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Teologia da ressocialização: uma pedagogia a partir dos encarcerados (página 2)


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Procuraremos assinalar a procedência da Teologia da ressocialização, ao entendermos a relação de Deus com o homem visto nesta origem, a partir da vida concreta dos marginalizados. Os mesmos reivindicam uma Teologia de vida, em que o homem é visto como um ser multi-dimensionado (filosófico, científico, antropológico e teológico), que tem a necessidade de ser ressocializado. Assim sendo, a teologia, como um discurso sobre Deus relacionado à realidade antropológica, deve ter a sua origem na vida humana e de forma palpável.

No segundo capítulo, responderemos o porquê da teologia, entendendo-a como uma forma de clamar por uma ressocialização a partir da Teologia.

Apresentaremos um "clamor surdo" dos encarcerados, os quais partiram da desesperança e alienação de si mesmos. Ressaltamos o objetivo deste clamor, que tem a "teleologia" de chamar a atenção, não mais dessa sociedade marginalizante, mas a de Deus para salvá-los da criminalização em que são hipocritamente inseridos. Diante deste clamor, passaremos para a resposta divina através da presença eclesial. Tal presença se consolidou com a implantação dentro do presídio um curso superior, voltado para os encarcerados possibilitando a elaboração da presente Teologia da ressocialização e a partir do contato com Deus, se viu a necessidade de um discurso desde o chão social dos encarcerados.

Teremos a chamada de Jesus aos encarcerados, para caminhar com Ele e estes o seguem. Neste sentido, esse "chamado" consolidou-se a partir do começo do estudo sobre a comunicação divina representada pela Teologia. Demonstraremos que Deus tem uma palavra para a sociedade, a partir dos encarcerados. Os menos "dignos" escutam e acolhem a mensagem de Jesus, sendo porta-vozes deste evangelho. Conheceremos a relação de Jesus com os aprisionados, enquanto pessoas á margem da lei e da sociedade. Os encarcerados, ao formarem um dos grupos excluídos da sociedade, tornam-se como "lócus theologicus" para a solidariedade. A práxis de Jesus demonstra que se relaciona de modo diferente com as pessoas, de acordo com sua condição, sendo compassivo com os excluídos. Jesus tem preferência por aqueles condenados a uma situação de escória e de lixo humano.

Para tanto, Deus tem uma relação de perdão com as pessoas aprisionadas, diferente daquela que tem com essa sociedade desumanizante (que não perdoa).

A Teologia da ressocialização é apresentada como uma boa nova de salvação para os encarcerados. Nisso reconheça-se que Deus tem uma palavra de salvação para quem está em situação de privação de liberdade. Uma palavra de amor, compreensão, perdão, uma palavra embutida na Teologia da volta á casa do pai.

No último capítulo, a teologia da ressocialização foi proposta como um reencontro dos encarcerados com o Deus dos marginalizados. Nesse aspecto, a TDR foi vista como um sinal de esperança para os aprisionados.

Faremos uma releitura e reinterpretação da Teologia da libertação a partir da perspectiva ressocializadora do homem aprisionado. Essa necessidade impulsiona os encarcerados a buscarem o apoio na Teologia para denunciar a incapacidade das autoridades de recuperarem os mesmos. Essa leitura também é profética, pois com isto, sonha-se com o rompimento das barreiras erguidas contra presidiários e egressos. Pretendemos apresentar a Teologia da ressocialização como um saber que ensina às pessoas em privação de liberdade a não serem reflexos, mas reflexões da realidade em que vivem, comprovando que podem ser sujeitos ao invés de vítimas. A Teologia da ressocialização (TDR), com a ajuda de reflexão, combate os reflexos nefastos da criminalização dos pobres, reiterando o papel dos mesmos como sujeitos ativos da própria transformação.

Esta também sinaliza os pontos revelados na palavra de Deus, tais como a verdadeira liberdade proposta aos que se afastaram da casa do pai. Trataremos do reencontro entre os marginalizados e Deus, em que estes o reconhecem como seu Deus. A partir deste memorável encontro, as pessoas encarceradas são libertas da escuridão carcerária, da qual eram submetidas. Através da TDR, cintilou uma luz na escuridão do presídio, configurando-se como lugar Teológico. O lugar outrora reconhecido como tétrico, tornou-se o centro de reabilitação com apoio da Teologia, ressocializando á luz da fé.

Abordaremos a questão da liberdade dos egressos.. As pessoas não são livres simplesmente porque ganham a liberdade, mas quando às mesmas são dadas as oportunidades necessárias para lograrem a sua reinserção social. Aqui serão apresentados argumentos que mostram ser alienante a liberdade dos ex-presidiários, quando não são ressocializados e reincluídos socialmente. Isto implica dizer que continuam presos a preconceitos e discriminações, embora em liberdade através do alvará de soltura.

CAPÍTULO 1

SITUAÇAO ATUAL DAS PESSOAS EM PRIVAÇAO DE LIBERDADE

"É mais fácil desintegrar um átomo, do que desfazer um preconceito."

Albert Einstein

A realidade em que estão inseridas as pessoas em privação de liberdade nos dias de hoje, é um verdadeiro "caos". Os problemas estruturais são patentes e colossais, que vão desde a superlotação nas prisões à falta de um programa de ressocialização para tais pessoas. Todo este "caos" em que está envolto o sistema carcerário como um todo reflete na sociedade de forma muito negativa, transparecendo uma idéia de que, se a coisa está assim, é porque os presos são os únicos responsáveis por isso. A imagem dos encarcerados (as) hoje está bastante comprometida devido ao comportamento reprovável por parte de alguns por não terem sido capazes de abandonar a "vida bandida" que levam. Mas isso não representa a verdade para com a maioria dos que estão nas prisões ou egressos das mesmas. O maior problema para uma saída de tal impasse ainda é o preconceito da sociedade em geral para com estas pessoas. Também há o fato de se generalizar tudo. Se um ex-presidiário volta a cometer crimes, então todos os outros voltarão a fazer a mesma coisa. Se isto fosse a verdade, então não restaria mais nada a fazer. Isto não pode continuar sendo tratado desta forma. É preciso acreditar nas pessoas, sejam elas quem for, inclusive as que estão em privação de liberdade. Há pessoas em nossa sociedade tão presas quanto àquelas cercadas por grades e muralhas. Só que as que estão nos presídios, em sua maioria, não estão mais aprisionadas pelo preconceito, pela mágoa, pelo ódio, por conceitos absolutistas ou pela discriminação.

1.1 Evento "fundante" da Criminalidade

Devido ao modo de produção capitalista, neo-liberalista e suas lógicas de mercado que valoriza o "ter" em detrimento do "ser", temos visto um grande índice de inversão de valores e a cultura do "consumismo", proporcionado pelo técnico-cientificismo de nossos dias que têm levado muitos à criminalidade. A respeito de tal consumismo, afirma Agostini.:

A voracidade do "ter", capitalizado, aparece como a tentação constante deste sistema. Quem conta, na verdade, são os que conseguem competir e sobreviver. Os demais, excluídos do sistema são entregues à própria sorte, sacrificados. E a natureza, por sua vez, é sugada ao máximo, numa visão utilitarista, lucrativa e de acúmulo. Isto levou a uma "lógica" da depredação, apontando para a existência de um desenvolvimento insustentável. (AGOSTINI, 2001, p. 93).

O homem quer "ter" para poder pertencer à sociedade consumista, que exclui as pessoas que não têm e, na ânsia de se sentir aceitas e acolhidas, muitas delas têm se enveredado no caminho "tortuoso" da criminalidade. É fato notório que quanto mais acentuada for a desigualdade social e a má distribuição de renda, maior será o índice de criminalidade. Se há criminalidade, é porque existe quem dela se beneficia, fazendo com que a mesma cresça de forma assustadora para manter seus lucros. A taxa de criminalidade de um país pode indicar o quanto há de desigualdades sociais ou mesmo quanto um povo é manipulado pela mídia com a cultura desenfreada do consumismo. Será sempre um erro crasso pensar que a criminalidade será efetivamente vencida só com medidas coercitivas, sem o combate ferrenho de suas causas tais como: a falta de educação, de empregos, de moradia, e a desumanização nos presídios, dentre outras. É óbvio que estas coisas são fatores do aumento da criminalidade no Brasil sem, no entanto, esquecer o possível motivo de sua manutenção. Sendo assim, parafraseando o filósofo grego Epicuro, dizemos:

Ou o Estado quer eliminar a criminalidade, mas não pode; ou pode, mas não quer fazê-lo; ou não pode e nem quer fazê-lo; ou pode e quer eliminá-la. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, não ama os seus cidadãos; se não quer e nem pode, além de não ser um governo bom, é impotente; se pode e quer – e esta é a única alternativa que, como governo, lhe diz respeito – de onde vem, então, a criminalidade e por que não a elimina de uma vez por todas? É porque é de interesse do mesmo a sua permanência. (KOSUBEK) 2007, p. 19. Grifo nosso.

Essa cultura tem se difundido através da mídia que, insinua, por meio de uma propaganda enganosa e criminosa em que só seremos felizes quando consumirmos, que o amor que temos por nossas famílias só será completo e provado quando dermos presentes aos mesmos, "incitando", desse modo, a criminalidade pelo fato de quem não tem, quer ter de qualquer forma!? Isto suscita a seguinte indagação: E por que as pessoas não têm? Por não terem nem trabalho, nem instrução, nem profissão etc., garantidos pela Constituição para sua digna subsistência.

A respeito da violência, Aguiar (2006, p. 34) disse que: "[...] trata-se também de uma violência silenciosa, porém perversa, que é cometida historicamente contra os mais pobres deste país: a negação dos direitos mais elementares como saúde, educação, trabalho e segurança". Em segundo lugar, a outra face da realidade criminal diz respeito à indagação que se suscita perante a sua existência: Qual é a sua finalidade (não-erradicação)? A quem interessa o mantimento deste status quo? Se não houvesse a violência, não existiria a criminalidade e, consequentemente, não haveria a necessidade de ressocializar o homem para si mesmo, livrando-o das prisões internas (mágoas, ódios, conceitos absolutistas, preconceitos e discriminações) e das prisões físicas (presídios, penitenciárias etc.). A universalidade da violência e da criminalidade caracterizou-se quando se verificou que o poder público (que deveria garantir a não-violência) se alimenta das mesmas, ficando, pois, admitido que a violência não é só a realidade dos pobres e marginalizados mas também a dos "intocáveis", representados pelos ricos, poderosos, influentes e políticos. Estes são os únicos interessados na criminalidade que impera na sociedade, uma vez que lucram da situação dramática gerada pela violência. A intencionalidade da não-erradicação da criminalidade evidencia-se pela falta de interesse das pessoas pertencentes aos grupos acima citados, pois se assim acontecesse (a erradicação da criminalidade), faltariam os argumentos presentes nos discursos eleitoreiros dos politiqueiros que, de forma assaz, enchem os eleitores de falsas promessas de mudanças radicais (durante a campanha, segundo tais promessas, temos o melhor bairro, a melhor cidade, o melhor estado, o melhor país... etc.) a serem cumpridas quando forem eleitos. O mesmo é igualmente válido para o Aparelho Coercitivo do Estado (ACE)[1], que também praticam crimes, embora exerçam as funções de "defensores" da sociedade. Desse modo, torna-se flagrante o pouco ou quase nenhum interesse quanto à questão da ressocialização de pessoas em privação de liberdade.

Se o intento da ressocialização não visar esta consciência, não haverá, jamais, a verdadeira ressocialização. Vale ressaltar que não se pode dizer que a mesma não se aplique também a qualquer pessoa que venha a ter contato com os reeducandos, por exemplo, o corpo técnico e os agentes prisionais. Notamos que por serem pessoas de carne e osso e em constante contato com esta realidade estressante (ambiente carcerário), acabam também se relacionando burocraticamente com os internos, "coisificando-os" e "reificando-os", sem falar na subseqüente desumanização que tal atitude acarreta tanto para eles mesmos como para os internos. Assim, se configura o problema relacional bem como o institucional que temos visto nos presídios. Por este motivo, a nosso ver, o corpo técnico e os agentes prisionais, além de suas formações específicas que os habilitam a exercerem suas funções nos estabelecimentos prisionais, devem ser também humanizados e serem pessoas que tenham suas inteligências emocionais em ordem, a fim de poderem lidar com seres humanos mais problemáticos (as pessoas encarceradas). Sem esta preocupação humanística, é quase impossível se falar em ressocialização. Somente é humanista a sociedade em que os seus membros fundam seus relacionamentos em amor. Somente pelo amor é que se realiza a justiça.

1.2 Decadência "tri-crática"

Os "três poderes" (Legislativo, Judiciário e Executivo), são iguais ao "abominável monstro de três cabeças" epitetados pela estupidez, pelo medo e pela cobiça: a estupidez é o Legislativo quando olha somente para si, legislando para os seus próprios interesses e para os da minoria dominante, ao invés do interesse geral e do bem-comum; o medo é notadamente claro quando o Judiciário, ao lidar com políticos corruptos e/ou pessoas influentes do seu próprio quadro, mostra-se fraco para com os "poderosos", mas absurdamente forte em relação aos fracos. "O Judiciário só prende e julga os pobres e os negros, pois os que têm poder aquisitivo dificilmente são apenados". (GONDIM, 2003, 89). No que tange ao ensino, sabe-se que a população negra é a que menos tem essa inserção educacional, e possuidora da maior incidência de analfabetismo no país. Um estudo realizado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) aponta um índice de educação entre negros e brancos revelando essa disparidade, ou seja, para os negros, o tempo médio de estudo é de 3,3 anos; a dos pardos 3,6 anos, enquanto que os brancos apresentam um número superior de 5,9 anos de estudos em média.

"Comparando a margem de analfabetismo, a PNAD (CAUSA OPERÁRIA, 2004) indicou um índice de 36% entre a população negra e parda, e, entre os brancos, somente 18%".

Quando, outrossim, se fala em violência, o negro corre maior risco de morrer assassinado. Segundo um estudo realizado pela universidade Cândido Mendes no Rio de Janeiro, o risco de assassinato para os negros é de 87%, maior em relação ao branco. Outra pesquisa realizada pela mesma instituição acadêmica sinaliza que "o motivo da alta taxa de vítimas negras se dá pelo fato delas morarem em sua grande maioria, em locais considerados de risco, ou seja, bairros operários isolados dos centros comerciais e industriais (como as periferias) não havendo qualidade de vida, o que resulta no aumento da violência, um dos principais fatores da falta de desenvolvimento destas regiões".

Em outro dado revelado pela pesquisa, a violência institucional figura como fautora dessa situação, segundo a seguinte colocação: "um outro fator que significa uma maior taxa de homicídios na população negra é a violência policial [...]. A polícia militar, resquício da época ditadura, longe de defender a população, é na verdade um aparato organizado para sua repressão. Foi número absurdo de homicídios cometidos pela polícia militar no Brasil. Os homicídios estão reservados para a população pobre da periferia em sua grande maioria negra. Esta parcela da população que mais sofre com a política do Governo de deixar que se deteriore cada vez mais as condições de vida [...]". O mesmo acontece quando se vê os cárceres, onde há mais negros presos do que estudando nas universidades posto que são cada vez mais conceituados como bandidos,sendo o bode expiatório dos problemas que afligem a sociedade. O Brasil é o quarto maior encarcerador do mundo, com uma população carcerária em torno de 473, 000, perdendo apenas para Estados Unidos, China e Rússia, (de acordo com estatística em anexo). Corroborando a nossa afirmação, Elionaldo vai dizer que: É importante salientar que embora a realidade política e administrativa do sistema penal Brasileiro seja diversa, em contraposição, a realidade de seu interno penitenciário é bastante homogênea. Em sua maioria são pobres, negros (afro-descendentes), com pouca formação escolar, e que estavam desempregados quando foram presos e viviam nos bolsões de miséria das cidades. (ONOFRE, p. 33). Evidencia-se a cobiça por parte do Executivo, representando o Governo, quando este espolia e escamoteia o povo, "gabando-se" do suposto crescimento do país enquanto a população de maioria miserável padece de toda a sorte de "violência", "uma violência silenciosa, sub-reptícia, simbólica e estrutural" (FREIRE, 2006, p. 35), praticada por tal poder. Estes poderes são os únicos beneficiados com a "impunidade". Diz-se que o "crime não compensa", mas isto com certeza trata-se de um discurso alienante, pois só não compensa para os pobres, uma vez que são tidos como os únicos responsáveis pelo cometimento dos seus crimes. A este respeito, escreve Agostini (2001, p. 33): "A política continua sendo um palco privilegiado para nossas elites corruptas continuarem sua forma arcaica de domínio oportunistas e irresponsável. Com isso, até as instituições andam debilitadas; sua legitimidade é posta em dúvida."

Dizem que a moderna concepção dos três poderes é fundada na proteção do indivíduo e do cidadão, na garantia dos seus direitos fundamentais definidos sempre por uma constituição, ou seja, o chamado "Estado democrático de direito". Pois bem, acontece que com a decadência moral destes poderes, ficamos "reféns" da "impunidade" dos mesmos quando do cometimento de algum ato não-condizente com a ética. A "decadência tri-crática" se acentua com todos os crimes cometidos contra os pobres desta nação, que é rica de recursos naturais e humanos, mas que são escamoteados pelos integrantes dos poderes constituídos, sem o menor escrúpulo. Pior ainda é o fato de continuarem enganando a população propagando uma falsa democracia, em que o governo é exercido pelo povo e para o povo por meio dos seus representantes eleitos. A maioria dos políticos só visam seus interesses pessoais e partidários, os quais estão longe de atenderem aos do povo. São estas coisas que contribuem para a gênese dos diversos tipos de violência presentificados em nossa sociedade hodierna. Apenas se dá ênfase à violência por parte da criminalidade, amplamente divulgada pelos meios de comunicação de massa de nosso país, mas se esquecem daquela que deixam as pessoas nas ruas, sem emprego, sem alimento, a qual é tão danosa quanto àquela que faz parte das manchetes dos jornais e televisão desta nação.

Em suma, segundo Aguiar (2006, p. 62), a questão da violência não é só física, direta, ou aquela que vemos amplamente veiculada pelos meios de comunicação de massa, mas também uma violência simbólica, tão destruidora como aquela atribuída aos "criminosos", que são considerados como os únicos responsáveis pelo crescimento do nível de violência em nossa sociedade. Diante disto, surgem as seguintes interpelações: Qual a finalidade da medida coercitiva, extremada contra os encarcerados? A sociedade (minoria dominante) quer realmente justiça ou vingança? Dizem que querem a paz, mas a paz não se dará enquanto não tiver uma política pública de ressocialização nos presídios, enquanto se continua "querendo de qualquer maneira garantir a segurança de uma minoria privilegiada" (AGUIAR, 2006, p. 62) (que insiste em se chamar de "sociedade"), e não procurar soluções viáveis, não haverá a verdadeira justiça, pois "a paz não precede a justiça, e, a melhor maneira de se falar pela paz é fazer justiça". E não a vingança, como pretende o grupo dominante, pretensiosamente intitulado de "sociedade".

1.3 A "cultura da impunibilidade"

Diante do cenário político dos últimos dias e frente à impunibilidade dos políticos acusados de crimes, indaga-se: qual a moral que eles têm para dizer que vivemos numa democracia ou ainda num Estado democrático onde todos são iguais perante a lei? Resta evidenciado que estes discursos não passam de maneiras bem arquitetadas por parte dos grupos dominantes para iludir a população da existência do princípio de isonomia. A pergunta ainda é: será que estes políticos têm os princípios morais e éticos para taxar os outros de "criminosos organizados", ou, ainda, legislar para punir o suposto "crime organizado", sendo que os mesmos se mostram mais "organizados" do que aqueles que cometem tais crimes?

Ainda há a questão do fator criminógeno por terem o chamado "foro privilegiado" (prisão especial) por exercerem funções parlamentares e por serem possuidores de ensino superior (cuja finalidade é a de que não sejam realmente punidos pelos seus crimes, demonstrando, dessa forma, que o crime só não "compensa" para os pobres e analfabetos). Na verdade, os que fazem jus ao tal "foro privilegiado" são mais "inteligentes" do que os criminosos comuns, os quais, além de serem marginalizados, são os únicos penalizados pelos crimes cometidos enquanto aqueles que tiveram as melhores oportunidades na vida, sem a necessidade de cometer crimes, ainda são beneficiados pela lei justamente por causa destas vantagens. Além de outras culturas que temos neste país, a mais repugnante de todas é a da impunibilidade. A ganância dos políticos tomou conta do país em que o ideal de igualdade é irreal e, por fim, utópico. Se há pobres, é porque a nação dispõe de ricos gananciosos; se há injustiça, é porque existe um "podre-duto" de corrupção no qual a cultura da impunibilidade transformou o Brasil num país de muitas violências. O fato curioso é que os que se beneficiam do "foro privilegiado" são os mesmos que participam da elaboração de leis para punir os outros criminosos. Diante do quadro de impunidade em relação aos "poderosos", quase se nota a penetração de ações contraditórias de se fazer e usufruir-se da corrupção, confirmando que a vontade popular não é levada a sério. O mesmo é igualmente verdadeiro quando não trazem e nem divulgam junto à sociedade suas ações moral e eticamente duvidosas.

A finalidade da justiça é interpretar as leis, julgar os atos que as contrariam de forma igualitária para todos, sejam grandes ou pequenos, ricos ou pobres, brancos ou negros, segundo o regimento constitucional do país. Porém, temos visto uma parcialidade por parte desta justiça (se é que pode ser chamada assim) em relação aos pequenos, pobres e negros. Isto demonstra que há pessoas e pessoas. Umas têm mais direito do que outras e não é por questão de justiça, mas justamente pela falta da mesma. Isso representa a pior injustiça praticada neste país. Deveria se punir com mais rigor, a priori, as pessoas que cometem crimes sendo elas possuidoras das melhores oportunidades na vida considerando a gravidade do crime cometido, ao invés de como é feito hoje, onde há maior rigor para com os menos privilegiados, mesmo se os crimes cometidos por estes não representam tanta gravidade assim. Tanta discrepância entre uns (políticos, empresários, pessoas influentes, ricos etc.) e outros marginalizados, pobres etc., no que diz respeito à forma como são ou não punidos pelas leis vigentes, resulta no atual quadro alarmante de impunidade, em que a "tri-cracia" tornou-se um "podre-duto" nos deixando como legado a ganância, a busca criminosa de lucros, a ambição, a venda da dignidade e a pouca vergonha. Como tal sociedade pode clamar por justiça, punição, leis mais rigorosas para as pessoas que cometem crimes, se esta mesma sociedade não cobra estas mesmas coisas quando se trata de pessoas influentes envolvidas? Como se pode dizer que os "bandidos" estão soltos e o "cidadão" preso, se os presídios estão superlotados? Antes de se falar em impunidade, primeiro é preciso saber quem realmente não está sendo punido, pois este discurso falacioso reivindicando punição para os "criminosos", deve abranger a todos os que transgridem a lei. Todos!

CAPÍTULO 2

POR QUÊ TEOLOGIA?

Para que possamos realmente responder esta questão, primeiro é preciso que digamos o que significa o termo teologia. Etimologicamente, esta palavra pode ser conceituada como "um tratado sobre Deus", ou mesmo, "um estudo sobre Deus", embora tais conceitos apresentem uma aparente contradição diante da afirmação da "inconcebilidade" de Deus, ou, ainda, do fato de que só se pode falar daquilo que se conhece. Ora, ninguém "conhece" a Deus; logo, não se pode falar Dele. O conceito "teologia" está imbricado num "vai-e-vem" de discursos que desemboca em Deus. Ele não é o "objeto" de estudo da teologia, mas é o "sujeito" que se autocomunicou conosco através da encarnação na pessoa de Jesus. Sendo assim, segundo Libânio e Murad (1996, p. 67), "a teologia "trata" de Deus, mas mediada pela fé, pela acolhida de sua Palavra, que por sua vez é comunicada para nós através da Revelação transmitida na Tradição da Igreja (escrita, vivida, pregada, celebrada, testemunhada etc.)". Quanto à indagação "por quê teologia?", o pensamento do teólogo Rubem Alves retratou, verdadeiramente, a razão: "A teologia fala sobre o sentido da vida". Diante da realidade prisional em que vivemos, na qual, muitas vezes, nada mais faz sentido, faz-se necessário a presença da teologia para encarar a questão da desumanização e do não-sentido ali existentes. Por outro lado, os encarcerados (as) após terem sido resgatados pelo Evangelho salvífico, devem procurar, como cristãos, estarem aptos a explicar aos outros a sua razão da fé em Jesus. Também a teologia nos ajuda a cristalizar os conteúdos contidos na Palavra de Deus mostrando a "interconectividade" entre a Bíblia e a vida humana e, por conseguinte, a dos encarcerados também.

Ainda no que concerne "por que teologia?", podemos asseverar que a ânsia nasceu pelo confronto entre a nossa realidade e a Palavra de Deus e também pelos nossos questionamentos existenciais. Procuramos a teologia como a "última porta", haja vista que a nossa esperança se pautou na possibilidade de um encontro teológico articulado a partir da nossa realidade, embora não fazendo parte de nenhuma exigência social e nem tampouco institucional, nos fazendo sentir esta necessidade com base em motivações e convicções pessoais, além das exigências interiores. Sabemos que, tradicionalmente, a teologia é para formação de padres e pastores, mas com a autorização do Ministério da Educação, reconheceu-se a importância do estudo da teologia como de comprovado interesse público, ou seja, que a Palavra de Deus pode prestar um serviço à sociedade, fazendo um trabalho para um melhor desenvolvimento humano e social. Destarte, a teologia se faz imprescindível tanto para a comunidade de fé, bem como para a comunidade carcerária, pois reconhecemos sua importância. A Teologia chamou a nossa atenção por se tratar de uma ciência humana que tem como alguns dos seus pressupostos metodológicos, "caçar" sentidos, formar evangelizadores e missionários da mensagem cristã, com vistas a uma maior atuação no resgate das pessoas excluídas, marginalizadas, pobres e oprimidas. Deve-se frisar que o seu objeto de estudo é a autocomunicação divina enquanto Palavra de Deus. Se a teologia é um saber em função da vida, deve ser, portanto a "companheira" do homem "esvaziado" de sentido no cárcere, considerado "escória" da sociedade. Em suma, a teologia nos cativou, pois a nossa busca pelo sentido das nossas vidas e de nossas questões existenciais foram saciadas. Isso significa que cabe à teologia falar de "socialização-ressocialização", mas não sociologicamente e sim teologicamente, ou seja, ver a questão da não-ressocialização à luz da fé propondo-se ainda como uma das alternativas para a eliminação da não-ressocialização.

Fomos exatamente tocados com a mensagem cristã e antropológica que nos fez entender que não se pode falar de Deus se não falarmos do Deus-homem Jesus, o qual é a explicitação da Transcendência Maior (DEUS), da qual somos feitos imagem e semelhança. A teologia nos faz compreender melhor e mais claramente a nossa fé, responsabilizando-a para uma mudança desta situação de "escória" e "lixo" humano em que nos colocam, pois a teologia proporciona a libertação do ser humano. Nós decidimos pela teologia reconhecendo Deus como a busca fundamental de todo o ser humano quando não se tem nenhum sentido na vida e, nas palavras do filósofo Wittgenstein: "Crer é compreender a questão do sentido da vida". "Sabe-se que crer em Deus é afirmar que a vida tem sentido" (IN: SANTANA OP. CIT) A Teologia nos proporciona tudo isso.

2.1 Os encarcerados e a teologia: relação de Jesus com os "aprisionados"

Jesus se relaciona de modo diferente com as pessoas, segundo sua condição social e religiosa. Compassivo com os excluídos, dos quais se aproximava aos quais demonstrava solidariedade, com os quais chegou a se identificar, Ele foi, no entanto, severo com os excluidores, dos quais denunciava o pecado, os quais condenava pela omissão na prática da Justiça. (FELLER, 1995, p.58).

No mundo hodierno, além dos outros tipos de exclusão existentes, os encarcerados formam um grupo específico de marginalizados pela sociedade. Diante desta circunstância, percebe-se a pertinência da teologia para com os mesmos e, nesta acepção, a teologia significa "palavra de Deus". Deus tem uma relação com as pessoas aprisionadas, diferentemente daquela que tem com a sociedade. Jesus se compadece com os encarcerados e excluídos, aproximando-se dos mesmos, demonstrando, dessa forma, um grande amor e solidariedade diante da realidade desumanizante em que os mesmos vivem. Em contrapartida, denuncia a truculência da sociedade que os criminalizou através da violência por parte das estruturas seriamente abaladas pela inversão de valores presentificada nos dias atuais, tornando-se não tão propagada como é feita para com a da criminalidade, mas é igualmente criminosa e destruidora quanto aquela.

A relação que os encarcerados têm com a Palavra de Deus evidencia-se no entendimento de que Deus veio para todos, independentemente de sua situação sócio-política ou religiosa em que se encontra. Ainda existe a questão de sua opção preferencial pelos marginalizados embora Ele tenha vindo para todos, pois Jesus disse que veio não para chamar os "justos", mas os "injustiçados". Em outras palavras: Ele tem a preferência por aqueles considerados como o "lixo humano" da sociedade, e que estes têm condições de ouvi-lo e de segui-lo. A nossa intenção, nesta contribuição teológica embora, a priori, visa denunciar nossa realidade à luz da fé pensada, é também a de que queremos servir à comunidade de fé na sua grande missão de pregar o Evangelho. Desta feita, daremos as razões e os motivos da nossa fé para quem exigi-los de nós. Nós como produtores da TDR, nos servimos de nossa realidade para explicar e exercitar nossa fé nestas reflexões teológicas. As verdades de fé nos foram transmitidas e nós aproveitamos delas para dar um olhar crítico em nossa situação de "não-homens" (marginalizados), imposta pelos segmentos sociais.

Neste procedimento, à luz da revelação salvífica trazida por Jesus, levantamos questionamentos que visam romper o círculo vicioso marginalizante e alienante vivenciado pelas pessoas em privação de liberdade. Sendo assim, os encarcerados se fizeram sujeitos de teologia, demonstrando a necessidade de se preocuparem com o resgate de si mesmo e dos colegas de cárcere. De posse dos conhecimentos teológicos, dos dados provenientes das Escrituras e da Tradição, pudemos, enfim, sintetizar os elementos centrais da teologia, para benefício do "ser" humano, pois o conteúdo da teologia tem seu o eixo na mensagem cristã/vida humana. Se a mensagem não consegue mudar o "ser" humano, não tem nenhuma validade.

A teologia situa-se na interseção de duas realidades: a da libertação proposta por Jesus e a realidade de "não-liberdade" vivenciada pelas pessoas em privação de liberdade (preconceito e não-ressocialização). Por um lado, temos a esperança de que a relação de Jesus conosco continua firme e, por outro, a falta de interesse e de compromisso da sociedade com um todo sobre a realidade dos que sofrem por serem marginalizados. A nossa relação com Jesus nos impulsiona à prática do amor para com o próximo, não importando se esse próximo seja a sociedade injusta e criminalizante que nos fez "bandidos". Deus é amor e quem tem relação com Ele, deve demonstrar isto, solidarizando-se com o outro.

2.2 Do clamor a partir dos encarcerados

A desesperança e a alienação dos encarcerados, imersos num mundo que não conseguem compreender, a partir da justiça que os julgou com "mão de ferro" e como pobres, mas que é leniente para consigo, não cortando na própria "carne", sentem-se frustrados com tal justiça por não serem atingidos por ela, senão pela morosidade da mesma. Esse clamor tem o objetivo de chamar a atenção, não mais da sociedade, haja vista que esta já está "envenenada" pela mídia, mas de Deus, uma vez que nossa sociedade não possui mais a sensibilidade de análise e de entendimento isento de pré-conceitos para perceber as falhas da não-reeducação (ressocialização) de pessoas em privação de liberdade.

Diante deste clamor, Deus se revelou como libertador e que sempre faz uma opção preferencial pelos pobres, oprimidos e, agora, pelas pessoas em privação de liberdade que se "converteram" e buscaram sua face. Na sua Palavra está escrito que devemos ir ao seu encontro da maneira em que estamos, pois de modo algum Ele nos lançará fora. Deus "aliou-se" conosco nos mostrando o intuito desta libertação que nos fora concedida: engendrar uma nova forma de vida como uma das alternativas para ressocializar o ser humano através da compreensão, por parte do homem, da ação salvífica de Deus. A partir do ressoar do nosso clamor, recebemos forças suficientes para transpor as barreiras hipocritamente impostas pela sociedade moralista, que nos vitimou e que é igualmente vítima. O Deus dos excluídos e das pessoas encarceradas e egressas é aquele que não se importa com o nosso passado, senão com o nosso presente e o futuro, impulsionando-nos a sermos pessoas melhores. Deus "viu" nossa aflição (o clamor para sermos ressocializados), "solidarizou-se" conosco através do estudo acadêmico de sua Palavra (sem desprezar o estudo celebrativo e orante da mesma) e nos apontou um sonho bem diferente daquele que costumeiramente é a realidade de todas as pessoas encarceradas (que é a não-liberdade, a não-ressocialização, a não-reinclusão etc.). Exemplo disso, são as milhares de pessoas atormentadas por toda a vida carcerária que, na maioria das vezes, perdura até a vida egressa, por causa do peso da suas personalidades estigmatizadas pelo sistema.

2.3 Jesus veio "chamar" os encarcerados, e estes o seguem

A fé ilumina o caminho do acolhimento das mensagens salvíficas anunciadas por Jesus. Mas para poder acolher esta palavra, é necessária a escuta (reconhecimento) de que não basta somente ouvir: implica a interiorização da mesma e, igualmente, a realização desta palavra, isto é, sua prática (seguimento). Neste sentido, esse "chamado" consolidou-se a partir da entrada de um curso superior no presídio e, "milagrosamente", um estudo sobre a autocomunicação divina, representada pela Teologia. A Teologia é uma ciência que consegue tocar o mistério da vida, da transcendência. Consegue quebrar as correntes do coração, transformando-o e refazendo os sonhos da vida que pareciam perdidos na prisão. Jesus ofereceu a "luz" e o sentido para além dos limites da vida, além daquilo que nos esmagava por dentro. Ele abriu um horizonte de sentido para as nossas vidas, redescobrindo-o como o Jesus da esperança, do perdão e do amor e que escuta as angústias, os temores e os desesperos dos seus filhos à margem da sociedade. Ao se elaborar um discurso teológico acerca da ressocialização, deve ser sinalizada a sua pertinência no contexto atual da realidade penal brasileira. Não poderia faltar o destaque de que qualquer teologia deve ser um saber em função da vida. Portanto, teologizar para fins de ressocialização deve ser o momento de se engajar no resgate da "ovelha desgarrada". Se a Teologia não se identifica com a prática concreta de uma ação libertadora, torna-se um discurso vazio e inoperante. A Teologia só será frutuosa se engendrar vidas.

A TDR, enquanto reflexão deve estar aberta para a construção de novos conhecimentos, demonstrando, desse modo, que Deus tem uma palavra para a sociedade a partir dos encarcerados ao denunciar a contradição na comunidade de fé, uma vez que existem pessoas que se intitulam como "irmãos", mas não se comportam como tais, pois não acreditam na transformação dos que estão no cárcere e pensam que nada se deve esperar dos presidiários (as). Isso é uma clara contradição à experiência de salvação proposta por Jesus no texto de Mt 25,35-46, em que a fé cristã é representada pelo reconhecimento real da pessoa de Jesus e expressa nas obras para ajuda e suprimento das necessidades dos que estão oprimidos, marginalizados... e encarcerados. Digno de nota, a este respeito, é o que escreve Feller:

[...] Os evangelhos são claros na mostra da terrível contradição: a aceitação da revelação de Deus por parte dos excluídos, da multidão abatida, sem pastores, e a rejeição do Reino pelas autoridades religiosas e políticas, pelos que deveriam ser pastores [...]. Os excluídos são apresentados como modelo de vida no acolhimento da revelação de Deus que vem ao nosso encontro. [...] Jesus tem um modo próprio de se relacionar com os grupos de pessoas. [...] Com os excluídos da sociedade, sua palavra e sua prática são marcadas pela ternura e pela aproximação e pelo convite à conscientização, em vista da promoção da liberdade e da vida. É solidário e compassivo, nada exigindo deles a não ser a tomada de consciência de sua dignidade de filhos de Deus, a fim de não introjetarem os mecanismos e as atitudes dos opressores [...]. (FELLER, 1995 P.119).

Isto quer dizer que os encarcerados (as) também fazem uma experiência de Deus, apesar de não serem considerados (as) como pessoas capazes ou merecedoras disto. Ainda segundo Feller (1995) são justamente os menos "indignos" que escutam e acolhem a mensagem de Jesus, pois são os que realmente estão precisando da mesma, haja vista que sua atual situação não é compreendida por aqueles que deveriam compreendê-la.

2.4 "Re-leitura" e "re-interpretação" a partir da TdL (BOFF, 1993 apud LIBÃ,NIO e MURAD, 1996,p. 110)

A Teologia da Ressocialização, como fizera a TdL (Teologia da Libertação), representa a reflexão por parte de pessoas em privação de liberdade visando que suas vidas sejam transformadas e, com isso, terem acesso aos direitos humanos fundamentais a quaisquer pessoas. A TDR tem a necessidade de existir, pois nasce a partir do confronto entre a desumanização existente nos presídios e a libertação proposta por Jesus nos Evangelhos e, também do confronto entre a condição existencial de não-ressocialização, de não-liberdade e injustiças, a partir de uma prática de liberdade autêntica, real e não-alienante, tendo como seus sujeitos ativos e protagonistas, os próprios encarcerados.

A TDR deve viver sua intuição, e descobrir a íntima ligação existente entre Deus e os encarcerados, causando a ressocialização dos mesmos e a conseqüente libertação destes do estado de marginalização em que se encontram. Tais pessoas devem fazer da espiritualidade uma prática diária, que beneficiará tanto aos mesmos como à sociedade. Como a TdL, a Teologia da Ressocialização se contextualiza a partir do binômio teologia-conscientização, por parte dos encarcerados. Houve um reconhecimento, por parte destas pessoas, da necessidade de se ressocializarem. Essa necessidade os impulsionou à buscarem o apoio na Teologia, em que esse sonho lhes permitiu uma leitura teológica da situação atual em que se encontram. Essa leitura também vem denunciar o sensacionalismo utilizado pela mídia no que se refere às pessoas que reincidem na prática de crimes, pois hoje em dia tão somente se especula o fato em si da reincidência criminal, sem, no entanto, considerar devidamente o porquê disto. Também ainda deve ser capaz de denunciar a incapacidade das autoridades em não conseguir recuperar ninguém, justamente por não demonstrarem um real interesse em fazê-lo. As autoridades recalcam as memórias das pessoas em privação de liberdade, as quais apenas querem o cumprimento da legislação concernente aos direitos que possuem. Por isso, a realidade, tanto dos que estão nas prisões como a dos seus egressos, é cruel e digna de repúdio. Mas também se trata de uma leitura visionária, pois sonhamos com o rompimento das barreiras (preconceito, discriminação etc.) contra os que estão nos presídios e contra os que já passaram pelos mesmos, como o acesso aos direitos mais elementares necessários para que qualquer ser humano possa viver dignamente, inclusive para os que já estiveram presos e hoje são egressos do sistema penal, tais como trabalho, educação, saúde, moradia, cursos profissionalizantes, o direito de participarem de concursos públicos etc.

O complemento do binômio diz respeito à Teologia, que nasceu a partir da intervenção da Igreja (através da Pastoral Carcerária), atendendo ao clamor dos encarcerados, como já dissemos anteriormente. Aprendemos que a melhor forma de compreender as Sagradas Escrituras, é confrontando-as com as páginas da realidade prisional, em que em tal confronto surge uma verdade que percorre toda a Bíblia de um ao outro lado: a íntima conexão existente entre Deus, os encarcerados e a libertação destes do seu estado de marginalização e sua ressocialização. Testemunhamos que Deus é o Deus Vivo, Criador, Autor e Doador de toda a vida.

2.5 Uma "ortopráxis" salvífica

Nos presídios e nas penitenciárias, nota-se a grande necessidade de uma "reta prática" de salvação, pois Jesus veio chamar inclusive as pessoas em privação de liberdade para uma nova vida e para um engajamento maior na Teologia, seja como produtores ou como destinatários dela. A Teologia da Ressocialização pretende dar uma oportunidade para todos os presidiários (as) e egressos (as) para que repensem a sua relação com Deus, compensados pela possibilidade da criatividade dos mesmos.

A solidão e o desencanto dos que estão em privação de liberdade são supridos pela teologia, contando os testemunhos destas pessoas que tiveram suas vidas mudadas por Deus. A Teologia se dispõe a aliar-se às pessoas encarceradas, solitárias e desencantadas, mostrando-lhes da contigüidade de Deus aos que se arrependem, clamando por salvação e, também, da proximidade do homem e da mulher a Deus através da espiritualidade. A TDR sinaliza para os que estão no cárcere os pontos revelados na Palavra de Deus, tais como a liberdade verdadeira proposta aos que se afastaram da casa do Pai (pessoas em privação de liberdade), e se distanciaram do caminho da salvação. Teologizar nos devolve a alegria perdida de ser "gente" e de poder dizer que verdadeiramente fomos salvos e libertos no Senhor, em quem temos o conforto de saber ser amados por Deus e de que não é e nunca será tarde voltarmos ao "coração" do Pai e ainda de sabermos que fomos perdoados.

"Na inquietude criadora de cada pessoa (em privação de liberdade – grifo nosso), bate e pulsa o que é mais profundamente humano: a busca da verdade, a necessidade insaciável do bem, a fome de liberdade, a nostalgia do belo e a voz da consciência" ( João Paulo II, In: Santana, Antonio chaves.) Esta ânsia "santa" foi despertada em nós através do encontro com a Teologia, ou seja, a Teologia da Ressocialização que propomos. Tomás de Aquino doutamente propôs que "só sabe bem uma ciência aquele que sabe usá-la". A Teologia da Ressocialização só será realmente útil quando a vida dos que estão em privação de liberdade forem regeneradas a partir do contato com a mesma. Tal teologia deve ser capaz de se abrir à realidade (visões, dores, lutas, alegrias, suas esperanças) destas pessoas. Relendo as colocações do teólogo Rubem Alves, "A Teologia (TDR – grifo nosso) fala sobre o sentido da vida (das pessoas em privação de liberdade – grifo nosso) [...]; sempre que as pessoas estiverem falando sobre o sentido da vida ainda que não usem as "cores" do sagrado, estarão construindo teologias [...]"(ALVES, Rubem. In: DAL POZZO,p163-19). A Teologia da Ressocialização deve com intrepidez buscar respostas que reanimem os corações dos que estão na prisão através de uma "ortopráxis" salvífica promovida pela TDR, a qual visa responder as questões pessoais destas pessoas à luz da fé cristã, ou seja, libertá-las para promover a reinclusão das mesmas no Reino de Deus. Diante de uma realidade eclesial marcada pelo esquecimento dos que estão em privação de liberdade,

[...] perde-se a evidência da fé, a Igreja já não é a mesma dos velhos tempos da ditadura, uma Igreja profética, corajosa, perseguida como nos tempos primitivos das catacumbas. Os padres e bispos eram os nossos profetas nos tempos de penúria, de transtornos e de sofrimento. Pregavam um evangelho sem carinho, forte e libertador. O canto que entoava era o canto do evangelho. Canto de alegria, de esperança e de libertação para um povo sofrido, sem vez e sem voz. Os pastores estavam afinados com esse canto e usavam o mesmo diapasão. (SANTANA, Texto mimeografado).

Esta feliz afirmação confirma a premência de uma ortopráxis salvífica com que a Teologia da Ressocialização está construindo a sua reflexão. Como já foi dito aqui, os pressupostos metodológicos utilizados pela Teologia da Libertação do ver, julgar e agir, tornaram-se também a "bandeira" da Teologia da Ressocialização, pois como sujeitos ativos na comunidade de fé (embora de uma maneira especial), vislumbramos a necessidade de ver as injustiças contra os que estão em privação de liberdade e com os egressos, julgamos (ao denunciar as mesmas) e finalmente agimos (ao acolhermos a Palavra de Deus e nos disponibilizando para pôr tal Palavra em prática), com a Graça de Deus e através do estudo da Teologia, ao contribuirmos teologicamente com esta Teologia da Ressocialização, que quer conscientizar as pessoas em privação de liberdade do seu papel como cristãos libertos e transformados, além de contribuir para a ressocialização dos mesmos. A TDR mostra para tais pessoas as palavras soteriológicas que têm para as mesmas, baseadas no amor de Deus e personificadas em Jesus de Nazaré.

CAPÍTULO 3

TEOLOGIA DA RESSOCIALIZAÇAO

As teologias desenvolvidas desde os primórdios até o presente momento, sempre se pautaram em cima daquelas que as precedem e, sendo assim, a Teologia da Ressocialização, diante da atual realidade carcerária em nosso Estado, se posiciona de maneira crítica ao contexto desumanizante e à cultura da geração incessante de violência, que faz vítimas não apenas nos presídios, mas também fora dos mesmos. A TDR vem propor Jesus como o "princípio hermenêutico" maior, sendo que na hora de sua crucificação, quando tudo parecia perdido tanto para a comunidade de fé quanto para o "bandido" ao lado de Jesus, o Mestre da Vida mostrou-se como o portador da salvação. O mesmo clamor do "bandido" na cruz: "Jesus, lembra-te de mim no teu Reino". (Lc 23,42), se configurou, também, como o nosso clamor de libertação destas estruturas injustas.

A TDR pretende ser profética denunciando as injustiças, a discriminação, a falta de políticas públicas para uma melhor qualidade de vida, a ausência de um programa eficaz de ressocialização para quem está nas prisões, a necessidade de uma conscientização para que tanto a sociedade, como os presidiários (as) e egressos, possam viver como pessoas normais em sociedade, oferecendo, a todos, oportunidades em igualdade de condições para que sejam erradicadas as diferenças que hoje imperam na sociedade de nossos dias.

A Teologia da Ressocialização intenta re-situar a realidade opressiva vivenciada pelos encarcerados (as), reivindicando a ressocialização destas pessoas. Propõe conscientizá-las da necessidade de se "entregarem" à Jesus, como Senhor de suas vidas, para que sejam transformadas incentivando-as a ser, saber e fazer o melhor que puderem até o fim, não importando o que vier a ser dito contra as mesmas (preconceito, falta de credibilidade etc.). As pessoas em privação de liberdade precisam se conscientizar que a situação de marginalidade em que se encontram é passageira e que não necessariamente precisa ser mantida, mas devem abandoná-la, aceitando a palavra salvífica e libertadora que lhes foi anunciada, interiorizando-a e fazendo com que se encontrem intimamente em si mesmas, haja vista que, sem o encontro com si próprio, o homem não poderá ter o seu encontro com o "Absoluto", o "Transcendente".

Para que exista qualquer teologia, deve haver um conjunto inconteste de situações que a legitime. Uma vez que se fazem necessárias fontes geradoras de idéias e grupos ordenados de teologia e tendo em vista que teologia produz "teologias", eis aqui nossa construção teológica, a qual se deu a partir da metodologia da Teologia da Libertação e de uma reflexão sobre a situação atualmente vivida pelas pessoas em privação de liberdade, posto que estas pessoas estejam envoltas numa condição subumana. A partir de tão grave situação enfrentada pelos presidiários (as) e ex-presidiários (as)[2] e da impotência por parte do Estado e da sociedade para solucionar tal problema, originou-se nossa proposta: A Teologia da Ressocialização (TDR), tem a pretensão de esclarecer a real situação em que atualmente se encontram as pessoas encarceradas/egressas, a partir da cosmovisão de pessoas em privação de liberdade.

A teologia, como um discurso acerca de Deus e também relacionado à realidade antropológica, deve ter a sua origem na vida humana e de forma palpável. Sendo assim, a Teologia da Ressocialização reconheceu a veracidade dessas colocações, que dizem, respectivamente, que "A Antropologia é o lugar de Deus", e "A Teologia não ensina uma Antropologia e sim numa Antropologia". Sabemos que para fazer um discurso acerca de Deus, deve-se saber quem Ele é: "Nós justamente dizemos quem é e o que é Deus, ao dizermos que somos criaturas"; "Então se demonstra: se quiser se falar de Deus, obviamente há de se falar de si mesmo".

Ao entendermos esta relação de Deus com o homem, é que se vê a origem da Teologia da Ressocialização, a qual surgiu a partir da vida concreta dos marginalizados que querem uma teologia da e para a vida, reconhecendo a Palavra de Deus como uma experiência humana e/ou religiosa, com uma perfeita compreensão e prática de fé. Sem tais coisas, não há teologia cristã. A necessidade de se engendrar a TDR partiu da perspectiva apresentada pelo homem encarcerado como um ser filosófico-científico e antropológico-teológico, o qual tem a necessidade de ser ressocializado para consigo mesmo devido a sua decadência em todos os aspectos. A verdade última da vida dos encarcerados, torna premente que se produza uma teologia que possa realmente ajudar a humanização destas pessoas esquecidas pela sociedade. Nós, como sujeitos históricos, também somos os produtores desta nova construção teológica que denominamos de "Teologia da Ressocialização".

Com muita humildade e à luz da teologia, nos comprometemos com a causa dos encarcerados, não porque estas pessoas sejam melhores ou piores, mas porque são seres humanos e com muitas necessidades a serem sanadas, assim como os sem-teto, os analfabetos, os desempregados, os famintos etc. Os crimes praticados por aqueles que estão em privação de liberdade, mesmo sendo os mais graves, não anulam sua condição de serem humanos, mas servem para que as pessoas que se julgam "cidadãs"/"justas" passem a refletir o por quê de alguém ter agido de tal forma e o que fazer para que esta pessoa não seja somente punida, mas que também seja recuperada e reincluída novamente ao seio social, a fim de que não seja execrada e banida de uma vez por todas do convívio social, taxada como "monstro". Quem age desse modo é tão criminoso quanto os que estão em privação de liberdade. O desafio é grande e a caminhada é imensa. Aprendemos, sobretudo com os nossos erros, que nem tudo está perdido e que é preciso continuar caminhando. Mais se aprende com frustrações do que com os sucessos, mais aprendemos com a humildade do que com o orgulho. Nossos erros podem servir de fontes inesgotáveis para ensinar a outros. A vida nos ensinou, pelos erros que cometemos, que chegou a nossa hora de aprender. E queremos que este nosso aprendizado (a Teologia da Ressocialização) seja partilhado com todos.

3.1 Um reencontro com o Deus dos marginalizados

O significado e as conseqüências da Teologia da Ressocialização. São muito profundos, uma vez que todo saber teológico deve estar situado no seu "sitz in leben", por conseguinte, transmitir esta Teologia fora do seu "lócus" pode significar alienação religiosa. Na realidade, as pessoas encarceradas, não têm a consciência de que foram criados em Cristo e muito menos de saber sermos amados incondicionalmente por Deus, apesar dos nossos crimes. Mas graças ao reencontro com o Deus dos marginalizados que, por extensão, mostrou-se igualmente como o Deus dos encarcerados, reconhecemos esta condição com a ajuda da Teologia da Ressocialização.

O encontro, ou, aliás, o reencontro dos encarcerados com o Deus dos marginalizados ocorreu quando Ele nos "convocou" para uma nova vida cheia de significados. Os que aceitaram, abraçaram o projeto salvífico do Reino de Deus, marcado pela "conversão", e provocando uma radical mudança no seu modo de viver. Os que não aceitam tal propósito continuam com suas vidas destruídas, se marginalizando e sendo marginalizados. A partir deste reencontro memorável, libertados da "escuridão" carcerária que nos envolvia, entendemos que uma das causas de "maldade" sempre foi o medo. Medo de nós mesmos, medo da morte que, segundo Knauer (1989), é a causa de todos os males no mundo, pois cada vez que agimos desumanamente, agimos dominados pelo poder do medo da morte, sem se inteirar disto. Por isso, reconhecemos a pertinência e a grande importância desse reencontro com Deus. Sabendo que "a fé vem pelo ouvir e o ouvir da Palavra de Cristo" (Rm 10,17), ouvimos a palavra quando deste reencontro e, finalmente, a acolhemos no seu sentido maior, que é o de seguir a Jesus, nos remetendo à base da fé no Deus que provou ser o dos marginalizados e dos encarcerados. Que doce e lindo reencontro! Somos gratos por este reencontro!!!

Postulamos que nós, encarcerados (as), com a ajuda da Teologia, tornemo-nos, dentro do projeto de Deus, instrumentos de libertação tanto de nós mesmos como da estrutura social que nos marginalizou. Diante das situações críticas de não-liberdade, desumanização e não-ressocialização em que se caracteriza a realidade carcerária, a entrada de um curso teológico em um presídio e o consequente despertar cônscio da necessidade de uma teologia de ressocialização, em que os próprios marginalizados são os que efetivamente vêm propô-la, justamente por "sentir na pele" exatamente o que significa ser encarcerado. A importância do encontro de Deus com as pessoas encarceradas significa a verdadeira liberdade que clamamos.

3.2 Sinal de esperança para os encarcerados

Na escuridão do presídio, cintilou uma luz. Uma luz que veio dissipar o medo mais profundo que entendemos não ser somente o das grades e muralhas que nos cercam, mas o de continuarmos rejeitados e discriminados, mesmo após o cumprimento de nossas penas. Nós como produtores e destinatários desta construção teológica, nos sentimos muito honrados e beneficiados pela misericórdia de Deus, por Ele nos proporcionar o seu amor imenso e incomparável, e que pôde nos fazer também sujeitos produtores de teologia. A nossa vida como presidiários, belamente configura a feliz colocação:

A vida humana intercala-se, como curto lapso diurno, entre duas gigantescas noites. A noite da não-existência [...]. Entre essas duas ameaças do caos inicial e final, o ser humano caminha solitário, sem luz. A Teologia, ao fazer-se companheira, quer conter-lhe as estórias de Deus que lhe permitem encontrar sentido para esta aventura tão breve entre os infinitos do ontem e do amanhã. (LIBÃ,NIO e MURAD, 1996, p. 110)

Diante da reviravolta teológica frente à pós-modernidade, o que permitiu o ensino profissional de Teologia, descobriu-se que um dos "lócus theologicus" poderia ser justamente um lugar outrora marginalizante, ou seja, um presídio, em que tal ensino (Curso de Teologia), um ousado, pioneiro e inédito empreendimento dentro de sistema carcerário do país que, com a Graça de Deus e o compromisso de alguns segmentos sociais para o mantimento do mesmo, poderá, através da presente produção, contribuir para a ressocialização[3]de pessoas em privação de liberdade.

É o papel da Teologia cristã refletir sobre toda nossa realidade à luz da Palavra de Deus, para que assim de modo adaptado a cada situação concreta, se possa responder acerca do sentido da vida. Faz-se necessário conhecer e compreender o mundo dos encarcerados e as suas esperanças. (GS, 4)

É a salvação que não tem fronteiras, é aquela que vem para toda a humanidade, que inclui, evidentemente, as pessoas encarceradas que, outrora, não tinham "nem vez e nem voz", mas agora começa o brilho da esperança. É esta esperança que nos proporcionou a fé para abrir um caminho aonde não havia nada senão angústia, dor, solidão, dúvida e, principalmente, a dor de ser um excluído da sociedade. Com a TDR, um sinal de esperança nos mostrou como anunciar esse Deus no ambiente carcerário e de que forma Ele nos ama e nos chama para uma nova vida plena de sentido, a partir de uma realidade marcada pela discriminação e pelo preconceito. A nossa esperança se pautou no Deus dos marginalizados, que nos abençoou com a Teologia da Ressocialização. O nosso ensejo é que através deste contato inicial com o estudo de teologia, possamos demonstrar que ainda há uma esperança para aqueles que se encontram encarcerados, embora carreguem estigmas imagéticos de pessoas "imprestáveis". A Teologia nos devolve a compreensão de que enquanto há vida, deve continuar a utopia da esperança, sem a qual estaríamos todos perdidos nesta sociedade preconceituosa.

3.3 – "Escravos" e "servos" do Senhor

"Salvos" da criminalidade, portanto "livres" e "não-presos", não há como continuar "escravos" (de quem quer que seja), pois fomos "chamados" para a liberdade. Nós não somos mais "escravos" (nem mesmo de Deus), mas "servos" no que se refere ao serviço para o Reino. Quando reconhecemos nossa condição de "perdidos" (acolhimento da palavra anunciada), clamamos a Deus e fomos ouvidos por Ele. Ora, fomos feitos "filhos" de Deus por termos crido e aceito Jesus Cristo como nosso Senhor e Salvador; logo, não somos mais "servos", mas "filhos" e "amigos" de Deus (Jo 1,12; 15), conforme o seguinte comentário:

O fruto que a comunidade (encarcerados – grifo nosso) é chamada a produzir é o amor. Ora, Jesus não quer uma adesão de servos que obedeçam a um Senhor, mas uma adesão livre de amigo. E a amizade é dom: Jesus é o amigo que dá a vida pelos amigos. A missão da comunidade não nasce da obediência à uma lei, mas do dom livre que participa com alegria da tarefa comum que é testemunhar o amor de Deus quer dar à vida.[4]

Historicamente falando, a concepção que temos do homem em relação a Deus sofreu grande influência da cosmovisão patriarcal-judaica, que muitas vezes ora é machista, ora é preconceituosa (sem falar que também é injusta), baseada no escravagismo. A visão cristã de ser "servo" ou "escravo" do Senhor deriva-se deste modo antigo do pensamento judaico-cristão que, a nosso ver, é totalmente equivocado. Por outro lado, isso implicaria afirmar que Deus seria um "proprietário" e um "Senhor" que nos castiga quando não fazemos o que Ele manda, assim desmentindo o amor incondicional com que nos amou por Cristo Jesus. Entendemos a mensagem cristã como uma doutrina soteriológica, pois o Nosso Senhor (Deus) quer que sejamos livres e que a linguagem opressora/marginalizadora seja banida do nosso meio (conceitos escravagistas como "servos" e "escravos" do Senhor). Propomos dentro da Teologia da Ressocialização que haja uma "re-situação" e uma "re-conceituação" destas categorias de um "feudalismo" antiquado, posto que Jesus veio libertar os que estão aprisionados, oprimidos, marginalizados, seja física, moral, espiritual, social, sentimental, emocional, economicamente etc., e de outras formas de encarceramento.

Nós não fazemos a "vontade" de Deus porque somos seus "escravos", mas porque O amamos e nos sentimos amados por Ele. Jesus não compactua com o "mal" e nem com qualquer forma de servilismo ou de escravidão. Aliás, o seu projeto para a humanidade é o da liberdade. A sua "vontade" é que todos os homens sejam livres. Qualquer coisa contrária a isso é "diabólica". O Evangelho em que cremos é libertador e salvador e, se é libertário, devemos abandonar certas idéias ou ideologias escravizantes e alienantes como a de ser chamado de "escravo" ou "servo" do Senhor, pois fomos chamados para sermos filhos e filhas de Deus, escolhidos (as) mesmo antes da fundação do mundo, amados (as) mesmo quando ainda éramos pecadores (as). Enaltecido seja o nome do Senhor! Amém.

3.4 A presentificação eclesial

A historicidade com referência à desumanização das pessoas em privação de liberdade conheceu a intervenção da Igreja. Tal presença se consolidou com o apoio muito valioso da Pastoral Carcerária, na pessoa do seu coordenador, Pe. Marcos Passerini, que, com o seu espírito revolucionário, nos possibilitou o acesso ao ensino superior[5]e nos incentivou a "produzir", a partir dos conhecimentos adquiridos num curso teológico, a elaboração da presente Teologia da Ressocialização. Isto representa uma abertura muito importante para cada um de nós que fazemos parte como personagens principais desta pioneira e inédita história "criada": a de se levar, para dentro de um presídio, um curso superior voltado para pessoas em privação de liberdade (algo inédito e pioneiro, até onde se sabe, em todo o mundo). A sensibilidade social demonstrada pela Pastoral Carcerária foi e continua sendo indispensável e significativa, facilitando a entrada da Teologia num ambiente outrora inimaginável e fechado para tal (um presídio), além do fato do interesse demonstrado pelos presidiários que buscaram uma alternativa, por eles mesmos, para prosseguir na carreira estudantil e outra forma de alcançarem a ressocialização através de suas próprias iniciativas.

A partir do contato com a Teologia, nos ocorreu a necessidade de um discurso teológico desde o chão social (realidade carcerária) em que vivemos. Este "lócus" teológico implica, didaticamente falando, uma atitude de confiança em Deus uma vez que já não esperamos mais nas autoridades constituídas a solução que desejamos, no sentido de que sejam atendidas nossas necessidades, ou melhor, sejam atendidos os direitos[6]que possuímos por lei, posto que hoje em dia existe somente a cobrança dos deveres dos encarcerados(as), e mesmo cumprindo tais deveres, ainda assim, em sua maioria, são negados os direitos que os mesmos possuem.

Sabe-se que tal atitude (confiar em Deus) significa ter fé, que, por sua vez, implica a Teologia que denominamos ser a da Ressocialização. Neste sentido, a Teologia é explicitada pela fé. Sem esta presença da Igreja através da Pastoral Carcerária, não poderíamos ter chegado até aqui, nem tampouco teríamos como contribuir teologicamente através deste trabalho, que tem o objetivo de esclarecer o cotidiano carcerário, apresentar suas necessidades e falhas, chamar a atenção para que sejam adotadas medidas que possibilitem o "resgate" social dos presidiários (as) e a "educação" conscientizadora para a sociedade em geral a respeito de como a mesma atenta para a questão dos encarcerados (as) e a ressocialização dos mesmos, além de anunciar, para os que estão em privação de liberdade, a palavra salvífica que Deus tem para todos nós, e que é preciso acolhermos tal palavra para que nossa situação atual seja transformada para uma realidade melhor, mais humana. Sem a conscientização de cada um, é impossível o "agir" de Deus e a verdadeira ressocialização. Uma teologia assim faz sentido!

3.5 A teologia como uma reflexão crítica à liberdade alienante [7]

Os homens e as mulheres hodiernos conscientizaram-se da dignidade da pessoa humana e, assim, reivindicam a capacidade de agirem segundo as próprias convicções e com uma liberdade responsável que os habilitam a fazerem escolhas e a optarem livremente. O homem torna-se livre à medida que suas ações são livres e sendo responsabilizado por elas. É no seio da sociedade humana que se exerce o direito à liberdade. Pelo fato de serem livres e responsáveis, os ex-presidiários (as) podem conviver em sociedade e participarem do bem-comum (tão somente se tiverem oportunidades). A liberdade lhes proporcionará a capacidade de fazer tudo aquilo que não seja punido por lei, usando esse direito livremente. Ao debruçar-se sobre a temática da liberdade, logo surge à indagação: O que é liberdade? Se "é a faculdade de agir de uma maneira ou de outra, ou de não agir", (ROCHA 1996), pode ser também no sentido de ser livre de um cárcere.

Discute-se hoje sobre o papel e a importância da liberdade (que, a nosso ver, quer dizer também a ausência de sujeição e de subordinação em todas as suas formas alienantes), embora isto possa assemelhar-se paradoxal, a livre escolha de uma regra (lei) não significa sujeição nem tampouco subordinação, ao contrário, é "escrevendo a liberdade". O compromisso que daí deriva é a obediência ou não, ou seja, os nossos atos podem ser moralmente aceitáveis ou inaceitáveis. Por tais razões, diz o filósofo existencialista Gabriel Marcel: "o homem é o homem que pode prometer e pode trair". Essa situação aparentemente contraditória significa que para sermos verdadeiramente livres, temos a possibilidade sempre aberta de errarmos (transgredir as normas), embora se tais normas fossem escolhidas por nós. Contrapondo-se ao determinismo, há de se falar em escrevermos nossa liberdade, ou, aliás, reescrevê-la, com o poder de escolher um caminho melhor independentemente das forças que nos constrangem (preconceitos, discriminações) como pessoas em privação de liberdade e/ou egressos.

Admitindo-se a existência de tais forças, faz-se necessário o reconhecimento do ato livre em que se perfaz a liberdade humana (verdadeira liberdade, ou seja, não-alienante). Quando se fala de liberdade vem à tona a questão da transcendência, segundo a qual o homem executa o movimento de ultrapassar a si mesmo. A transcendência é a dimensão da liberdade. Sendo assim, a liberdade não é tida como um dom, nem como ponto de partida, mas uma difícil tarefa e algo a ser conquistado pelo homem (presidiários/as). "A liberdade não deve ser encarada como ausência de obstáculo" (ARANHA e MARTINS, 1986, p. 31), mas como o desenvolvimento da capacidade de dominar e de superar os obstáculos. O pensamento avançou muito no que diz respeito à liberdade enquanto as Instituições permaneceram "arcaicas", não existindo a linguagem neutra. Entrementes, a linguagem da liberdade tem conseqüências, haja vista que no uso de qualquer liberdade se deve respeitar o princípio da responsabilidade pessoal e social.

A matriz da liberdade é a linguagem, é a fala que nos liberta através da sabedoria em práxis. Não adianta dizer que somos livres porque estamos em "liberdade" através do "alvará de soltura". Tal "liberdade" falsa, inautêntica, irreal e alienante é a realidade dos ex-presidiários (as) no Brasil. Nós não estamos "livres" enquanto a sociedade não se propõe a si mesma "o princípio de co-responsabilidade inevitável"[8],( CURY 2005. p. 29) reconhecendo na situação atual (criminalidade, "acorrentabilidade"=não-liberdade, preconceito contra egressos(as) das prisões) a sua culpabilidade, não haverá a verdadeira liberdade. As pessoas não são livres simplesmente porque "ganham" a liberdade. A verdadeira liberdade consiste em dar a cada um de nós as condições e oportunidades juntamente com os elementos necessários para lograrmos a reinserção social, uma vez que somos pessoas, seres distintos e não "coisas", que é como somos tratados. É preciso dar uma oportunidade real para que se acheguem à verdadeira liberdade. As pessoas estão sendo postas em liberdade sem serem recuperadas e ressocializadas através de uma proposta concreta de inclusão social, sem a qual o resultado sempre será a grande incidência de recidiva. Sem sombra de dúvida, se a maioria das pessoas em privação de liberdade permanecem "irrecuperáveis" e não-ressocializadas, é porque a sociedade permanece indiferente e preconceituosa em relação a elas (através dos seus representantes que administram as instituições carcerárias) e isto, seguramente, provoca o caminho inverso no que tange à verdadeira liberdade a ser escrita por cada um de nós.

Acreditamos que a prisão em si não transforma ninguém para melhor, pois a desumanização reinante no sistema carcerário as revoltam. Quem as transforma são pessoas humanizadas com suas ações transformadoras e ressocializadoras, podendo assim culminar em sua eventual reeducação, reinserção, reintegração à sociedade donde um dia saíram. Há de se salientar que o nosso medo mais profundo não são as grades, mas essa não-liberdade intitulada de "liberdade" e o medo de continuarmos discriminados e rejeitados pela sociedade mesmo quando já cumprida a pena imposta pela justiça. É a nossa luz não-reluzida de imanência e não a "escuridão" carcerária o que nos atemoriza, acarretando num fenômeno contraditório e paradoxal de "não-liberdade" embora "em liberdade". Neste sentido, a sociedade faz "bandidos" quando se recusa de forma sistemática (desumana) de aceitá-los de volta em seu seio, quando o estigmatiza (taxando os egressos (as) de imprestáveis), deixando de lhes dar uma nova chance de recomeçar e de reconstruir suas vidas. Não podemos falar em verdadeira liberdade enquanto não nos eliminarmos dessa liberdade alienante, que tem se evidenciado no sistema carcerário de nosso país. A sociedade precisa entender que não basta colocar uma pessoa "em liberdade" sem as oportunidades para que tal pessoa não venha a cometer novos delitos devido justamente esta falta de perspectivas ou por preconceitos. A sociedade também deve ser reeducada para perceber que a liberdade verdadeiramente liberativa é a liberdade não-alienante que todos nós clamamos.

3.6 Uma visão humanística dos encarcerados a partir de Paulo Freire[9]

Mais uma vez, os homens (a humanidade), desafiados pela dramaticidade da hora atual (criminalidade), não se propõem à si mesmos com o problema, e descobrem que pouco sabem de si próprios e do seu "lugar" no mundo, inquietando-se por querer saber mais, pelo reconhecimento do seu pouco saber de si e, consequentemente, dos seus "cidadãos" à margem da sociedade e da lei (presidiários). Indaga-se, nesta conjuntura, para que se prende um marginal se o mesmo não sairá recuperado. Na maioria das vezes, saem piores de que quando entraram na prisão. Do ponto de vista axiológico, o problema central do sistema penal brasileiro chama-se "desumanização" (ou não-humanização). A partir desta dolorosa constatação, é que se verifica um grande movimento de motins e de rebeliões, pois violência só gera violência. Não há mais dúvidas de que os tumultos nestes lugares são reflexos da desumanização reinante nos presídios e da inoperância e ineficiência do aparelho oficial do Estado ao lidar com as pessoas em privação de liberdade. Tais pessoas são tratadas como "não-pessoas", o que gera o sentimento de revolta por parte das mesmas.

A desumanização não se constata somente nos que têm a sua humanidade roubada e ceifada num sistema carcerário falido, inútil e incapaz de regenerar e recuperar quem quer que seja, mas também pela sociedade dirigida pelo grupo social que se alimenta dos seus interesses particulares. Finge como se fosse de seu interesse e do bem-comum, alegando que a população carcerária, de maioria pobre, analfabeta e de negros, estão no presídio por opção, ao invés da exclusão e das desigualdades sociais, como a da má distribuição de renda. A violência do sistema opressor (sistema penal) que nos faz "bandidos" e desumanizados, não instaura alternativa a não ser a do mantimento do status quo, sem o qual (a não-erradicação da criminalidade) estas pessoas que trabalham neste sistema estariam desempregadas. Daí a grande tarefa histórica dos encarcerados, sem exceção: de se conscientizarem através da educação e se libertarem do medo de preconceitos, pois só a força que emana da sua debilidade será suficiente para libertá-los (educação, já!!!).

Diante desta realidade (criminalidade), o presídio tornou-se uma "fonte inesgotável" de geração de riquezas. Por isso que o poder desta sociedade injusta, quando se pretende amenizar ante a debilidade dos encarcerados, porta-se de uma forma falsamente generosa, apenas para manter a situação vigente (permanência da criminalidade). A ordem social injusta (imposta pela minoria dominante), é a fonte geradora da criminalidade (através da lógica do mercado "neo-liberalista", que valoriza o "ter" em detrimento do "ser"), nutrindo-se assim da morte, do desalento e da miséria do povo. "Há, portanto, uma relação profunda e íntima entre violência e os mais pobres [...] Bem como entre eles e as injustiças sociais, poder político opressor e cobiça". Destarte, o governo, para se eximir de qualquer responsabilidade, insinua que os únicos culpados pela violência são os "marginais" (as pessoas encarceradas), isto é, os únicos responsáveis pelo quadro de violência existente em nossa sociedade.

Ainda no que tange à criminalidade, geralmente se ouve que "o "bandido" está solto enquanto o "cidadão" está "preso" em sua própria casa", mas quase nada se fala do governo que em si mesmo é violento, sutil (através do seu sistema "neoliberal"), invadindo as camadas sociais deixando-as sem nenhuma proteção, embora estas paguem caríssimos impostos embora não os recebendo de volta em forma de benefícios sociais (tal como manda a Constituição), caracterizando, dessa forma, um "assalto oficializado". A omissão do Estado, neste sentido, é um flagrante indício de sua função marginalizadora da população desassistida pela falta de suas necessidades elementares tais como saúde, alimentação, moradia, emprego etc., negadas pelo governo. Sabe-se que o problema da violência (e não é apenas a da criminalidade) é o resultado da falência estrutural pela que as Instituições estabelecidas estão passando, em que tal processo não é reconhecido pelos os que estão à frente das mesmas, alegando que a fonte geradora de violência refere-se somente aos que cometem crimes, sendo estes os únicos responsáveis pelo crescimento do nível de violência em nosso país. Todos nós precisamos ser conscientes de nossos erros, nossas limitações, dos nossos direitos e dos nossos deveres. Quando isto acontecer, então se chegará aos patamares de paz e de justiça que todos almejamos, pois somente desta forma é que chegaremos a tal objetivo.

CONCLUSAO

A Finalização deste trabalho entendemos a relação de Deus para com os marginalizados como sendo compassiva, demonstrando solidariedade. Apresentamos "os clamores surdos" dos presos, com o intuito de chamar a atenção de Deus para a temática da desumanização reinante nos presídios.

O chamado de Jesus aos encarcerados teve uma resposta positiva, quando estes o seguem, mostrando a sociedade que há uma pedagogia a partir dos excluídos. Ao serem chamados, os menos "dignos" acolhem a mensagem de Jesus, sendo porta-vozes deste Evangelho. Nessa acepção, a Teologia da Ressocialização (TDR) foi apresentada como uma nova doutrina de salvação para os "perdidos" e confirma-se que a partir da teologia da ressocialização, os encarcerados são libertos e reeducados para uma nova vida, e que, dentro dessa neologia soteriológica, compreende-se que Deus tem uma palavra de amor, perdão e acolhimento para todos (incluindo os encarcerados) mostrando que as pessoas em privação de liberdade, em suas desesperanças, necessitam da teologia da ressocialização. Destarte, uma releitura e reinterpretação da realidade carcerária propuseram perspectiva ressocializadora do homem aprisionado, através da fé, propondo a denúncia da desumanização existente nos presídios e nas penitenciárias do Brasil.

Partes: 1, 2, 3


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