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Uma coisa é aguardar o gênio teórico que colocará ordem nas coisas. Outra, é se colocar a pergunta se há alguma ordem nas coisas. Em outros termos, existe realmente um mecanismo globalmente intelegível, ou somos mesmo este emaranhado de interesses que se cruzam e se cruzarão de maneira caótica e imprevisível? Na realidade, a partir de um determinado número de variáveis e de dinâmicas, a previsibilidade se torna limitada. Há alguns anos me perguntaram para onde eu achava que ía a Nicarágua. Eu, como assessor na área de planejamento, no núcleo de governo, deveria ter alguma idéia. Na realidade, não é questão de se ter as informações, e a teoria adequada de interpretação: se trata do fato que o número de variáveis, envolvendo neste caso desde a corrupção da Contra até os momentos eleitorais dos Estados Unidos e brigas internas das oligarquias nicaraguenses, além das possíveis erupções vucânicas, nos obrigam a uma modéstia radical em termos de análise, e a buscar uma avaliação científica da própria compreensibilidade das situações que emergem. Não se trata de decretar a imprevisiblidade das coisas e de dar suspiros de impotência científica. Trata-se da convicção de que precisamos, nesta era de transformações, de um choque de modéstia interpretativa.
Esta modéstia não implica inação, e sim uma mudança de enfoque. De certa forma, não se trata mais de definir a sociedade ideal, a boa utopia, e batalhar o espaço político de sua realização. Gradualmente, passamos a buscar as ações evidentemente úteis, como a distribuição da renda, a melhoria da educação e outras iniciativas que correspondem a valores relativamente óbvios de dignidade e de qualidade de vida. Por outro lado, à medida que identificamos tendências críticas da sociedade - o aquecimento global, a destruição dos mares, a exclusão social de segmentos mais frágeis da sociedade - buscamos gerar as contratendências. Desenvolve-se assim um tipo de pragmatismo da ação política. Muita gente pode ser mobilizada e organizada em torno ao objetivo de se assegurar, por exemplo, que cada criança esteja bem alimentada, tenha sapato no pé e um lugar na escola. Este enfoque não é necessariamente "pequeno". Pelo contrário, abre possibilidades de ação para qualquer cidadão, através de iniciativas individuais, de grupos, vizinhanças ou associações, buscando o chamado bem público. E ao evidenciar resistências à mudança, torna as opções políticas e as mudanças estruturais mais claras. É uma condição não suficiente, mas necessária, da construção da política mais ampla. De certa forma, trata-se de resgatar a dimensão cidadã da política, a força do cotidiano do cidadão comum, ultrapassando o cansaço que frequentemente ganha os que esperam a grande utopia, ou as chamadas condições objetivas.
Por outro lado, centrar-se no crescimento econômico e esperar que o resto decorra, através do mágico processo de trickling down, não é realista, e faz parte da utopia dos equilíbrios naturais, versão liberal das ilusões sociais. A compreensão do bem público está se tornando razoavelmente consensual. Da eficiência econômica não decorre naturalmente a justiça social, ou o respeito ao meio ambiente. Da mesma forma, tentar centrar tudo na justiça social sem assegurar os recursos econômicos dos investimentos sociais tem pouco sentido. E naturalmente nem as ações sociais nem as atividades econômicas terão qualquer sentido se continuarmos a destruir o planeta. O objetivo geral resume-se assim nesta fórmula bastante simples que hoje encontramos nos textos das Nações Unidas: precisamos de um desenvolvimento econômicamente viável, socialmente justo, e sustentável em termos ambientais. Atingir um dos objetivos sem atentar para os outros simplesmente não resolve a questão. E não basta dizer que o sistema vigente é menos ruim do que todos outros: é menos ruim cair do décimo-quinto andar, e não mais do vigésimo?
A articulação destes objetivos, econômico, social e ambiental, não se fará milagrosamente através da boa vontade das empresas, hoje centradas no lucro a qualquer custo, ou de alguma milagrosa recuperação da capacidade de ação do Estado, ou ainda através das relativamente frágeis organizações da sociedade civil. A própria irrupção da sociedade civil organizada na arena política se deve sem dúvida ao sentimento cada vez mais generalizado de que nem as macroestruturas do poder estatal, nem as macroestruturas do poder privado, estão respondendo às necessidades prosáicas da sociedade em termos de qualidade de vida, de respeito ao meio ambiente, de geração de um clima de segurança, de preservação do espaço de liberdade e de criatividade individuais e sociais. Na elegante formulação de Claus Offe, já nos digladiamos demasiado entre os que querem todo o poder ao Estado, uma privatização generalizada com poder irrestrito às empresas, ou um poético small is beautiful generalizado, repleto de comunidades e tecnologias alternativas. O primeiro nos deu o encalacramento comunista, o segundo nos deu as tragédias sociais do liberalismo - e a própria base política da alternativa comunista - e o terceiro é ótimo se não nos levar à revivência de um tribalismo opressivo, e de qualquer modo constitui um elemento necessário, mas não suficiente, dos equilíbrios políticos da sociedade. A palavra chave, aqui, é evidentemente a articulação dos diversos instrumentos de mudança. Somos condenados a articular de maneira razoavelmente equilibrada os poderes do Estado, das empresas privadas e das organizações da sociedade civil, e a visão das soluções políticas centradas na privatização ou no estatismo constituem simplificações hoje insustentáveis.
Não é suficiente atingir os objetivos sociais assim definidos: é preciso atingí-los de maneira democrática. Em outros termos, a articulação de Estado, empresas e sociedade civil em torno dos grandes objetivos não constitui uma simples opção de eficiência técnica. Ao deixar de lado a visão da utopia acabada, e ao optar pela construção e reconstrução permanente dos objetivos sociais, optamos pelos meios democráticos de tomada de decisão como elemento central da construção dos objetivos. Não basta que uma empresa, ou o Estado, faça algo que seja bom para as populações. Trata-se de compreender que o direito de construir o próprio caminho, e não apenas o de receber coisas úteis sob forma de favor, seja do Estado ou de empresas, constitui uma parte essencial dos nossos direitos. Nenhum ator político ou econômico tem o direito de impor-me algo, sob a justificativa de que é para o meu bem, sem dar-me os instrumentos institucionais de me informar, de manifestar a minha opinião, e de participar do processo decisão. Neste sentido, inclusive, a realidade é que as formas atuais de tomada de decisão do Estado, ou das grandes empresas privadas, são extremamente semelhantes em termos de transformar o cidadão num sujeito passivo e manipulado. O eixo da cidadania desponta como uma questão essencial das transformações atuais.
O momento que vivemos é de uma formidável dominância dos interesses empresariais, que constituem a única força articulada ao nível mundial, se apropriaram de grande parte dos mecanismos de decisão dos Estados nacionais, e constroem a imagem positiva de si mesmos através do monopólio que exercem sobre os sistemas de comunicação. Durante um tempo, a multiplicidade das empresas assegurava que a influência preponderante do setor privado nas decisões políticas da sociedade mantivesse uma certa democracia, ao dispersar de certa forma o poder. Hoje, alguns mega-atores econômicos navegam como donos do planeta, os Gates, Bertelsmann, Murdoch e tantos outros, gerando um tipo de grupo social transnacional para usar a fórmula de Leon Pomer, frente ao qual resta ao comum dos mortais a frágil cidadania, com ampla impotência e desânimo políticos, ou a simples exclusão social, no caso dos cerca de 3,5 bilhões de miseráveis que compôem dois terços da população do planeta. Este poder organizado e articulado dos mega-empresários, busca apresentar-se como simples servidor do mercado: as forças do mercado, como são chamadas, são vistas como anônimas, e portanto democráticas, sujeitando a todos. Na realidade se trata de um mega poder político, que gera desequilíbrios dramáticos na economia global sem prestar contas a ninguém, pois se apresenta como sendo ninguém: é o mercado. E, naturalmente, qualquer tentativa de limitar os seus excessos, constitui um atentado ao mercado. Claramente, na articulação Estado-empresas-sociedade civil, hoje há um segmento que desequilibra completamente o processo de desenvolvimento social.
Nestas condições, não é surpreendente o rápido desgaste das formas tradicionais de política junto às populações. Nos Estados Unidos, um presidente é eleito com menos de um quarto dos votos do país, e os votos que consegue são em grande parte obtidos através de financiamentos milionários assegurados por empresas privadas, pelo chamado mercado. O tão pouco subversivo Business Week comenta que o apoio de Murdoch foi "instrumental" para manter os conservadores no poder durante duas décadas na Inglaterra. Murdoch foi eleito? O próprio fato que grande parte dos processos econômicos se tenha deslocado para a arena internacional, no quadro da chamada globalização, torna o Estado em grande parte impotente frente aos grandes movimentos mundiais de especulação financeira, de concentração de renda, de destruição ambiental. Ademais, o essencial para a sobrevivência de um governo eleito, é ficar de bem com os grandes grupos econômicos. E para isso, deve jogar o jogo destes grupos, sob pena de se ver privado dos investimentos, ou alvo de ataques financeiros especulativos e dos grandes meios mundiais de comunicação. Uma fusão recente de bancos gerou um grupo financeiro com 700 bilhões de dólares de capital. As transferências especulativas ultrapassam 1,5 trilhões de dólares por dia. Apenas uma meia dúzia de grandes países no mundo consegue ultrapassar um trilhão de dólares de produção de bens e serviços por ano. Na expressão interessante de Kurtzman, hoje é o rabo que abana o cachorro. Assim o Estado se vê cooptado, e perde a sua capacidade de exercer um contrapeso político, e a de equilibrar os objetivos econômicos, sociais e ambientais. As grandes corporações, na euforia do pós-comunismo, geraram um amplo movimento privatista, culpando o Estado por todos os males. Esta tendência vem sendo vista como perigosa para o conjunto do processo de reprodução social, já não só pela esquerda, mas também por um grupo crescente de atores sociais de um espectro político mais amplo. Com a rápida erosão da governabilidade no planeta, o risco já não é apenas para o excluidos.
Talvez a mudança mais significativa na visão dos novos rumos seja a compreensão do papel da sociedade civil organizada, ou das organizações da sociedade civil como as Nações Unidas chamam hoje esta vasta massa de ONG’s (Organizações Não-Governamentais), OBC’s (Organizações de Base Comunitária) e semelhantes. Como muitos ainda olham com descrença para as organizações da sociedade civil (OSC), é útil lembrar que nos Estados Unidos, onde é chamado de "non-profit sector", este setor emprega 15 milhões de pessoas; cerca de 80% dos americanos pertenciam a algum tipo de associação, e mais de 100 milhões de pessoas informaram ter feito algum tipo de trabalho voluntário em 1995. Em termos estritamente econômicos, estamos falando de uma contribuição para o Pib americano da ordem de 800 bilhões de dólares, só neste setor, quando o Pib total do Brasil é da ordem de 500 bilhões de dólares. O governo americano contribui com cerca de 200 bilhões de dólares por ano, assegurando um sem-número de atividades sociais, contribuindo para a solidariedade e coerência do tecido social, além da produtividade econômica. No conjunto, este setor é relativamente forte e presente nos países desenvolvidos, e fraco nos países pobres, onde a política se resume ao tradicional dueto de gabinete entre a oligarquia privada e a oligarquia estatal. Com as novas tecnologias que facilitam a conectividade, e a urbanização que favorece a organização local, abre-se um imenso espaço de modernização e democratização da gestão política, econômica e social, particularmente através de sistemas locais participativos. Para a nossa análise, o essencial é constatar que as insuficiências das mega-empresas e das formas atuais de organização do Estado, em termos de capacidade de resposta às necessidades fundamentais da sociedade, estão levando cada vez mais a própria sociedade a arregaçar as mangas e a articular as suas ações segundo caminhos novos.
Situar a discussão neste plano de articulação das forças sociais significa um avanço. Estamos acostumados, no Brasil, a situar o drama nas relações entre os tres poderes, com discussões sobre presidencialismo (mais executivo) ou parlamentarismo (mais legislativo), ou ainda sobre o controle do judiciário pelos outros poderes. A sociedade civil entra normalmente pela portinha dos partidos políticos, e busca-se a legitimidade política perdida no voto distrital, na moralização do financiamento das campanhas e assim por diante. Como as coisas não funcionam, sempre podemos alegar que o brasileiro não sabe votar. Quanto ao setor privado, disfarça o seu poder político organizado, e aparece apenas com contribuições (poderosas ainda que discretas) para as campanhas, além dos lobbies, como se chama educadamente no Brasil a corrupção sistêmica. O tripê social nos coloca em outro nível. Trata-se de reconhecer formalmente o poder político (real) das empresas, e o poder políco (necessário) da sociedade civil organizada. Trata-se de resgatar a capacidade do Estado de organizar o novo pacto social que o país precisa, reforçando-o. Trata-se de tirar as grandes empresas de dentro dos ministérios, do Congresso e do Judiciário, desprivatizando o Estado. Finalmente, trata-se de dinamizar a organização da sociedade civil para que possa exercer efetivamente o seu papel de controle do Estado, de contenção ou compensação dos abusos do setor privado, e de recuperação de um mínimo de cultura de solidariedade social sem a qual nem a economia nem a sociedade serão viáveis. Com isto o debate se desloca da discussão obsessiva sobre se será melhor o poder nas mãos das oligarquias empresariais ou das oligarquias pollíticas, para colocar o problema no nível da relação entre o poder econômico, o poder político e a sociedade civil.
Chamar o que vivemos de democracia constitui sem dúvida um ato de bondade. Como temos ao longo da nossa história longas fases de ditadura, reagimos como o pobre que foi obrigado a colocar um bode dentro do barraco: quando se tira o bode, o alívio é imenso. Só que o pobre continua pobre, e a casa continua sendo um barraco. Para passarmos da política do bode para uma política do progresso social organizado, e para assegurarmos um mínimo de equilíbrio entre Estado, empresas e sociedade civil, a sociedade precisa ser devidamente informada. Isto por sua vez implica na democratização do controle sobre os meios públicos de comunicação, a mídia. Neste sentido parece importante, em particular para a esquerda que tende a centrar a discussão nas alternativas econômicas, reconhecer a centralidade dos processos culturais e de comunicação. Os pilares tradicionais de poder das oligarquias, as armas e os recursos econômicos, tornaram-se relativamente menos importantes do que a nova possibilidade, por parte de quem controla a mídia, de entrar em cada domicílio, cada sala de espera, em cada dormitório, com a mensagem incessante sobre o que devemos pensar de cada coisa, sobre como ter sucesso correndo e dominando os outros. Orienta-se assim, em geral de forma implícita, os rumos e valores da imensa maioria da população, formando um tipo de inércia intelectual que pesará como um molusco gigantesco e informe sobre qualquer idéia nova, qualquer impulso de generosidade, qualquer pensar diferente. Passamos a querer o que se quer de nós. Hoje, muito mais importante do que discutir o controle de uma siderúrgica e os monopólios do Estado, é discutir como se reduz o monopólio sobre os meios de comunicação. Não se trata evidentemente de estatizar a mídia, substituindo um monopólio por outro. Trata-se de assegurar uma multiplicidade e riqueza de fontes diversificadas e descentralizadas de informação, na linha das redes onde a Internet já nos aponta para paradigmas renovados de organização social. A informação, a comunicação, e a transparência que ambas tornam possível, constituem os instrumentos por excelência da presença da sociedade civil no processo político, e o elemento essencial da coerência do conjunto.
A nossa visão da organização social continua centrada na pirâmide, no sistema que herdamos do vaticano ou das legiões romanas, em que um manda em dois, que por sua vez mandam em quatro e assim por diante, a complexidade crescente sendo enfrentada com a multiplicação de níveis. Sabemos que a partir de um certo número de níveis hierárquicos o topo da pirâmide passa a viver de ilusões de que alguém executa o que se decide, e a base passa a viver de ilusões de que alguém manda racionalmente no processo. Na realidade nada funciona. Fazer funcionar a saúde, que é um serviço capilar e portanto tem de chegar a cada cidadão nos quatro cantos do país, a partir de um comando centralizado em Brasilia, com dezenas de níveis e os meandros correspondentes, constitui simplesmente uma impossibilidade administrativa. Temos a oligarquia que temos não necessariamente porque o povo não sabe votar, ou porque somos mais corruptos. A complexidade, o ritmo de mudança e a diversidade de situações de uma sociedade moderna tornam a velha verticalidade romana ou prussiana inviável. A hierarquia, com a multiplicação de níveis e centralização das decisões, exclui naturalmente a base. Privado do controle da base, ou seja, da população interessada nas decisões, o sistema passa a funcionar literalmente desgovernado. Por outro lado, o fato que a população se urbanizou, formando espaços articuladas e organizáveis na base da sociedade, abre perspectivas para uma descentralização e democratização radicais das formas como nos gerimos. Em outra época, isto poderia levar a uma desarticulação do sistema político mais amplo. Hoje, os novos sistemas de informação e de comunicação permitem que o sistema seja descentralizado, e funcione em rede, substituindo em grande parte a hierarquia de mando pela coordenação horizontal. Trata-se de uma mudança de paradigma que já penetrou numa série de áreas empresariais, e constitui a filosofia de trabalho de muitas organizações da sociedade civil, enquanto dá apenas os primeiros passos na nossa visão da organização do Estado.
Uma sociedade organizada em rede, e vivendo em ambiente rico em informação, busca de forma flexível soluções institucionais sempre renovadas, evitando a solução padronizada que busca à força enquadrar situações diferentes no mesmo formato institucional. É natural a área produtiva ser organizada em função do mercado, ainda que seja essencial o controle sobre as atividades produtivas que afetam bens naturais passíveis de esgotamento e outros setores. A área das infraestruturas, em particular de energia, água, e transportes, exige forte participação estatal, pois se trata de grandes investimentos, com retorno de longo prazo, e de efeitos econômicos difusos, além de exigir planejamento para assegurar coerência de longo prazo. A área social, como educação, saúde, cultura, comunicação, esportes e outros, funciona mal com burocracia tradicional de Estado, e pior com a comercialização e burocratização privada: basta ver a catástrofe que representam as seguradoras privadas de saúde, a explosão da medicina curativa em detrimento da prevenção e outras tendências que afetam diretamente a nossa qualidade de vida. Nesta área, não é nem a burocracia estatal, nem o lucro privado que podem assegurar o funcionamento adequado, mas uma forte presença da comunidade organizada. O problema, portanto, não consiste em optar pela estatização ou pela privatização, segundo as opções ideológicas, mas em construir as articulações adequadas entre Estado, empresas e comunidade, por um lado, e os diversos níveis de Estado -- poder central, estadual e municipal -- por outro. A isso se acrescenta o fato que não basta privatizar ou estatizar, pois um hospital pode ser de propriedade privada, com gestão de uma organização comunitária sem fins lucrativos, controle de um conselho de cidadãos e com regulamentação do governo do Estado. Ou pode ser um hospital do Estado, gerido por um grupo privado, sob controle de um conselho municipal. Este tipo de articulações nem sempre cabe nas nossas simplificações ideológicas, mas é seguramente neste sentido que teremos de evoluir, para resgatar a utilidade social dos nossos esforços. Se há um potencial que as novas tecnologias nos oferecem, é justamente a possibilidade de uma gestão muito mais flexível e adaptada a condições diferenciadas. Estamos caminhando para uma articulação de mecanismos diversificados de regulação.
Se as soluções são diversificadas, e a realidade moderna mais complexa, além de mais flúida (pelo próprio ritmo das transformações que vivemos), em algum nível as diferentes iniciativas devem se articular em função do que se tem chamado de qualidade de vida, objetivo que constitui em última instância a razão de todos esses esforços. A cidade que, quer o queiramos ou não, se transformou na célula básica da estrutura institucional e da nossa vida social, precisa assumir a sua função de integradora das diversas iniciativas, sejam privadas, estatais ou de organizações da sociedade civil. Não tem sentido o Estado arborizar as ruas, embelezar a cidade e desassorear os rios enquanto as indústrias jogam resíduos quimícos e as incorporadoras ocupam várzeas e desmatam encostas. Iniciativas que partem de instituições que obedecem a objetivos totalmente diferentes, não contribuirão para a construção sinérgica de objetivos sociais, a não ser que existam instituições que permitam construir as convergências e as sinergias. Uma empresa privada na área produtiva atinge, ainda que a nível microeconômico, uma eficiência grande, porque se não for eficiente fecha: de certa forma, tem de se adaptar a um controle externo que é a sanção do lucro. Uma cidade, por sua vez, tem de buscar um mínimo de eficiência, que poderíamos qualificar de produtividade social, para evitar, por exemplo, o absurdo de uma cidade como São Paulo se ver paralizada por excesso de meios de transporte. Chegar à modernidade para andar numa média de 14 quilómetros/hora, a bordo de máquinas que custam dezenas de milhares de dólares e foram construidas para andar a mais de 150 por hora, isto quando todos conhecem as soluções técnicas adequadas para resolver o problema, nos obriga a repensar a forma como nos gerimos. Pondo de lado monstros do tamanho de São Paulo, e que constituem uma realidade a parte, o fato é que a cidade constitui a unidade básica onde a economia privada, as políticas sociais do Estado em seus diversos níveis ou da sociedade civil, os objetivos ambientais, as redes de resgate da pobreza crítica, políticas integradas de emprego e outros objetivos podem se articular em torno a uma proposta que tenha pé e cabeça. E entendemos cada vez melhor que, à medida que o mundo entra na órbita surrealista da chamada economia global, precisamos reforçar a âncora que temos debaixo dos nossos pés.
A África do Sul, país que acumulou problemas econômicos e sociais extremamente parecidos com os nossos, vem ensaiando uma experiência interessante. O dinâmica aparece com clareza no funcionamento do principal fórum de negociação de consensos do país, o National Economic Devemopment and Labor Council, o Nedlac. O Conselho reune os grandes do movimento sindical, das empresas, finanças, movimento comunitário, para discutir soluções concretas para problemas chave do país. Uma vez que se chegou a um acordo e a compromissos formais por parte dos atores que efetivamente movem a máquina econômica e social do país, as decisões são enviadas ao congresso para assegurar a legislação correspondente. De certa forma, em vez de fazer a política através de terceiros, as decisões são tomadas diretamente com os interessados, e os parlamentares, cuja função é legislar, legislam. O que o governo Mandela está fazendo, na realidade, é enriquecer o tecido de controle da sociedade civil sobre o Estado e a própria área econômica, ultrapassando a absurda alternativa que nos é oferecida de sermos controlados por monopólios públicos ou monopólios privados.
Ove Pedersen nos traz os estudos do que qualifica de "economia negociada" no sistema que emerge nos paises escandinavos: "O sistema de cooperação política generalizada é muito mais do que um instrumento de tomada de decisão e de coordenação de um conjunto policêntrico e de vários níveis de instituições. O sistema no seu conjunto pode ser visto como um prerequisito institucional para uma economia negociada. Uma economia negociada, portanto, pode ser definida como um instrumento de estruturação da sociedade onde uma parte essencial da alocação dos recursos é conduzida através de um sistema generalizado de cooperação política entre centros independentes de tomada de decisão no Estado, nas organizações e nas instituições financeiras". Nós já tivemos alguns ensaios, com as câmaras setoriais, e temos excelentes resultados já institucionalizados como na prefeitura de Porto Alegre e outras, com os orçamentos participativos. As resistências, dada a composição e atrazo das oligarquias privadas e estatais no Brasil, são compreensíveis. No entanto, está gradualmente emergindo uma nova cultura político-administrativa, uma nova compreensão de cidadania e da própria função da política, que provavelmente pouco terá a ver com os modelos puros de visão estatista ou liberal. Não se trata mais de "vitória" de um sobre o outro, e sim do surgimento de uma resultante que tira um pouco de cada um, mas constrói algo novo. E a realidade é que a área das grandes empresas privadas, de tanto se proclamar vitoriosa, frente a uma situação cada vez mais caótica em termos econômicos, sociais e ambientais, arrisca-se, se não participar ativamente de uma construção política mais equilibrada, a ser a primeira a sofrer a ressaca do processo.
Esta visão implica por sua vez revermos os conceitos que utilizamos para definir os atores sociais. Curto ou longo, o nosso século foi marcado por uma visão messiânica de classes redentoras, burguesa na visão capitalista, proletária na visão socialista. Como a condição de cada classe depende da sua inserção nos processos produtivos, tudo se centrava de certa maneira na oposição entre quem é dono da fábrica, e quem a faz produzir, quem tem lucro, e quem ganha salário. A centralidade da fábrica nos processos produtivos está se esvanecendo com extrema rapidez, seguindo nisto a transformação do peso específico da agricultura, com algumas décadas de distância. E a complexidade dos subsistemas econômicos que se formaram na economia realmente existente é tal, que falar em macro-categorias deste tipo se torna demasiado simplificador. A forma de inserção nos processos produtivos não deixa de ser importante para informar as posições políticas, mas não tem mais a centralidade que teve. Cruzam-se hoje com mais riqueza e maior complexidade, divisões de classe tradicionais com atitudes que resultam de corporativismos profissionais mais ou menos estreitos, com raízes regionais (pertencer a um bairro, a uma comunidade, a uma cidade, a uma minoria linguística, ou outras influências que resultam já não do espaço de trabalho, mas do espaço de residência, no quadro do que John Friedmann chamou de life-space), e outros elementos de definição ideológica, que nos levam frequentmente à incômoda sensação de ser insuficiente nos definirmos como esquerda ou direita, pois as diversas instâncias de definição ideológica se cruzam de diversas maneiras. E tende a emergir com força, mais uma vez, o conceito de cidadania, de universalidade de direitos humanos articulada com expressões individuais ou sociais diferenciadas.
Estes novos cortes nos obrigam naturalmente a um exercício ambíguo de definição dos grupos com quem nos identificamos. Ao falarmos de uma sociedade que deverá se gerir articulando cruzamentos mais complexos de inserção social, atores sociais diferenciados e direitos universais, ficamos racionalmente convencidos da nova complexidade. No entanto, quando abrimos o jornal e vemos um retrato de Collor, o sorriso estilo ACM ou Maluf, sabemos perfeitamente onde não estamos, a visão de mundo com a qual não nos identificamos. O mundo, de certa forma, se torna novamente simples. Onde passa esta fronteira que não representa rigorosamente uma compreensão racional de classes diferenciadas, mas que corresponde rigorosamente a uma gestalt intuitiva que nos diz que sabemos de que lado estamos? Jordi Borja, parece-me, define de maneira bastante clara este divisor de águas: há políticos, empresários, jornalistas, chefes das mais variadas igrejas, animadores de programas de televisão, juristas e outros atores cuja força política resulta de um apelo organizado ao que joga um ser humano contra outro, como a competição desenfreada, o racismo, a justiça exercida como vingança, a xenofobia, o machismo, a arrogância da riqueza, a gozação e o desprezo pelo mais frágil e assim por diante; e há projetos políticos que buscam valorizar o que o ser humano tem de mais generoso, buscando o seu discurso na solidariedade, na tolerância, no respeito e valorização das diferenças, na justiça social. Em geral, verdade seja dita, a primeira opção, ao "jogar" com o que o ser humano tem de mais frágil, tende a ser a maneira mais fácil de fazer política, de articular forças sociais. As pessoas podem se sentir valorizadas ao ver valorizado o que têm de mais escuro. É a política, a economia, a mídia, a cultura pelo lado do estômago. As novas tecnologias -- veja-se o sucesso do bispo Macedo, de Le Pen, de Gingritch, do próprio Collor -- tornam estas propostas extremamente poderosoas.
É impressionante como, apesar da sofisticação da nossa capacidade intelectual, conseguimos simplificar as nossas posições políticas. O cínico valoriza o cinismo, e explica que o ser humano não presta, passando assim um verniz de respeitabilidade filosófica na sua sem-vergonhice. O idealista busca frequentemente uma essência de ser humano decente, com recaídas frequentes para a mais completa desilusão. A realidade prosáica é que há formas de organização social que valorizam as dimensões positivas do homem, e outras, como vimos inclusive na geração dos fascismos e das ditaduras militares, que fazem aflorar a besta e nela buscam a sua força política.
Lí uma vez no Sunday Times um artigo cheio de falsidades aberrantes sobre um país africano, que por acaso conheço bem: fiquei impressionado com o número de pessoas extasiadas, que repetiam com satisfação o tradicional "é isso mesmo", sem se deter nas óbvias falsidades do artigo. Confirmar as pessoas nos seus preconceitos faz um jornalista ser visto como bom jornalista, muito mais do que colocar no papel as problemáticas realidades. O essencial, para nós, é que este divisor de águas pode ser complexo, atravessar e dividir sindicatos, partidos, associações, redações de jornais, e em todo caso não se resume no tradicional corte entre esquerda e direita, entre uma e outra classe, e não se esgota na forma de inserção no processo produtivo. E compreender esta divisão tornou-se essencial, na medida em que questões que vão desde a sobrevivência do planeta até o prosáico sentimento de felicidade no nosso cotidiano, exigem uma nova ética social. Esta, por sua vez, não poderá materializar-se sem uma aproximação dos atores sociais capazes de sustentá-la. A reinvenção de um humanismo social, que já foi apresentada como manifestação de um um idealismo impotente, já constitui uma busca poderosa.
O corte ético se materializa, do lado da sociedade civil, no amplo sentimento de indignação e impotência que sentimos neste fim de século. Não se trata de suspiros moralistas, mas de uma perplexidade, ou indefinição, em termos de como enfrentar os sistemas extremamente sofisticados de corrupção que dominam espaços políticos, econômicos, judiciários, e da própria mídia que sobre êles nos informa. Todos temos este sentimento da existência de um amplo espaço viscoso e escuro nos núcleos de poder, privados e públicos, espaço que se cruza sem dúvida com a direita de forma geral, mas que não coincide com interesses organizados das chamadas classes produtoras.
Em outros termos, é natural que haja interesses diferenciados ou contraditórios nos diversos pólos da sociedade. Estamos aprendendo que trabalhadores, empresários, pequenos produtores e outros têm interesses que divergem e coincidem segundo as questões, e é legítimo, quando não necessário, articulá-los. Mas não é isto que está em questão neste ponto. O que está em questão é uma forma mafiosa de articulação de interesses, que inclusive pouco tem a ver com capitalismo ou com mercado, onde qualquer articulação ou negociação se torna extremamente difícil, impedindo a já tão penosa construção de uma outra cultura social e política no país.
Este tema é tratado de maneira eminentemente discreta no Brasil. A realidade é que se trata de uma corrupção sistêmica, que envolve de maneira ampla as cúpulas do poder político e do poder empresarial. Não nos referimos aqui a alguns corruptos que atrapalhariam o andamento normal da política. Referimo-nos à própria atividade política e empresarial, organizada de forma a servir ao desvio e apropriação de recursos públicos, recursos que serão por sua vez utilizados para financiar mais campanhas e para alavancar o acesso a novos espaços de poder. Trata-se da força política de um sistema que, por exemplo, sobrefatura de maneira escandalosa grandes obras, originando lucros fabulosos para as empreiteiras, que por sua vez financiam campanhas milionárias dos candidatos corruptos, que irão votar novas obras sobrefaturadas. Trata-se de empréstimos a mega-proprietários rurais, que serão depois transformados em subsídios milionários. Trata-se da chantagem do banqueiro que realiza operações bilionárias com amigos, e espera tranquilamente o resgate que virá do governo, pois um país não pode deixar o sistema quebrar, sobretudo porque os banqueiros fazem estas operações com o dinheiro da população, e não com dinheiro próprio. E se trata evidentemente da escandalosa repartição do acesso às concessões de rádios e TVs, permitindo a estes mesmos políticos e empresários apresentar diariamente o seu ponto de vista a uma população completamente desorientada, que ainda será acusada de não saber votar.
Este ponto é sumamente importante no Brasil, pois uma coisa é debater sobre se a visão neo-liberal é ou não adequada para o país; outra coisa é quando os argumentos políticos são um mero engodo de um sistema permanente de organização das decisões de governo ou de empresas em torno a interesses privados. Não há condições de se organizar e articular as diferenças políticas, nem para institucionalizar as práticas de governo, quando as diferenças sequer chegaram ao nível político, e quando o espaço político é visto pelos grupos dominantes como instrumento de promoção dos seus próprios interesses. Vemos diariamente nos jornais os bilhões que isto nos custa. Mais grave do que o custo direto dos recursos desviados, no entanto, é a corrupção dos processos políticos e a corrosão da legimidade democrática que se geram no processo.
Trata-se, no sentido técnico do termo, de um sistema mafioso, onde a solidariedade e a co-responsabilidade entre corruptos e corruptores geram redes de poder que se articulam por entre as hierarquias do legislativo, executivo e judiciário, desarticulando qualquer capacidade formal de governo. Cidades, Estados e amplos segmentos da União são geridos através de sólidas articulações de empreiteiras, políticos corruptos, especuladores imobiliários e meios de comunicação de apoio, além de um judiciário escandalosamente conivente. A rede de solidariedade nas atividades ilegais gera naturalmente um comportamento corporativo e assegura o silêncio. É importante lembrar que é praticamente inevitável, em qualquer sociedade, a existência do banditismo político ocasional, com peso marginal no conjunto. Este tipo de atividade termina por ser detectado e denunciado, na medida em que envolve minorias que projudicam o conjunto dos profissionais de uma instituição. Quando a corrupção se torna sistêmica, são as minorias profissionais que se vêm cooptadas ou expelidas pela máfia. Como esperar que os vereadores da cidade de São Paulo, por exemplo, julguem atividades criminosas dos seus membros quando a maioria é criminosa?
É importante lembrar que apesar de belos livros como Os Donos do Poder e outros ensaios sociológicos sobre o caráter geral da classe dominante brasileira, não temos nenhum estudo sobre a estrutura familiar concreta do macro-poder político-econômico do país, nem sobre as articulações que o renovam e reproduzem. No Brasil realmente existente, são as mesmas estruturas paralelas de poder, quando não as mesmas famílias, que nos governaram com a fachada UDN nos anos 50, ARENA nos tempos da ditadura, e hoje os diversos grupos nas órbitas malufista e aceemista. Perpetuam-se no poder real, ao ameaçar o empresariado com a absurda mas funcional chantagem de uma possibilidade de governo progressista, com a segurança oferecida aos donos de terra de que são os únicos com truculência suficiente para protegê-los da reforma agrária, jogando com o eterno pânico das elites de que um dia as massas irão cobrar a opressão e as humiliações vividas. Assim a própria miséria gerada no país, por estas elites, mantem em torno dela amplas faixas moderadas, e impede que se abra espaço para uma visão renovadora.
Esta aliança de interesses empresariais moderados com uma estrutura mafiosa de poder está na base do fato de sermos hoje o país com a distribuição de renda mais injusta do planeta, de não conseguirmos alimentar o povo numa terra tão bem dotada de recursos naturais, de sermos balançados pelos esquemas de especulação financeira como qualquer república de banana. A verdade é que a estrutura mafiosa de poder, e a corrupão sistêmica que a sustenta, tornam inviável qualquer esforço de reforma do Estado, de modernização institucional, de evolução para uma sociedade civilizada.
Aqui, como em outras áreas, necessitamos de uma forte dose de realismo. Ainda que tenhamos uma democracia formal, somos dominados por sistemas corruptos que de democráticos têm muito pouco. De certa forma, antes de discutirmos das diversas facetas do liberalismo, da social-democracia ou do socialismo, temos pela frente a tarefa mais árdua de resgatar a própria capacidade de construir opções políticas. Esta tarefa exige aparticipação de um leque político bastante mais amplo do que o das esquerdas do país.
A esta dificuldade interna se soma a mudança do contexto internacional. Por bonita que seja, a visão que atricula Estado, empresas e sociedade civil, buscando uma sociedade econômicamente viável, socialmente justa e ambientalmente sustentável, se choca com o fato evidente da economia ter-se tornado em grande parte global, enquanto os instrumentos políticos continuam nacionais. E os governos, conforme vimos, ainda que tenham sido eleitos por partidos de orientações diferentes, têm hoje como proposta central alinhar-se nas exigências do sistema financeiro mundial, pela simples necessidade de sobreviver, de não se verem quebrados pelo sistema global. É estranho ver a que ponto está confusa a divisão entre pessoas e atores sociais que defendem posições mais nacionalistas e os que se extasiam com a globalização. Aqui também encontram-se na defesa de argumentos semelhantes pessoas que nunca sentariam uma ao lado da outra. E não se pode deixar de lembrar este paradoxo de uma esquerda que foi acusada de internacionalista, materialista, ateista, contrária aos valores morais e familiares, e que vê estes pretensos objetivos sendo vigorosamente construidos pelas forças econômicas e culturais dominantes, em nome dos ideais inversos. Anthony Giddens mostra bem como este paradoxo atinge o universo conservador: os valores tradicionais, a família, o trabalho, a nação, a propriedade, a ética social estavam todas, na visão conservadora, ancoradas na visão da liberdade empresarial e no mercado. Hoje, é a globalização que corrói a nação, é o mercado que acaba com a propriedade e a poupança das pessoas, é a mídia que desarticula os valores, é o gigantismo empresarial capitalista que liquida o espaço de iniciativa individual e assim por diante. Desta forma, a coerência da visão liberal se desarticula, e gera nestas esferas políticas uma crescente perplexidade. É muito impressionante ver o antigo primeiro-ministro da França, Raymond Barre, um dos mais tradicionais professores de economia da Sorbonne e expoente da teoria do liberalismo econômico, se permitir a seguinte avaliação: "Já não se pode mais, decididamente, deixar o mundo nas mãos de um bando de irresponsáveis de trinta anos que só pensam em fazer dinheiro".
A definição do próprio espaço de construção da economia socialmente e ambientalmente viável torna-se assim um problema chave. Como construir projetos políticos nacionais, regionais e locais, dentro de um quadro econômico e político manejado por atores que trabalham em nível global, divorciados dos controles sociais e políticos? Como promover as transformações necessárias com uma estrutura de poder que articula grandes empresas e esferas políticas e judiciais num universo de corrupção sistêmica? Ao mesmo tempo que os objetivos - ambientais, sociais e econômicos - se tornam mais claros, portanto, torna-se mais clara a fragilidade de sua construção. Para os países desenvolvidos, o problema coloca-se de maneira atenuada, na medida em que auferem as vantagens econômicas de uma divisão mundial desequilibrada. Nos paises ditos em desenvolvimento, no entanto, acumula-se uma dupla fragilidade: são demasiado fracos em termos econômicos para influir de alguma maneira sobre os rumos da economia global, ou sequer para ter um pouco de espaço de manobra; por outro lado, tratando-se de oligarquias privilegiadas num mar de miséria, a legitimidade política interna é limitada, e os próprios interesses das oligaraquias vinculam-nas mais ao espaço global do que ao espaço nacional. O elemento essencial das limitações não se situa portanto em pessoas, mas numa situação onde os governos não podem enfrentar simultaneamente a tensão interna -- diretamente vinculada ao apartheid social em que se baseia o seu poder -- e os enfrentamentos externos indispensáveis para uma negociação firme do seu espaço político na economia global, onde a coesão interna da nação e a legitimidade de um governo constituem fatores fundamentais. Chega-se assim a uma situação onde a única forma de um governo recuperar a capacidade de manobra dentro da economia global, é enfrentar efetivamente o apartheid social interno. Contrariamente aos dogmas liberais, hoje, fazer boa política social significa fazer boa política econômica.
Os problemas se avolumaram de tal forma, neste final de século, que uma sólida opção (e não mais retórica) por um equilibramento social pode inclusive ampliar a hoje cada vez mais importante legitimidade internacional. Do processo econômico, esperamos que gere bens e serviços, ou seja, produto, mas também renda para os diversos participantes, para que possam comprá-lo, e trabalho para todos, porque sem trabalho não há renda nem cidadania. No centro do debate político continua a fragilidade central do capitalismo: é um ótimo organizador de produção, particularmente se a empresa é livre de se organizar sem entraves burocráticos, mas é um péssimo distribuidor de renda, e um cada vez mais medíocre gerador de empregos. Como o ciclo de reprodução envolve tanto a produção como a distribuição, sob pena de o conjunto não funcionar, o capitalismo é estruturalmente incompleto. Abolir a organização empresarial consiste em jogar o bebê junto com a água do banho. Não enfrentar de forma institucionalmente organizada o problema da renda e do emprego é uma irresponsabilidade. Discursos cosméticos a parte, a realidade é que estamos atingindo os limites econômicos e políticos da estabilidade social. O Banco Mundial classifica cerca de 3,5 bilhões de habitantes deste planeta, cerca de dois terços do total, na faixa de renda média de 350 dólares per capita. Mais de 150 milhões de crianças passam fome no mundo. Os analfabetas são mais de 800 milhões, e o número cresce. O mundo produz hoje mais de 4 mil dólares de bens e serviços por habitante, o suficiente para todos viverem com conforto e dignidade, houvesse um mínimo de bom senso nos processos distributivos. Frente aos imensos meios econômicos e tecnológicos de que dispomos, esta situação se reveste do mesmo absurdo e anacronismo histórico que a escravidão e o colonialismo. Um relatório das Nações Unidas (1997) resume bem a questão: "No longer inevitable, poverty should be relegated to history - along with slavery, colonialism and nuclear warfare". O relatório caracteriza de "obscena" a riqueza de 447 pessoas no mundo, que têm uma fortuna pessoal maior do que a renda da metade mais pobre da população mundial. A compreensão deste drama está deixando de ser privilégio das esquerdas, e está aproximando gente das mais variadas áreas sociais e políticas.
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