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Este início de refluxo dos valores do vale-tudo liberal está sendo também fortalecido pelas dinâmicas ambientais. O caso dos mares pode servir aqui de exemplo: com o GPS (posicionamento global por satélite), sistemas modernos de sonar, e a parafernália constituida por gigantescas redes, harpões de choque elétrico e outras tecnologias dos navios de pesca industrial, pescar é hoje mais uma atividade de matadouro do que propriamente de pesca. Com o aumento do volume de pesca, poderia-se acreditar numa queda de preços, e consequente redução de volume de capturas, reequilbrando o processo. Esta é a dinâmica antiga. Hoje, como o volume global de capturas está reduzindo rapidamente a biomassa, a oferta está baixando rapidamemente, elevando os preços. Em outros termos, o custo de captura baixa por causa das novas tecnologias, mas os preços de venda aumentam pela escassez crescente do produto. Com isto a margem sobe, e em vez de se restringir a pesca para assegurar a sobrevivência da matéria prima, as grandes empresas de pesca lançam ao mar tudo que têm de equipamento. O argumento de que estão destruindo o seu próprio futuro encontra uma resposta lacônica: "se não for eu, serão outros". Em outros termos, as tradicionais curvas de oferta e procura nunca se encontram, até se destruir as reservas. O mecanismo de mercado nas áreas que não produzem propriamente, mas exploram as reservas acumuladas pela natureza, constitui, com as novas tecnologias, um simples suicídio. Segundo a mesma lógica, que já eliminou o bisonte das planícies norte-americanas, estão sendo eliminados, com avionetas e as tecnologias mais avançadas, os milhões de animais da Sibéria, básicamente para produzir ração para cães nos países desenvolvidos. Obedecem a lógica semelhante as chamadas externalidades, pelas quais sai mais barato, em termos de mercado, produzir jogando resíduos tóxicos nos rios, destruindo assim as limitadas reservas do que já está se chamando de "ouro azul", do que arcar com as despesas de reciclagem ou de sistemas de produção menos agressivos. Os dramas que se avolumam são de tal nível de ameaça, que o leque de atores sociais dispostos a colocar freios no processo aumenta rapidamente, ampliando aqui também os espaços de articulação de novas propostas. Não se trata de um wishful thinking. Há dez anos ainda ambientalistas eram vistos com curiosidade, como gente que gosta de tartarugas e de baléias. Hoje a preocupação se generalizou.
As relações de produção indignavam pelas injustiças sociais criadas. Hoje ganha-se dinheiro vendendo armas para qualquer parte do planeta, lavando - em bancos muito respeitados - o dinheiro de drogas, comercializando órgãos humanos, organizando turismo de prostituição infantil, vendendo mercúrio para envenenar rios, inundando fazendeiros inexperientes - ou demasiado experientes - com defensivos agrícolas, praticando a sobre-pesca que destrói os mares, queimando florestas milenares para expandir pastos, explorando as facetas mais sórdidas do sofrimento humano em programas de mídia, sobrefaturando obras públicas através de empreiteiras cuja habilidade econômica maior consiste em comprar espaço político, vendendo como serviços de segurança os mesmos agentes que praticam os crimes, fornecendo serviços militares privados a governos fragilizados e assim por diante. Um levantamento preliminar de empresas que produzem equipamento de tortura identificou 42 empresas nos Estados Unidos, 13 na Alemanha, 7 na França, 6 em Taiwan, e 5 em Israel, entre outros. Não basta hoje saber se a empresa paga bem ou mal, se respeita as leis trabalhistas, se está criando ou não empregos, se as formas legais de organização empresarial estão sendo respeitadas. Tornou-se indispensável divulgar e discutir, através da mídia, dos sindicatos, de partidos, de ONG’s, e das próprias associações empresariais, os objetivos sociais dos processos produtivos. As empresas ligadas a atividades socialmente úteis serão as primeiras a pagar a solidariedade passiva que as liga - como colegas de classe, por assim dizer - aos que de cara limpa se aproveitam de fragilidades de jurídicas, políticas ou sociais. Que legitimidade têm os Estados Unidos de protestar contra os produtores de droga na Colômbia, se multiplicaram por quatro, em poucos anos, a exportação de armas para países africanos? Inundar os pobres países africanos de armas é mais ético?
Todas as publicações modernas sobre a gestão tratam dos show cases. De ler os novos manuais de administração, ou as revistas correspondentes, o mundo empresarial estaria sendo invadido por uma onda de humanização interna, com redução de leque hierárquico, promoção da knowledge organization, retreinamento, qualidade total, reengenharia, Kan Ban, Kaizen e outras propostas da nova sopa de letrinhas global. No conjunto estas propostas são positivas. No entanto, são o apanágio de um grupo de empresas modernas. É essencial lembrar que as empresas transnacionais empregam 12 milhões de pessoas no conjunto do Terceiro Mundo. A OIT, que apresenta estas cifras, considera que um emprego direto gera outro indireto, com o que chegaríamos a 24 milhões, cerca de 1% da população econômicamente ativa do mundo subdesenvolvido. Mas esta dinâmica ocupa quase 100% do espaço das nossas publicações científicas. Na realidade o setor minoritário de ponta, gera sim uma outra massa de empregos, os empregos precários (os "precarious jobs" nos estudos americanos): a Nike emprega 8 mil pessoas nos Estados Unidos como organizadores, na linha dos produtos intangíveis que caracterizam a economia moderna, enquanto os tênis concretos serão produzidos através de sistemas de terceirização em países asiáticos, com os famosos 15 ou 20 centávos por hora, gerando empregos precários, mas também gerando desempregos, por exemplo na indústria de calçados de Franca. Como as limitações de geração de emprego do setor formal são cada vez maiores, cria-se gradualmente um imenso setor informal, onde as pessoas buscam a sobrevivência por meio de micro-atividades industriais de fundo de quintal, de pequeno comércio e assim por diante. Finalmente, gera-se um setor ilegal que cresce rapidamente: comercialização de carros roubados e de peças maquiladas, contrabando, lavagem de dinheiro, produção e tráfico de drogas, desmatamento e pesca ilegais, tráfico de órgãos, comércio de sangue e assim por diante. Assim o nosso mundo do trabalho vai gradualmente se dividindo em subsistemas socio-econômicos, com o setor de ponta próspero e moderno, os seus carregadores de piano no setór precário, o setor informal e o setor ilegal, hierarquia que pode ser encontrada na indústria, na agricultura, no comércio ou qualquer outra área. O que não podemos nos permitir, é ficar hipnotizados pelos avanços de Bill Gates ou da General Motors, e esquecer a imensa desarticulação dos sistemas de inserção no trabalho da ampla maioria da população mundial. Neste sentido, o reequilibramento do cáos que está sendo gerado pelo fato de termos uma dominância esmagadora das grandes empresas, uma fragilização generalizada do Estado, e uma sociedade civil que ainda é o sócio menor do processo, tem de ser enfrentada por uma busca sistemática do reforço da densidade organizacional da sociedade.
Tem suas razões a direita em se insurgir contra um Estado parternalista que faz as coisas para e por nós. Do ponto de vista do nosso direito de construir as nossas vidas como queremos, o argumento é forte. No entanto, quem já esteve nas mãos de um sistema privado de seguro médico, ou frente a qualquer mega-empresa (transnacional ou não), já se deu conta que a alternativa que nos oferecem não é entre a iniciativa individual e o Grande Irmão, e sim entre o grande irmão estatal e o grande irmão privado. Na macroestrutura de poder tornou-se inextricável a mistura de interesses de grandes grupos privados e da burocracia estatal. É muito diferente a televisão nas mãos do Estado (que temos) ou de António Carlos Magalhães? De Antonio Carlos Magalhães ou Roberto Marinho? Do Roberto Marinho ou do bispo Macedo? É comovente um artigo do Time, em pleno 1998, se dar ao trabalho de assegurar ao leitor que a força dos grupos privados na mídia nos põe a salvo de qualquer monopólio estatal. Só que a ameaça, evidentemente, não é mais o monopólio estatal, e a alternativa não é simplesmente privatizar ou estatizar. Trata-se de resgatar sim o papel do indivíduo na sociedade, e evoluir do conceito de poder que se delega - à empresa ou ao Estado - para o conceito de cidadania que se exerce. Gradualmente tomamos consciência a que ponto o estatismo e o liberalismo trazem propostas semelhantes, de um grande irmão que cuida (dentro dos limites dos seus interesses) de um cidadão passivo e alienado. Isto nos leva, naturalmente, à luta por um Estado efetivamente representativo, menos corrupto, menos privatizado, e mais vinculado ao bem público e a uma visão social de longo prazo. Mas nos leva também a uma compreensão mais ampla da necessidade de uma sociedade civil mais organizada em torno dos seus interesses, de maneira a constituir um ambiente de controle tanto sobre as mega-empresas como sobre a máquina do Estado.
A revolução tecnológica tornou viável a gestão a distância, gerando gigantescos sistemas de articulação de milhares de unidades produtivas. Com isto, a atividade produtiva ainda é importante, mas o poder sobre os sistemas produtivos se deslocou para formas articuladas de organização do financiamento, distribuição, publicidade, pressão política e outros elementos do conjunto de "intangíveis" que hoje representam como ordem de grandeza 75% do preço que pagamos por um produto. Este poder deslocou-se em particular para a área transnacional, navegando entre a segmentação das políticas nacionais, formando por meio de gigantescas campanhas a visão popular, a imagem de uma empresa, de uma produto, de um grupo econômico. Uma empresa poderosa, hoje, frequentemente não produz nada, mas controla, regulamenta, cria pedágios que lhe conferem um imenso poder de intermediação. Isto tem lados bons e ruins, mas sobretudo altera os dados da transformação social. Em particular, o amplo poder da grande empresa não se exerce num espaço concreto de uma fábrica, no bairro onde moram os seus trabalhadores, no sistema tradicional que gerou boa parte do nosso tecido urbano. A grande empresa é hoje um nome, que martela diariamente a sua imagem através de todos os meios de comunicação, mas cuja existência concreta reconhecemos apenas nas prateleiras de um supermercado. Tornou-se, no pleno sentido, uma sociedade anômima. E o poder de controle das atividades intangíveis leva a uma apropriação qualitativamente nova dos valores que a sociedade produz. A Peugeot, no primeiro semestre de 1998, teve lucros de 330 milhões de dólares, o que foi comemorado como façanha pelos 140 mil trabalhadores que produziram bens concretos. Em período semelhante, no primeiro semestre de 1997, o City Bank realizava, com 350 operadores de especulação com divisas, 552 milhões de dólares de lucro. O empresário tradicional, inovando nos processos produtivos, acreditando ainda na destruição criativa de Schumpeter, ao ver para onde vão os lucros, se sente cada vez mais como o pateta da história. É importante lembrar a forma perversa como estão se articulando hoje o aumento mundial de lucros e a redução de taxas de investimento: "É esta associação de aumento de lucros com investimento estagnado, desemprego crescente e salários em queda que constitui a verdadeira causa de preocupação".
Uma área de grande potencial organizador da sociedade civil são os serviços sociais. Algumas das mudanças mais óbvias se referem ao deslocamento dos grandes eixos de atividades econômicas para esta área. É um choque para muitos, ainda, o fato do maior setor econômico hoje nos Estados Unidos não ser a indústria automobilística ou o complexo militar, mas a saúde, que hoje representa 14% do PIB norteamericano, bem mais do que o Pib do Brasil. Outro gigante que ultrapassou as grandes áreas industriais é o que os americanos chamam de indústria do entretenimento. No entanto, quando falamos em modelos de gestão, ainda falamos em taylorismo, fordismo, toyotismo. Toda a nossa visão de organização econômica continua centrada no automóvel. Como se faz just-in-time no hospital, na escola? Os grandes novos setores oscilam entre o burocratismo estatal, e os impressionantes abusos que o setor privado comete quando se apropria de áreas sociais. Os milhares de jóvens que ostentam as profundas cicactrizes de rins extraidos, na India, ou os 52% de partos com cesariana no Estado de São Paulo, nos lembram com que à vontade as empresas brincam com o objetivo maior, o lucro. Que liberdade de escolher tem um cidadão quando um médico lhe recomenda que o filho seja operado por alguém de sua confiança, por fora do seguro? Que mercado é este? As áreas hoje mais significativas do nosso desenvolvimento são constituidas por setores onde não se aplicam nem o paradigma burocrático estatal, nem os paradigmas da organização fabril. Uma análise das organizações da sociedade civil nos Estados Unidos mostra que cerca de 50% das atividades se formaram em torno da problemática da saúde. Os 200 bilhões de dólares que o governo norte-americano gasta com o terceiro setor não constituem subvenções assistenciais, mas resultam de concorrências que as organizações não-governamentais e não empresariais ganham porque são simplesmente mais eficientes. Uma formação nova que são as empresas sociais é mais estudada na Italia, mas está progredindo por toda parte. Quem disse que se organizar para ser criativo só pode ser realizado no quadro do vale-tudo capitalista? A realidade é que o essencial das atividades humanas está se deslocando para áreas onde a macro-burocracia estatal e o macro-poder empresarial funcionam mal, abrindo uma imensa avenida de organização capilar da sociedade em torno dos novos grandes setores econômicos.
Esses serviços, por sua vez, têm uma esfera privilegiada de acão que é o espaço local. Assim, se no conjunto o equilíbrio a ser construido entre mercado, Estado e sociedade civil deve buscar um reforço dos pólos enfraquecidos, Estado e sociedade civil, assume um papel importante o município, o poder local, onde a articulação entre a administração pública e as organizações da sociedade civil pode ser mais facilmente organizada. É no plano local que as políticas de saúde, de educação, de esportes, de cultura e outros podem ser articuladas em dinâmicas sinérgicas em torno da qualidade de vida do cidadão. É no plano local que podem ser cruzados o cadastro de desempregados e os estudos sobre recursos subutilizados para criar políticas de emprego. É também no plano local, onde os diversos atores sociais se conhecem, que as parcerias podem ser organizadas da maneira mais flexível. Não insistiremos sobre este ponto, que estudamos em outros textos. O importante é lembrar que se trata de uma dinâmica que já deu as suas provas em numerosos países, em particular o grupo de países escandinavos, o Canadá, a Holanda e outros, mas também em regiões muito pobre como o Estado de Kerala na Índia onde se deu uma forte evolução da democracia representativa centralizada para uma democracia participativa muito mais próxima do cidadão. Basta lembrar que nos países desenvolvidos as administrações locais gerem entre 40 e 60 % dos recursos públicos, enquanto nos países subdesenvolvidos esta porcentagem se situa normalmente abaixo de 10%. Na Suécia, são 72%, no Brasil provavelmente algo como 17%. De certa forma, trata-se de aproximar o Estado do nível onde a sua articulação com as necessidades sociais e com as organizações da sociedade civil seja mais forte. Não se trata de visões milagrosas. A política brasileira sendo o que é, em boa parte a descentralização de recursos pode simplesmente reforçar o caciquismo. Mas no conjunto, é muito mais fácil, para as grandes empresas, desviar algumas dezenas de bilhões de dólares através dos lobbies ministeriais de Brasilia do que enfrentar a pressão social por realizações concretas nos 5,5 mil municípios do país.
Resgatar relações sociais mais democráticas e equilibradas, e a contenção do poder empresarial, sempre foi estudado pelo lado da democratização do controle da empresa, envolvendo desde a visão da socialização pura e simples dos meios de produção, até a visão do contra-peso sindical nas unidades de produção. A primeira solução tem limites evidentes, a segunda continua sendo um objetivo de grande importãncia. Mas surge com força a alternativa do cidadão votar com o bolso, por assim dizer, ao recusar produtos que são prejudiciais ao meio-ambiente, que utilizam trabalho infantil, ao penalizar empresas de comportamento social inaceitável. Em outros termos, a influência sobre os processos produtivos pode dar-se em diversos pontos do ciclo, e de forma mais complexa do que a visão simplificada da transformação das relações de propriedade. O desmoronamento das vendas da Shell, na Alemanha, depois da denúncia de um comportamento ambiental negativo, é neste sentido muito significativa. Na Cúpula de Lyon-98, organizada pelas Nações Unidas, sobre Parcerias para o Desenvolvimento, foram apresentadas durante dias seguidos as alternativas que numerosos países, regiões e comunidades estão adotando para recuperar o controle social sobre a poupança, escapando aos esquemas de sua apropriação pelo sistema financeiro globalizado. Os sistemas locais de comunicação se desenvolvem rapidamente, em contrapeso à pasteurização mundial imposta pelos monopólios da mídia, e geram novos instrumentos de integração cultural local. Mais uma vez, uma implicação evidente é a necessidade de se democratizar os meios de informação, no nível mais amplo, para que a população tenha acesso a informações inclusive sobre o comportamento empresarial.
Finalmente, um ponto que nos parece importante frizar: a dramática aceleração das transformações no planeta nos obriga a repensar o conceito de tempo. Achamos promissora a evolução de um conjunto de empresas para a gestão de qualidade, redução do leque hierárquico, maior democracia interna e assim por diante. Mas como fica a clivagem com o resto da sociedade, que evolui em outro ritmo? Este tipo de empresa representa quando muito 5% do emprego mundial, pouco mais de 1% nos paises do terceiro mundo. Metade da população mundial ainda cozinha com lenha. Como ficam os dois terços da população excluidos da modernidade, num planeta de dimensões cada vez menores? O problema que queremos colocar aqui é que não basta pensar que possivelmente a ponta moderna do processo irá gradualmente transformando o conjunto dos processos sociais: os desequilíbrios sociais e ambientais estão se avolumando, e a janela de tempo que temos para restabelecer certos equilíbrios estruturais é limitada. As asincronias ou disritmias dos processos de mudança são tão profundas, atingindo em ritmos diferentes o tempo tecnológico, o tempo cultural, o tempo instutucional e o tempo jurídico, para mencionar algumas instâncias básicas, que a ameaça de desarticulações desastrosas, na linha do que tem sido chamado de slow motion catastrophy, ou catástrofe em câmara lenta, se torna cada vez mais palpável. Exemplificando esta tensão, que se dá em diversos níveis: em São Paulo aumentou o número de empresas que ostentam as certificações ISO-9000, ISO-14000 e outros diplomas de modernidade nesta era das medalhas tecnológicas; por outro lado, temos 30 assassinatos por dia, e o número de carros roubados já atinge 420 por dia, marcando o rápido crescimento de uma economia ilegal já não como manifestação esporádica de marginalidade social, mas como setor econômico e processo sistêmico de desarticulação social pela base. As novas tendências da modernidade ocupam todas as nossas atenções, e a quase totalidade das publicações científicas. Ficamos sem dúvida felizes com o fato de que pequenas empresas fazem grandes negócios. No entanto, se o tempo de rearticulação da sociedade em torno das novas atividades não acompanha o ritmo de desagregação social pela base, o resultado será a barbárie. O tempo que temos pela frente, para uma sólida rearticulação e reequilibramento da sociedade, é cada vez mais curto.
Muitos apontam as tragédias que vivemos como dificuldades naturais do parto de um novo mundo. Todos olhamos para o horizonte brilhante onde despontam fantásticas tecnologias. É relativamente fácil projetar para o futuro o universo dourado que estas tecnologias preparam. Alvin toffler já apontava, no seu Powershift, para o fato que uma economia baseada no conhecimento é essencialmente diferente de uma sociedade baseada no controle da riqueza material: o conhecimento passado para outra pessoa é compartilhado, enquanto os bens materiais pertencem a uma ou a outra pessoa. Neste sentido, abre-se a possibilidade da construção de uma sociedade democrática, estruturalmente mais igualitária. Pierre Lévy mostra, na Inteligência Coletiva, como a nova conectividade horizontal que os novos sistemas de comunicação e informação permitem, abre espaços para uma rearticulação social inovadora.
Em outros termos, podemos analisar diversas manifestações das novas tendências: Rifkin aponta para o fim do emprego, Castells para a sociedade em rede, De Masi para uma sociedade de ócio ativo, e um sem-número de autores otimistas pintam diversos tipos de nirvanas do futuro, onde estaremos entregues ao ócio e ao prazer, enquanto robôs trabalharão para nós; outros autores, mais pessimistas nos mostram um ser humano devorado pelo Big Brother (Bill Brother, na versão atualizada), com todas as colorações intermediarias. Estes estudos têm importância, pois apontam para os rumos, as macro-tendências. Mas o que nos parece essencial, é entendermos os processos imediatos sobre os quais podemos intervir.
O imediato é a caótica transição que se inicia. Se olharmos com um pouco de perspectiva para a revolução industrial, o seu parto foi acompanhado da de-ruralização, da formação dos guetos urbanos, de gigantescas migrações para o novo mundo, de imensa miséria, de trabalho infantil e tantas outras manifestações hoje esquecidas, mas que traumatizaram o século XIX e a primeira metade do século XX. A própria força do comunismo e a expropriação radical dos capitalistas surgiram destes dramas sociais, que nos legaram a guerra fria e o clima de conflito planetário.
Neste sentido, não é o surgimento dos fantásticos horizontes que as novas tecnologias nos trazem que é o problema. Produzir mais com menos esforço não deveria nos deixar preocupados: a ameaça é a substituição do trabalhador sem que avance a correspondente reorganização do trabalho. Como redistribuir o trabalho, como reduzir a angústia que se generaliza? Como inserir no processo de transformação os tres quartos de excluidos?
As chamadas forças do mercado resolvem? Seria ótimo. Na realidade, melhor do que discutir se as teorias liberais ou neoliberias constituem uma resposta, é propor uma alternativa prática: enquanto o mercado não resolve, vamos de forma organizada, comunidade por comunidade, região por região, enfrentar o problema de milhões de crianças com fome ou fora da escola, criar programas de renda mínima, associar as populações aos processos de decisão sobre os recursos públicos, controlar a proliferação de armas, coibir a destruição ambiental, resgatar o controle da população sobre as suas próprias poupanças, votar com o bolso para as empresas socialmente e ambientalmente responsáveis, elejer políticos honestos, dinamizar sistemas locais e comunitários de comunicação, promover a responsabilização.
A transição para a sociedade industrial foi semeada de imensas tragédias. O terremoto de maior amplitude que prepara a sociedade do conhecimento tanto pode se transformar num processo de libertação, como num universo de terror. Não podemos continuar a construir privilégios, e a fechar os olhos sobre as consequências. Na economia, como na política, o jogo de faz de conta não funciona.
Voltemos ao início. Uma enfoque que nos parece essencial, é que estamos jogando, em boa parte, um jogo novo, com regras que ainda são antigas. Repetir mais alto os slogans que já deram certo em outra época não vai atualizá-los. É preciso reconstruir os conceitos. Entre as cartas que compôem o novo jogo, privilegiamos algumas. É uma visão que ultrapassa o enfoque dual estatização/ privatização para se concentrar na articulação equilibrada Estado/empresa/sociedade civil. Que busca ultrapassar a priorização do econômico, segundo a visão liberal de que o lucro dos ricos reverterá, pela mágica do trickling down, em benefícios sociais e ambientais para o conjunto da sociedade: o próprio processo de reprodução social deve ser uma permanente articulação dos objetivos econômicos, sociais e ambientais. Este enfoque de sociedade organizada torna-se particularmente premente frente a um capitalismo de grandes grupos de peso global, que hoje escapam a qualquer controle nacional, pela fragilização dos instrumentos de política econômica do Estado, enquanto os controles globais ainda não se constituiram. Este capitalismo total exerce hoje um poder imenso sobre a área política, e controla a mídia, o que lhe possibilida a difusão permanente de uma imagem positiva sobre si mesmo, ocultando os dramas que se avolumam. Como o sistema financeiro global passou também a escapar em grande parte dos controles nacionais, gera-se um desequilibrio extremamente profundo entre Estado, mercado e sociedade civil. Coloca-se portanto no centro o problema do resgate da função reguladora do Estado, e do reforço da organização da sociedade civil.
A simples esperança de que as coisas encontrarão "naturalmente" a sua lógica não basta. A maré capitalista levanta os grandes iates, não levanta todos os barcos. É curioso, e significativo, ver o Banco Mundial (1995), que não é um organismo subversivo, ser o primeiro a torpedear a ilusão:"There is no world-wide trend toward convergence between rich and poor workers. Indeed, there are risks that workers in poorer countries will fall futher behind." A polarização econonômica entre ricos e pobre é vista como tendência marcante por todos os relatórios internacionais, tanto dentro dos países como no plano internacional, e atinge hoje com força particular os próprios Estados Unidos A capacidade de geração de empregos está mudando rapidamente no setor de ponta da economia. Centrar a visão do desenvolvimento na "atração" de investimentos, cada país ou região competindo para ver quem se curva mais baixo, quem dá condições mais atraentes, no que as Nações Unidas chamam hoje de "race to the bottom", em troca de algumas centenas de empregos, não resolve grande coisa. Na realidade, o que funciona é o processo inverso, a promoção dos equilibrios internos, a dinamização dos empregos em torno às necessidades básicas de saneamento, habitação, alimentação e outros, a redistribuição da terra produtiva, o acesso mais democrático à renda, o relacionamento externo visto como dinâmica importante mas complementar à dinâmica interna. Com meio século de atrazo relativamente aos paises desenvolvidos, cabe-nos hoje centrar as políticas no reequilibramento social, e na rearticulação das relações com a economia global.
A formação de um mega-poder das 500 a 600 corporações transnacionais, deslocou os espaços políticos. O próprio empresariado, particularmente na área da pequena e média empresa, que não tem escala suficiente para controlar segmentos da esfera política, e que não participa do casino global, vê com perplexidade crescente um sistema onde produzir bem não assegura nenhuma vantagem relativamente a quem faz especulação financeira, manipula o Estado ou coloca pedágios comerciais sobre as mais variadas atividades. Por outro lado, a urbanização generalizada que progrediu no planeta, e em patricular no Brasil das últimas décadas, abre novas perspectivas para a reconstrução da articulação Estado/sociedade civil a partir do espaço da cidade, permitindo (mas não garantindo) a geração de uma âncora econômica e social tanto mais necessária quanto mais avança a globalização.
O grande dilema, entre tantos outros, continua sendo esta estrutura estranha que chamamos de classe dirigente. A sua adaptação ideológica à era da globalização é relativamente simples, na medida em que sempre foi uma classe que buscou maximizar os seus interesses intermediando interesses externos, fossem eles coloniais, ingleses, americanos ou globais. Fomos o último país a abolir a escravidão, somos hoje o último país do planeta em termos de distribuição de renda. Um dos textos recentes de Darcy Ribeiro é, neste sentido, eloquente: "Nada é mais continuado, tampouco é tão permanente, ao longo desses cinco séculos, do que essa classe dirigente exógena e infiel a seu povo…Tudo, nos séculos, transformou-se incessantemente. Só ela, a classe dirigente, permaneceu igual a si mesma, exercendo sua interminável hegemonia…Não alcançam, aqui, nem mesmo a façanha menor de gerar uma prosperidade generalizável à massa trabalhadora, tal como se conseguiu, sob os mesmos regimes, em outras áreas. Menos êxito teve, ainda, em seus esforços por intergrar-se na civilização industrial. Hoje, seu desígnio é forçar-nos à marginalidade na civilização que está emergindo". Imaginar-lhe desígnios tão perversos constitui talvez um exagero. Mas a realidade é que, frente aos imensos avanços das tecnologias, e à amplitude das mudanças em todas as áreas, os nossos bancos pendurados nos financiamentos estatais e praticando juros surrealistas, os usineiros e latifundiários que se concentram mais no que consideram ser política -- buscar subsídios através dos processos mais escusos de pressão -- e imobilizam a terra que nem cultivam nem deixam cultivar, as empreiteiras que seguem se equilibrando no apoio a políticos corruptos em troca de contratos públicos, as famílias da mídia que seguem fielmente as tradições truculentas do Chatô e loteiam o próprio espaço da informação para perpetuar feudos políticos e econômicos, as próprias formas clânicas de fazer política, constituem hoje uma superestrutura medieval, mal disfarçada pelos celulares, computadores e carros de luxo que utilizam. O capitalismo brasileiro neste ponto consegue uma proeza impressionante: não mudou nada.
É fácil terminar uma análise de situação com uma crítica à classe dominante, apontando um culpado. A grande realidade é que a visão conservadora do mundo implodiu. Conforme vimos acima, o mercado e a globalização já não asseguram nem o espaço da realização individual, nem o contexto social que viabiliza a família, além de liquidar com a soberania nacional e outros valores tradicionais. Ou seja, a visão liberal da economia tornou-se incompatível com os valores que lhe eram associados. Já não é surpreendente ver um Papa um dia fustigar o capitalismo, e outro dia pedir por Pinochet. A visão conservadora se tornou uma contradição nos termos, e a sua bússola gira solta.
A visão progressista, durante longo tempo engessada na visão estatista da sociedade, está pelo contrário abrindo espaços renovados para o conjunto da sociedade. O conceito de uma democracia participativa, ancorada em sistemas descentralizados de gestão social, abre caminho para um sistema políticamente coerente. A visão de parcerias entre a administração pública, o setor privado e a sociedade civil constitui outro avanço que está demostrando a sua eficiência em numerosos países, ainda que no Brasil apenas tenha efetivamente progredido no espaço local de gestão. A busca de uma democratização da mídia, visando uma sociedade transparente no uso dos recursos estatais ou empresariais, constitui mais um reforço para uma sociedade cidadã. E não é surpresa que as alternativas concretas estejam surgindo dominantemente a partir do poder local: é o espaço onde as instâncias política, econômica, social e cultural podem ser articuladas para formar um conjunto que tenha pé e cabeça. Isto não significa uma sociedade cuja lógica se resume ao local. Significa que uma sociedade articulada de forma democrática na base pode influir melhor na racionalização do conjunto.
É preciso, no entanto, ter o realismo de entender que a esquerda sozinha não terá a força de promover as transformações políticas estruturais hoje indispensáveis. A aproximação de uma esquerda em renovação com as áreas mais abertas da classe política, mas sobretudo diretamente com grupos empresariais, igrejas, redes de jornalistas, organizações profissionais e o crescente número de entidades da sociedade civil organizada, é vital não só para a esquerda: é a única articulação que poderia promover as mudanças, frente às forças que sempre exerceram um poder de estilo mafioso no país. Bem o entenderam estas forças, que realizam um permanente trabalho de clivagem entre a esquerda tradicional e os crescentes segmentos conscientes da sociedade, e puxam os grupos mais hesitantes para debaixo das suas asas, a pretexto de protegê-las da "ameaça" progressista.
Esta visão poderá ser muito idealista. Acredito, no entanto, que há um cansaço crescente, mesmo nos setores mais tradicionais da sociedade, com a permanente tragédia de sermos um país tão dividido entre ricos e pobres. Como bem o expressa Cristovam Buarque, a concentração de renda se tornou tão anacrônica e contraditória com o progresso do país, como era a escravidão há pouco mais de um século atrás.
Ladislau Dowbor, 59, é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e da Universidade Metodista de São Paulo, e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de "A Reprodução Social", editora Vozes 1998, e de numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social. Foi Secretário de Negócios Extraordinários da Prefeitura de São Paulo. Fone: (011) 3872-9877; FAX: (011) 3871-2911; E-mail ladislau@dowbor.org ; home page http://dowbor.org
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Ladislau Dowbor
URL: http://dowbor.org
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