As disposições do artigo 236 da Lei 4.767/65 (Código Eleitoral), ao proibirem a prisão de eleitor nos cinco dias que antecedem às eleições até 48 horas depois do seu encerramento (salvo em casos de flagrante delito, sentença condenatória por crime inafiançável e desrespeito a salvo-conduto), sempre causaram alguma perplexidade entre os juristas e o homem do povo.
Em tempo de eleições, sempre que um delito grave é cometido e o criminoso não pode ser preso por sua situação não se enquadrar nas exceções legais retro-referenciadas, ergue-se um clamor de protesto contra a injustiça do texto legal.
Em 2005, por exemplo, na época do referendo sobre o comércio das armas de fogo também foi vedada a prisão de eleitores nos mesmos moldes do artigo 236 do Código Eleitoral. Escudando-se na benesse legal, amparado por um salvo-conduto, o advogado Peter Amaro de Sousa, um dos acusados de matar o Major da Polícia Militar Pedro Plocharski em janeiro de 2005, apresentou-se na 1ª Vara Criminal de Curitiba. O advogado, que então estava com a prisão preventiva decretada desde cinco meses antes, prestou depoimento e depois foi tranqüilamente para casa.
Fatos como esse causam na população um sentimento de desalento com o sistema de justiça. Outros exemplos: se um acusado de homicídio está foragido - desde que não tenha contra si sentença condenatória – poderá placidamente aparecer para votar no dia da eleição. E a polícia, mesmo inteirada da presença do criminoso na cidade, não poderá prendê-lo face à vedação eleitoral de prisão no período. Claro, no entanto, que essa situação não impede que a polícia fique no encalço do acusado e faça sua prisão após as 48 horas subseqüentes ao encerramento da votação.
Os juízes em geral (incluindo-se aí especialmente os Ministros do Tribunal Superior Eleitoral) aplicam literalmente as disposições do artigo 236 do Código Eleitoral (CE), não vislumbrando qualquer inconstitucionalidade nessa norma, nem vendo qualquer necessidade de compatibilizá-la com outros direitos protegidos constitucionalmente.
No presente trabalho, ainda que de forma sucinta, mostram-se outras interpretações do artigo 236 do CE, que vão da afirmação de sua revogação, inconstitucionalidade, até à probição de prisões cautelares somente para os crimes previstos no Código Eleitoral.
Sem comungar com esses entendimentos, tem-se a pretensão de demonstrar que vedações à prisão de eleitores e candidatos nos prazos do artigo 236 do CE podem coexistir com o direito à segurança, desde que, por meio do uso da técnica de sentenças aditivas, possa ser feita uma releitura constitucional das hipóteses de prisão do eleitor, com sua ampliação para abranger os crimes hediondos, roubo e crimes dolosos contra a vida.
Neste texto, para fins exclusivamente didáticos, a época em que a prisão de eleitor é vedada pelo Código Eleitoral será designada como ‘período eleitoral’.
A Justiça Eleitoral foi criada em 1932, no governo de Getúlio Vargas, quando foi editado um Código Eleitoral. Em 1934 a Justiça Eleitoral teve sua existência formalizada na Constituição.
A criação da Justiça Eleitoral fora reivindicada pelo Movimento Tenentista e outros segmentos da sociedade, especialmente a incipiente classe média urbana.
O Código Eleitoral de 1932, ao conceder o direito de voto às mulheres, reduzir para 18 anos a idade mínima para o indivíduo se alistar como eleitor e instituir o voto secreto, priorizou os ideais de representatividade e da busca da ‘verdade real’ nas eleições, até então marcadas pela prática constante de fraudes. Foi um autêntico rompimento com os desmandos do coronelismo e da prática do voto de cabresto.
Nesse quadro, ganhou muito o país com a instituição da Justiça Eleitoral, pois a um Poder independente caberia fazer o alistamento, a apuração de votos e o reconhecimento e diplomação dos eleitos.
Na República Velha (1889-1930), as fraudes nas eleições eram costumeiras, como pode-se aferir do seguinte texto:
"Embora a idéia de democracia e de repartição do poder já estivesse positivada, não tardou a ocorrência de eleições maculadas pelas fraudes. Para tanto, dois mecanismos eram constantemente utilizados, qual seja, o "bico de pena" e a "degola" ou depuração. A falsificação dos resultados pelo método "bico de pena" era praticada pelas mesas eleitorais, que prosseguiam com o ofício de junta apuradora, inscrevendo como eleitores pessoas fictícias, mortas e ausentes. Numa etapa posterior, realizada pela Comissão de Verificação de Poderes do Senado e da Câmara, "degolavam-se", ou seja, cassavam-se os diplomas de eleitos "que fossem considerados inelegíveis ou incompatíveis com o exercício do cargo". Desta forma, observando-se a freqüência destes dispositivos, ficaram convencionadas três ocasiões de fraudes: "na eleição, na apuração e no reconhecimento". Tais episódios não se restringiram somente à esfera do grupo situacionista, muito embora para ele estivessem disponíveis o aparato policial e o erário público. A oposição, também, se predominasse em algum reduto eleitoral, procuraria, por meio dos mesmos procedimentos levianos, influenciar a composição das mesas eleitorais e a apuração dos votos. Sobre esse caos político, adscreve Assis Brasil: "Ninguém tinha a certeza de se fazer qualificar, como a de votar ...Votando, ninguém tinha a certeza de que lhe fosse contado o voto ...Uma vez contado o voto, ninguém tinha a segurança de que seu eleito havia de ser reconhecido...1".
Por sua vez, os ‘coronéis’ exerciam a sua influência por intermédio do voto de cabresto, determinando aos eleitores do interior os candidatos em que deveriam votar. Para esse eleitorado, pobre e de poucas luzes, os votos valiam ‘recompensas’ do patrão, enquanto a desobediência poderia resultar em punições violentas. Não votando em quem o coronel mandasse, sujeitava-se o ‘eleitor’ a perder seu emprego e a não obter outro na região2.
O ‘coronel’ também tinha a seu serviço a polícia (cujo chefe geralmente nomeava) e os ‘cabras’, que davam ‘proteção’ contra os adversários políticos e intimidavam eleitores.
Assim, como uma das formas de garantia da liberdade de voto do eleitor, além do voto secreto, o Código Eleitoral de 1932 (Decreto 21.076/32, de 24/02/1932) estabeleceu, como regra, a vedação da prisão em períodos imediatamente anteriores e posteriores ao dia de votação, nos seguintes termos:
Art. 98. Ficam assegurados aos eleitores os direitos e garantias ao exercício do voto, nos termos seguintes:
§ 1o Ninguém pode impedir ou embaraçar o exercício do sufrágio.
§ 2o Nenhuma autoridade pode, desde cinco dias antes e até 24 horas depois do encerramento da eleição, prender ou deter qualquer eleitor, salvo flagrante delito.
§ 3o Desde 24 horas antes até 24 horas depois da eleição, não se permitirão comícios, manifestações ou reuniões públicas, de caráter político.
§ 4o Nenhuma autoridade estranha à Mesa Receptora pode intervir, sob pretexto algum, em seu funcionamento.
§ 5o Os membros das Mesas Receptoras, os fiscais de candidatos e os delegados de partido são invioláveis durante o exercício de suas funções, não podendo ser presos, ou detidos, salvo flagrante delito em crime inafiançável.
§ 6o É proibida, durante o ato eleitoral, a presença de força pública dentro do edifício em que funcione a Mesa Receptora ou nas suas imediações.
§ 7o Será feriado nacional o dia da eleição.
§ 8o O Tribunal, Superior e os Tribunais Regionais darão hábeas-córpus para fazer cessar qualquer coação ou violência atual ou iminente.
§ 9o Nos casos urgentes, o hábeas-córpus poderá ser requerido ao juiz eleitoral, que o decidirá sem demora, com recurso necessário para o Tribunal Regional.
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