Junho 2000
Mi ritrovai per una selva oscura,
Che la diritta via era smarrita
Dante, Divina Comédia (2)
Tudo indica que se esgotou o tempo das grandes simplificações políticas e econômicas. Surge uma visão mais complexa e mais rica de articulação de Estado, empresa e sociedade civil, em torno de objetivos simultâneamente sociais, econômicos e ambientais. Enfrentamos uma modernidade tecnológica revolucionária em todos os aspectos, mas continuamos preso num lastro de barbárie política e econômica que tudo deforma. O texto que segue busca redefinir os parâmetros que balizam estes novos rumos.
ABSTRACT: All power to the State, or all power to the market, with the corresponding mystique of redemption coming from the proletariat or from the corporation, are visions much too simplified when we have to face the new economic, social en environmental dilemmas. The present paper is an attempt at defining some emerging trends that change both social reality and social theory.
PALAVRAS CHAVE: globalização, democracia, participação, descentralização, terceiro setor.
KEY WORDS: globalization, democracy, empowerment, decentralization, third sector.
*********
Sempre fomos um pouco propensos, é preciso dizê-lo, a representar a verace via. Saber o caminho é ótimo. Permite um olhar confiante para o futuro, e um caminhar que ignora os sacrifícios. Esta confiança está sendo abalada por transformações profundas que nos deixam perplexos. Alguns, na insegurança criada, se aferram mais a verdades eternas. Outros gritam mais alto slogans antigos, na esperança que sejam melhor ouvidos. Mas a opção correta é seguramente repensar os caminhos.
A verace via consistia em economias que eram nacionais, centradas na produção industrial, dirigidas por burguesias que tinham esgotado o seu papel histórico, devendo dar lugar à nova classe trabalhadora que assumiria o leme mediante a socialização dos meios de produção. A transformação se daria através do controle do Estado. Considerar esta versão da diritta via nos traz o sentimento que temos ao olhar as antigas fotos amareladas de um album de familia. Uma fria comparação com o mundo que vivemos nos dá a dimensão da mudança de parâmetros. A economia nacional é absorvida pelo espaço global, a indústria está perdendo peso dia a dia frente a novos eixos de atividades, as burguesias, no sentido tradicional de proprietários de meios de produção, estão sendo substituidas por tecnocratas racionais e implacáveis, quando não por especuladores completamente desgarrados das realidades prosáicas de produtores e consumidores. A classe trabalhadora se tornou um universo extremamente diversificado no quadro da nova complexidade social, e a sua compreensão resiste cada vez mais às simplificações tradicionais. A socialização dos meios de produção mudou de rumo, o Estado está a procura de novas funções como articulador, e não mais como substituto, das forças sociais. A mudança, é preciso dizê-lo, é qualitativa, com todo o peso que isso tem para as nossas visões teóricas.
Outra verace via consistia na especialização de cada nação na área onde tivesse vantagens comparadas, e no livre fluxo de decisões microeconômicas, guiadas pelo simples interesse pessoal. O que resta das vantagens comparadas, quando 3,5 bilhões de habitantes dos paises de baixa renda somam um Pib de um trilhão de dólares, enquanto o grupo de países ricos soma 17 trilhões, 78% do Pib mundial, apesar de ter menos de 15% da população? Vantagens econômicas comparadas só podem existir se o poder político e econômico dos atores for minimamente comparável. E as vantagens relativas que determinados países têm, são seletivamente absorvidas por mega-empresas transnacionais que distribuem o seu processo produtivo jogando o que é intensivo em mão de obra para países asiáticos, onde se paga centávos por hora, o que é intensivo em engenharia para a Rússia, onde se pode adquirir boa capacidade técnica por algumas centenas de dólares por mês e assim por diante. Para que haja vantagens comparativas da nação, é preciso que os espaços econômicos sejam constituidos por nações.
A lógica microeconômica não vai muito mais longe. A idéia era que o padeiro teria todo interesse em produzir bom pão, e barato, e em quantidade, pois assim ganharia muito dinheiro, e da preocupação do padeiro consigo mesmo resultaria a fartura de pão para todos. Nascia a visão utilitarista, que acabaria por tornar-se a única filosofia realmente existente no chamado liberalismo. A visão do padeiro e a crença na resolução automática das tensões macro que resultam de milhões de decisões microeconômicas tornam-se ridículas num planeta que enfrenta o impacto dos gigantescos grupos transnacionais, as poderosas redes de comércio de armas, os monopólios da mídia mundial, a destruição acelerada da vida nos mares, o aquecimento global, o acúmulo das chuvas ácidas, a especulação financeira globalizada, o comércio ilegal de drogas, órgãos humanos e prostitutas infantís, e tantos outras manifestações de um processo econômico sobre o qual perdemos o controle. O capitalismo global realmente existente é uma coisa nova, e os conceitos de sua análise ainda estão nas fraldas. Aplicar-lhe os velhos conceitos de Smith ou de Ricardo, e acreditar no poder mágico de uma coisa hoje complexa e diferenciada que chamamos abusivamente de mercado, nos leva aqui também às fotografias amareladas.
Não é surpreendente a nossa dificuldade de repensar o universo social numa perspectiva nova. Primeiro, porque as mudanças foram rápidas em termos históricos, ou até vertiginosas, mas se deram de maneira progressiva, sem um momento preciso de ruptura. Em consequência, fomos "espichando" de certa forma os nossos conceitos, para cobrir uma realidade cada vez mais diferente. O lumpen-proletariado adquiriu forma mais ampla no conceito de exclusão social, o proletariado evoluiu para um conceito mais geral de classes trabalhadoras e assim por diante. Chamar de mercado o sistema de poder articulado de cerca de 500 empresas transnacionais, ou as transações intra-empresariais a preços administrativos que hoje envolvem 35% do comércio mundial, tornou-se insustentável, e leva ao surgimento de curiosos remendos como managed market. Quando a criança cresce, pode-se encompridar as mangas da camisa. Chega um momento, no entanto, em que torna-se necessário buscar outra camisa.
A nossa dificuldade prende-se também ao fato que que os objetivos de uma sociedade justa e solidária, no quadro de uma ampla liberdade individual, continuam prementes nas nossas motivações, e hesitamos em avançar para instrumentos novos de gestão social, quando os antigos, bem ou mal, ainda que não respondendo às nossas necessidades de renovação, constituem uma trincheira razoável de resistência contra a barbárie econômica que gradualmente se instala.
Agarramo-nos às soluções simplificadoras de outros tempos, estatização para uns, mercado para outros, mais na linha da resistência e temor frente às transformações em curso, do que propriamente por acreditar no poder ilimitado destes instrumentos. E a resistência é natural: nenhuma pessoa normalmente dotada de ética e bom senso olha com tranquilidade para este mundo novo. A preocupação não se resume à esquerda. O empresário efetivamente produtivo - não o controlador dos casinos globais - pode acreditar que está defendendo a liberdade de iniciativa, mas cada empresa que fecha ou é adiqurida por algum investidor institucional o deixa com mais dúvidas. E quando compara os seus lucros, que resultam de esforço e riscos reais, com as fortunas que especuladores ganham com o dinheiro dos outros, inclusive com remuneração assegurada pelo governo a partir dos seus próprios impostos, começa a colocar em questão, intimamente, a própria lógica do sistema.
O ativista social defende o Estado como linha de defesa contra o vale-tudo das transnacionais. Somos um pouco como o alpinista que busca novos pontos de apoio. Nesta frágil luta contra um poder global e avassalador, já entendemos que os pontos de apoio que nos sustentam têm de mudar, e são a médio prazo insustentáveis, mas hesitamos em abandoná-los antes que surjam alternativas mais claras. Aqui também, o "salto" exige coragem, e ninguém quer dar um salto no vazio.
O nosso estômago, sem dúvida, ainda alimenta as nossas polarizações emocionais em torno do grande duelo entre a empresa e o Estado, que caracterizou o século XX. Mas nas nossas cabeças começa gradualmente a surgir a compreensão de que precisamos repensar a nossa visão. Não é mais uma simples polarização esquerda-direita que aflora na preocupação tão bem resumida por Ignacio Ramonet: "Nos dez próximos anos, duas dinâmicas contrárias vão provavelmente jogar no planeta um papel determinante. Por um lado, os interesses das grandes empresas mundializadas, movidas por interesses financeiros, que se servem da tecno-ciência com um espírito exclusivo de lucro. Por outra parte, uma aspiração à ética, à responsabilidade e a um desenvolvimento mais justo que leve em conta as exigências do meio ambiente sem dúvida vitais para o futuro da humanidade". Desenvolvimento social, meio ambiente, ética, o papel central da cultura e outros conceitos afloram de maneira confusa mas poderosa nesta nova problematização do desenvolvimento humano. Não é apenas o voto de esquerda que varreu do mapa, na Europa, a maioria dos governos conservadores. Neste universo extremamente conturbado e ameaçador, emerge a busca de uma sociedade mais humana, de novos rumos que já não pertencem a uma ou outra classe.
O processo de análise que enfrentamos é complexo, pois a realidade avança com extrema rapidez, e os desafios são renovados a cada dia. É um caminho precário, repleto de fragilidades. Mas tem de ser trilhado, pois os nossos tradicionais e inexpugnáveis bunkers intelectuais, que se tornaram confortáveis na medida em que os reforçamos com verdades definitivas, já não se sustentam. A guerra mudou de rumo, ou, como diz Octávio Ianni, a política mudou de lugar.
Mais do que buscar novas sínteses teóricas, talvez seja útil, nesta fase, sistematizar as mudanças em curso, e identificar novas tendências. Não se trata aqui, portanto, de discutir alguma macro-teoria alternativa, e sim de colocar na mesa algumas das novas cartas com as quais temos de jogar. Trata-se de uma terceira via, sem dúvida. Só que o conceito de terceira via mistifica na medida em que faz supor que só havia duas. Na realidade, o mundo está evoluindo por outros caminhos, sem se preocupar demasiado com os conceitos simplificadores com que o século XX tentou amarrá-lo. Hoje é uma terceira via, amanhã será uma quarta. A boa política constitui um processo, não um ponto de chegada.
Os parágrafos que seguem buscam situar de certa forma os "nós" teóricos.que me parecem balizar o raciocínio. Seguramente, os pontos chave identificados serão diferentes para cada visão. Elencá-los, no entanto, permite identificar, na neblina em que vivemos, as sombras de novos rumos.
Página seguinte |
|
|