta uma peça com o nome dele, na qual o duque desempenharia um dos principais papéis.

No salão teatral da duquesa de Villeroi, onde o rei da Dinamarca viera uma vez para ouvir declamar o popularíssimo Le Kain e MºClairon, pensava-se também em montar uma comédia de assunto sacro, cuja ação se passava na capela real, e cujo protagonista era um pregador de vinte anos.

E, assim, no teatro do barão de Esclapon, no da duquesa de Mazarin, no do Sr. de Magnaville, no do príncipe de Condé, no da Guimard, e nas salas alegres de Sofia Arnoud, pontos êsses de reunião em que melhor se fazia espírito e, com mais graça e mais picante maldade, se discutiam as novidades e os escândalos do dia, era ainda Ângelo o assunto da palestra e o objeto de mil epigramas, sátiras e trocadilhos.

Mas onde incontestàvelmente o assunto despertou maior escândalo, foi no salão da condêssa Alzira, bela, cínica e espirituosa cortesã, célebre por ser nessa época a mulher mais insensível e mais fria de Paris. Juravam todos que a formosa condêssa jamais sentira por ninguém a menor partícula de amor, e que o seu melhor momento de alegria era quando, por causa dela, algum dos seus inúmeros apaixonados caía morto em duelo ou metia uma bala nos miolos.

Começando pelo rei, que fôra o seu primeiro amante, pertencera ela depois simultanêamente, ora mais ora menos tempo, a tôda a gente da côrte capaz de manter mulheres caras.

Tinha uma virtude: a ninguém enganava, porque, não só confessava francamente ao seu dono da ocasião tôda a sua insensibilidade, fôsse lá por quem fôsse, como não repartia com um segundo aquilo que um primeiro houvesse arrematado já e pago à vista.

Esta sinceridade original em uma pessoa das suas condições, valeu-lhe a estima de alguns homens de espírito. De sorte que as quintas-feiras de Alzira eram freqüentadas por boa roda de rapazes, e a gente se não aborrecia entre as quatro paredes das suas riquíssimas salas.

Como fiéis, reuniam-se lá tôdas as semanas suas amigas, a cantora Sofia Verriére, Gabriela Vanguyon, Margarida Duclos, o conde de Saint-Malô, Artur Bouvier, e, principal e invariàvelmente, o seu velho amigo, o único homem para quem Alzira tinha às vezes um sorriso de amizade, o Dr. Cobalt, médico de nomeada, que fazia algum ruído em volta do próprio nome com os seus estudos sôbre o materialismo, então apenas nascente em França.

E as reuniões eram boas quase sempre. Na imediata ao sermão de quinta-feira santa, era Ângelo o assunto forçado em todos os grupos.

—Um triunfo! exclamava Sofia; um verdadeiro triunfo! Em alguns dias o tal discípulo do velho Ozéas tornou-se quase tão popular como a Pompadour!

—É exato! confirmou o conde de Saint-Malô; depois de Bossuet, não se ouviu em Paris uma prédica tão notável. Nem as melhores de La Rose!

—Ah! interveio Artur Bouvier; o sermão de quinta-feira foi com efeito uma obra-prima no seu gênero! Vi desfazerem-se em pranto criaturas, a quem eu supunha fôsse impossível arrancar uma lágrima!

—Pois se até a Guimard chorou!. . . disse Margarida, mostrando os seus dentes grandes como os de uma inglêsa.

Bouvier replicou:

—A Guimard não admira, é uma mulher! Feia é verdade; magríssima, não há dúvida; sarapintado de marcas de bexiga, ninguém o nega; mas afinal é uma mulher! Comover, porém, o duque de Fronsac e o marquês de Sade até à lágrima. . . isso é que é verdadeiramente extraordinário!. . .

—Pois êsses dois monstros choraram?... perguntou Gabriela, afetando grande surprêsa. Oh! como hoje em dia a lágrima está ao alcance de tôdas as bôlsas! . . .

—Pois choraram. . . insistiu Bouvier. Tanto que a propósito Sofia Arnoud disse que o jovem pregador, fazendo brotar água de tais rochedos, conseguira maior milagre do que o seu legendário colega Moisés.

—Ah! suspirou Margarida. Não há dúvida que o talento sabe fazer todos os milagres!. . .

O Dr. Cobalt, que a um canto da sala conversava com Alzira, mas aplicava meio ouvido à palestra dos outros, exclamou de lá:

—Não! não! perdão! não foi o talento que fêz o milagre, minhas gentis amigas; não foi o talento, nem tampouco a ilustração teológico do jovem seminarista, o que tão profundamente impressionou Paris...

Estas palavras do médico abriram na sala um silêncio de surprêsa e indignação.

—Como? Pois o Dr. Cobalt tinha a coragem de negar talento ao pregador de quinta-feira santa? . . . Oh!

O conde de Saint-Malô aprumou-se ainda mais sob os bofes bordados da sua camisa de rendas. Bouvier cerrara os lábios revoltado, e Gabriela assentara sôbre o doutor o seu lorgnon de tartaruga.

—Negar talento ao pobre môço!. . . Com efeito!

Cobalt sorriu, levantou-se, e, indo colocar-se entre êles, respondeu com a sua fleuma habitual, afagando o ventre:

—Sim senhor, sim senhor; não foi o talento, nem foi a ilustração do seminarista, o que impressionou Paris inteiro. Há por aqui milhares de teólogos, muito mais fortes na matéria e mais oradores do que Ângelo, que não conseguem abalar um só dos seus ouvintes.

—Então o que é que foi?... interrogou a formosa Gabriela, sem abaixar o lorgnon.

—Uma cousa muito simples, minha querida senhora, uma cousa extremamente simples. . .

Todos se aproximaram dêle, vencidos pela curiosidade.

—Que foi — Que foi?—Que foi então?. . .

—A sinceridade, respondeu o médico.

—A sinceridade?. . . exclamaram em côro.

—Sim, meus caros amigos. A verdadeira convicção nas suas crenças, o verdadeiro sentimento do que êle afirmou no púlpito. Foi só daí que lhe veio aquela poderosa e dominadora eloqüência. Ângelo falou mais com o coração do que com a cabeça, e só por isso Paris o ouviu tão comovido.

E depois de uma pausa:—Sim, porque é preciso confessarmos uma cousa, meus idolatrados amigos: os parisienses de hoje dispõem de muito espírito e de muita enciclopédia, mas, em questão de sentimento e de sinceridade. . . são de uma pobreza franciscana.

—Não é tanto assim!. . . arriscou Artur.

—Nós, os parisienses de hoje, prosseguiu o médico, somos muito corteses, muito engraçados, sim senhor, mas. . . falsos e hipócritas como ninguém. . .

—Ora essa, doutor!. . . resmungou o conde com um trejeito de ressentimento.

Cobalt acrescentou, torcendo para baixo a linha fria da sua bôca barbeada:

— Paris admirou em Ângelo o que Paris já não possui e só por isso considera extraordinário. Foi o assombro do homem desfibrado e gasto, produzido pelo homem ainda forte e perfeito. Admirou a fresca e delicada flor do sentimento, que êle supunha há muito tempo extinta; admirou êsse estranho Ângelo como se admirasse uma raridade preciosa, uma das nossas armaduras dos tempos gauleses por exemplo.

—Não sou dessa opinião! opôs Gabriela, voltando o rosto.

Alzira, que não deixara o canto do seu divã, ia cada vez mais se mostrando empenhada no que dizia o médico. Agora tinha o cotovelo fincado na almofada, a mão amparando o rosto, e os olhos espetados no teto.

—Era muito natural, continuou aquêle; muitíssimo natural que, em meio de uma sociedade devassa, em meio da França da Pompadour, aquêle verbo sincero, ingênuo, convicto e apaixonado, a todos fulminasse, como se fôra êle raios de luz vingadora enviada diretamente por Deus. Paris, meio eletrizado de Champagne, havia adormecido embalado por uma canção de Bouflers, guinchada por qualquer espalier do teatro de Audinot, e acordou estremunhado no dia seguinte à voz cristalina e matinal de uma criança, que vinha repetir em linguagem bíblica o que há quase dezoito séculos apregoavam em Galiléla os discípulos de Cristo. É natural que se comovesse... e foi isso justamente o que sucedeu. Paris, que há tanto tempo só sabe fazer uma cousa bem feita e com graça,—a orgia,—ficou embasbacado defronte da casta e simples palavra de um pobre seminarista sem pretensões. Nada mais justo! Mas o que lhes afianço, meus amigos, é que, se o simplório do padreca visasse a qualquer efeito; se desconfiasse, ao menos, da impressão que ia produzir no público, a ninguém teria comovido. Se êle conhecesse a sociedade que hoje o aclama; se êle tivesse tido a menor aspiração de glória; se êle não fôsse, enfim, coitado! mais inocente e mais puro do que a menina mais inocente de Paris, juro-lhe que não conseguiria o triunfo que obteve. O choque foi grande, porque foi inesperado. Os parisienses morrem pelo imprevisto e pela novidade; e ninguém, hoje em dia, lhes poderia proporcionar melhor novidade, do que o singularíssimo caso de um rapaz de vinte anos perfeitamente imaculado e puro!

—Mas, doutor, êle será com efeito tão puro como se diz por aí?... perguntou Gabriela em ar de riso. Não creio!

—O que há de mais puro, confirmou o médico.

—Um homem virgem em pleno século dezoito! . . . Qual! disse Sofia Verrière, soltando uma risada. Também não acredito!

—Nem eu! reforçou Margarida, sem rir.

—O Dr. Cobalt exagera com certeza. . . observou Gabriela.

—Não exagero, tornou o materialista; e digo mais, que êle nenhum mérito revela com semelhante raridade, porque tal pureza não é obra sua, mas sim de frei Ozéas.

—Mas, afinal, perguntou Alzira, saindo da sua abstração e encaminhando-se para o doutor; afinal, qual dessas mil e uma lendas, que correm por aí a respeito de Ângelo, é a verdadeira?

—Quais sejam as mil e uma, não sei. . . disse o médico, sentando-se no meio do grupo; mas a verdadeira é esta que vou contar:

—Pois venha a lenda!

—Venha a lenda!

—Atenção!

VII

Frágil como uma lágrima!

O Dr. Cobalt. com o espírito alegre de que era dotado e com a sua pitoresca e original maneira de contar as cousas, narrou às damas e cavalheiros que se achavam no palpitante salão da condêssa Alzira, a curiosa e singela história de Ângelo.

Foi escutado com o máximo interesse. A formosa e fria dona da casa, essa mulher que diziam de coração surdo a tôdas as ternuras e de olhos secos e fechados para tôdas as dores, era todavia a que se mostrava prêsa dos lábios do narrador, e a que mais àvidamente lhe bebia as palavras.

—Ozéas, disse o médico, concluíndo, queria enfim fazer um padre perfeito, para poder dar alguém por si, quando, despido da traiçoeira carne, tivesse, como sacerdote, de prestar contas do que praticara nesta vida. Queria fazer um grande coração, muito forte e muito amoroso; amoroso para Deus, forte para o mundo. Queria que o seu discípulo amado fôsse uma tôrre de cristal, invulnerável e incorruptível, mas tão alta e tão sólida que ligasse a terra ao céu e o homem a Deus!

Dito isto, calou-se por um instante; depois sorriu para o atento grupo que o cercava silencioso, e acrescentou, pondo-se de pé e abrindo os braços, na galante reverência de uma quase mesura:

— Ora aí tem, meus adoráveis amigos, tudo o que sei de fonte pura a respeito do singular môço, que tão formidável impressão deixou sôbre Paris na quinta-feira santa.

Alzira quebrou o seu silencio para perguntar, com os olhos fitos no médico:

—E êle, antes de quinta-feira, nunca então havia saído à rua?. . .

—Nunca, afirmou aquêle. Fez todos os seus estudos e recebeu as ordens sem arredar pé do convento, ao qual o seminário é anexo. Seus dias, desde a mais tenra idade, foram todos, dedicados de corpo e alma aos livros santos e aos misteres da igreja.

—Então é um ente perfeitamente puro? interrogou ela.

—Puro como um anjo.

—É extraordinário! exclamou Margarida, sem poder conter o seu entusiasmo.

—É inacreditável! disse Sofia, meneando a cabeça com um gesto de incredulidade.

Gabriela Vanguyon soltou um suspiro e deixou escapar esta frase, que fêz rir a sociedade:

—Um homem puro em Paris! A dois passas de nós!. . .

E o Dr. Cobalt, que saboreava o efeito da notícia da castidade de Ângelo sôbre aquelas mulheres, cujo olfato já de há muito se tinha esquecido do delicioso perfume da flor de laranjeira, acrescentou, para alfinetar-lLes as fibras da admiração:

—Um homem puríssimo, virginal! Imaculado como a Virgem Santíssima! Um homem completamente inocente, sem a menor idéia do que seja sociedade, nem paixões mundanas, nem sexos, nem. . .

—Nem sexos?! inquiriu Gabriela, escancarando os olhos, sinceramente pasmada.

—Nem nada! nada! nada! respondeu o médico, sorrindo e apertando os lábios. Nada, minhas adoráveis pecadoras! Mas o que se chama "nada"!

— Estudava e lia muito, não é verdade, Dr. Cobalt?. . . quis saber Margarida Duclos.

—Sim, mas só cousas sagradas. . . biografias de santos, anedotas religiosas e dissertações espirituais. . . Ora, sucedeu por acaso que essa mísera criança, que o mesmo acaso atirou às mãos do padre Ozéas. dispusesse das mais valentes faculdades mentais, e, não conhecendo ela outro meio além daquele em que vegetou, e, não tendo outro pasto para seu espírito além da doutrina cristã e da manhosa teologia, deu-se todo inteiro a estas duas estéreis e sedutores senhoras, e no fim de contas apresentou escandalosamente aquêle imprevisto tipo, que fez as nossas delícias da côrte na quinta-feira passada.

—Ah! disse o conde de Saint-Malô; não há dúvida, porém, de que êle tem muito talento oratório; é uma capacidade em matéria de religião. . .

—Qual! desdisse o materialista em ar de pouca importância. Acho que aquêle pobre môço é mais uma inteligência aproveitável que se perde, e mais um infeliz doente que ganham os hospitais!

—E por quê?... exclamou Alzira vivamente.

—Ora! desdenhou aquêle. Porque tôda a sua ciência, se é que êle a tem, baseia-se nos mais falsos princípios. A sua filosofia é bonita, não há dúvida, mas completamente inútil. Não passará nunca de um metafísico. Construiu o seu edifício intelectual sôbre areia movediça; e no dia em que o primeiro sôpro quente de vida real cair-lhe em cima, lá se irá por terra a igrejinha! No dia em que a natureza, indefectível nas suas leis, o chamar friamente à verdade das cousas e exigir que êle cumpra com o seu destino fisiológico de homem, o seu próprio talento há de revolucionar-se com o seu sangue, e êle terá de abrir guerra aos falsos e arbitrários princípios em que o educaram. E então, o desespero e a decepção daquela pobre vítima do visionário Ozéas. serão tamanhos e tão fortes, que o desgraçado talvez não tenha fôrças para resistir ao golpe!

Alzira estremeceu.

—Infeliz. . . balbuciou ela.

Artur Bouvier tinha-se aproximado do Dr. Cobalt, e disse-lhe pousando-lhe a mão no ombro:

—Pode ficar tranqüilo, meu amigo, que o inocente Ângelo não conservará por muito tempo as suas penugens de anjo. A questão foi pôr o nariz à primeira vez fora do convento, ainda que para pregar sermão; respirou êste ar de Paris, está pronto! Um átomo desta complicada atmosfera, composta da exalação de todos os luxos e de tôdas as misérias, de tôdas as febres e de tôdas as paixões, é o bastante para revolucionar-lhe o espírito e corromper-lhe o corpo até à medula. Além de que, o rei, com certeza, já o tem de ôlho, e não deixara escapar uma jóia tão rara; é natural que a cobice para a sua côrte. Não dou muito tempo para vermos o tal santinho de olhos bonitos entrando para o quadro da capela real, com uma boa sinecura e um bom ordenado que lhe chegue para ter carruagem e para pagar uma gentil preceptora, encarregada de completar-lhe a educação. E juro-lhe que essa terá tanta paciência e tanta solicitude, quanta teve o santarrão do velho Ozéas. mas para lhe ensinar aquilo justamente que êste lhe não quis velar. . .

—E não será difícil encontrar quem se queira encarregar de completar-lhe a educação.. observou Sofia; porque, segundo a opinião geral, o tal anjo de pureza é notàvelmente simpático. . .

—Sim, tornou Cobalt, mas para isso era preciso que o "Santarrão", como disse aqui o nosso Bouvier, não estivesse de olhos bem abertos.

—Ora! opôs Margarida por detrás do seu leque; o velho Ozéas tem mais de setenta anos! Já deve estar com a vista curta. . .

—E as pernas trôpegas. . . acrescentou Gabriela.

—E não viverá eternamente. . . completou Sofia. Se o santinho não tiver por si outra guarda, pode ir desde já rezando por alma da sua virginal capela!. . .

—Sim! apoiou o conde. Não há dúvida que está aí, está cantando a primeira missa e entrando logo em seguida para a capela real. E há de fazer carreira!

—Pois engana-se, caro conde, acudiu o doutor; engana-se redondamente. Ângelo não entrará para o quadro da capela real, pôsto que o rei já o convidasse. O velho Ozéas. tenciona carregar com êle para Roma, depois para Jerusalém, com o fim de alargar-lhe quanto possível o cabedal das suas luzes; e, quando o rapaz estiver bem homem, bem forte, completamente desenvolvido, então o velho Ozéas o atirará sôbre Paris, opondo o discípulo como um terrível protesto vivo contra a grande e desenfreada decadência moral dos nossos tempos. Conta que a luta se travará um dia afinal, tremenda e sem tréguas. De um lado, o invencível apóstolo, fechado na armadura da sua virtude e armado até aos dentes com a sua sabedoria divina; do outro lado, Paris, Paris friamente inabalável nos seus vícios e na sua libertinagem, Paris crápula, Paris abjeção, Paris lôdo!

—Ah! essa luta há de ser fatal! disse Artur Bouvier no meio do silencio dos outros.

—Não! acrescentou o materialista, perdendo por um instante a sua fleuma natural e deixando escapar dos olhos uma estranha cintilação, que lhe transformou o ar bondoso da fisionomia. Não há de ser com súplicas e sermões que a França se resgatará, mas a metralha, a canhão e a ponta de baionetas!

—A sangue?! exclamou o conde.

—Sim, a sangue. . . confirmou o médico, sacudindo a cabeça.

E calaram-se.

O sorriso havia desaparecido de todos os lábios; as mulheres tinham desmaiado de côr ligeiramente. Cobalt acrescentou em voz cava, como se falasse consigo mesmo:

—O que talvez não esteja longe!. . .

E um indeciso sobressalto agitou-lhes o sangue e oprimiu-lhes vagamente o coração, nem que naquele momento entrasse ali, como um sôpro pressagioso, agitando as cortinas da sala e empalidecendo a luz das velas, um clarão vermelho vindo das bandas setentrionais da América.

Era o anélito da revolução que se aproximava lentamente da França.

Se prestassem ouvidos, quem sabe? talvez escutassem um surdo ruído subterrâneo: Diderot e d'Alembert abriram já a sua mina por debaixo da terra, para depois Voltaire lançar-lhe fogo.

Só Alzira não parecia sobressaltada. Encaminhando-se para o Dr. Cobalt, tomou-o pelo braço, afastou-o para um canto da sala e perguntou-lhe, reclinando no ombro dele a sua formosa cabeça:

—Já sabe qual é o dia marcado para a missa nova do padre Ângelo?. . .

— Segunda-feira.

—Onde?

—Em Notre-Dame.

—Quer ir comigo?

— Com mil desejos, minha encantadora amiga.

— Obrigada. Iremos juntos.

VIII

Fulminação

No dia marcado para a missa nova de Ângelo, a catedral de Paris, onde devia ela efetuar-se, começou desde muito cedo, a encher-se de gente de tôdas as classes, desde a mais alta até à mais baixa camada social.

Iria o rei, e com ele lá estaria, sem dúvida, a côrte em pêso. A corte arrastaria o que de mais brilhante houvesse no alegre círculo das loureiras; estas, por sua vez, chamariam atrás de si um mundo de namorados, de poetas, de artistas e folgazões, aos quais acompanharia espontâneo o povo, sempre curioso e ávido de festas.

Num dos longos corredores laterais da sacristia, corredor abobadado e feito todo de pedra, o Dr. Cobalt conversava tranqüilamente com um padre velho chamado Azarias, e com um sacristão que se mostrava muito entusiasmado com a escandalosa e original fortuna do seminarista.

O médico não tinha perdido a sua calma habitual; dir-se-ia que êle estava ali mais para observar do que para se divertir. Com os seus frios lábios sempre contraídos, parecia abstrato e afagava o queixo escanhoado, cheirando de vez em quando uma pitada. O sacristão, êsse não ficava quieto um só instante, ia evinha de carreira, furando por toda a parte, e procurando saber quem estava na igreja.

—Chih! exclamava ele esfregando as mãos defronte o padre Azarias. Que furor! Que furor! Não imaginam que de gente cada vez mais chega, para assistir à missa nova do discípulo de frei Ozéas! Já vi a Sr.a marquesa de Vandenesse e a sua encantadora irmã: a Sr.a De Conti, a Sr.a condêssa de Laranguais, de quem dizem que o rei. . .

E interrompeu-se para declarar, dando um salto e apontando para uma das portas por onde se via quem chegava:

—Olhem! Olhem! ali vai o poeta Bouflers!. . . vai com o conde de Saint-Malo e com o cavalheiro Artur Bouvier. Agora entrou a Sra. marquesa de Tourneles!

—Ora! disse Azarias. Pois se até a rainha, que agora pouco sai à rua, aposto que há de vir!. . .

O sacristão, depois de novas carreiras e novo esfregar de mãos, veio segredar quase ao ouvido do padre:

—E veio também, reverendo, o que há de mais espaventoso entre o mulherio parisiense!. . .

—Ó maroto! resmungou o velho sacerdote. Alguém aqui te perguntou por isso? Anda! Sai de junto de mim, tinhoso!

O sacristão voltou-se então para o médico, e disse, contando pelos dedos:

—Está aí a falada Dutê, com o seu eterno vestido côr-de-rosa e com o seu atual amante, o duque de Durfort! Está aí Sofia Arnould com o seu cãozinho— o duque de Chartres!

—Não te calarás?! bradou o padre velho, tornando-se vermelho.

O sacristão não fez caso e continuou, dirigindo-se ao médico, como se esse lhe desse atenção:

—Vieram também as Barrière, com as quais confesso que embirro solenemente, a Dervieux, de quem eu cada vez mais gosto, a Guimard, a Cleofile, e, mais bela que tôdas, mais sedutora e mais diabólica, a célebre condêssa Alzira, a mulher mais insensível de Paris! veio com o seu amante destes últimos tempos, o marquês de Florans!

—liste sacristão é entendido no gênero!... Observou o materialista a rir-se.

O padre resmungou, em resposta, coçando a calva:

—Ah! Paris! Paris das Pompadours!...

—Também acaba de chegar! exclamou o endemoninhado sacristão. Está na primeira tribuna da esquerda, com o príncipe de Henin e o conde de Aranda.

O velho tornou a coçar a cabeça e disse com azedume.

—Não sei que tem a cheirar na casa de Deus semelhante gente!... Mas que quer? Fizeram desta missa um divertimento! O culpado é o rei. Aposto que está aí também o duque de Fronsac, êsse maldito libertino, que herdou todos os vícios de seu pai, o cardeal de Richelieu, sem herdar nenhuma das virtudes! Vem ao faro das aventuras, o desavergonhado!

—E o que aí está de homens ilustres. . . observou Cobalt ao ouvido do padre. Já avistei Favart, Gentil Bernard, Condorcet, Luchot, Fréron, d'Alembert, Diderot, Beaumarchais, Mali, Lavoisier...

— Este seminarista, declarou o outro, é com efeito de uma fortuna inacreditável! Creia, meu doutor Cobalt, que nunca vi tanta gente boa reunida numa igreja para ouvir missa! E uma missa nova! É extraordinário!

Mas Ângelo nesse momento saltava do carro para entrar com Ozéas na porta lateral da sacristia, e um rumor geral se levantava provocado pela sua chegada.

O Dr. Cobalt afastou-se de carreira, a ver se arranjava um lugar na capela, em que devia ser a iniciação do adorado presbítero.

A capela, suntuosamente preparada para a cerimônia, refulgia, fulgurando de luzes e de ouro, de alvas rendas preciosas, brilhantes colgaduras de damasco e riquíssimas alfaias de mil cores.

Grande esplendor! Grande riqueza! Grande deslumbramento!

O altar-mor, onde Ângelo ia celebrar, parecia sair de dentro de um imenso ramalhete, tão grande era a profusão de rosas, que as damas lançavam nos seus degraus à medida que iam chegando.

As tribunas regurgitavam de mulheres luxuosamente vestidas, e venustamente decotadas à moda caprichosa do tempo. Viam-se formidáveis penteados, em que cintilavam diamantes por entre pérolas e plumas de cristal finíssimo.

Legros, então o mais querido entre os mil e duzentos cabeleireiros do bom-tom, passara três noites em claro a aviar toucados, sem conceder mais de dez minutos a nenhuma cabeça, e ocupando sob suas ordens, naqueles últimos dias, mais de quinhentos ajudantes.

E tôda aquela gamenha gente, com as suas fantasiosas roupas de sedas multicôres; as mulheres de saia e panier à Pompadour; os homens de casaca à la Ramponneau, com as suas cabeleiras empoladas, de três e quatro canudos, à la Sartines, grandes bofes de cambraia, chapéu de três bicos debaixo do braço e florete à cinta; toda essa gente, aglomerada, sussurrante e irrequieta, apresentava, no interior daquela austera e formosa catedral, o folião e brilhante aspecto de um luxuoso carnaval da corte.

Conversava-se e ria-se.

Mas, de repente, calaram-se todos e todos se agitaram. Os que estavam assentados puseram-se rápido de pé.

Era o rei que chegava, acompanhado por sua pomposa comitiva.

Com um gesto frio e distraído Luís XV fez um ligeiro cumprimento de cabeça, e deixou-se cair na cadeira à frente da real tribuna, cruzando as pernas negligentemente e bocejando de tédio.

O olhar que ele lançou para os sorrisos e para as reverências, que de todos os lados 0 recebiam, foi um pálido olhar de desdém e cansaço. A ceia da véspera devia ter sido prolongada.

Ouviram-se, então, do lado do côro, as primeiras notas, severas e plangentes, do órgão.

Ia começar a missa.

Algumas pessoas preparavam-se já para a contrição. Muitos ajoelhavam, de mãos postas e cabeça baixa. O silencio estendia-se respeitoso. Vieram do alto vozes de cantores, e o vermelho cabido respondeu cá de baixo, também cantando, junto às suas estreitas cadeiras de alto espaldar de madeira negra.

Ângelo, ricamente paramentado com as vestes talares com que o presenteara o rei, tinha chegado ao altar, e, dentre uma nuvem de incenso, erguia-se no êxtase da sua oração, com os braços abertos, os olhos postos na doce imagem de Cristo crucificado. Estava belo como um jovem Deus!

Assim, nos seus suntuosos damascos bordados, parecia um anjo todo vestido de ouro. E o seu formoso rosto era bem o rosto de marfim, de que falava na Bíblia a triste e volutuosa filha de Jerusalém, decantando o seu amado.

Ozéas servia-lhe de acólito. E a sua curva figura, detrás daquele moço, lembrava, no trêmulo arrebatamento da contrição, o vulto de um velho rei louro, irmão de Lear, guardando com os olhos ansiosos o seu lindo príncipe desejado por todas as mulheres.

E, com efeito, sobre Ângelo, de tôdas as tribunas, desciam raios de tentação.

Alzira fitava-o como uma serpente paradisíaco.

A missa, entretanto, seguia o seu curso, inalteràvelmente, por entre o vago murmúrio dos colos que arfavam, não de piedade, mas de desejo e de amor.

Mas, quando Ângelo, terminado o divino sacrifício, erguia o olhar pela derradeira vez, procurando o céu, seus olhos de repente se fecharam fulminados, e todo o seu corpo estremeceu da cabeça aos pos.

Em vez do céu, seus olhos tinham encontrado o olhar de Alzira.

Ozéas, soltando um grito, correu para êle, tomou-o violentamente nos braços, escondeu-lhe a cabeça entre as suas mãos trêmulas, tapando-lhe o rosto contra seu peito.

E ficou por longo tempo a fitar, ameaçadoramente, a linda cortesã.

A multidão precipitou-se para junto dos dois eletrizada de curiosidade. Todos queriam saber no mesmo instante o que havia acontecido.

Mas os sinos começaram a repicar alegremente; a orquestra tocava já uma música profana; nuvens de incenso ergueram-se de novo. A missa estava terminada.

E Ângelo, sem levantar a cabeça do colo de seu pai, afastou-se do altar e saiu da capela, vagarosamente, arrastando os pés como um cego.

Não se lhe ouviam os soluços, mas todo o seu corpo se agitava nas convulsões do choro.

IX

Um olhar de mulher

Ângelo, de volta da igreja, assim que se achou no carro a sós com Ozéas, abriu a soluçar, numa convulsa explosão de todo o seu ser.

Não podia, entretanto, determinar o que se passava em sua alma. Era uma agonia estranha e dolorosa, que a revolucionava sem dizer porque; um íntimo martírio, feito de vagas apreensões, que a atordoavam de terror por iminentes e desconhecidos perigos.

Sem ter a menor idéia da vida comum, sem desconfiar sequer do maravilhoso efeito que o seu sermão de quinta-feira santa produzira sôbre o público, que poderia o mísero compreender de todo aquêle ruidoso entusiasmo que o cercara, e de todos aqueles ávidos olhares feminis que o devoravam de curiosidade?

Seu próprio nome, ouvira-o êle repetido por tantas bôcas ao mesmo tempo, que agora lhe chegava à memória como o estribilho de uma singular canção, falada em língua alheia.

Ozéas, ao seu lado, meditava sem erguer a cabeça, recolhido em profunda preocupação.

Não deram ambos uma só palavra durante a viagem, até chegar ao mosteiro.

Entraram na cela como duas sombras.

O presbítero foi direito ao altar da Virgem, caiu de joelhos defronte dela e quedou-se a fitá-la, enquanto as lágrimas lhe escorriam pelo rosto, agora silenciosamente.

Depois ergueu-se e começou a considerar, abstrato, tudo que o cercava ali, como se visse aquêles objetos pela primeira vez.

E tudo aquilo nunca lhe pareceu tão miserável, tão ermo e turvo, como naquele instante. Aquela dura prisão, onde surdamente se escoara a triste mocidade, nunca lhe pareceu tão árida e tão mesquinha. Aquelas nuas paredes, empalidecidas pelo tempo, nunca lhe pareceram tão apertadas, e aquele sombrio teto, tão baixo e tão sufocante.

Olhou longamente para as suas velhas estantes carregadas de pesados livros religiosos, olhou para a sua tôsca e tranqüila mesa de estudo, para a sua pobre enxêrga de condenado, e ficou a considerar o cilício pendido da parede junto ao altar da Virgem.

Ozéas observava-o, imóvel até ali, de braços cruzados, com uma inconsolável e funda expressão de mágoa no olhar.

Afinal, foi ter com êle, e tocou-lhe no ombro.

Ângelo despertou sobressaltado.

—Então, meu filho, disse o velho com voz segura; continua a tua perturbação?. . .

Ângelo não deu resposta.

—Vamos! Fala!

—Sim, meu pai, tartamudeou o pobre môço, volvendo para êle os olhos inocentes. E peço-lhe que me deixe a sós; preciso concentrar-me, até voltar à minha primitiva tranqüilidade. . .

O velho insistiu, segurando-lhe as mãos e fitando-o, como se procurasse arrancar-lhe pelos olhos a confissão da revolta que lhe ia na alma.

—Mas como explicar semelhante perturbação?. . . exclamou êle. Pois então justamente hoje, hoje que tua alma devia, melhor que nunca, resplandecer de santo júbilo; hoje, que deste o teu último passo para chegar ao coração da igreja; hoje, que deste o teu supremo voto; hoje é que te sentes conturbado e aflito?!... Como explicar semelhante anomalia?!. ..

—Não sei. . . não sei. . . balbuciou Ângelo. Deixe-me ficar só, meu pai! Deixe-me conversar com a minha pobre alma!. . .

—Mas tu nunca faltaste a nenhum dos teus deveres. . . tornou o frade. Tu nunca pecaste, por palavras, nem por obras, nem por pensamentos. . . tu, que foste por bem dizer educado pela mão de Deus, porque até hoje te não afastaste uma linha do seu divino ritual. . . tu, que não tens sequer a idéia da culpa. . . tu, és tão inocente e tão puro como no dia em que te trouxe em meu colo para êste convento. . . tu, que vieste das mãos de Deus para as minhas, e das minhas tornaste hoje diretamente para as mãos de Deus... porque tremes agora e por que me olhas dêsse modo, Ângelo?!

—Não sei, não sei, meu pai!

E Ângelo, como se receasse a traição dos próprios olhos, sentou-se no banco e escondeu o rosto nas mãos.

Ozéas chegou-se mais para êle e disse, depois de contemplá-lo em silêncio por algum tempo:

—Acaso estará o demônio a cercar-te, cobiçoso de tua alma tão branca e tenra?. . . ou a tua perturbação será causada pelo eco profano dessa capital que te admira e te aclama, e cuja multidão só hoje atravessaste pela primeira vez?. . .

Ângelo ergueu-se e descobriu o rosto.

A sua fisionomia tinha-se transformado.

—Não sei! exclamou. Não posso explicar o que sinto, o efeito que me produz o confuso rumor que ouço em tôrno de mim!. . . Não posso determinar qual é o fato que me perturba, qual é o ponto de onde me vem esta agonia, mas sinto-me espavorido e frio, como se estivesse abandonado sôbre o píncaro de um rochedo nu, em tôrno do qual se agitam todos os mares do globo. Sinto em derredor do meu cérebro o terrível vozear dêsse interminável oceano... E no arruído das suas vozes ameaçadoras, há como que a repercussão de um inferno sufocado pelas águas! Afigura-se-me a cada instante que o oceano se vai abrir defronte dos meus olhos, e que então o inferno aparecerá com as suas goelas de fogo, pronto a devorar-me. Não compreendo, nem distingo uma só dessas vozes, não consigo destacar uma palavra ou uma nota musical de todo êsse murmurar de espetros, não sei o que é que me preocupa e consterna, mas sinto a alma pequena e transida de mêdo, como se em volta dela girasse rosnando um bando de leões esfaimados!

E lançando os braços em tôrno do pescoço de Ozéas, terminou com uma explosão de soluços, deixando cair a cabeça sôbre o peito dele.

—Não sei o que me cerca! não sei o que me ameaça! Mas tenho mêdo, meu pai! Tenho mêdo! Salve-me, por piedade!

—Tens mêdo! bradou Ozéas. Entretanto, hoje não devias ouvir, nem ver, nem sentir outras vozes que não fôssem as vozes do céu! Tua alma devia estar tôda voltada para êle e só a êle refletindo, como um grande lago quieto, cristalino e límpido, cuja superfície não toldasse sequer a asa de uma abelha. . .

—Bem sei, bem sei, meu pai! soluçou Ângelo; mas, a despeito dos meus esforços, outras vozes vinham ainda há pouco misturar-se às vozes celestiais, outros perfumes perturbavam os aromas da igreja, outras idéias distraíam minha alma, outro sangue me pulsava em todo o corpo! Afigurava-se-me até ter dentro do peito outro coração que não o meu, dentro do cérebro pensamentos que me não pertenciam!

Ozéas, ouvindo estas palavras, teve um forte sobressalto de terror, e apossou-se de Ângelo como se o quisesse resguardar do mundo inteiro.

—Oh! bramiu êle, aterrorizado. É preciso que fujas, quanto antes, dêste covil de tentações diabólicas! É preciso deixar Paris, imediatamente, já! É preciso que te refugies na paróquia mais humilde, mais pobre, mais miserável, e onde só possas encontrar sacrifícios e dores a sofrer! E se aí mesmo, arredado de tudo que for brilhante e fascinador, isolado das perdições mundanas, aproximar-se outra vez de ti o demônio e fizer com que o sangue te volva ao cérebro, ameaçando estrangular os teus votos sagrados, então agarra aquele cilício e fustiga e martiriza com êle a tua carne, até que a faças calar para sempre!

E, chegando-lhe a bôca ao ouvido, segredou-lhe misterioso, a tremer, a tremer, convulsionadamente, como se naquele instante todo o seu passado se erguesse de novo, para vir, ainda, como dantes, pedir mais punição para os desvarios da sua juventude:

—E se, apesar de tudo, encontrares alguma mulher, que te leve a sonhar estranhas venturas. . . bate com os punhos cerrados contra o peito, dilacera as tuas carnes com as unhas até sangrares de todo o veneno da tua mocidade! Esmaga, à fôrça de penitência, tôda a animalidade que em ti exista! aperta os teus sentidos dentro do voto de ferro da tua castidade, até lhes espremeres tôda a seiva vital! Fecha-te, enfim, dentro do teu voto de castidade, como se te fechasse dentro de um túmulo!

Ângelo soltou um grito e caiu de joelhos, balbuciando uma prece por entre os seus soluços.

Ozéas acalmou-se e estendeu o braços abençoando-lhe a cabeça com a mão aberta.

—Sim, reza! disse; reza, meu filho, ao pai misericordioso o maior tempo que puderes!

E depois acrescentou, inspirado por uma súbita idéia:

—O velho cura de Monteli acaba de sucumbir à peste que se manifestou nessa pobre aldeia. Vou ter com o arcebispo e peço-lhe que te nomeie para lá. Em Monteli não terás tentações!

E saiu vivamente, enquanto Ângelo, ajoelhado ao meio da cela, de braços e olhos erguidos para o céu, em vão procurava alar-se como dantes no voo dos seus êxtases.

Era inútil. Seu pensamento caía por terra e ia arrastando-se até à esplêndida catedral, à procura de um bem, em busca de uma ventura, que ele não sabia qual era, mas tão doce e tão irresistível que lhe deixava alma e coração vagamente enleados de desejo.

X

Acedo

Ângelo não conseguira concentrar-se.

—Mas que estranha perturbação será esta?... exclamou êle desistindo da súplica e erguendo-se dos joelhos. Que teria eu feito para estar assim?. . . Que teria eu cometido, sem consciência minha, para que a oração já não exerça no meu espírito a eficácia consoladora que tinha dantes?. . .

E nada respondia às suas palavras ansiosas. E em torno da sua aflição era tudo cada vez mais surdo, mais fechado e mais morto. Voz amiga não lhe acudia nenhuma em seu socorro, quer viesse ela de dentro dêle mesmo, quer baixasse do céu para ampará-lo.

O mísero lançou em torno do seu abandono os olhos suplicantes, e deu com a Bíblia.

Correu a buscá-la, tomou-a nas mãos sôfregamente, levou-a aos lábios e beijou-a.

—Minha boa amiga! disse apertando-a contra o peito; minha fiel companheira de tantos e tantos anos! foste tu a minha doce consolação, o meu refúgio carinhoso, o meu confidente, o escrínio das minhas primeiras lágrimas e dos meus últimos sorrisos; fôste tu a discreta testemunha dos meus êxtases e o grande manancial das minhas alegrias religiosas, vale-me também agora! vale-me tu, que me abrigaste durante o longo tempo, em que vivemos os dois encerrados com as minhas mágoas nesta prisão sombria! Ah! como eu era então feliz! . . . como tinha a alma tranqüila e descuidosa!. . . Vale-me amada minha, que talvez consigas o que a oração não pode!

E, sentando-se no banco, abriu a Bíblia sôbre os joelhos e leu, ao acaso, alguns versículos do primeiro capítulo que seus olhos encontraram.

Era o livro de Jó.

"A minha alma tem tédio à minha vida; soltarei a minha língua contra mim; falarei na amargura de minha dor desconhecida.

"Direi a Deus: As tuas mãos me fizeram, e me formaram todo em roda, e assim de repente me despenhas?

"Lembra-te, eu te peço, que com barro me formaste e que me hás de reduzir a pó.

"Vida e misericórdia me concedeste, e a tua assistência conservou o meu espírito.

"Se eu pequei, tu me perdoaste na mesma hora; porque não permitiste tu que eu esteja limpo da minha iniqüidade?

"Tu multiplicas contra mim a tua ira, e as penas combatem contra mim.

"Por que me tiraste tu do ventre de minha mãe? Oxalá que eu tivesse perecido, para que nenhuns olhos me vissem. Que tivera sido como se não fora, desde o ventre transladado para a sepultura.

"Deixa-me, pois, que eu chore um pouco a minha dor!

"Antes que vá para não tornar para aquela terra tenebrosa, e coberta da escuridade da noite. Terra da miséria e do terror."

Mas o seu espírito rebelado fugia da página da Bíblia, e punha-se a cantar-lhe ao ouvido as palavras do velho Ozéas: "E, se apesar de tudo, encontrares alguma mulher, que te leve a sonhar estranhas venturas . . . "

Ângelo estremecia, tornava à página e punha-se a ler. Mas aqueles lamentosos versículos, que dantes o arrebatavam para Deus, agora nada mais conseguiam do que deixá-lo num vago entorpecimento de desanimo.

E vinha-lhe uma frouxa vontade de morrer, ou pelo menos de envelhecer logo, de repente, ali mesmo; um desejar que seu corpo se fizesse de súbito alquebrado e frio, que seu cabelo, de preto e lustroso se tornasse branco e desbotado, que os seus dentes amarelecessem, e que a sua fronte se despojasse naquele mesmo instante, e abrisse toda em rugas.

Desejava refugiar-se covardemente na velhice, como dentro de um abrigo seguro contra a feroz matilha que lhe rosnava no sangue. Mas a misteriosa frase de seu pai, vinha-lhe de novo à superfície dos pensamentos furando e abrindo caminho por entre todas as outras ídéias.

"E, se apesar de tudo, encontrares alguma mulher, que te leve a sonhar estranhas venturas, bate com os punhos cerrados contra o peito, dilacera as tuas carnes com as unhas, até sangrares de todo o veneno da tua mocidade!"

—Mas que estranhas venturas serão essas que as mulheres nos levam a sonhar?. . . interrogou-se ele, erguendo o rosto e cruzando as mãos sôbre a página da Bíblia. Então a mulher não é também uma criatura de Deus?. . . um ente, tão abençoado e protegido por ele, que até foi por ele escolhido para servir de mãe a seu filho Jesus?. . . Pois tão grande honra se concederia a um ente desprezível, posto neste mundo só para tentar os justos e desviá-los do caminho da virtude?... Se a mulher é má, por que existe?. . . Se existe, por que Deus a fez má e perigosa?.. . Por que me é vedado amá-la tanto quanto me cumpre amar aos homens?. . . A ela ainda devia amar muito mais, porque é mais fraca, mais mesquinha, mais amorosa e mais desamparada. Por que não devo amar as mulheres?... Não serão minhas irmãs?... Não seremos todos filhos do mesmo pai?. . .

Fechou os olhos, como se quisesse fugir a êstes pensamentos; mas a idéia da frase de Ozéas alastrava-se-lhe pelo cérebro, estrangulando todas as outras, que nem a planta egoísta e daninha que não permite viver e crescer ao seu lado nenhuma outra planta.

—Se a mulher é produto dos infernos. . . continuou ele a pensar; todos temos em nós um pouco de Deus e um pouco do demônio, porque todo o homem nasce, tanto do homem como da mulher. Não compreendo bem êste fenômeno do nascimento. .. nunca mo explicaram. . . Mas sei que o homem nasce da mulher, como Jesus nasceu do ventre de Maria... Não mo explicaram, e todavia ensinaram-me a odiar a mulher. . . Por que?

Nisto, entrou na sombria cela um alegre casal de borboletas brancas, e começou a cruzar-se no ar, doudejando em volta da cabeça de Ângelo. Depois uma delas, enquanto a outra a perseguia, foi pousar tranqüilamente na amarelenta página da Bíblia, que ele conservava aberta e esquecida sôbre os joelhos.

O presbítero pôs-se a fitá-la. A borboleta fugiu para o teto, à procura da companheira, e êle a seguiu com a vista.

—Um casal de borboletas!... disse consigo. Duas!. . . Um par!. . . E por que duas?. . . Por que andam juntas? Por que não veio uma só?. . .

Elas interromperam de novo o seu aéreo e irrequieto idílio, e foram pousar, uma ao lado da outra, na pequena cruz latina que encimava o oratório da Virgem.

Ângelo continuava a pensar:

—Se o sexo é uma imundície condenada por Deus, por que Deus então fez as suas criaturas aos pares, e por que fez o sexo?. . . Por que os homens não continuam a nascer como Adão e Eva?... "Por castigo" diz a Escritura Sagrada... Logo, a procriação não é um bem, é um mal; logo, o mundo inteiro é um purgatório, e a vida um tormento!. . .

As borboletas começaram de novo a doudejar no espaço.

—E estas desgraçadinhas, interrogou Ângelo a si mesmo; estas também pecaram no Paraíso, para que Deus as obrigasse a viver e procriar?. . .

As borboletas, redobrando de impaciência' iam e vinham por tôda a cela, à procura de uma saída.

O padre compadeceu-se delas e quis dar-lhes o ar livre. Foi abrir a janela, mas encontrou resistência; os gonzos oxidados não queriam acordar do seu ferruginoso sono de vinte anos. Ângelo empregou tôda a fôrça e conseguiu afinal abri-la.

Um jacto de luz alegre e cantante inundou a fria prisão. Um mundo de vida patenteou-se no ar, à doiradora claridade que vinha lá de fora.

O presbítero correu às grades da janela.

—Que belo! Que belo! exclamou ele, defrontando com extensa paisagem que se descortinava aos seus olhos deslumbrados.

Estava a uns cem metros de altura. O ponto de vista era esplêndido. Primeiro, o grande parque do convento, todo cercado de altos muros; depois, as ruas da cidade, as praças e os jardins, e logo em seguida o Sena, coberto de barcos, e afinal as longínquas árvores do campo, que se perdiam suavemente nas tintas duvidosas do horizonte.

—Que belo! Que belo!

E vendo o casal de borboletas, que fugia espaço afora:

— Oh! Como vão ligeiras. . . Como brincam no espaço... Agora dizem um segredo... Voam de novo... Desaparecem...

Abaixando o olhar, descobriu sobre um telhado um casal de pombos que arrulhava.

—Como são lindos! pensou. Como são brancos e amorosos! Agora se beijam! Que belo! Que belo!

Na rua descobriu um homem de braço dado a uma mulher, levando ele um pequenito pela mão.

— São casados!... A criança parece com ambos!... Oh! agora conversam... ele tomou as mãos dela entre as suas; ela sorri, abaixa os olhos... São felizes!

Afastou-se bruscamente da janela. O espetáculo daquela tranqüila ventura fazia-lhe mal, e quase o irritava.

Não sabia dizer por que, mas num íntimo e profundo malquerer, contra tudo e contra todos, principiava a torturá-lo com uma dura e secreta agonia de inveja.

— São felizes! são felizes! soluçou de punhos cerrados e com o coração oprimido. E por que hão de eles rir e eu chorar! Qual é o meu crime?! Por que todos nesta vida tem uma companheira e eu não a posso ter?! Por que hei de ser só, eternamente só, quando a natureza deu um par a cada uma das suas criaturas?!. . .

Mas caiu logo em si, e derramando pela cela um olhar de quem desperta de traiçoeiro sonho, deu com a imagem da Virgem, que, de dentro do seu nicho de pedra, parecia lançar-lhe um triste sorriso de ressentimento.

—Não! bradou ele, atirando-se de joelhos e arrastando-se até os pés da Santa. Não estou só! nunca estarei só! Sou um padre e a minha esposa sois vós, Senhora amorosíssima, lírio celeste, perfeição dos céus! Perdoai-me se por um instante de delírio me esqueci do nosso amor!

E correndo à janela, bramiu, ameaçando lá fora, com a mão fechada:

—Oh! Bem te compreendo, natureza pérfida e sedutora! bem compreendo os teus embustes! És pior ainda que a tua rival, a sociedade! Mas em vão te enfeitas com as tuas galas e com os teus sorrisos de amor! Não me seduzirás, pântano de lama coberto de flores! Não me corromperás, porque tenho na alma bastante energia para governar os meus sentidos, e tenho o meu coração cercado por uma muralha de fé! Atira-me aos pés o ouro do teu sol, atira-me o perfume das tuas flôres, o mel dos teus frutos, o mistério dos teus crepúsculos, a música das tuas florestas, os deslumbramentos das tuas auroras! tudo será baldado! Hei de resistir a todas as tuas provocações! hei de lutar contra todos os inimigos da minha pureza, e, ou cairei morto, ou hei de suportá-los a todos, um por um!

E sentindo-se arrebatado no delírio da sua fé, bradou como um louco:

—Venham! Venham filhos do inferno! Podem vir todos, que me encontrarão armado e de pé firme!

Em seguida atirou-se de novo aos pés da Virgem e começou a rezar fervorasamente.

Quatro horas depois foi surpreendido pelo velho Ozéas, que lhe bateu no ombro.

Ângelo voltou para ele os olhos desvairados.

—Amanhã, disse aquele, partiremos de madrugada para Monteli.

—Estou às suas ordens, meu pai.

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