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A saga do São Sebastião Tumbeiro o último galeão ou o tumbeiro malê (página 2)

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu
Partes: 1, 2, 3, 4

Negro Fugido

Misericórdia! Povo Tutsi irmão de povo Wunji! Somos irmãos! Irmãos!

Escurecimento lento.

PARTE I – O MAR

PRIMEIRA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

Som de ondas suaves batendo no cais. O Almirante e capitão-de-assalto Pedro Sá está em pé na proa do galeão São Sebastião olhando o horizonte. Antônio Maria seu contra-almirante enrabadiço aproxima-se.

Antônio Maria

Capitão?!

O Capitão não responde.

Antônio Maria

Admirando o mar de Djibuti?

O capitão não responde.

Antônio Maria

Preocupado meu comandante?

Capitão Pedro Sá

(Suspirando) Um pouco triste...

Antônio Maria

Saudade da vida no continente?

Capitão Pedro Sá

Lembranças do tempo em que não havia naus, nem fragatas; quando os galeões reinavam absolutos nos mares...

Antônio Maria

Mas o senhor não vai assumir brevemente o comando da nau Santiago dos quintos da coroa Portuguesa?

Capitão Pedro Sá

Vou sentir falta do meu velho navio de combate. Este galeão é a minha vida.

Antônio Maria

Teremos vida melhor numa nau. Virar tumbeiro é muito triste para um navio de guerra. E ser Capitão-de-assalto também não faz jus à sua qualificação náutica, almirante.

Capitão Pedro Sá

Esta será nossa derradeira viagem. Chegou a hora de aposentar o velho São Sebastião, o último galeão. Também de encerrar a minha carreira como mercenário e Capitão-de-assalto. Depois da entrega das peças no Rio de Janeiro, voltaremos a Lisboa para ancorar definitivamente o São Sebastião no Porto.

Antônio Maria

Já planejou a rota, capitão?

Capitão Pedro Sá

Será uma longa jornada. Daqui de Djibuti, após o embarque das matrizes malês oriundas de Adizadeba, e da carga da China, seguiremos até Maputo para abastecimento de víveres em Moçambique. Será uma parada rápida. De lá, seguimos para Madagascar para a recolha da rainha negra imaculada – a peça mais preciosa da nossa carga. Dela e de mais duas outras fêmeas boas reprodutoras que ainda estão amamentando.

Antônio Maria

Fêmeas a bordo com crianças de colo serão um problema

Capitão Pedro Sá

Elas não podem ser tocadas, sobretudo a rainha imaculada.

Antônio Maria

Este é o trabalho do contra-mestre enrabadiço: aliviar a tensão dos machos a bordo; zelar pela integridade física das fêmeas embarcadas. O senhor já viu o tamanho das matrizes malês?

Capitão Pedro Sá

(Irônico) Você está preparado para eles, Antônio Maria; afinal são milhas e milhas de atendimento às necessidades da marujada – e as minhas também. (Risos) Há quanto tempo é enrabadiço?

Antônio Maria

Desde quando entrei neste galeão pela primeira vez... Eu era quase uma criança.

Capitão Pedro Sá

(Sedutor) Gosta da vida de enrabadiço?

Antônio Maria

Se não gostasse já teria deixado de navegar ao fim da primeira viagem.

Capitão Pedro Sá

(Galante e sensual) Está cada vez mais folgada, macia e quente a sua "fenda".

Antônio Maria

A forma adquire-se com a experiência; e o hábito das penetrações... (Insinuante) Sinto que o meu capitão já está com melhor humor...

Capitão Pedro Sá

Que seria da tripulação de um navio de guerra sem os enrabadiços?!

Antônio Maria

Não haveria sexo consentido sobre as ondas: os estupros se sucederiam; as brigas seriam constantes; a intranqüilidade do sono dos machos pertubaria seu justo e merecido repouso. Não é isso o que justifica a atividade dos contra-almirantes enrabadiços a bordo?

Capitão Pedro Sá

Sim. É isso. Como eu estava a dizer, de Madagascar, seguiremos até O Cabo da Boa Esperança - para o embarque de uma missionária inglesa protestante removida da África do Sul com destino ao Brasil. Do Boa Esperança vamos a Luanda para a subida de três alabês angolanos e seus tambores – peças encomendadas que também nos serão úteis para manutenção do ritmo dos remos quando houver calmaria. De Angola, rumamos para Dacar, no Senegal. Alí será feito abastecimento de água potável. De lá, rumaremos para Cabo Verde onde embarcará um padre designado pároco de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, com uma imagem de São Sebastião em boa madeira e de tamanho natural. Também subirá bacalhau salgado e rum para nosso uso e consumo. Ali recolheremos os preservativos de tripa de porco para a prática do sexo seguro a bordo. Não quero marinheiros com doenças venéreas no meu navio. Ao sairmos de Cabo Verde, apenas quando estivermos em alto mar, desacorrentar apenas os negros malês e atender suas necessidades – um a cada vez, no tombadilho, em sua camarinha. Manter as fêmeas na camarinha das negras todo o tempo. Permitir ao pároco visitar os negros na galé e à missionária inglesa as negras em sua camarinha, mas isso exclusivamente durante o dia, até ancorarmos definitivamente na baia de Guanabara. Antes, temos uma parada na baía de Todos os Santos para a decida das peças malês e dos alabês angolanos. De lá seguiremos sem paradas até o Rio de Janeiro. Ao chegarmos alí passaremos uns três dias desfrutando nossa justa recompensa com as mulheres do cais, tomando vinho e nos fartando de boa comida para só então finalmente retornarmos à Lisboa e aposentar em definitivo o São Sebastião. Mandaremos celebrar uma missa na igreja da misericórdia em louvor à Nossa Senhora da Boa Esperança, agradecendo sua proteção durante toda a nossa longa viagem.

Antônio Maria

Que assim seja!

Capitão Pedro Sá

Verificou se foram embarcados todo o carregamento de pólvora e seda da China?

Antônio Maria

Sim.

Capitão Pedro Sá

Então está tudo pronto para a subida dos malês e dos outros negros?

Antônio Maria

Já se encontram perfilados acocorados, acorrentados e nus para a triagem.

Capitão Pedro Sá

Separou os "cortados" dos não circuncidados?

Antônio Maria

Os malês já foram previamente apartados.

Capitão Pedro Sá

Verificou as correntes e cadeados da galé?

Antônio Maria

Sim.

Capitão Pedro Sá

Muito bem. Vamos embarcá-los!

 

Descem a prancha até o cais onde estão os dois escravos malês e outros negros perfilados, nus e acorrentados pelos pés. A tripulação a bordo e curiosos no cais assistem com interesse a triagem.

Antônio Maria

Levanta! De pé! (Sinaliza para o primeiro escravo não malê tentando traduzir o que diz para o ioruba) Abre a boca! (Inspeciona os dentes e gengivas) Arregaça o cacete! (Faz gesto demonstrando a ação requerida com o cabo do archote. Risos da tripulação e de curiosos) Vira de costas! Fica de quatro! De quatro! (Examina o ânus do escravo com um rápido exame de toque. Lava a mão em um balde d"água). Vá para ali! Para aquele lado! (Dirige-se ao próximo escravo) Agora você! (Repete os mesmos procedimentos) Vá para onde está o outro malê! O próximo!

Durante o exame do terceiro escravo não malê descobre um objeto em seu ânus.

Antônio Maria

Ora, ora, ora... O que temos aqui?! (Lavando o objeto encontrado) Uma barra de ouro meu Capitão! (Para o terceiro escravo) Levanta! Como é seu nome negro?

O terceiro escravo não responde.

Antônio Maria

(Estalando o archote no solo) Fala negro! Fala!

Terceiro Escravo

Zulu.

Marujo

(Off) É o cú de ouro!

Risos e molecagem da tripulação e dos curiosos.

Antônio Maria

Onde conseguiu este ouro?

Terceiro Escravo

É meu!

Antônio Maria

Era seu... (Passa a barra de ouro ao capitão) Agora é do capitão!

Capitão Pedro Sá

(Para o terceiro escravo) Sabe nadar?

Terceiro escravo responde afirmativamente com a cabeça.

Capitão Pedro Sá

Já navegou antes?

Terceiro escravo responde afirmativamente com a cabeça.

Capitão Pedro Sá

(Para Antônio Maria) Tire-lhe as correntes. (Para Zulu) Suba e ajude a tripulação com as velas. (Referindo-se à barra de ouro) Isso fica comigo. (Para Antônio Maria). Embarque os dois malês e os outros negros selecionados levando-os diretamente para a galé.

Antônio Maria conduz os dois negros malês e os outros dois escravos pela rampa.

Antônio Maria

(Para os negros selecionados e os malês) Vamos!

Capitão Pedro Sá

(Para a tripulação subindo a rampa) Recolham a rampa! Abram as velas! Içar âncoras!

Música, agitação e ruído do trabalho a bordo. Vozes da tripulação. Escuro.

SEGUNDA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

O Capitão acompanhado de Antònio Maria adentra a camarinha da Imaculada.

Capitão Pedro Sá

Não se preocupem. Ninguem irá molestar vocês.

As mulheres se entreolham em silêncio.

Capitão Pedro Sá

Caso precisem de alguma coisa, toquem este sino.

Entrega um sinete (adjá) à rainha imaculada e deixa a camarinha das mulheres seguido por Antônio Maria.

Capitão Pedro Sá

Maria, Como estão os víveres embarcados em Maputo?

Antônio Maria

Aparentemente, gozam de boa saúde.

Capitão Pedro Sá

Encarregue Zulu da limpeza do convés lavado onde estão os animais.

Antônio Maria

Qual a previsão de chegada do São Sebastião ao Cabo da Boa Esperança?

Capitão Pedro Sá

Se o vento estiver a nosso favor, uns oito dias.

Antônio Maria

Os malês pedem para rezar em direção a Meca uma vez por dia.

Capitão Pedro Sá

Desde que permaneçam acorrentados, estão autorizados.

Antônio Maria

É certo o embarque da missionária na África do Sul?

Capitão Pedro Sá

Espero que sim. Pois se já pagaram metade do preço do embarque dela?! A outra metade vão dar quando a "crente" descer no Rio de Janeiro. Os ingleses tem muito dinheiro.

Antônio Maria

Seguimos com a bandeira da coroa portuguesa?

Capitão Pedro Sá

Na costa africana até Cabo Verde, sim. Não há litígio entre as marinhas inglesa e portuguesa. Só trocaremos de bandeira para a travessia do atlântico. Usaremos a flâmula auriverde do Império brasileiro. Fui informado de que os ânimos entre o Brasil independente e a Coroa Portuguesa estão acirrados – apesar de serem farinha do mesmo saco.

Antônio Maria

Talvez fosse o caso de usarmos a bandeira inglesa durante a travessia do atlântico...

Capitão Pedro Sá

Não é adequado. O escravismo foi banido do Reino Unido. Se houver uma eventual abordagem de inspeção e constatarem que estamos atuando como tumbeiro sob a proteção de uma flâmula inglesa, isso vai ser um grande problema.

Antônio Maria

Tem razão almirante. E essa tal missionária não poderá dar com a língua nos dentes?

Capitão Pedro Sá

Ela não precisa saber que transportamos escravos na galé.

Antônio Maria

Mas e quanto à camarinha das peças fêmeas?

Capitão Pedro Sá

Diremos da missa um terço: que se trata de uma rainha negra de Madagascar acompanhada de suas aias, cujo translado nos foi confiado para contrair casamento no Brasil. Não creio que ela se atreva a descer aos convés inferiores onde trabalham os homens na galé nem tampouco fique circulando pelo convés superior onde sempre há marujos em atividade. As mulheres protestantes são muito pudicas. De todo modo...

Antônio Maria

Cuidarei para que isso não aconteça.

Capitão Pedro Sá

Cuide também para que os marujos e negros satisfaçam suas necessidades contigo tarde da noite, e em silêncio, na sua camarinha. As paredes do tombadilho tem ouvidos. Evite atendê-los ao ar livre. Lembre-se que a missionária não estará confinada como as fêmeas de Madagascar. Atendimento só após deixarmos Cabo Verde, durante a travessia do atlântico. Na costa africana só priapismo mesmo.

Antônio Maria

Sim meu capitão.

Soa o sinete.

Antônio Maria

Começou a perturbação!

Capitão Pedro Sá

Tenha paciência com estas peças fêmeas: elas são especiais. Valem muito!

Escuro.

TERCEIRA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

Grande movimentação a bordo do galeão ancorado agora no cais de Cabo Verde, para a subida da pesada imagem de São Sebastião. O pároco acompanha com alguma aflição o embarque da imagem.

Pe. Medeiros

Tenham cuidado! Podem danificar a escultura. É arte sacra!

Antônio Maria

Acalme-se padre. Conhecemos o nosso ofício.

Pe. Medeiros

Assim espero.

Ouve-se os atabaques angolanos soando um aguerê de Oxossi.

Pe. Medeiros

(Referindo-se ao toque dos atabaques) O que significa isso? (Incomodado) Não se trata de festa!

Antônio Maria

São alabês angolanos que animam com música a atividade laboral extenuante da tripulação.

Pe. Medeiros

Não sabia que permitiam música profana a bordo.

Antônio Maria

A atividade física rende mais e melhor quando o ritmo é cadenciado por música.

Pe. Medeiros

(Para Antônio Maria, impaciente) Está bem, está bem. (Aos marujos enredados no transporte da imagem) Cuidado aí! Está balançando muito. Não deixem a escultura se chocar com as paredes da embarcação!

O pároco sobe a rampa e adentra a nave. Continua prescrevendo procedimentos de segurança aos marujos encarregados do carregamento do objeto sacro. O Capitão aproxima-se de Antônio Maria.

Capitão Pedro Sá

(Entregando a Antônio Maria uma pequena bolsa de couro) Aqui estão os preservativos! Corre tudo bem com o embarque da imagem?

Antônio Maria

(Guardando os preservativos) Sim. Já está praticamente finalizada a operação. A carga de bacalhau e rum encontra-se adequadamente acondicionada a bordo. O baú do pároco também já foi levado para a camarinha que ele ocupará.

Capitão Pedro Sá

Então podemos iniciar os procedimentos de partida?

Antônio Maria

Vou perguntar ao padre se ele está pronto para invocar Nossa Senhora da Boa Esperança.

Capitão Pedro Sá

Sim. Reuna toda a tripulação no convés superior para a missa. Diga-me: como está o estoque de água potável embarcada em Dacar?

Antônio Maria

Temos água suficiente para a travessia do atlântico. E uma reserva para mais uma semana além do tempo previsto de viagem.

Capitão Pedro Sá

Tem certeza que não precisaremos de mais água além da que subiu a bordo no Senegal?

Antônio Maria

Sim.

Capitão Pedro Sá

Eu vou convidar pessoalmente Miss Doroty para acompanhar o ofício. Penso que ela não vai se recusar a rezar conosco. Faça o hasteamento da bandeira do Império do Brasil no mastro principal para a travessia.

Antônio Maria

(Para a tripulação através de amplificação da voz com as mãos) Marujos: ao convés superior, para a missa! Marinheiros, ao convés para missa!

Antônio Maria finaliza o hasteamento da bandeira do Império brasileiro e junta-se à tripulação que se reúne pouco a pouco no convés já preparado para a missa. Burburinho e conversas animadas. Antônio Maria veste bata para servir de coroinha e começa a incensar o convés. O Capitão acompanha Miss Doroty oferecendo-lhe o braço até o balcão de onde tomarão assento para acompanhar o santo ofício.

Capitão Pedro Sá

Está satisfeita com as acomodações Miss Doroty? São modestas mas limpas - e seguras. Está lhe faltando alguma coisa?

Miss Doroty

(Com forte sotaque britânico) No. Nada. Tudo muito boa!

Capitão Pedro Sá

Agradeço-lhe atender ao meu convite para comparecer a missa em louvor a Nossa Senhora da Boa Esperança. Somos católicos mas, assim como os protestantes, cultuamos o mesmo Deus de Davi.

Miss Doroty

Sim. I know. (Com forte sotaque, abraçada á bíblia sagrada) Eu concorda.

Capitão Pedro Sá

(Oferecendo-lhe assento na cadeira reservada para ela) Sente-se, por favor.

Miss Doroty

Obrigada. O senhor ser gentleman!

Capitão Pedro Sá

Com sua licença. Volto já. I Will come back in a while.

Miss Doroty

You are welcome.

O capitão dirige-se ao pároco e o autoriza a iniciar o ofício. O padre termina de vestir a estola sagrada e segue para o altar improvisado diante da imagem embarcada de São Sebastião. O capitão retorna ao balcão e toma assento ao lado de Miss Doroty.

Miss Doroty

A jovem virgem noivo negra no vai acompanhar missa?

Capitão Pedro Sá

A tradição islâmica prescreve recolhimento absoluto das virgens prometidas em casamento Mrs. Doroty.

Miss Doroty

Oh, of course. Yes!

Pe. Medeiros

Irmãos, antes de rezarmos juntos a invocação e súplica a Nossa Senhora da Boa Esperança, padroeira da tripulação, considero oportuno falar um pouco do Santo que dá nome a este galeão: São Sebastião. Não vou me alongar atendo-me apenas a um breve relato de sua escorreita conduta cristã... Sebastião foi oficial do exército romano e viveu no terceiro século da era Cristã, na época em que reinava Diocleciano. Por ter se convertido ao cristianismo e divulgar a palavra de Cristo foi denunciado e preso. O imperador tentou fazê-lo abjurar da sua fé em vão e o condenou à morte, cuja sentença foi cumprida por arqueiros. Mas, crivado de flexas, o corpo de Sebastião foi retirado do tronco no qual se encontrava agonizante e levado por Santa Irene à sua residência, onde se restabeleceu milagrosamente em poucos dias. Restaurada sua integridade física voltou a apresentar-se ao Imperador que desta vez o condenou a ser açoitado até a morte no ano de 225 da Era Cristã - tendo ordenado que o seu corpo fosse lançado, para horror dos cristãos, na fossa de Roma. Desde então sucederam-se milagres testemunhados por seus adoradores. Tornou-se patrono dos soldados e guerreiros, e seu protetor - particularmente por livrá-los da peste. (Rumor junto à tripulação. Marujos fazem seguidamente o pelo-sinal) Não por acaso este galeão recebeu o nome de São Sebastião. Sua tripulação jamais foi alcançada pela peste – infortúnio que condenou muitas embarcações a vagarem a esmo fantasmagoricamente com vela negra pelos mares. (Levantando a cruz do terço de madeira que serve de cinturão à sua batina acima da cabeça) Louvado seja São Sebastião, guerreiro de Cristo!

Fieis

Louvado seja!

Pe. Medeiros

Rezemos, a pedido do Almirante Pedro Sá, em uníssono, à Nossa Senhora protetora dos navegantes:

Ó Maria, volvei a nós vosso olhar maternal.

Acudi em socorro d"estes filhos de Eva, que assaltados pelo furor das ondas no mar proceloso da vida,

Se veem cercados de horríveis monstros que tentam submergi-los e devorá-los.

Mãe amantíssima; sentimos a firme confiança de que não nos abandonareis nunca,

De que nos sustentareis na luta,

De que aplacareis a tempestade e refreareis os inimigos de nossas almas;

E viremos a ser felizes podendo entrar em porto seguro, após a arriscada viagem,

Sem ter ofendido ao nosso dulcíssimo Jesus,

Nós arrependidos e perdoados de todas as nossas culpas.

Sim, nós amamos, e infinitamente, esse Jesus que vós nos apresentais como nosso Salvador, nosso Pai, nosso Tudo.

Jesus será, agora e sempre, o objeto dos nossos suspiros, dos nossos pensamentos e do nosso amor.

Não tememos, por isso, nada mais.

Jesus e Maria – Maria e Jesus, serão no encapelado mar de nossas vidas, nosso conforto, nossa guia, nossa luz, nossa estrela, e um dia a nossa felicidade na glória inefável do Paraiso.

No irado mar, entre a procela,

É a ti que invocamos, benigna estrela!

Fiéis

Amém!

Capitão Pedro Sá

(Para Miss Doroty) Com sua licença, senhora. (Para a tripulação) Levantar âncoras, desatracar a nave!

O Capitão conduz Miss Doroty de volta à sua camarinha. Antônio Maria recolhe os apetrechos usados na missa e acompanha o pároco. Movimentação e rumor dos marujos em procedimentos para a partida do barco.

Antônio Maria

Galé: movimentar remos!

Soam os atabaques em "adarrum". Escuro.

QUARTA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

Entardecer. A bizarra tripulação do galeão passa o tempo ociosamente. Ao som dos atabaques dos alabês angolanos Alguns se tatuam, uns jogam cartas, outros duelam exercitando-se no uso das espadas e no lançamento de facas, pescam, sobem nos mastros para costura das velas dando shows de acrobacias, bebem rum, gargalham, dançam e brincam com seus animais de estimação: um macaco e um papagaio. Tudo lembra um circo. O Capitão Pedro Sá refresca-se com um abanico chinês de forma elíptica, em papiro, com cabo de madeira na companhia de uma garrafa de rum. Antônio Maria está terminando de fazer a barba com sua faca e utiliza uma vasilha com água como espelho. Realça a maquiagem negra nos olhos com carvão, substitui o lenço que usa sob o chapéu e ajusta as argolas de prata que carrega nas orelhas. Tira e repõe os longos coturnos sacudindo a poeira deles um a um. A tripulação aos poucos se recolhe. A noite chega. Maria conclui o asseio do rosto, pega a garrafa de rum ao seu lado, toma um longo trago, e dirige-se ao convés inferior levando uma lanterna portátil iluminada a óleo de baleia que acaba de acender. Os dois negros malês, de joelhos, na galé, rezam contritos a Alá em seu compartimento exclusivo, posicionados com a fronte em direção à Meca.

Antônio Maria

(Para os malês, levemente alcoolizado) Terminaram?

Respondem afirmativamente com a cabeça. Antônio Maria se dirije a um deles.

Antônio Maria

Você! Vem comigo.

Os malês se entreolham. Antônio Maria conduz o negro malê até a sua camarinha iluminando o caminho com a lanterna. Fecha a porta e solicita-lhe que entre no tonel para banhar-se. Apenas a luz bruxuleante da lanterna ilumina a cena. Oferece-lhe rum encorajando-o a beber. O negro toma todo o líquido de um só trago e despe-se entrando em seguida no tonel. Soam os atabaques. Maria auxilia o negro malê a lavar-se, bolinando-o.

Antônio Maria

Vou fazer você relaxar a tensão. Levante-se.

O negro obedece-lhe e permanece com as nádegas e pênis fora das bordas do tonel. Maria percorre com o cabo do archote toda a superfície da exuberante musculatura do escravo malê, provocante.

Antônio Maria

(Susurrando) Você quer?! Está necessitado é?

O negro permanece calado. Antônio Maria pratica-lhe felação. O negro finalmente segura com as duas mãos a cabeça de Antônio Maria imprimindo ritmo acelerado a sua ação erótica.

Antônio Maria

(Interrompendo a felação, baixinho) Calma negão! Isso é só o começo...

Antônio Maria mostra-lhe o preservativo.

Antônio Maria

(Provocante) Já usou?

O negro malê diz que não com a cabeça.

Antônio Maria

É assim... (Desenrolando o preservativo sobre o pênis erecto do negro malê) Tem que dar... Aguenta firme! (Referindo-se à dificuldade de vestir o preservativo no pênis do male) Incomoda?

O negro mais uma vez diz que não com a cabeça. Antônio Maria entra no tonel, abaixa as calças e se posiciona de costas para o escravo. O negro malê abraça-lhe por trás e penetra-o animalescamente com avidez. Luz desce em resistência. Música.

QUINTA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

Noite. O negro malê atendido por Antônio Maria retorna à galé devorando um naco de pão.

Primeiro Escarvo/Guerreiro Malê

O que ele queria?

Segundo Escravo/Guerreiro Malê

(Dando ao companheiro o restante do pão) Cumprir o oficio de enrabadiço.

Primeiro Escravo/Guerreiro Malê

Indagou alguma coisa sobre a nossa missão?

Segundo Escravo/Guerreiro Malê

Não. Nada. Me deu rum. Banhou-me. Praticou sexo oral e anal comigo. Me deu boa comida.

Primeiro Escravo/Guerreiro Malê

O próximo serei eu?

Segundo Escravo/Guerreiro Malê

Estava mesmo precisando despejar a porra acumulada do saco. O contra-almirante é profissional: agüenta bem a pressão. (Risos contidos) Usou tripa de porco para vestir meu cacete antes de me deixar penetrar-lhe o traseiro. Vexame: quase não coube...

Primeiro Escravo/ Guerreiro Malê

Incomoda?! (Segundo escravo franze a testa) A tripa de porco?

Segundo Escravo/ Guerreiro Malê

Não. Só dificulta um pouco o gozo... Ficou muito apertada!

Primeiro Escravo/ Guerreiro Malê

Será que ele vai me atender hoje ainda? Acabei ficando excitado com o seu relato.

Segundo Escravo/ Guerreiro Malê

Penso que não. O contra-almirante deve estar com o rabo esfolado da surra de cacete que eu dei nele.

Risos contidos. Escuro. Foco sobre o capitão Pedro Sá só na proa observando as estrelas. Antônio Maria aproxima-se.

Antônio Maria

O que está observando capitão?

Capitão Pedro Sá

A Cruzeiro do Sul. Veja: Ali!

Antônio Maria

Já estamos próximos à costa brasileira então...

Capitão Pedro Sá

Falta pouco agora... Em breve avistaremos terra. (Pausa) Estamos preparados para as tempestades tropicais? Elas costumam ocorrer também nesta época do ano no atlântico sul.

Antônio Maria

A tripulação já foi alertada desta possibilidade.

Capitão Pedro Sá

Cuide para que os passageiros e as peças também sejam alertadas sobre os procedimentos de segurança a serem observados durante uma eventual tormenta...

Antônio Maria

Já fiz isso.

Capitão Pedro Sá

É certeza enfrentarmos tormenta daqui para a frente. Lembre-se que temos de fazer uma parada na Baía de Todos os Santos para entrega da peças malês e dos alabês angolanos antes de seguirmos para o Rio de Janeiro. Teremos assim tempo e condições para corrigir possíveis avarias na nave após vencermos as tempestades.

Antônio Maria

Sim.

Capitão Pedro Sá

A flâmula auriverde continua tremulando no mastro principal? (Maria responde afirmativamente com a cabeça) Creio que os conflitos entre o exército português e as tropas independentistas brasileiras já devam ter sido resolvidos favoravelmente ao Império do Brasil. O governo do imperador recrutou mercenários para combater a resistência portuguesa na Cisplatina, Piauí, Maranhão, Grão-Pará e Bahia.

Antônio Maria

Tem certeza do desfecho favorável aos brasileiros?

Capitão Pedro Sá

Certeza, não. Mas quem tem os serviços do Lobo do Mar a seu favor certamente sairá vencedor.

Antônio Maria

O Lobo do Mar está a serviço de D. Pedro I?

Capitão Pedro Sá

Disso não tenho dúvida. Fui informado que Lorde Cochrane foi feito Marquês do Maranhão pelo Imperador! (Pausa) É... Depois de servir a Napoleão o sagaz Lobo escocês migrou para a América contratado a peso de ouro.

Antônio Maria

Temos mesmo que adentrar a baía de Todos os Santos? E se a Província da Bahia ainda estiver em poder dos portugueses?

Capitão Pedro Sá

Temos que correr o risco. É preciso honrar o compromisso de entregar os guerreiros malês e os alabês angolanos em Salvador – isso nos renderá uma boa quantia.

Antônio Maria

São guerreiros – os malês?

Capitão Pedro Sá

Sim. Guerrilheiros que servirão a um levante Malê que está sendo orquestrado, em grande sigilo, na capital da província. Mas ninguém mais pode saber. Nenhum outro negro deve saber. A alimentação deles deve continuar sendo reforçada e diferenciada da dos outros. Pagaram caro pelos dois. E também pelo nosso silêncio.

O capitão e Antônio Maria permanecem calados olhando o horizonte. Som de ondas chocando-se ao casco da embarcação.

Capitão Pedro Sá

(Recita Fernando Pessoa)

O meu olhar é nítido como um girassol.

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de vez em quando olhando para trás...

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

Eu sei dar por isso muito bem...

Sei ter o pasmo comigo

Que tem uma criança, se ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como num malmequer,

Porque o vejo. Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender...

O mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso,

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,

E a única inocência é não pensar...[1]

Soa forte o trovão. Relampeja. Uma onda mais forte balança a embarcação.

Antônio Maria

Está começando... (Faz prece a à Senhora das tempestades) [2]

Senhora das tempestades e dos mistérios originais

Quando tu chegas, a terra treme do lado esquerdo

Trazes a assombração

As conjunções fatais

E as vozes negras da noite

Senhora do meu espanto e do meu medo

Senhora das marés vivas e das praias batidas pelo vento

Senhora do vento norte com teu manto de sal e espuma

Há uma lua do avesso quando tu chegas

Há um poema escrito em página nenhuma

Quando caminhas sobre as águas

Senhora dos sete mares

Conjugação de fogo e luz

E no entanto eclipse

Trazes a linha magnética da minha vida

Senhora da minha morte

Quando tu chegas, começa a música...

Ouve-se o sinete soando na camarinha das negras. Os atabaques dos alabês angolanos começam a soar em crescendo o alujá de Xangô.

Senhora dos cabelos de alga

Onde se escondem as divindades

Trazes o mar, a chuva, as procelas

Batem as sílabas da noite

Batem os sons, os signos, os sinais

E és tu a voz que dita

Trazes a festa e a despedida

Senhora dos instantes com tua rosa dos ventos

E teu cruzeiro do sul

Senhora dos navegantes

Com teu astrolábio e tua errância

Tudo em ti é partida

Tudo em ti é distância

Tudo em ti é retorno

Senhora do vento

Com teu cavalo cor de acaso

Teu chicote, tua ternura

Sobre a tristeza e a agonia

Galopas no meu sangue com teu cateter chamado

Pégasso

Senhora dos teoremas e dos relâmpagos marinhos

Senhora das tempestades e dos líquidos caminhos

Quando tu chegas, dançam as divindades

Tudo em ti é uma alquimia

Tudo em ti é milagre

Senhora da energia...

Capitão Pedro Sá

Sim. É ela.

Se a ciência quer ser verdadeira,

Que ciência mais verdadeira que a das coisas sem ciência? [3]

O essencial é saber ver,

Saber ver sem estar a pensar,

Saber vê quando se vê,

E nem pensar quando se vê

Nem ver quando se pensa. [4]

Mas as cousas não têm nome nem personalidade;

Existem, e o céu é grande e a terra larga,

E o nosso coração do tamanho de um punho fechado...

Bendito seja eu por tudo quanto não sei.

É isso tudo que verdadeiramente sou.

Gozo tudo isso como quem sabe que há o sol. [5]

(Dirigindo-se ao tombadilho) Vamos! Maria, toque o gongo. Acorde todos! Recolha as velas, acione os remos...

Antônio Maria faz soar o gongo. Movimentação a bordo. Escurecimento lento ao som do alujá de Xangô. Soam novos trovões. Relampeja. Os remos são movimentados a partir da galé.

SEXTA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

Amanhecer. Marujos mijam no mar. Conversas animadas sobre o enfrentamento da tormenta.

Capitão Pedro Sá

Já contabilizou os prejuízos?

Antônio Maria

Um mastro rompido, algumas velas rasgadas... Perdemos dois botes salva-vidas. Só nos resta um, com capacidade para três passageiros e um marinheiro.

Capitão Pedro Sá

Nem tudo está perdido. Falta pouco para atracarmos no porto da barra – local recomendado para o desembarque dos malês e dos alabês angolanos. Vê?! (Passando-lhe a luneta) Já se avista a exuberante mata atlântica brasileira. Como estão os passageiros?

Antônio Maria

Dormindo após a noite em vigília por causa da tormenta.

Capitão Pedro Sá

É justo que os marujos descanssem. Os negros da galé também. Vou me deitar e tentar dormir um pouco. Acha que está em condições de guardar sentinela?

Antônio Maria

Quando o senhor levantar, descanço eu.

O capitão Pedro Sá se retira para seu camarote. Um marujo permanece em pé aparentemente ainda urinando. Antônio Maria aproxima-se dele.

Antônio Maria

Ainda não acabou com isso, Galego?

Marujo Manuel Galego

Olha só o meu estado...

Antônio Maria

Atendimento só à noite. Você sabe.

Marujo Manuel Galego

Pois se a minha vez foi a da vigília durante a tormenta?

Antônio Maria

Não dá para esperar até escurecer?

Marujo Manuel Galego

Não depende de mim. É mais forte do que eu. Não consigo urinar. Meu cacete está travado de tanta tesão... Vai Maria, me ajuda. Tá todo mundo dormindo... (Afagando-lhe as nádegas) Deixa eu encontrar alívio neste seu traseiro fogoso...

Antônio Maria não responde.

Marujo Manuel Galego

(Beijando-lhe a nuca) Vai, dá pra mim... Dá?! Ham?!... Do jeito que eu "tô" vou derramar logo, não vou demorar... (Masturbando-se) Sou ou não o seu preferido?

Antônio Maria

Está bem. Mas tem de ser rápido. E em silêncio. Estou de sentinela. Vem, vamos acabar logo com essa agonia!

Antônio Maria e o marujo Manuel Galego se dirigem à sua camarinha. Despem-se e entram no tonel de banho, beijam-se e trocam carícias apaixonadas. Ouve-se o som da gaita de um marujo soando melancólica. Galego num arroubo toma o preservativo das mãos de Maria e atirá-o ao mar impedindo-o de protestar com um longo beijo. Os dois se amam voluptuosamente dispensando o preservativo e atingem o orgasmo simultaneamente vibrando em silêncio. Permanecem relaxados e abraçados um ao outro no tonel de banho, refazendo-se da transa flamejante. Um forte estrondo é ouvido e a embarcação estremece. Antônio Maria e o marujo Manuel Galego saltam do tonel e vestem-se às pressas. A imagem de São Sebastião desaba na superfície do convés.

Antônio Maria

O que foi isso?

Marujo Manuel Galego

Parece que fomos atingidos!

Antônio Maria

(Dando pressa ao marujo) Vá rápido Galego! Verifique a proa. Vou checar a popa.

O capitão Pedro Sá sai do camarote apressado.

Capitão Pedro Sá

Maria?!

Antônio Maria

(Terminando de vestir-se) Aqui capitão!

Marujo Manuel Galego

Fomos atingidos! Fomos atingidos! Na proa... Um rombo a estibordo... na galé. Bala de canhão!

Capitão Pedro Sá

Maria, toque o gongo! Reúna a tripulação! (Para o marujo) Galego, desça ao convés inferior e convoque a tripulação para ir drenando a água!

Maria faz soar repetidamente o gongo. Agitação a bordo. O capitão Pedro Sá sobe à torre de observação com uma luneta. A protestante usando um chambre com touca de dormir e o pároco com sua indefectível batina negra deixam suas camarinhas assustados. O capitão desce da torre.

Capitão Pedro Sá

Maria!

Pe. Medeiros

O que está acontecendo?

O capitão não lhe dá resposta e ignora-o por estar atarefado com as providências a serem tomadas. A protestante agarra-se à bíblia sagrada.

Capitão Pedro Sá

O tiro veio da canhoneira do forte de Santa Maria! (Para Antônio Maria) Mude o rumo da embarcação para a ilha de Itaparica e afaste-se da costa de Salvador. Vamos tentar chegar em terra firme do outro lado da baía. Rápido!

Pe. Medeiros

Fomos atingidos?! (Percebendo a imagem caída) Meu santinho!

Capitão Pedro Sá

Reze padre, reze por nós. Vamos tentar chegar próximo à terra antes de naufragar. (Para Antônio Maria) Providencie tudo para o embarque da protestante, dos malês e dos alabês angolanos no bote salva-vidas sob o timão do guarda-marinha Galego. Pode ser que não dê tempo de chegarmos ao outro lado da baia. Solte os outros negros das correntes. O pároco, a rainha imaculada e suas aias permanecem conosco abordo até a chegada de socorro. Diga ao Galego para vir falar comigo!

Correria e agitação a bordo. O marujo Manoel Galego aproxima-se do capitão Pedro Sá seguido por Antônio Maria.

Marujo Manuel Galego

Capitão?!

Capitão Pedro Sá

Galego, você vai assumir o bote salva-vidas e conduzir as peças malês, os alabês angolanos e a missionária inglesa até terra firme. Ao desembarcar na ilha, providencie o translado em segurança, por terra, da missionária com destino ao Rio de Janeiro; e siga com os malês e angolanos para Salvador – a travessia da ilha para o continente é bem curta na contra-costa. Faça os três chegarem a seus destinos a partir de Cachoeira, no recôncavo baiano. Alugue montaria e leve os malês pessoalmente ao Senhor José da Silva, mercador de escravos pela estrada das boiadas, após a campina de Pirajá, logo após a entrada da capital da Província, na parte baixa da ladeira do pelourinho, no sentido praia continente; e receba o pagamento combinado na entrega das peças. Aqui estão os papéis dos negros e a nota de compra e venda dos dois. Os alabês angolanos devem ser entregues em seguida a Pai João do Calabar – no quilombo situado a nordeste da fortaleza de Santa Maria (Entegando-lhe a barra de ouro confiscada de Zulu) Leve esta barra de ouro para pagamento das despesas com transporte e alimentação dos passageiros. Encontro com você depois em Salvador, no cais em frente ao forte de São Marcelo no bordel de Maria das Cobras. Entendido guarda-marinha Manuel Galego?

Marujo Manuel Galego

Sim, senhor Capitão.

Galego se retira. Os alabês chegam ao convés superior com seus atabaques acompanhados pelos negros malês, a missionária e Antônio Maria.

Capitão Pedro Sá

(Para Antônio Maria) Maria, dê embarque à missionária, aos angolanos e às peças malês no bote salva-vidas. Galego está providenciando a aproximação para o emparelhamento do bote. Diga a Miss Doroty que a bagagem dela seguirá depois.

A imagem de São Sebastião tombada com o impacto do bombardeio revela um tesouro nela escondido. O Pe Medeiros ocupa-se em ajuntar as jóias em meio à agitação da tripulação. Desaparece carregando o tesouro em um saco de viagem. O Marujo Manuel Galego retorna apressado tentando localizar o capitão. A rainha imaculada, suas aias, os alabês e a missionária com capa de viagem estão reunidos no convés aguardando o embarque.

Marujo Manuel Galego

Capitão, O Pe Fugiu. Levou com ele o bote!

Capitão Pedro Sá

Fugiu?

Antônio Maria

(Verificando o estado da imagem de São Sebastião) Capitão, a imagem de São Sebastião é "santo do pau oco"...

Capitão Pedro Sá

Ratazana de batina filho de uma égua! Nos enganou a todos!

Antônio Maria

E ainda rezou missa!?

Capitão Pedro Sá

Onde está Zulu?! Traga ele aqui, rápido, Maria!

O capitão tenta visualizar o deslocamento do falso padre no bote roubado. Maria sai rapidamente e retorna com Zulu.

Capitão Pedro Sá

Zulu. Vc sabe nadar bem e rápido, não é isso que me disse?

Zulu

Sim.

Capitão Pedro Sá

Consegue alcançar a nado o bote roubado pelo falso padre?

Zulu

Posso tentar.

Capitão Pedro Sá

(Entregando-lhe uma faca) Então vai, e traga a ratazana de batina e o bote de volta. Será bem recompensado quando retornar.

Zulu coloca a faca entre os dentes e lança-se ao mar. A rainha imaculada entra em transe. Uma das aias sacode o sinete sobre a sua cabeça e entoa uma cantiga sagrada para Yemanjá; os alabês angolanos tocam o ijexá de Oxum. Yemanjá fala através da rainha. Uma das aias traduz o que ela diz.

Negra Escrava/Aia-Ekede

Odô Yá quer o tesouro... Se não lhe derem não haverá salvação... Ela pergunta se vão lhe dar o tesouro? Diz que deve ser devolvido à terra o que dela foi tirado...

Antônio Maria

Capitão, diga que sim!

Capitão Pedro Sá

(Para a negra/escrava aia-ekede) Diga que lhe daremos o tesouro e toda a prataria que houver a bordo se Zulu voltar com o bote e capturar o falso padre...

A negra escrava traduz para o iorubá a promessa do Capitão.

Marujo Manuel Galego

(Em pé na torre de observação) Ele conseguiu! Zulu conseguiu! Está trazendo o bote e o padre fujão!

Cessam os atabaques. A rainha imaculada sai do transe. A missionária cai de joelhos em oração a Deus.

Miss Doroty

(Recita o salmo 121)

Elevo os olhos para os montes:

De onde me virá o socorro?

O meu socorro vem do Senhor,

Que fez o céu e a terra

Ele não permitirá que os seus pés vacilem;

Não dormitará aquele que te guarda.

É certo que não dormita nem dorme o guarda de Israel.

O Senhor é quem te guarda;

O Senhor é a tua sombra á tua direita.

De dia não te molestará o sol,

Nem de noite, a lua.

O Senhor te guardará de todo o mal;

Guardará a tua alma.

O Senhor gurdará a tua saída e a tua entrada,

Desde agora e para sempre... [6]

SÉTIMA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

O falso pároco está amarrado ao mastro principal completamente desnudo semelhante à imagem de São Sebastião embarcada. Um cesto com as jóias do tesouro escondido no "santo" e mais toda a prataria reunida a bordo é embarcado pelos malês no bote salva-vidas ao som do ijexá dos atabaques dos alabês angolanos que já estão dentro da pequena embarcação. Manuel Galego a postos no timão do bote sinaliza para que Miss Doroty desça até o barco.

Miss Doroty

(Resoluta e nervosamente) Eu não vai. Eu fica! Vai esperar socorro. (Senta-se sobre seu baú abraçada á bíblia)

O Capitão ordena que o bote siga para a costa de Itaparica. A rainha negra imaculada toca o sinete repetida e insistentemente saudando Yemanjá em ioruba acompanhada em cântico antifonal pelas vozes das aias-ekedes assistindo reverenciosamente à saída do presente no convés superior do galeão. O bote afasta-se em direção á ilha de Itaparica. A missionária inglesa assiste a tudo em silêncio respeitoso.

Capitão Pedro Sá

(Para o falso padre) Safado! (Esbofeteia-o) Moleque!

Antônio Maria

(Açoitando-o com o archote) Seu "coisa ruim"! "Cê" merece ter o mesmo fim do Santo cuja memória profanou... (Dando-lhe nova chicotada) Cão dos infernos!

Capitão Pedro Sá

Chega Maria! Deixe esse bandido esturricar ao sol sem água nem comida até virar presunto defumado e afundar junto com o galeão...

Zulu

(Descendo eufórico da torre de observação) Capitão! Capitão! O socorro está a caminho... Veja! Lá, uma vela! (Passando-lhe a luneta).

O capitão sobe rapidamente na torre de observação.

Capitão Pedro Sá

Valei-nos Nossa Senhora da Boa Esperança! São as armas do Marques do Maranhão, é a bandeira de Lord Cochrane. (Para Maria) O velho Lobo do mar está vindo em nosso socorro!

Gritos e comemorações eufóricas a bordo.

Antônio Maria

(Subindo na torre de observação) Tem certeza capitão?

Capitão Pedro Sá

Sim. Veja vc mesmo: os três lôbos na flâmula branca... as listas vermelhas formando um vértice...

Antônio Maria

É ele!

Capitão Pedro Sá

A salvação veio a nós!

Antônio Maria

A senhora dos cabelos de alga aceitou nossa oferenda... Odô Ya!

As escravas negras/Ekedes cantam para Yemanjá. A rainha negra imaculada mira-se em seu espelho de mão, manipula-o intencionamente de modo a sinalizar para a vela de Lord Cochrane.

Capitão Pedro Sá

Muito bem rainha! Continue sinalizando para eles com o espelho...

Uma chuva de flechas atinge o galeão.

Zulu

Arqueiros à bombordo!

Capitão Pedro Sá

Deitem-se! Deitem-se todos!

Todos procuram proteger-se do ataque dos arqueiros aborígenes. O capitão busca, escondido atrás de um caixote, observar os autores do ataque com a luneta. Antônio Maria junta-se a ele. O falso padre tem o corpo crivado de setas e agoniza amarrado ao mastro principal.

Antônio Maria

Quem são os arqueiros?

Capitão Pedro Sá

(Atirando com sua garruncha) nativos com penas vermelhas e azuis... Mesma cor dos uniformes de campanha da coroa portuguesa.

Nova chuva de setas vindas do lado contrário.

Zulu

Arqueiros a estibordo!

O capitão move a luneta na direção contrária.

Capitão Pedro Sá

Nativos com penas brancas e negras! Devem ser aliados dos independentistas e de Lord Cochrane! (Volta a atirar na direção dos índios que atacam a bombordo)

Antônio Maria

O falso padre foi atingido... Está morto e crivado de setas!

Capitão Pedro Sá

Teve o fim merecido.

Antônio Maria

Semelhante ao de São Sebastião. Que ironia...

Gritos de guerra de guerreiros nativos em batalha naval. Tiros de garruncha disparados pelo capitão na direção dos arqueiros à bombordo... Um selvagem guerreiro com penas vermelhas e azuis adentra o galeão com lança em punho e dirige-se ao capitão para alvejá-lo mas é desarmado pelo archote certeiro de Antônio Maria. Guerreiros com penas brancas e pretas adentram a embarcação que naufraga e dizimam quase toda a tripulação do galeão poupando o capitão, Antônio Maria, Zulu, Miss Doroty e alguns poucos marujos que se renderam.

OITAVA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

 

Diante do mastro com o corpo do falso padre crivado de setas, o embaixador dos Guaranis, enrolado na flâmula do Império brasileiro e usando o chapéu do capitão, coordena as ações de saque ao carregamento de pólvora, seda, gêneros alimentícios e rum do galeão. O capitão Pedro Sá está amarrado isoladamente, separado dos outros marujos junto aos quais se encontram Antônio Maria e Zulu. Vê-se a estibordo tremulando, parte da gigantesca vela com as armas de Lord Cochrane.

Embaixador Guarani

(Para alguns guerreiros guarani, de posse do espelho de mão da rainha negra) Leva capitão-de-assalto para tribo junto com mulheres negras e totem de madeira.

Alguns guerreiros guaranis conduzem o capitão Pedro Sá, a rainha negra e suas aias para embarque em uma das canoas. Outros guerreiros seguem transportando a imagem de São Sebastião.

Embaixador Guarani

(Para últimos guerreiros guarani a bordo, referindo-se aos marujos) Esses leva para nau do Lobo junto com mulher branca.

Zulu

(Para Antônio Maria sussurrando) Para onde vão nos levar?

Antônio Maria

(Sussurrando) Para trabalharmos na nau de Lord Cochrane provavelmente.

Embaixador Guarani

(Para Antônio Maria) Fica boca fechada senão eu corta língua sua. (Para guerreiros guarani) Leva pólvora e arma de fogo para nau do Lobo! (Referindo-se à maior parte das armas) Leva essas aí pra aldeia junto com bacalhau e pano (Empunhando a guarruncha do Capitão Pedro Sá e fazendo disparos para o alto) Vitória de povo Guarani! Viva povo Guarani!

Guerreiros Guarani gritam e uivam de alegria cantando vitória ao deixar a embarcação. As canoas dos guaranis deixam o galeão em direção à nau de Lord Cochrane. A vela de Lord Cochrane se afasta lentamente. Os gritos dos guaranis vão se tornando distantes. Sob um foco de luz verde, o galeão submerge com o falso pároco amarrado ao mastro tendo o corpo crivado de setas ao som de La Martyre de Saint Sébastien da obra O Mistério de Gabriele d"Annunzio de Claude Debussy. Um arco-íris se delineia pouco a pouco no horizonte.

 

PARTE II – A ILHA

PRIMEIRA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

Uma clareira delineada por uma paliçada de caniços encimados por crânios humanos, no centro a taba guarani forrada de areia branca em meio à mata atlântica fechada. Vê-se um toco de árvore à esquerda onde se encontra o Capitão Pedro Sá amarrado por cipós e o totem (imagem de São Sebastião) à direita, em ambas extremidades; Aos pés da imagem de São Sebastião - agora ressignificada com pintura negra sobre os olhos e uso de um esplendoroso pancô [7]de penas - encontra-se Adé-Cunhatã prostrado em grande concentração. Entre o toco e o totem, há um forno de lenha sob um tipo de quarador com varas de madeira entrelaçadas em cima do qual alguns peixes e caças estão sendo assadas. Algumas mulheres e crianças guarani abanam o fogo e fritam nele pequenos peixes espetados em flechas; outras ralam mandiocas. Os objetos frutos do saque estão ajuntados próximo ao forno e são inspecionados por guaranis curiosos. Ouve-se um cântico-dança ritual guarani[8]entoado por guerreiros guarani que se aproximam ritmadamente do totem aos pés do qual está Adé-Cunhatã adornado com um belíssimo manto de penas.[9]

Pajé Guarani

(Pedindo silêncio ao grupo através de gesto e dirigindo-se a Adé-Cunhatã) Já tem resposta de grande caçador?

Adé-Cunhatã

(Levanta-se e olha a todos. Sacode o corpo e toma postura de incorporação de caboclo) caboclo quer fumar poró! [10]

Pajé Guarani

(Para alguns guerreiros) Traz poró pra caboclo fumar!

Guerreiros obedecem ao pajé. O pajé passa o poró a Adé-Cunhatã que o fuma. O pajé sacode o maracá[11]ritmadamente. Adé-Cunhatã devolve o poró ao Pajé que o fuma e passa-o aos demais guerreiros.

Adé-Cunhatã

Caboclo quer otin´bebé Jurema!

Pajé Guarani

(Para guerreiros) Traz cabaça com otin´bebé Jurema pra caboclo! Traz rum também!

Guerreiros trazem cabaça com beberragem para o Pajé que a repassa a Adé-Cunhatã e sorve avidamente o conteúdo de uma garrafa de rum. O caboclo bebe um pouco e devolve a cabaça ao cacique que também toma um gole e passa a cabaça aos demais guerreiros.

Pajé Guarani

Caboclo que rum?!

Caboclo aceita rum toma um pouco e devolve a garrafa ao pajé.

Adé-Cunhatã

Caboclo quer dançar!

A um sinal do Pajé guerreiros cantam e tocam tambores e fazem percussão com os pés. Os guaranis sorvem avidamente o rum. Adé-Cunhatã incorporando o caboclo dança até pedir com gesto para suspender a música.

Adé-Cunhatã

Grande caçador quer que formiga decide se guarani come ou não capitão-do-mato! (Sacode o corpo deixando o transe)

Pajé-Guarani

(Sacudindo o maracá) O quê? O-kê?!

Adé-Cunhatã

Formiga decide!

Pajé-Guarani

(Para alguns guerreiros) Traz pote com formiga.

Alguns guerreiros guarani trazem potes com as formigas. Adé-Cunhatã se refaz do transe e é auxiliado por algumas mulheres.

Pajé Guarani

(Para os guerreiros com os potes de formiga) Emborca pote e espera sinal de Pajé!

O Pajé após a chegada do último pote ordena que desemborquem os potes com as formigas.

Pajé Guarani

(Para Guerreiros) Solta formiga!

Pajé sacode o maracá e guerreiros soltam as formigas e as formigas aproximam-se assustadora e resolutamente do Capitão Pedro Sá cobrindo todo o seu corpo com picadas ao som dos gritos desesperados e lancinantes de dor do capitão. Os guerreiros guarani gargalham sadicamente. Algumas crianças e mulheres se aproximam. O capitão Pedro Sá silencia por fim morto pelas picadas das formigas. As formigas deixam a cena.

Pajé Guarani

Formiga gosta de sangue de gringo! Guarani vai comer capitão-do-mato!

Guerreiros gritam euforicamente celebrando a autorização para o rito antropófago.

Pajé Guarani

Guarani vai comer inimigo temperado com formiga!

Gritos de euforia e excitação entre os guaranis. Uma roda é formada em torno ao corpo do capitão

Pajé Guarani

(Para guerreiros/axoguns) Traz tacape pra separar parte do corpo!

Trazem o tacape ao som de gritos de euforia. O corpo do capitão é esquartejado a tacape pelos guerreiros/axoguns. Soam maracás e tambores e uma ciranda macabra é dançada e cantada pelos guaranis em torno ao corpo que está sendo mutilado.

Pajé Guarani

(Entregando a cabeça do capitão para o cacique) Cabeça de gringo é pra cacique!

Cacique Guarani

(Para guerreiros/axoguns) Miolo é de cacique! Carcaça de cabeça coloca em vara na entrada de aldeia!

Pajé Guarani

(Exibindo o coração do capitão) Coração do inimigo é de pajé!

(Mostrando o pênis do capitão) Piroca de grigo é de Adé-Cunhatã!

Risos das mulheres e das crianças. Adé-Cunhatã recebe com alegria o pênis do capitão.

Adé-Cunhatã

(Advertindo o Pajé com uma cabaça na mão) Sangue de gringo é pra oferenda a grande caçador!

Pajé Guarani

(Para Adé-Cunhatã) Leva sangue pra oferenda!

Adé-Cunhatã coleta sangue do gringo em uma cabaça e o deposita aos pés da imagem de São Sebastião.

Pajé Guarani

(Para o restante da tribo) Todo o resto é de povo guarani!

Tumulto e gritaria. Os guaranis avançam sobre os troços do corpo do capitão.

Primeiro guerreiro Guarani

Eu comer bunda do gringo!

Segundo guerreiro Guarani

Eu também querer bunda de inimigo!

Lutam pela bunda do gringo até dividi-la avidamente rasgando-a em duas bandas.

Guerreiro Guarani/ancião

Eu quer ovo branco!

Molequeira e alegria na repartição das partes do capitão entre o grupo. Pedaços do corpo do sacrificado são colocados sobre o quarador acima do fogo. Vê-se pernas, braços, pés, mãos, nariz, olhos sendo fritos para o consumo. Celebração da devoração com beberragem de Jurema e rum, através de cântico-dança/mística do grupo de atores durante a qual os objetos do saque são utilizados ludicamente por todos como em um carnaval. Espelhos, tecidos, penicos, chapéus, peças de roupa etc.[12]

Coro de Atores

(Cantam música Vamo Comer de Caetano Veloso & Tony Costa)

Vamo comer

vamo comer feijão

vamo comer

vamo comer farinha

se tiver

se não tiver então

ô ô ô ô

vamo comer

vamo comer faisão

vamo comer

vamo comer tempura

se tiver

se não tiver então

ô ô ô ô

eu não sou deputado baiano

e, como dizia o outro, não sou de reclamar

mas se estamos nesse cano

não consigo me calar

é um papo de pelicano romântico

aberto pro bico de quem alcançar

quem quiser ver

quem quiser ouvir

quem quiser falar

vamo comer, João

vamo comer

vamo comer, Maria

se tiver

se não tiver então

ô ô ô ô

vamo comer

vamo comer canção

vamo comer

vamo comer poesia

se tiver

se não tiver então

ô ô ô ô

O padre na televisão

Diz que é contra a legalização do aborto

e a favor da pena de morte

e disse: não! que pensamento torto!

e a pretexto de aids, aids

nunca se falou de sexo com tanta

franqueza e confiança

mas é bom saber o que dizer

e o que não dizer na frente das crianças

merci boaucoup

merci boaucoup, Bahia

arigatô

arigatô, Jamaica

e Trinidad

e Trinidad-Tobago

ô ô ô ô

´brigado Cuba

thank you Martinica

e Surinan

Belém do Grão-Pará

Y gracias, Puerto

gracias Puerto Rico

ô ô ô ô

baiano burro nasce, cresce

e nunca pára no sinal

e quem para e espera o"verde

é que é chamado de boçal

quando é que em vez de rico

ou mendigo ou polícia ou pivete

serei cidadão

e quem vai equacionar as pressões

do [MST], da UDR

e fazer dessa vergonha

uma nação

vamo comer

vamo comer [13]

Escuro. Agora os guerreiros guaranis e as crianças do sexo masculino deixam a cena em direção à oca dos homens. As índias e as crianças do sexo feminino despem, pintam e preparam a rainha imaculada para contrair casamento com o cacique guarani sob a supervisão de Adé-Cunhatã embaladas por cântico sagrado coletivo. As mulheres após ornamentarem a rainha negra imaculada, ainda cantando, dançam com ela uma ciranda de braços dados, no centro da taba, uma ao lado da outra. Vê-se agora o totem/imagem de São Sebastião com a base/peji enfeitado de flores e folhas de palmeira. Os guerreiros se aproximam após toque do sinete/adjá-maracá por Adé-Cunhatã.

Adé-Cunhatã

Virgem negra pronta pra cacique Matalauê.

Cacique Guarani

(Para aias da rainha negra imaculada) Leva ela para oca de cacique!

Adé-Cunhatã sinaliza para as mulheres selvagens conduzirem a rainha negra até a oca do cacique fazendo soar o adjá. A rainha adentra a oca e as mulheres guaranis retornam ao centro da taba sorrindo tímida e faceiramente. O cacique entra na oca. Gritos festivos e toques de atabaques. Canto e dança de toda a tribo. Escuro.

SEGUNDA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

O Cacique ao lado do Pajé recebe uma embaixada de encourados na entrada da aldeia em frente à paliçada com crânios humanos posicionada nas extremidades do palco/arena forrado de areia branca. Entre os crânios a cabeça encarniçada do capitão Pedro Sá.

Embaixador Encourado

Salve grande Cacique Guarani!

Cacique Guarani

Salve! (Pausa) Fala a que veio.

Embaixador Encourado

Viemos anunciar a visita de Dona Maria Felipa.

Cacique Guarani

Ela ser bemvinda por povo guarani.

O embaixador sinaliza para que alguns encourados retornem para avisar a Maria Felipa que ela será recebida amistosamente.

Embaixador Encourado

Dona Maria está vindo de Cachoeira onde está funcionando o Governo Provisório da Província, que foi autorizado por ordem de D. Pedro I, em carta assinada em 12 de abril próximo passado!

Cacique Guarani

Portugues ainda toma conta de Bahia?

Embaixador Encourado

Sim. Interceptam navios com comida para povo do Recôncavo e da ilha. Santo Amaro está em situação de calamidade pública. Faltam remédios e alimentos. Dona Maria vem pedir seu apoio para o "mata-maroto" em Salvador...

Cacique Guarani

Mata-quê?!

Embaixador Encourado

Mata-maroto. Ações terroristas. Ataques isolados a membros do exército e marinha portuguesa em Salvador a partir do mar...

Cacique Guarani

Vem pedir apoio canoeiros guarani. É isso?

Embaixador Encourado

Sim.

Cacique Guarani

Mas nós já ajudou Lobo do Mar com saque galeão naufragado! Deu pólvora a ele, comida, bebida e prisioneiro de guerra no mar. Ela vem no barco de Lobo do Mar?

Embaixador Encourado

Não. Lord Cochrane seguiu com uma legião de voluntários, marujos e prisioneiros mercenários para praia de Inema onde encontrará com as legiões do comodoro francês Pedro Labatut, conforme orientação do general Lima e Silva que está na capital da Província. De lá seguem para a campina de Pirajá onde vão se juntar às tropas de Dona Maria Quitéria – que seguirão por terra. Despachou uma velha senhora inglesa para o Rio de Janeiro em Cachoeira e entregou um marujo bom no uso do chicote para treinar guerreiros tupi-cariri e pataxós - que estão vindo com Dona Maria e a carroça. Ela vai lhe explicar do que precisa.

A tribo aos poucos cerca o embaixador encourado e participa curiosa da conversação com o cacique. Um guerreiro Guarani/Sentinela adentra a taba correndo.

Guerreiro Guarani Sentinela

Está vindo! Lá... Carro com grande caçador!

Rumor e movimentação dos guaranis.

Embaixador Encourado

Dona Maria é zeladora do grande caçador! Vai levar a imagem do "dono da terra" para dar proteção e celebrar a vitória sobre os portugueses. A imagem é um presente do comodoro mercenário francês, encomendada ao artista plástico Manoel Inácio da Costa.

Soam fanfarras e adentra o carro com a imagem do caboclo seguida de parte da tropa de encourados e negros liderada por Maria Felipa posicionando-se na extrema direita do palco. Adé-Cunhatã bate cabeça aos pés da imagem do caboclo. Maria Felipa adentra a cena marchando destemida usando traje encourado[14]e portando garruncha, bornal e cartucheiras trançadas sobre o peitoral à moda de cangaceiros.

 

Ô boa noite!

Venha ligeiro...

Ver a chegada do caboclo negro

(Bis)

Cacique Guarani

Salve Dona Maria!

Maria Felipa

Salve cacique Matalauê, grande guerreiro guarani!

Cacique Guarani

O que Dona Maria quer?!

Maria Felipa

Vou ser breve porque não temos tempo a perder. Vim pessoalmente pedir o seu apoio para o mata-maroto na capital da Província. Sei que os canoeiros guarani conhecem bem as correntes marítimas e sabem como chegar em segurança ao Porto da Barra em Salvador. Trouxe alguns nadadores-velocistas pataxós e tupis-cariris da Casa do Visconde de Cairu que farão a travessia a nado de Mar Grande a Salvador, guiados por uma canoa guarani.

Sinaliza para trazerem os velocistas pataxós e tupis-cariris. Os pataxós e tupis-cariris adentram o espaço cênico. Os pataxós usam pintura de guerra e penas vermelhas e pretas; os tupis-cariris usam penas de gavião preto e branca espetadas nas orelhas e maquiagem de guerra nos olhos e corpo.

Maria Felipa

Para todos os efeitos, a canoa guarani estará em atividade pesqueira e imagino que não levantará nenhuma suspeita - por se tratar de uma embarcação isolada. Sugestão do general mercenário Pedro Labatut, que também luta ao nosso lado.

Cacique Guarani

Guarani sabe chegar de canoa até Porto da Barra. Mas depende de maré. Tem que esperar lua certa.

Maria Felipa

Quando for possível, conduza-os até Salvador. Os velocistas pataxós e tupis-cariris ficarão sob sua liderança cacique! (Para os pataxó) Entenderam? (Para o cacique Matalauê) Os tupis-cariris lutam liderados pelo Visconde de Cairu do Castelo da Torre da Casa de Garcia D"Ávila a partir do litoral norte de Salvador e são excelentes lanceiros e arqueiros. Os pataxós resistem em Coroa Vermelha e Monte Pascoal e são ótimos nadadores.

Velocistas pataxós e tupis sinalizam afirmativamente com a cabeça.

Maria Felipa

Tenho outro pedido. Há um chalaça que servia no galeão naufragado e que me foi recomendado por Lord Cochrane para fazer treinamento dos velocistas pataxós e tupis-cariris para o uso certeiro do archote. Ele deve ser conduzido na canoa e desembarcar em segurança no Porto da Barra para acompanhar os velocistas em suas ações terroristas silenciosas, sem disparo de arma de fogo, na calada da noite, em toda a capital da Província. Isso será fundamental para dispersar a atenção dos portugueses e facilitar a entrada das tropas lideradas por Maria Quitéria pela estrada das boiadas a partir da campina de Pirajá. Vou providenciar a condução dos encourados para o continente a partir da contra-costa, porque o forte de Itaparica já está dominado e sob nosso poder; também porque a travessia marítima é o caminho mais rápido e seguro até Pirajá.

Cacique Guarani

Onde está "chassala"?

Maria Felipa

(Para o cacique com bom humor) Cha-la-ça! (Para alguns guerreiros encourados) Tragam o chalaça!

Encourados deixam a cena e retornam com Antônio Maria.

Maria Felipa

Veja cacique! (Para um encourado entregando-lhe uma garruncha) Tente alvejar o chalaça! (Para Antônio Maria) Antônio, mostre o que sabe fazer com o chicote!

Antônio Maria exibe sua grande habilidade no uso do archote desarmando o encourado facilmente. Faz estalar o chicote no chão após obter êxito em sua ação. Murmúrio, espanto e admiração da tribo. Maria Felipa e sua tropa se retira com o carro do caboclo negro entoando cantiga ritual.

Despedida de caboclo!

Vai chorar...

Vai chorar pra soluçar!

Vai Chorar...

[Bis]

Escurecimento lento ao som dos estalos do chicote de Antônio Maria no solo. Ouve-se o aguerê de Oxossi cada vez mais alto. Escuro.

TERCEIRA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

Antônio Maria está com o crânio do capitão nas mãos em frente à paliçada. É observado por Adé-Cunhatã que se encontra escondido na mata.

Antônio Maria

O que fizeram com o senhor, meu capitão?!

Aperta o crânio do capitão contra o peito acariciando a caveira enquanto chora baixinho. Adé-Cunhatã aproxima-se comovido.

Adé-Cunhatã

Era seu amigo?

Antônio Maria

(Refazendo-se do choro) Meu comandante.

Adé-Cunhatã

Por que tirou cabeça da vara?

Antônio Maria

Para enterrá-la...

Adé-Cunhatã

Cacique não vai gostar. Tem que botar cabeça de volta lá!

Antônio Maria

Vai me denunciar?

Adé-Cunhatã

Se você coloca cabeça de volta na vara, não.

Antônio Maria

Tá. (Recolocando o crânio na vara) Eu coloco ela de volta...

Adé-Cunhatã

Partes: 1, 2, 3, 4


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