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—Valha-me São Jerônimo e Santa Bárbara! Parece que vem hoje o mundo abaixo! Vou acender uma vela benta!
E saiu da sala, a correr, benzendo-se com ambas as mãos, estonteada de mêdo.
Ângelo, imóvel na posição em que cairá esquecido, só daí a pouco moveu com os lábios, para murmurar entredentes:
— "E se, apesar de tudo, encontrares alguma mulher, que te leve a sonhar estranhas venturas. . ."
—Oh! disse em voz alta; meu pai tinha razão!. . . tinha tôda a razão!. . .
E erguendo-se, como se acordasse de um letargo:
—Pois eu não terei energia bastante para reagir contra esta fraqueza?... Não poderei estrangular a matilha que me rosna no sangue?. . . Pois a idéia daquele demônio matará em mim tôdas as outras idéias?. . . Oh, meu Deus, não é possível! seria uma injustiça! Uma tremenda injustiça!
Salomé reapareceu, para perguntar:
—Então, sr. vigário! que faz que se não recolhe?. . . Vamos! Deite-se, que precisa de repouso. Já acendi o oratório da Virgem. Não fique aí a cismar!
—Vá! vá descansada, tia Salomé, que eu me recolho imediatamente. Boa noite.
Ângelo, uma vez recolhido ao quarto, começou a passear de um para outro lado, entregue todo à sua implacável preocupação.
—Não! protestou êle, estacando no meio do aposento, depois de longo meditar. Não! A idéia daquela mulher não matará meu coração e minha alma! Preciso não pensar nela! preciso arrancar daqui de dentro esta terrível loucura, que me absorve, gôta a gôta, tôda a substância do meu espírito!. . .
E circunvagou em tôrno o olhar ansioso e desvairado.
—Mas, prosseguiu o mísero, como poderei não pensar nela, se, mal me vejo a sós, sinto-a comigo?. .
Sim! Sim! Ela aqui está e em tudo se denuncia!... Sinto-a perfeitamente; sinto-a no perfume dos seus cabelos, no farfalhar do seu vestido, na tentadora luz de seus olhares!... Parece-me que, ao voltar-me, darei com ela, face a face, a sorrir-me de amor e a estender para mim seus braços pecadores. . .
E atirou-se de joelhos defronte da Virgem com a cabeça pousada no rebordo do altar. Depois ergueu o rosto, e, de mãos postas, tentou dizer uma oração. Mas o seu espírito não acompanhava a religiosa palavra que seus lábios proferiam, e o desgraçado, louco de desespero, deixou-se cair por terra, soluçando, estendido ao longo do chão, como um cadáver.
Perdeu os sentidos.
Lá fora a tempestade continuava, roncando no espaço.
No fim de algumas horas, Ângelo passou da síncope ao sono, e começou a sonhar:
—Alzira minha amada... sussurrava êle, entreabrindo os lábios; teu rosto é formoso como o rosto da Virgem, teus olhos são como os dela—fonte de amor e de ternura, são negros, são doces, augustos e suplicantes; teus cabelos côr de ouro valem pelo seu diadema de rainha dos céus, a carne do teu colo é tão macia como o cetim do seu manto constelado. . . mas eu não te posso dar o meu amor, adorável pecadora, porque me casei com a igreja e dei o meu coração a Maria. . .
Nisto, bateram lá fora três fortes pancadas com a aldrava da porta.
—Não! não me chames!. . . continuava a sonhar o pároco. Não te aproximes de mim, flor de perdição! que eu morreria de pena se te fugisse, mas também morreria de remorsos, se tu ficasses nos meus braços. (Bateram de novo e mais forte). Não! não irei abrir-te a porta! mas não desesperes, minha pobre amada!... Ainda nos havemos de reunir no Paraíso!. . . Seremos dois espíritos inseparáveis, que percorrerão abraçados os páramos de Deus! Então, como duas asas de anjo, viveremos unidos para sempre e sempre acordes.
Bateram de novo, ferozmente, e Salomé gritou lá de dentro:
— Quem é?
—Queremos falar ao sr. cura, respondeu uma voz de fora.
—Agora não é possível! Voltem pela manhã!
— É caso urgente!
—Mas êle está dormindo!. . .
—Precisamos falar-lhe no mesmo instante!
E no entanto... sonhava o pároco; o teu amor deve ser mais doce que o mel das flôres. . . mais suave que o perfume da mirra, e melhor e mais saboroso do que os vinhos de Canaã!. . .
Salomé, deveras contrariada, entrou na sala de jantar, trazendo na mão uma candeia acesa, e foi até à porta do quarto de Ângelo.
—Tem lá jeito!. . . resmungava ela a gesticular com o braço que trazia livre. Tem lá jeito! . . . Incomodarem o pobre homem, que ainda não há muito se recolheu tão cansado!. . .
E bateu na porta do quarto.
Ângelo acordou sobressaltado, ergueu-se e correu a saber quem era.
—Estão aí dois desalmados, que querem por fôrça falar ao senhor vigário. Eu disse logo que não era possível; êles, porém, insistiram tanto, que...
—Fêz bem em chamar-me, tia Salomé. Faça-os entrar imediatamente. São, com certeza, viajantes que precisam de agasalho!. . . Que entrem sem demora!. . . Veja o que há aí para comer. Êles devem trazer fome. . .
A criada pousou a candeia sôbre a mesa, e afastou-se resmungando.
Daí a pouco penetravam na sala dois homens corpulentos, envolvidos em longas capas de pano escuro.
Um dêles era negro e tinha os olhos vermelhos de chorar.
—Com licença! disse o outro sacudindo o chapéu encharcado de chuva. Por Baco! pensei não chegar aqui! Boa noite, senhor cura!
Ângelo cumprimentou-os.
—Os senhores, disse, são sem dúvida forasteiros e querem agasalho, não é verdade? Vou dar as providências para. . .
—Não, senhor cura, muito obrigado, agradeceu aquêle, detendo o pároco. Não queremos agasalho, temos até de voltar incontinenti!. . .
—Por êste tempo?. . . observou Ângelo.
—Viemos pedir a vossa reverendíssima para ir dar a extroma-unção a uma agonizante, que a reclama com insistência
—Pois não! pois não! respondeu o padre, correndo a tomar o chapéu e a capote. Estou pronto! Vamos! Onde é?...
—Logo ao entrar na avenida de Blancs-Manteaux, castelo d'Aurbiny.
—Avenida de Blancs-Manteaux! exclamou a criada que até aí estivera de mãos nas cadeiras, a sacudir a cabeça furiosa. Quase uma légua de distancia! Isso não pode ser! Não consinto!
Ângelo foi ter com ela e disse-lhe em voz baixa:
—Cale-se, boa Salomé. . . Não me queira desviar das minhas obrigações!
E foi ainda lá dentro buscar o necessário para dar a extrema-unção.
—Mas é uma imprudência o que o senhor vigário quer fazer! . . . insistiu aquela. Sair de casa a estas horas e com este tempo!. . .
Ouviu-se um trovão.
—Valha-me Deus! exclamou ela. Os caminhos com certeza estão piores que o mar!
—Trouxemos um cavalo para o senhor cura.
—Nem sequer trouxeram um carro! Não! Definitivamente o senhor vigário não vai, porque eu não consinto!
—Então, Salomé! disse Ângelo; cale-se, minha irmã. . . O dever não deve olhar maus tempos e perigos mesquinhos . . .
A boa velha, em vez de calar-se, colocou-se defronte dele, com os braços erguidos, e exclamou:
— Mas, por amor de Deus! repare que esta loucura vai fazer-lhe muito mal!. . . Lembre-se de que não está bom de saúde!. . . Lembre-se de que. . .
Ângelo interrompeu-a:
—E supõe que eu poderia ficar aqui tranqüilo, sabendo que alguém morre, pedindo inùltimente a confissão?... que eu poderia dormir descansado, lembrando-me que nesse momento um moribundo me amaldiçoava, porque lhe faltei com os derradeiros socorros à sua alma!. . .
E voltando-se para os dois homens:
—Vamos! vamos, irmãos! Estou às vossas ordens!
E traçou a capa e saiu, acompanhado pelos outros dois.
Daí a pouco, três cavaleiros negros cortavam a estrada e entranhavam-se na floresta, galopeando na treva, como fantasmas.
Pareciam voar nas asas da tempestade. E, a cada relâmpago, os cavalos aterrados relinchavam, acelerando a vertigem do galope.
Só pararam defronte do velho e sombrio castelo d'Aurbiny.
Ângelo apeou-se, e ao transpôr o largo portão de pedra, em cujo frontal havia ainda as armas fidalgas de uma grande família extinta, sentiu a alma tolhida por uma vago e áspero pressentimento de desgraça.
Mas entrou sem hesitar e subiu a longa e esborcinada escadaria de mármore, conduzido por um pajem de libré vermelha, que o veio receber à porta.
III
Em uma desarranjada alcova do velho castelo, entre mesas cobertas de frascos de remédio e estojos de cirurgia, há uma cama com um cadáver de mulher.
Êsse cadáver é de Alzira.
Tem soltos os cabelos, que lhe correm de um e de outro lado do rosto. Os braços saem-lhe das largas mangas de uma túnica branca, e cruzam-se piedosamente sôbre o frio e apagado peito.
Ela, de tão serena que tem a fisionomia, parece dormir um sono que não é o derradeiro, e nos seus lábios gélidos, para sempre unidos pela morte, há como que a sombra do último sorriso que por êles passou.
Ao lado da cama, enterrado no fundo de uma poltrona e com o rosto escondido no lenço, Artur Bouvier chora silenciosamente; junto dele o conde de SaintMalô, também mudo, contempla o cadáver. E o dr. Cobalt, com ar prostrado e a roupa em desordem, arruma a sua carteira de médico e prepara-se para sair.
—Não me surpreendeu esta morte. . . disse afinal o conde. Há muito que a previa. . .
—Foi um verdadeiro suicídio!... declarou o doutor. Não é impunemente que se leva a vida de extra vagâncias, a que esta pobre rapariga se atirara por último... Não há dúvida que queria dar cabo de si!
—Pobre louca!... murmurou Bouvier com um suspiro. Dir-se-ía que uma implacável sede de comoções a devorava incessantemente!. . . Quantas vêzes, nestas últimas orgias da sua vida, a vi ardendo em febre, a tossir, a escarrar sangue, sem animo todavia de recolher-se à cama. Pobre Alzira!
O médico, que acabava de arrumar os seus ferros, disse, aproximando-se dos outros dois:
—Moralmente, coitada! foi sempre enfêrma... Sofreu muito! sofreu muito, porque só desejava o que não podia obter. Fingia-se a mulher mais insensível do mundo, quando, em verdade, era de uma delicadíssima sensibilidade nervosa. Se vivesse ainda por muito tempo, acabaria lonca sem dúvida!
—Pobre Alzira' repetiu Bouvier.
—Mas o caso é que está morta, disse o conde; e nós, últimos amigos que a acompanham, precisamos completar a obra, dando-lhe um enterro condigno da sua beleza.
E, vendo que acabava de assomar à porta a figura de Ângelo:
—Aí está o padre!
Ângelo cumprimentou-os com um respeitoso movimento de cabeça, e parou à entrada.
O conde foi ter com êle e apertou-lhe a mão.
—Já chega tarde, sr. padre Ângelo... não encontra uma agonizante, encontra um cadáver...
—Expirou há duas horas... declarou Bouvier, pondo a mão sôbre o rosto da morta. Já principiava a enregelar. . .
O pároco, que lentamente se aproximara do cadáver, ao dar com aquela branca figura de mármore estendida sôbre a cama, soltou um grito e começou a tremer, arquejante e lívido.
Bouvier e o conde acercaram-se dêle enquanto o Dr. Cobalt, a certa distancia, atentamente o observava com os seus olhos de médico apaixonado pela sua ciência.
—Não é nada... não é nada... tartamudeou Ângelo,, procurando esconder a sua tremenda comoção. O espetáculo da morte produz-me sempre este abalo. Não é nada!. . . Peço-vos que me deixeis um instante só com o cadáver. . . Vou encomendá-lo a Deus.
—Pois não. . . Pois não. . .
Fique à vontade, senhor cura, acrescentou o materialista. Nós passamos à sala de jantar, mesmo porque temos necessidade de comer alguma cousa. Desde pela manhã que aqui estamos a lutar com a morte. Fique, e desejo que os seus esforços sejam mais proveitosos que os meus. Até logo.
Os três saíram da alcova.
Ângelo foi acompanhá-los à porta, afetando grande tranqüilidade, mas, logo que o pesado reposteiro de damasco se fechou sôbre eles, explodiu-lhe do peito uma onda de soluços, e o mísero precipitou-se para junto do cadáver e caiu de joelhos, abraçando-lhe o pescoço e beijando-lhe as mãos.
—Ah! exclamou transportado pela paixão. Posso enfim estreitar-te agora nos meus braços! Já não és uma mulher, és simples matéria inerte! Já não és o fruto proibido! já não és o ente perigoso que nos leva a sonhar estranhas venturas!. . . lis pó! és nada! Posso agora ao teu cadáver dizer tudo, confessar-lhe o meu pobre amor, o muito que sofri, as longas horas de amargura que arrastei na minha negra solidão! Deus não me castigará por isso! Minhas palavras de amor ficarão contigo, adorável despejo, sepultadas debaixo da terra! Não! não estou pecando, porque não é à tua carne que eu me dirijo, é à tua alma, e essa não pertence ao mundo, essa não tem sexo!
E, alucinado, acrescentou, como se a morta pudesse ouvi-lo:
—Sim! sim! Eu te amo, eu te adoro, alma que te partiste para sempre! corpo que vais para sempre desaparecer da superfície da terra! Eu te amo, Alzira! Eu te amei sempre!
E uma vertigem se apoderou dele, e o seu sangue enlouqueceu, acendendo-lhe os sentidos, e apagando-lhe naquele instante a luz da razão.
Soltou um grito. Aos seus olhos desvairados, Alzira acabava de erguer-se a meio no leito, e abriu as pálpebras, estendendo-lhe os braços com um fugitivo e triste sorriso nos lábios.
—Meu Deus! meu Deus! exclamou êle, trêmulo e aterrorizado. Que significa isto?... Ainda vives, Alzira?. . . mas como é que vives, se o teu corpo tem a gelidez da morte?. . .
E Ângelo viu distintamente que os lábios dela se moviam, para lhe responder com uma voz quase indistinguível:
—Sim, vivo ainda... um instante apenas, um ligeiro instante; o que baste para encher minha alma com a tua imagem imaculada e santa, antes que eu parta eternamente para as margens desconhecidas que já daqui avisto...
—Meu Deus! soluçou Ângelo: perdoa-me! perdoa-me!
—Descansa, segredou ela, afagando-lhe os cabelos; Deus, que é bom pai, não amaldiçoará o nosso amor. . .Êle quer que as suas criaturas vivam aos pares e se amem como nós nos amamos. . . E eu te amei tanto, meu Ângelo, tanto, que Deus perdoou todos os meus crimes só pelo muito que te amei e pelo muito que sofri com ser repelida do teu seio! Eu, a mais depravada de todas as mulheres, eu, que só causei mal durante a minha existência, não tenho animo de levar minha alma à presença de Deus, se para sempre não me fechar os lábios um beijo do homem mais puro entre todos os que a terra habitam! É isso que vim pedir-te! Dá-me um beijo e minha alma voará purificada aos pés do Criador! Um só beijo dos teus, tão puro e divino, me resgatará de todos os outros, cínicos e vis, que dei durante a vida inteira!
—Eu te amo, Alzira! respondeu Ângelo.
E seus lábios colaram-se aos lábios dela, no êxtase de um primeiro beijo de amor.
Depois, Alzira soltou um fundo e doloroso suspiro e deixou-se cair de novo para trás, outra vez cadáver.
O alucinado passou-lhe então a mão no rosto, sacudiu-a pelos braços e, sentindo-a de novo tão hirta e tão gelada, soltou um formidável grito de agonia e perdeu os sentidos, caindo com a cabeça sobre o colo da morta.
Com o grito de Ângelo acudiram os que estavam lá dentro, vindo na frente o Dr. Cobalt, que correu logo para junto do padre e começou a observá-lo radiante como se nesse momento acabasse de descobrir um tesouro preciosíssimo.
—Está sem sentidos! disse, e acrescentou entredentes, enquanto o apalpava. Que achado! Que rico achado!. . . Já não o largo!. . . É meu! Creio que afinal encontrei o caso que eu há tanto tempo procuro! . . .
O conde e Artur Bouvier entreolharam-se, interrogando-se mutuamente que significaria aquele singular sacerdote que diziam santo, assim desfalecido sobre um inanimado corpo de mulher.
Ângelo, entretanto, continuava tão imóvel, tão pálido e morto sobre a morta, que parecia um cadáver perseguindo em silencio outro cadáver.
I V
O Dr. Cobalt, ajudado pelo conde e por Bouvier, tratou de remover Ângelo do fúnebre leito de Alzira, para um divã que havia na alcova.
O pároco continuava inanimado.
O médico que estivera a tentear-lhe o rosto e as mãos, disse, sem deixar de observá-lo minuciosamente:
— O cadáver comunicou-lhe o terrível frio da morte... Vejam como ele tem as faces e as mãos geladas!
—E como está hirto e pálido!. .. considerou o conde. Parece morto . . .
—Não! não está morto!... declarou Cobalt, pondo-lhe o ouvido sobre o peito.
—Sente pulsar-lhe o coração? perguntou-lhe aquele
—Não! Não se ouve absolutamente pulsar-lhe o coração mas afianço-lhe que está vivo.
—É extraordinário!... notou Artur Bouvier, apalpando a fronte do desfalecido.
—Mas, afinal, doutor, que tem esse pobre homem? indagou o conde.
—Nada mais simples, explicou o médico; tem um ataque de letargia. . . ou cousa que o valha!. . .
—Ah!
—Produto sem duvida de um profundo abalo nervoso. Vou tratar dele. Hei de curá-lo e estudar o caso, que me parece muito bonito. O que me convém saber é qual era o seu estado patológico antes desta crise, e qual o valor dos agentes estranhos que poderiam ter contribuído para ela. Como sabem, a nossa ciência neste ponto ainda está muito atrasada em tôda a Europa. Quase nada se conhece dêsse grande mundo, extraordinário, fantástico, impalpável, quase incompreensível; esse mundo de fenômenos psíquicos fornecido pelas afecções nervosas! Basta dizer-lhes que entre nós a histeria é ainda um mistério; a sugestão magnética é um divertimento!! as suas singularíssimas manifestações escapam ao médico e são exploradas pelo clero, que as explica como obra do diabo e receita para todos os casos os milagres de Saint-Médard! Estamos mais atrasados que nas épocas empíricas de Platão; mas, tempo virá, meus amigos, em que esta mesma França, ignorante de hoje, há de dar sobre êste assunto as mais belas lições de ciência. O futuro vingará minha obra, tão ferozmente amaldiçoada pela Sorbona e pelo Parlamento! Juro-lhos que a histeria, com todo o seu carnavalesco e brilhante cortejo de loucuras, não será um mistério no século XIX!
—E quanto tempo levará êste homem sem dar acôrdo de si?. . . quis saber Artur.
—Não sei... respondeu Cobalt. Ainda não posso dizer ao certo, se o que ele tem é uma crise cataléptica, ou se caiu em letargia histérica. Se for catalepsia, pode a síncope durar pouco e pode também durar muito; pode durar apenas algumas horas, como igualmente pode durar meses...
—Meses?...
—Pois não! Há casos observados de prostração cataléptica, que duram mais de cem dias. .. Espere! Vou fazer uma experiência. . .
E foi buscar um frasquinho de éter, que levou ao nariz de Ângelo. Êste conservou-se imóvel.
—Não! não pode ser simples catalepsia. . . declarou o médico. Com a ação do éter, os catalépticos põem-se em movimento e reproduzem inconscientemente, por mímica, a cena que lhes determinou a crise.
—Então é letargia?. . . disse o outro.
—Creio que sim. . . E, se for. . . oh! os senhores não imaginam que sonhos extravagantes, que visões, que fantasias, pode êle experimentar durante êsse estado!. . . Foi isso o que no outro tempo levou muita gente à fogueira; tais cousas viam os histéricos nos seus delírios e tais cousas juraram ter presenciado, que os santos padres resolviam queimá-los, convencidos de que os infelizes eram feiticeiros ou tinham o diabo no corpo. E, mesmo agora, todas essas convulsionárias, que infestam Paris, protegidas pelos jansenistas, e que pretendem cair às vêzes em estado de inspiração divina, para conversarem com os espíritos e outros sêres sobrenaturais, o que mais são do que histéricas sinceras ou fingidas?. . .
Pobre moço!... lamentou Bouvier, considerando a pálida figura de Ângelo estatelada sôbre o divã. Aí está em que deu tanta pureza de corpo e alma!. . .
—Agora o que convém, tornou o médico, é afastá-lo daqui, e proibir que lhe falem no ocorrido. A presença daquele cadáver agravaria o seu estado e poderia ser-lhe fatal. É preciso poupar-lhe êsse perigo. O melhor será que desperte da letargia já em casa, deitado no seu próprio leito; e, como já não sou necessário neste lugar, encarrego-me de acompanhá-lo a Monteli. Ficam os senhores para tratar do entêrro.
—Mas, doutor, observou o conde, permita que lhe lembre que a noite está horrível e que o padre Ângelo, se me não engano, não mora tão perto!
—Não importa! sei onde é. . . Levo-o na minha carruagem. Os cavalos são bons e o cocheiro conhece bem o caminho! Daqui a pouco estarei lá.
—Como quiser... Uma vez que se interesse
tanto pelo padre Ângelo. . .
—Não é o homem que me interessa, declarou o médico, enfiando o seu longo capote de jornada; é o doente. O conde não ignora que eu tenciono apresentar ainda êste ano à Academia umas memórias a respeito de certas enfermidades nervosas, que não foram estudadas em França. . . Preciso dêste enfêrmo como de pão para a bôca!
E foi chamar os criados, e ordenou-lhes que levassem Ângelo para o seu carro, o que êle mesmo ajudou a fazer, com uma solicitude de namorado a raptar a amada desfalecida.
—Cuidado, hein! gritou êle a Amílcar, quando o negro se apoderou do pároco. Adeus, conde! Adeus, Bouvier!
E saiu, acompanhando de perto o seu tesouro.
Durante a viagem não tirou a mão do pulso do histérico e, por várias vêzes, debruçou-se sôbre êle, auscultando-lhe o peito.
Continuava a letargia.
Salomé, quando viu seu amo entrar em casa carregado a braço por dois homens, levou as mãos à cabeça, e desandou numa terrível imprecação, contra todos os que tinham contribuído para fazê-lo sair àquela noite, fora de horas e por um temporal de morte.
—Malditos sejam! exclamou ela; que me obrigaram o pobre homem a cometer tamanha loucura! Agora, está aí! Vejam como êle volta! Que digam se eu tinha ou não tinha razão!
O médico tapou-lhe a bôca com uma moeda de ouro, enquanto depunham o desfalecido no quarto, sôbre o leito.
—Tome lá para o seu rapé... disse aquele, e não precisa afligir-se, tiazinha! O pároco não está abandonado, nem corre o menor perigo. Sou médico e não o deixarei enquanto êle precisar dos meus socorros. Apenas desejo que a senhora me ajude naquilo que fôr preciso. . .
—Estou às suas ordens, senhor doutor...
—Bom! Pois então, em primeiro lagar, nada de gritaria, que isso só serve para fazer mal; em segundo: vai a senhora contar-me minuciosamente como tem vivido aqui, até hoje, o nosso vigário, o que tem feito êle, e quais os incômodos que tem sofrido.
E Cobalt, enquanto ela dava conta da existência de Ângelo, escutava-a com os olhos fitos no chão, e só a interrompia para lhe pedir novos esclarecimentos sôbre algum ponto que não ficara logo bem explicado.
Depois, tirou a sua carteira, tomou algumas notas a lápis, e em seguida foi assentar-se à cabeceira do leito do doente, consultando o relógio de instante a instante.
Assim estêve até pela manhã, quando percebeu que Ângelo ia voltar a si.
Ergueu-se na ponta dos pés e foi ter com a criada, que dormia a um canto da sala de jantar, sentada num banco de pau.
—Olhe! disse-lhe em voz baixa. O vigário vai despertar... É preciso ter todo o cuidado com êle, entende?... Observe-o com atenção para me dizer depois o que se passar. Convém que êle me não veja e que não desconfie sequer que eu cá estive. . . É preciso não deixá-lo perceber que está doente, porque senão ficará pior e talvez perdido. . . A respeito de tudo que se deu aqui esta noite—nem palavra, ouviu? Isto é o principal! A menor palavra a êsse respeito po-lo-ia doido! Todo o cuidado é pouco!
Salomé, de boca aberta e olhos arregalados, ouvia-o sem pestanejar.
—Mas, disse ela, e se o senhor vigário me fizer alguma pergunta a respeito do que se passou à noite?
—Finja que de nada sabe. Assim é preciso se a senhora não o quer ver doido varrido! Adeus. Não se descuide, hein!.. . E tome lá de novo para o seu rapé! Até logo. Eu voltarei mais tarde.
Deu-lhe outra moeda e saiu, andando cautelosamente, como se receasse acordar alguém.
Ângelo, entretanto, acabava nesse momento de voltar a si.
Abriu os olhos, passeou-os estranhamente em volta da cama, depois tornou a fechá-los, deixou cair de novo a cabeça sôbre o travesseiro e começou a dormir, como se continuasse um sono, apenas por um instante interrompido.
Eram duas da tarde quando se ergueu do leito.
V
Depois daquele imenso temporal da noite inteira, o dia abriu formoso e resplandecente de luz. A areia dos caminhos brilhava, secando ao sol; as chaminés das cozinhas atiravam para o ar penachos côr de pérola, que se agitavam suavemente às brisas refrescadas pela chuva.
A aldeia parecia sorrir. Os pardais saltavam por tôda a parte e grasnavam por entre as ripas dos telhados. As borboletas saíam do mistério dos seus casulos, e vinham peraltear à grande claridade dos vergéis alegres e floridos.
Ângelo, entretanto, continuava a dormir profundamente, como um enfêrmo que acabasse de escapar à morte, depois de ter atravessado muitas noites em claro. Não sonhava, não se movia no leito. Era um sono de pedra.
Quando acordou às duas horas, fêz as suas orações, tomou um copo de leite, que lhe haviam pôsto à cabeceira da cama, e deixou-se ficar no quarto até ao momento de ir rezar às Trindades na capela.
Saiu em silêncio, em silêncio atravessou por entre os aldeões, e foi colocar-se defronte do altar, com os braços abertos, e olhos perdidos no vago, imóveis, a desfiarem lágrimas.
Já não eram lágrimas de sacerdote, era o seu ferido coração de homem que sangrava.
Por êsse tempo, Jerônimo e Salomé conversavam lá fora, sob o velho parreiral que havia em frente à pobre vivenda do pároco.
Falavam em voz baixa, como se conspirassem
—Ora, segredou o hortelão, muito me conta a tia Salomé a respeito do nosso vigário!... Bem me dizia vossemecê ainda ontem que o homem às vezes parecia apatetado!...
—Não estou nada satisfeita, mestre Jerônimo. Durante o tempo do defunto padre René nunca vi cousa assim! O padre René contava-me tudo, tudo que se passava com êle ao passo que êste agora, nem só nada diz, como ainda por cima o médico me proíbe de lhe fazer perguntas!. . . Tem lá jeito!
—Ah! o Dr. Cobalt proibiu de lhe falar, hein?
—É exato! Jurou-me que, se o senhor vigário ouvisse uma só palavra do que se passou de ontem à noite para hoje, ficaria doido varrido...
—E o que foi que se passou, tia Salomé?
—Sei cá o que se passou! E, ainda que o soubesse, não o diria, porque o médico proibiu!
—O médico proibiu de contar ao senhor vigário e não a mim. . . Ora essa!
—Não sei! Prometi de não contar, não conto a ninguém!
—A tia Salomé terá receio de que eu também fique com a bola virada ao ouvir a tal história?. . . Se o caso é êsse perca o receio e desembuche, que eu cá respondo por mim!
—Mas é que eu de nada sei, homem de Deus!
—Não sabe?. . . Então a que vem a recomendação do doutor?. . .
—Naturalmente cuida que estou a par de tudo. . . E confesso que já agora não se me dava de saber que história é essa, que põe a gente com o juízo transtornado . . .
—O que me parece, tia Salomé, é que para o vermos doido, não é preciso que vossemecê lhe conte a tal história!.. .
—Para longe o agouro, mestre Jerônimo!
—Ora! Um homem que anda sempre como se estivesse dormindo em pé!... Suponho que nem dá pelo que se passa em redor dêle. . .
—É um santo!
—É! por isso anda sempre lá pelo céu, com a lua.
—Credo, mestre Jerônimo! Isso não se diz. Você está ficando ateu!
Foram interrompidos pelo Dr. Cobalt, que surgiu por entre moitas de verbena, a olhar misteriosamente para todos os lados.
—Onde está ele?... perguntou ao ouvido de Salomé. Saiu para a rua?. . .
—Não, Sr. Doutor, está rezando às Trindades. O senhor vigário, sempre que não diz missa, reza às Trindades.
—Você nada lhe disse, hein?. . .
—Não trocamos palavras. Êle só saiu do quarto para ir direitinho para a capela.
E, como o sino principiasse a tocar, a criada acrescentou:—Acabou a reza! O senhor vigário vai voltar naturalmente.
—Bom! bom! disse o médico, apressando-se. Vou, antes que êle chegue. Não lhe diga que estive aqui, percebe?
—Sim, Sr. Doutor.
E Cobalt resmungou contrariado:
—E eu que tenho de partir esta noite para
Paris... Diabo!
Voltou-se para Salomé e falou-lhe de carreira:— Olhe, minha amiga, preciso afastar-me daqui, não sei por quanto tempo. . . você fica encarregada de, quando eu voltar, dar-me conta de todos os passos do nosso doente. Tenha todo o cuidado com êle, que a recompensarei. Não o contrarie nunca, ouviu?... Não o apoquente, e principalmente não lhe dê uma palavra a respeito do que se tem passado. Observe-o bem. Adeus. Saio aqui pelos fundos da casa, para me não encontrar com êle Tome para o rapé!
E fugiu, depois de atirar-lhe na mão uma nova moeda.
—Deus lhe pague, Sr. Doutor.
E acrescentou para o hortelão:
—Muito gosta êste homem de dar dinheiro para rape. . .
—É um médico esquisito, observou aquêle; tem mêdo de encontrar-se com o seu doente. . .
—Bem, mestre Jerônimo, vou lá para dentro cuidar da merenda do sr. vigário.
—Eu também me vou chegando, tia Salomé. Boas noites.
—Deus lhe dê as mesmas!
E Salomé afastou-se para recolher-se à casa.
Ângelo, nesse instante, acabava de sair da capela e atravessava o jardim.
Entrou na sala de jantar como um sonâmbulo, sem olhar para os lados, e foi assentar-se no banco ao lado da mesa, fitando inalteràvelmente o teto.
Estava muito mais pálido e mais abatido que na véspera.
A criada aproximou-se para lhe dar boa noite. Êle não respondeu, nem fêz com a cabeça o menor gesto.
Ela saiu da sala, demorou-se um pouco lá dentro, e voltou com o candeeiro aceso.
Ângelo durante êsse tempo conservou-se na mesma imobilidade.
—O senhor vigário quer tomar já a sua sopa?. . . perguntou a boa velha.
E, como não recebesse resposta, chegou-se mais para êle, segurou-lhe o braço com brandura e repetiu a pergunta.
Ângelo tomou-lhe as mãos e fixou-a.
—Diga-me uma cousa, minha boa amiga... pediu êle. Que horas eram, quando ontem à noite vieram chamar-me aqui?...
—Aqui?... repetiu Salomé, desviando a vista. E acrescentou de si para si: — Agora é que são elas!. . .
—Sim, insistiu o pároco; refiro-me àqueles dois homens que vieram buscar-me à noite. . .
—Que homens?. . .
—Ho! Aquêles com quem eu saí a cavalo...
Salomé engoliu em seco, estalou várias vêzes a língua contra o céu da bôca, e declarou afinal, tomando uma resolução:
—Vossa reverendíssima ontem à noite não saiu de casa!
—Não saí?!. ..
E Ângelo ergueu-se, abrindo muito os olhos. Como não saí?!. . .
—Não saiu, não senhor. Vossa reverendíssima recolheu-se ontem ao seu quarto e só apareceu hoje à tarde para rezar às Trindades. . .
O pároco tornou a segurar-lhe as mãos, e perguntou, deveras abismado:
—Pois eu não saí ontem com duas pessoas que vieram chamar-me?... Pois não foi a senhora, tia Salomé, quem me acordou?. . . Não me disse até que era temeridade sair com o tempo que fazia?. . .
—Eu?! Eu, não senhor!. . .
Ângelo levou as mãos à cabeça e exclamou: Ó meu Deus! eu estarei louco?. . .
Salomé abaixou os olhos, dizendo consigo mesma:
—Quanto mais se eu confessasse a verdade!. . .
O padre pôs-se a cismar, passeando ao longo da sala.—Seria um sonho?. . . pensou ele. Ela em verdade não teria morrido?.. . Estará viva?. . .
—Posso trazer a merenda, sr. vigário?. . . perguntou a criada.
E acrescentou para si, vendo que ele não dava resposta:—Coitado, se eu pudesse, dizia-lhe tudo!. . .
E saiu.
—Foi um sonho! . . . não há dúvida. . . Logo eu, de fato, não pequei!. . .
E respirou aliviado, encaminhando-se para a mesa.
—Mas, é estranho!... continuou ele a pensar; nunca sonhei assim!. . . Seria capaz de jurar que não sonhei—que vivi. . . Verdade é que nem tudo aparece claro e lúcido no meu espírito... (E procurou recordar-se). Não consigo lembrar-me do que eu fazia ontem à noite antes de adormecer. . . Recordo-me que pensava muito em Alzira, tanto que me pus a rezar defronte da Virgem, mas. . . a Virgem transformou-se em Alzira. . . Estaria já sonhando, ou tudo isto já seriam alucinações do meu delírio?.. . Depois era Alzira que tomava as feições da Virgem. . . Sim! lembro-me perfeitamente. . . Depois, sonhei que bateram lá fora e sonhei que Salomé me acordara... Surgem-me dois homens vestidos de negro e pedem-me para ir dar a extrema-unção a um moribundo... Vou... A noite era tenebrosa e só os relâmpagos nos iluminavam a estrada... Galopamos não sei quanto tempo. . . afinal paramos defronte de um velho castelo; subo... Receberam-me três cavalheiros... Aproximei-me de um cadáver... reconheci
Alzira... Apertei-a nos meus braços. . . Ela voltou à vida... pediu-me um beijo e... morreu! Depois... (E procurava recordar-se.) Depois... nada mais me lembro, senão que acordei já tarde, naquele quarto, sobre a minha cama... Foi tudo um sonho, não há dúvida! . . .
—E, no entanto... acrescentou êle, apalpando a fronte e as mãos; no entanto, dir-se-ia que ainda conservo o frio que me comunicou o cadáver!... É singular! muito singular!. . .
Despertou dêste devaneio com a voz de Robino, que acabava de aparecer à janela, metendo a cabeça para dentro da sala.
—O senhor vigário deixa-me entrar por aqui?. . . exclamou êle.
—Quem é?
—Sou eu, senhor vigário. A tia Salomé, de má, fechou-me a porta! O senhor vigário consente que eu entre?. . .
—Sim.
Robino saltou a janela e foi ter com o padre, que continuava entregue à sua profunda meditação.
—Boa noite, senhor vigário, disse ele. A tia Salomé não tinha razão para me fechar hoje a porta! . . . Eu não estive na taberna do Bruxo!. . . Eu fui ver o enterro da tal môça de Paris, que estava na avenida de Blancs-Manteaux . . .
—Hein?! Que dizes tu?! exclamou o pároco, voltando-se para ele com súbito interesse.
—É verdade, senhor vigário, que lindo enterro! Parecia uma procissão!. . .
—De quem era o tal enterro?. . .
—Da tal môça que veio doente para o castelo de Aurbiny. . . Ia na frente um carro com o caixão, todo enfeitado de plumas pretas e amarelas, depois. . .
Ângelo interrompeu-o:
—Estás dizendo a verdade?. . .
—Pois se venho agora mesmo de lá, a correr, para não encontrar a porta fechada?. . . A tia Salomé disse-me que não me deixaria entrar, se eu viesse depois das Trindades!...
—Como se chamava a morta?. . .
Rabina fêz um esforço para lembrar-se.
—Chamava-se... Ora! estou com o nome debaixo da língua!... Chamava-se... Ah! Condêssa Alzira!
—Não era um simples sonho!... murmurou Ângelo, deixando-se cair na cadeira, a sacudir tristemente a cabeça. Não era um simples sonho!. . .
VI
Salomé, que entrava trazendo na mão a bandeja com a merenda estacou, ao dar com Rabina
—Por onde entrou êste mariola?.. .
—Pela janela, disse o rapaz.
—Pela janela?!
—Foi o sr. vigário que me deu licença. . . acrescentou Rabina coçando a nuca e passeando o olhar entre a criada e o padre.
—Pois o sr. vigário fêz muito mal!.. . declarou a mulher, depondo a bandeja sobre a mesa. Fêz muito mal em deixar este tratante saltar a janela! Assim êle, nunca tomará caminho! Não sei o que quer dizer um biltre que. ..
Ângelo cortou-lhe a frase, segurando-lhe uma das mãos com ambas as suas.
—Minha boa Salomé, interrogou vivamente interessado; diga-me com franqueza uma cousa: está bem certa de que eu ontem à noite não saí de casa?... Vamos! responda-me lealmente!
—Pior vai o negócio! . . . pensou a criada, e acrescentou em voz alta:—Como quer que lhe diga que não, sr. vigário?...
Ângelo voltou-se para o pequeno:
—E tu, perguntou-lhe, estás bem certo de que viste o entêrro da. . .
—Da Condêssa Alzira?. . . acabou Rabina Ora se estou! Pois se de lá venho!
—Eu cada vez entendo menos... resmungou Salomé.
E disse, de si para si:—Muito custa a mentir, mesmo por conta alheia!. . .
Depois, continuou em voz alta, falando ao cura, que parecia muito preocupado:—O verdadeiro, sr. vigário, é tomar a sua merenda, que está esfriando, e deixar-se de querer saber de cousas que se não explicam! . . . Boa noite! Vou acender o altar da Virgem. . . Agora, veja se se deixa ficar aí, a cismar, em vez de fazer a sua refeição. . .
E, dando uma palmada na cabeça de Rabina
—Anda tu também, daí, ó coisa-ruim!...
—Boa noite, senhor vigário!
Ângelo ao ficar só, cruzou as mãos sobre o ventre e fechou as sobrancelhas fixamente, no mais intenso ar de interrogação e de pasmo.
—Com que. . . pensou ele; sonhei que a vi morta, e ela com efeito morreria, justamente nessa ocasião. . . Logo, Deus não me abandonou de todo, e, ao contrário, protege-me, envolvendo-se neste meu amor pecador e profano!. . . Ah! sim, recordo-me agora que, no estranho sonho dessa noite, a própria Alzira me dizia que o Criador é o grande e nutriente manancial de ternura, que noite e dia se derrama sobre o mundo, para o fecundar, como o sol fecunda a terra!... Sim! sim! agora tudo compreendo! É Deus que vem em meu socorro! é Deus que me acode e me aparece em sonhos, como fazia antigamente com os eleitos do seu amor!. . . Sim! é que o pai misericordioso, reconhecendo a minha inocência e a pureza do meu desespero, enviou-me por um dos seus anjos o beijo de paz! . . .
E, abrindo ambas as mãos sobre o peito, respirou desabafadamente, e, cousa que havia muito não fazia, sorriu.
—Ah! suspirou; que dose tranqüilidade sinto agora invadir-me a alma!. . . Obrigado meu bom pai! meu bom senhor! meu bom amigo!
E deixou-se cair de joelhos no chão, com os braços abertos e os olhos erguidos para o céu, na favorita postura dos seus êxtases.
—Meu protetor e meu abrigo, disse contritamente; às vossas sacrossantas mãos me entrego todo, para que me protejais contra as cousas vis e torpes deste lameiro de lágrimas!... Minha alma já não sente o frio que a torturava; sente-se aquecida e agasalhada no aconchego do vosso peito de amor e perdão, sente-se fortalecida na fé e na confiança da vossa infinita bondade! Meu coração, pai dos desamparados, já me não quer saltar encandecido de dentro do peito em brasa, e meu sangue já me não ameaça sufocar o cérebro com uma terrível e infernal onda de fogo... Obrigado, meu Deus!
E acrescentou, depois de respirar de novo, sorrindo para o espaço:
—A luz da vossa divina graça principia a iluminar-me, como nos primeiros tempos da minha virginal pureza dalma. Vou adormecer como dantes, como um justo, como um dos vossos servos bem-aventurados. . . Amanhã poderei enfim celebrar o sacrifício da missa, sem o menor escrúpulo de consciência. . . Já não recearei que meus lábios queimem a hóstia consagrada com o fogo que os abrasava. . . Obrigado, meu Deus!
E fez o sinal-da-cruz, ergueu-se, e recolheu-se à cama.
Daí a pouco dormia tranqüilidade, sorrindo
como uma criança.
A casa adormeceu também. Só se ouvia o vento da noite sussurrar nas fôlhas dos castanheiros lá fora na estrada.
Ângelo principiou a sonhar:
Um coro etéreo descia dos céus e vinha cantar-lhe ao ouvido o epialâmio dos anjos. O nicho da Virgem iluminava-se de fogos cambiantes, derramando no aposento uma doce claridade de luar multicolor, e a Santa sorria para ele, banhada de ternura, tôda de branco e coroada de flores de laranjeira, como uma noiva.
Ângelo volta-se todo para ela e sonha que lhe estende os braços, pedindo-lhe que desça do seu altar e venha colocar-se ao lado dêle.
Mas a Virgem começa a tomar as feições de Alzira. A sua branca roupa de noiva transforma-se em longa túnica mortuária, soltam-se-lhe os cabelos c caem-lhe pelas espáduas, como os da morta do castelo de Aurbiny.
Os olhos tingem-se-lhe de uma sinistra sombra cadavérica, e os seus lábios fazem-se roxos e tiritantes de frio.
Ângelo tem mêdo e volta-se todo contra a parede, cosendo-se aos travesseiros e tremendo aflito.
Mas o espectro de Alzira desce do nicho, e dirige-se para a cama dêle.
Ângelo, frio de terror, sente-lhe os passos no chão, e ouve o estranho pisar daqueles pés duros e ossificados pela morte.
Retrai-se, encolhe-se, e arqueja com o rosto escondido.
Mas Alzira vai até à cama, verga-se sobre êle e toca-lhe no ombro com a mão gelada.
O mísero quer gritar e não pode.
Ela senta-se ao lado dêle. e beija-lhe os cabelos.
Ângelo estremece, mas um voluptuoso fluido percorre-lhe o corpo inteiro, acorda-lhe o coração do sobressalto em que estava, e o seu mêdo vai a pouco e pouco desaparecendo.
—Ângelo!... disse-lhe ao ouvido o espectro, com a voz mais doce e amorosa que um suspiro de saudade; Ângelo, amado de minha alma! . . . Ouve! . . . Volta-te para a tua Alzira!... Escuta-me!...
—Alzira? exclamou êle, voltando-se.
— Sim, meu amado, sou eu...
—Que desejas de mim?... De onde vens?...
—Venho de muito longe... venho da outra margem da vida, que tu ainda não conheces. . . venho do mundo dos mortos, mundo de sombras e de sonhos!. . . venho de onde nada se conserva desta vida senão a memória de ser aqui que amamos!...
—E que desejas de mim?. . .
—A tua companhia. Venho buscar-te.
—Buscar-me?...
—Sim. Com a fôrça do meu amor, consegui vencer o abismo que nos separava e chegar até aqui. Minha alma foi arrojar-se aos pés de Deus e pedir-lhe, pelo muito que sofri em vida por amar-te em segrêdo, que lhe concedesse a graça de aparecer-te tôdas as noites durante o sonho. Deus, apiedado, porque eu te não possuí na vida dos sentidos, consentiu que me pertencesses nesta existência espiritual, melhor que a outra. Aqui me tens, e tôdas as noites, mal adormeças, eu virei buscar-te.
Ângelo escutava-a atentamente.
—E para onde tencionas levar-me?. . . perguntou depois do primeiro abalo.
—Para tôda a parte, respondeu Alzira, onde possamos esquecer as dores que já sofremos, e fruir as delícias que ainda não gozamos! Para tôda a parte, onde cada lágrima derramada pelos nossos olhos, seja resgatada por um beijo de nossos lábios. . .
E deu-lhe um beijo na fronte.
Ângelo soltou um gemido e retraiu-se.
—Que tens?. . . indagou ela com meiguice.
—É que teus beijos são frios como as gotas da noite! . . . Parecem beijos de uma estátua gelada!. . .
—Sim! Enregelei na viagem. . . Ah! São tão frias as paragens que percorri!. . . Mas tu me aquecerás com os teus ardentes lábios de môço! tu me darás um pouco de calor do teu sangue!
Ângelo retraiu-se ainda.
—Não tenhas mêdo, prosseguiu ela; êste frio é todo exterior, meu coração arde-me dentro do peito, como um vulcão sob a neve. Não fujas de mim! Vamos! Ergue-te! Principiemos a nossa existência feliz! Vem, que só poderemos estar juntos até ao raiar do dia! Não há tempo a perder!. . .
E a sua túnica mortuária transformou-se por encanto num rico vestido de castelã da época, e o seu porte readquiriu a primeira graça fascinadora.
Ângelo ergueu-se deslumbrado, e viu com surprêsa que a sua pobre sotaina também se transformava nas belas roupas de um cavalheiro nobre, e que seu corpo readquiria destreza e fôrça.
— Que é isto? exclamou êle.
—É uma das vantagens da nova existência que te ofereço. Agora já não és um miserável cura de aldeia, és um homem, és livre, és senhor do teu corpo e de tua alma! Correrás comigo o mundo inteiro! Ao meu lado conhecerás todos os gozos, tôdas as paixões, tudo enfim que na outra vida representa os prazeres que te são vedados!
Ângelo passou-lhe o braço na cintura.
—Sim! sim! disse. Eu irei contigo! Quero gozar! Quero viver!
E uma larga estrada maravilhosa abriu-se defronte dêles, onde dois negros cavalos, esplêndidamente ajaezados, impacientes os esperavam relinchando.
—Vamos! Vamos!
Ângelo e Alzira montaram e partiram a galope.
VII
O sonho continuou.
Ângelo, ao lado de sua fantástica companheira, deixou-se arrebatar na vertigem de um galope tão lesto, que lhe dava a sensação de um vôo contínuo e rápido.
A floresta fugia em tôrno dêles como duas faixas de treva compacta, que se rasgava de vez em quando ao súbito bruxulear dos relâmpagos.
Depois sentiram-se dentro de uma estreita e profunda galeria tôda de pedra, onde o tropel das patas dos cavalos ressoava como um frenético martelar de ferreiros infernais. E afinal acharam-se defronte de um estranho palácio erguido em abóbada, cujo átrio solenemente se abria em arcadas, iluminado por um sinistro luar fosforescente.
Os animais estacaram desalentados, soprando forte pela bôca e pelas ventas.
—Apeemo-nos, disse Alzira, dando um salto em terra.
O companheiro imitou-a.
—Onde estamos?. . . quis êle saber.
—Verás. Caminha comigo.
E penetraram numa extensa galeria tôda formada de ossos.
Ângelo olhava para os lados, considerando aquelas longas colunas feitas de caveiras e de tíbias, por entre as quais perpassavam fugitivas sombras silenciosas, que o perturbavam.
Às vêzes queria parar para ver melhor, mas Alzira arrastava-o pela cintura, segredando-lhe que se não detivesse ali um só instante.
—Vamos! Vamos! dizia ela, impaciente.
É só deteve o passo ao chegar a um enorme salão, singularmente ornado de estátuas em esqueleto e iluminado por milhares de piras bruxuleantes. Uma vasta galeria perdia-se ao fundo, multiplicando as colunas a perder de vista.
Ao centro um grande órgão, em que velho e carcomido esqueleto, todo vergado sobre o teclado, tocava, com os seus movimentos demoradíssimos, uma arrastada harmonia funerária.
Ao lado do órgão outros esqueletos dançavam estranhamente, requebrando-se por entre sombras e fantasmas vaporosos.
Sobre cochins de veludo negro, enfeitados de lágrimas de prata, damas e cavalheiros, que pareciam ter saído naquele instante das sepulturas, bebiam e conversavam meio abraçados, trocando sorrisos e beijos.
Por tôda a parte viam-se, passeando aos pares, espectros de homens e de mulheres; uns com os ossos à mostra, outros envolvidos em longas túnicas sombrias. Aqui declamavam versos de amor, ali carpiam saudade eternas, e todos surdamente e lentamente se agitavam, se confundiam e se baralhavam.
—Companheiros! disse um espectro no meio de um grande grupo, empunhando a sua taça, de onde saía um tênue vapor fosforescente. É preciso aproveitarmos bem as horas de que dispomos! A noite vai adiantada!. . . A aurora não tarda aí. . . Bebamos e folguemos!
—Bebamos e folguemos! responderam os outros, erguendo cada um a sua lívida taça.
E ouviu-se um côro entoando surdamente uma canção de prazer.
Alzira aproximou-se do grupo, acompanhada por Ângelo.
—Oh! exclamaram com surprêsa, ao vê-la chegar. Sê tu bem-vinda!
—Eis Alzira que volta! Viva a formosa Alzira!
—Sim, respondeu ela; eis-me de novo convosco, meus queridos e eternos camaradas! venho de novo reclamar o meu lugar e a minha taça nos vossos belos e misteriosos festins!
— Supúnhamos que não voltasses, observou um esqueleto.
—Mal havias chegado, fugiste logo. . . acrescentou outro.
—Ausentas-te de nós tão chorosa e tão triste!. . . interveio um terceiro.
—Mas volto alegre como vêem!. . . declarou ela.
—De onde vens?
—Do mundo dos vivos.
—Da terra?... exclamaram todos.
—E verdade, amigos, venho da terra. . .
—E que fôste lá fazer?. . .
—Buscar o meu amante. Cada um de vós tem junto de si a pessoa amada; eu precisava também ir buscar aquêle por quem minha alma se apaixonou. Ei-lo!
E tomando Ângelo pela mão, apresentou-o à roda.
Ângelo saudou-os com um amável movimento de cabeça. Mas os espectros mediram-no com um revêsso Olhar de desconfiança.
—Parece um vivo!... objetou um deles, considerando-o da cabeça aos pés.
—É, infelizmente é um vivo!... confirmou Alzira com ar de tristeza. E por isso mesmo mais me custou a trazê-lo comigo. . .
—E como o conseguiste?. . .
—Indo a suplicar a Deus que mo confiasse durante as horas consagradas ao sono.
—E o Criador cedeu ao teu pedido?. . .
—Não! Cedeu às minhas lágrimas, cedeu à sinceridade do meu desespêro, cedeu à eloqüência da minha dor! Quando minha alma, recendendo o aroma do primeiro beijo que recebi de Ângelo, penetrou nos céus e foi arrojar-se aos pés de Deus, todos os seus anjos choraram com a minha mágoa de amor, e uniram as suas vozes celestiais à minha súplica terrestre.
E, recuperando o ar de satisfação com que entrara:
—Ah! mas agora estou resplandecente de alegria.
E passou os braços em volta do pescoço do seu companheiro, e perguntou-lhe com a bôca junto aos lábios dêle.
—Não é verdade, meu Ângelo, que tôdas as noites, mal o sol se esconda, serás meu, só meu, para sempre, como aquêles dois velhos amantes de três mil anos que ali vão abraçados?. . .
—Quem são êles?... perguntou Ângelo, observando as duas sombras que ela indicava.
—Esope e Rodope. Mas, responde, amado da minha alma; não é verdade que durante as doze horas do dia pertencerás à outra vida, mas durante a noite serás todo desta, onde estaremos juntos?. . . Fala!
E, como percebesse que Ângelo se intimidava com a presença dos espectros:
—Confundem-te os nossos companheiros?... criança que és tu! pensas que ainda estás na outra vida! Aqui o amor não é um mistério ou um pecado... ninguém aqui dissimula o que sente, porque ninguém sabe fingir!. . . Olha! Não vês além, junto daquelas colunas, como aqueles dois se beijam?... Anda! Beija-me tu também!
—Sim, Alzira! respondeu Ângelo com transporte. Eu te amo, e estou disposto a nunca mais me separar de ti!
—Bravo! exclamou um espectro. Agora sim, Alzira, já não desconfiamos do teu amante. Êle pode ficar conosco!
—Foi a tua última paixão?... perguntou à condêssa uma dama sepulcral.
—Ultima não—única!—respondeu aquela. Só a êste amei na outra vida! êste será o meu amor eterno! Desde a vez primeira em que o vi, minha alma voou logo para ele. Pertenço-lhe!
—Minha alma és tu! exclamou Ângelo. Sou todo teu! Só a ti amarei sempre!
—Bravo! Bravo! gritaram os outros. Ao amor! Ao amor! Ao amor!
E as taças tocaram-se frenéticamente.
—Ao amante de Alzira! brindou um. Ao primeiro vivo que se animou a penetrar em nosso mundo ideal! Ao temerário Ângelo!
—A Ângelo!
—A Ângelo
—Agora, amigos, acrescentou o espectro, continuemos os nossos idílios. Deixemos Alzira em liberdade com o formoso amante!
E o grupo dispersou-se, formando-se diversos pares, que se afastaram, segredando palavras de ternura.
Alzira passou o braço nas espáduas de Ângelo, e os dois começaram a percorrer o estranho lugar em que se achavam.
Penetraram na extensa galeria que se desdobrava ao fundo.
—Onde estamos nós agora, minha querida?... perguntou Ângelo, penetrando na galeria de ossos e olhando em tôrno de si. Que estranhas sombras são estas que se cruzam em volta dos nossos passos?... Quem são aqueles espectros que conversava n conosco? . . .
Alzira chegou a bôca ao ouvido dêle. para dizer-lhe: — São as minhas iguais e os seus respectivos amantes . . .
—As tuas iguais?. . .
—Sim, confirmou a condêssa; são as cortesãs de todos os tempos e de todos os lugares da terra. Nesta, como na outra vida, cada uma de nós procura o lugar que lhe compete. Achamo-nos agora em uma das secções da grande região das amorosas; esta é a secção das infelizes que, como eu, prostituiram o corpo na outra vida!... Tôdas elas vem ter aqui após o seu passamento, e a cada uma só acompanha o homem que no mundo a amou deveras e foi por ela correspondido.
E apontando para duas sombras que atravessavam nesse momento por defronte dos seus olhos:—Olha! Vês êsse par que aí vai, conversando em segrêdo?... E' Cleópatra e Marco Antônio. Assim conversam há vinte séculos!. . . A outra que os sucede, enternecida e chorosa, é a imperatriz Teodora; a sombra que lhe beija os cabelos, é a sombra de Adriano. Amam-se ainda!. . .
—E aquela outra?. . . indagou Ângelo, mostrando um belo espectro coroado de rosas vermelhas.
— E Valéria, explicou Alzira.
—Valéria?...
— Sim, a infame e formosa Messalina. Supunhas talvez que a infeliz não tivesse ninguém para a acompanhar nêste mundo ideal do amor!... Enganas-te; aquêle que a segue, de olhos baixos, e cujo coração vês ainda palpitar sangrento através das brancas cavernas do peito, é o seu gentil escravo Ismael, a quem ela deu a virgindade do corpo, justamente na primeira noite do seu casamento com Cláudio.
E voltando-se para outro lado, acrescentou:
—Olha lá Aspásia e Alcibíades, Dido e Enélas, Safo e Faon. Vê como cada qual desliza esquecido no seu amor. . . Ali vem, prosseguiu ela, a linda e desditosa Gabriela; anda à procura da sombra de Henrique IV! Aquela outra é Laís; acompanha-a o esqueleto de Diógenes, trazendo ao pescoço a sua lanterna para sempre apagada. . .
Nesse instante desfilaram diante dêles Marion de Lorme ao lado de Didier, e a pálida Margarida de Valois de braço dado com o duque de Guise.
Alzira segredou o nome dêles ao ouvido de Ângelo.
—E aquêle par que se beija tão apaixonadamente?... perguntou-lhe êste.
—Rizzio e Maria Stuart... A outra que diz agora um segrêdo ao seu cavalheiro, é Bianca Capelo.
—E essa que aí vem tão soberana?
—Impéria. Conheces aquêles dois?... Helena e Páris...
—E o outro par?
—Catarina da Rússia. O soldado que a acompanha, ninguém sabe quem é. . .
—E esta, quem será? olha o seu porte carrancudo e altivo!
—Lucrécia Bórgia, segredou-lhe Alzira.
Mas uma geral agitação começava a apoderar-se de todos aquêles casais de espectros. A música do órgão, até aí arrastada e lenta, principiou também a fazer-se nervosa, acelerando o seu andamento, até transformar-se num infernal galope, que arrebatava o turbilhão das sombras numa vertigem doida.
E, freneticamente, puseram-se tôdas a dançar, aos beijos e aos abraços passando e perpassando no delírio de uma dança sensual.
— Que é isto agora?. . . perguntou Ângelo, prendendo o braço na cintura de Alzira. Por que é que todos se agitam dêste modo?
—Ah! explicou ela com um espreguiçamento voluptuoso. É um frenesi de amor...
E suspirou lusuriosamente.
—Não compreendo. . .
—É que Deus, elucidou a cortesã, nos seus bons momentos de ternura afaga os mundos, e essa carícia lhes produz lascivos estremecimentos. Neste instante um súbito espasmo sensual percorre tôda a natureza. Em cada corpo animado há um sobressalto de amor. Neste instante tôda a criação se predispõe a procriar; as feras e as borboletas, os homens e as boninas, acoitam-se e beijam-se, para garantia da interminável cadeia da vida! Olha! Vê! Todos se afagam! Todos se abraçam! . . .
—Sim! sim! exclamou Ângelo. Eu mesmo sinto percorrer-me o corpo um sobressalto estranho!
Alzira atirou-lhe os braços em volta do pescoço, e arrastou-o para o turbilhão das sombras que giravam aos pares.
E ouviu-se um côro de vozes, entrecortado de suspiros, a cantar, dançando:
Tenhamos amores! Ó feras! Ó flores! Condores! Panteras!
Amai-vos! Amai-vos!
E seguia-se um crepitante estribilho de beijo
Cruzai vossas
graças,
Ó entes
De raças
Diferentes!
Ó gentes,
Amai-vos! Amai-vos!
E novos beijos se estalavam.
E o frenesi chegou ao auge do delírio, e as vozes e os suspiros perderam-se todos num só grito, prolongado e agudo, um ai supremo, que resumia tôdas as vozes da natureza.
Houve um instante de espasmo, em que todos aquêles espectros fremiram convulsivamente, chocalhando os ossos uns com os outros. Depois a música foi de novo enfraquecendo, e os gemidos foram-se apagando, como as derradeiras notas de uma cantante caravana que se afasta.
E um desfalecimento geral empalideceu mais ainda a trêmula chama das piras, e os espectros começaram a dissolver-se à fulgurante luz da aurora, que ralava lentamente, atravessando a imensa abóbada fantástica.
E brancas figuras esbatiam-se, vaporosas como as cambraias da manhã, que o sol desfia e esgarça com a dourada ponta dos seus raios.
Ângelo mal podia já distinguir a sua amada.
—Alzira? disse êle.
—Adeus. . . respondeu o eco fugitivo de uma voz de mulher. Aí chega o dia'.. . separemo-nos!...
— Quando voltas?
—À noite, sem falta! Às mesmas horas de
ontem . . .
E o murmúrio de um beijo esvoaçou-lhe nos lábios.
—Adeus...
E Ângelo abriu os olhos.
Acordara.
Ergueu-se com um salto. O dia entrava-lhe já pelas vidraças da janela, o sino da igreja repicava chamando para a missa.
VIII
Pobre Ângelo! Sua alma tinha remorsos daquela noite passada em companhia de Alzira. Travava-se dentro dêle. uma pungente revolta contra o misterioso inimigo, que assim o arrancava à doce e honesta tranqüilidade do leito, para levá-lo de rastos, como um perdido, pelos barrancos da fantasia, obrigando-o a percorrer antros sensuais, ao lado do fantasma de uma cortesã, que o ameaçava de voltar tôdas as noites.
—Maldita sejas tu, imunda fantasia! pensava êle, maldita sejas tu, danosa imaginação! Ah! se pudesse eu fechar-vos entre os dedos e reduzir-vos a pó!. . . entretanto, governa ainda os meus sentidos e perturba ainda a minha consciência!. . . O pó e a lama dos sepulcros não são menos poderosos do que a carne palpitante, quando os reanimam a nossa saudade e o nosso amor!. . . Não há mulher que de nós desapareça para sempre, quando nós deveras a amamos!... Foge-nos dos olhos, foge-nos dos braços, foge-nos dos lábios; mas da alma, ah! da alma, nunca mais, nunca mais desaparecerá a mulher amada!
E Ângelo voltou os olhos para o céu, interrogando-o. E exclamou:
—Meu Deus, teria eu pecado com o sonho desta noite?. . . O sonho, bem sei, é produto do pensamento, e por pensamento se peca tanto como por palavras e por ações; mas o sonho não obedece à vontade de quem sonha, porque, se obedecesse eu só construiria meus sonhos com as cousas que vos pertencem... Deveis saber que sou bem intencionado e que sou sincero!. . . Ah! Maldita sejas tu, minha louca e desvairada fantasia, que me fazes revoltar contra mim mesmo!. . .
Se o velho Ozéas estivesse ali, ao lado dêle. Ângelo teria ao menos a quem consultar o que devia fazer contra aquêle inimigo terrível e traiçoeiro.
Mas só, como se achava, o mísero vacilara perplexo. Devia penitenciar-se pelos desvarios da sua imaginação, ou devia deixar que o sonho continuasse a correr à sôlta, cometendo todos os desatinas que lhe aprouvesse?
Entretanto o sino lá fora o chamava para junto do altar. O sino o chamava para que fôsse êle erguer a hóstia consagrada acima da sua atordoada cabeça, oferecê-la a Deus em sacrifício!
Deveria ir?...
Sua alma estaria em suficiente estado de pureza, para arrastar-se até ao supremo trono do Criador, ou deveria a mísera arrojar-se por terra, envergonhada e corrida, à espera que as lustrais águas do tempo perpassassem bem por cima dela e a limpassem de todo?
Mas se êle em tudo aquilo não tinha a menor culpa?... Mas se o seu coração era puro, e só, em consciência, se preocupava com as causas divinas?...
Que deveria, pois, fazer?...
E o sino tocava, tocava, chamando-o com insistência.
Ângelo preparou-se, saiu do quarto e dirigiu-se para a capela, em silêncio e aligeirando o passo.
—Sim, sim! pensava êle pelo curto caminho. O meu lugar é lá, junto do altar!. . . O meu lagar é aos pés da Divindade!. . . Que importa que as bruxas do sonho maquinem e conspirem durante a noite, furtando-me a alma a Deus?. . . Eu sou da Igreja, só à Igreja pertenço, e é lá que devo estar como um marinheiro a bordo do seu navio, principalmente em dias de tempestade!
E entrou na capela.
Os aldeões o esperavam ajoelhados na nave, contritamente. Alguns tinham ao lado as ferramentas que deviam servir ao seu trabalho dêsse dia. Mulheres amamentavam os filhos, com os olhos fitos nas imagens dos santos. Velhos, secos e nodosos como esqueletos de árvore ressequidas pelo inverno, vergavam a cabeça sobre as trêmulas mãos apoiadas no bordão.
Os pardais e os melros chilreavam por entre as frestas das altas paredes da capela, caiada de cima a baixo.
As velas do altar derretiam-se tristemente, consumidas pela surda chama que a sanguínea luz da manhã tornava desluzida e lívida.
Ângelo atravessou a igreja, de olhos baixos, e foi colocar-se de joelhos nos degraus do altar.
A sua oração preparatória nesse dia durou mais tempo que nos outros. Notaram que as lágrimas lhe corriam pelas faces, quando êle se ergueu para celebrar o sacrifício.
E seus lábios tremeram na ocasião de receber a hóstia consagrada. Naquela alma, imaculada e sincera, um doloroso escrúpulo tolhia a confiança na sua própria pureza.
Mas celebrou.
E depois voltou-se, de braços abertos para os crentes, abençoando-os em nome do Pai de todos os homens.
Os sinos repicaram de novo.
Ângelo, mais sucumbido ainda que antes do sacrifício, retirou-se da igreja cabisbaixo e concentrado.
À saída, um cavalheiro saiu-lhe ao encontro e tirando o chapéu, disse-lhe cortêsmente:
—Perdão, sr. vigário; tenho que desempenhar uma sagrada missão ao lado de vossa reverendíssima. . . Sagrada, porque é voto de uma pobre criatura que já não existe. . .
Êsse cavalheiro era o conde de Saint-Malô.
Ângelo convidou-o a entrar em casa.
—Tenho um companheiro comigo. . . observou o conde, chamando com um gesto Artur Bouvier, que o esperava a certa distancia.
Depois de trocados os cumprimentos, entraram os três na modesta sala de jantar do pároco. Bouvier não se fartava de olhar para êste como se observasse um fenômeno precioso pela raridade.
Naquela pobre casa desfavorecida do menor conforto, a elegante roupa de sêda bordada a ouro dos dois cavalheiros destacava-se escandalosamente. Ângelo, defronte dêles pálido e mal vestido, parecia um esfarrapado cadáver saído naquele instante da vala comum dos miseráveis.
Uma idéia o preocupava todavia, desde o momento em que os considerou de perto. É que, ao vê-los assim, cheios de saúde, gentilmente vestidos e empoados, levantando entre as abas da casaca a petulante ponta do florete, lembrava-se da sua própria figura essa noite ao lado de Alzira, e seria capaz de jurar que já em sua vida, ou nos seus sonhos, tinha visto aqueles dois homens.
Salomé trouxe-lhe pão fresco e leite fervido.
O pároco deu às visitas os melhores assentos que havia na casa, e ofereceu-lhes do seu almoço.
Enquanto comiam, o conde expôs o motivo da sua viagem a Monteli.
—Venho, senhor cura, disse êle, entregar-lhe um cofre e uma carta, que encontramos no espólio da falecida condêssa Alzira... Aqui estão. Trazem o seu nome.
—O meu nome?. . . balbuciou Ângelo, a tremer, visivelmente perturbado, mas. . .
— Testamenteiros dela, como somos, acrescentou o conde, indicando ao mesmo tempo Bouvier, cumpre-nos fazer entrega dêsses objetos. Ei-los.
E apresentou-lhe um pacote de pouco mais de um palmo de tamanho, cuidadosamente embrulhado e lacrado. Tenha a bondade de recebê-los.
Ângelo, sumamente pálido, estendeu a mão, hesitante.
E tal era o seu tremor, que o conde teve de ajudá-lo a quebrar o sêlo do pacote e tirar de dentro a carta, que lhe passou incontinenti.
—Leia, disse. Creio que êsse papel explica a razão de ser do cofre. ..
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