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Quantas vezes ouvira, nas prédicas, o Mestre de Moral falar, com a sua voz roufenha, do Pecado, compará-lo á serpente e com palavras untuosas e gestos arqueados, deixando cair vagarosamente a pompa melíflua dos seus períodos, aconselhar os seminaristas a que, imitando a Virgem, calcassem aos pés a serpente ominiosa! E depois era o mestre de Teologia mística que falava, sorvendo o seu rapé, no dever de vencer a Natureza! E citando S. João de Damasco, S. Crisólogo, S. Cipriano e S. Jerônimo, explicava os anátemas dos santos contra a Mulher, a quem chamava, segundo as expressões da Igreja, Serpente, Dardo, Filha da Mentira, Porta do Inferno, Cabeça do Crime, Escorpião [...] (PORTO,1964. p. 36).
Corroborando com o exposto, a citação de Beissman, abaixo transcrita:
No Brasil, dados históricos relativos ao Período Colonial revelam que já na ordenação do reino "[...] era permitido aos maridos "emendar" suas companheiras pelo uso da chibata". Portanto, as agressões físicas e psicológicas imputadas ás mulheres "[...] fazem parte de nossas raízes culturais, trazidas pelos colonizadores europeus e reforçadas no século passado pelas idéias do positivismo de Auguste Comte (1798 -1857) (BEISSMAN, apud GIORDANI, 2006, p. 68).
Para Giordani,
Na política monárquica, a autoridade do homem pretendia ser divina e marital ao mesmo tempo, isto é, para reafirmar a autoridade do rei era preciso confirmá-la na menor célula da sociedade, a família. Desse modo, a mulher devia ser submissa ao marido/ senhor e guardiã dos filhos. Conforme Badinter apud Rifiotis (1997), aos poucos a acusação de malignidade da mulher foi abandonada e consolidou-se um sentido de fraqueza e invalidez correspondente a imperfeição e a deformidade feminina. Porém no século XVII e XVIII, as mulheres, principalmente aquelas que tinham recursos, tentaram se desvincular das funções de esposa e mãe, declinando de seus deveres domésticos (2006, p. 69).
Quando no começo do século XX, Freud falou da natureza feminina, atribui-se ás suas descobertas uma dimensão universal sem se aperceber que suas idéias sofriam influências de preconceitos de sua época (GIORDANI, 2006, p. 72).
O psicanalista austríaco e seus discípulos referiam-se á passividade, ao masoquismo e ao narcisismo da mulher e, com a disseminação dos conceitos da psicanálise, ela era aconselhada a se sacrificar no cuidado de seus filhos, como se esse fosse um caminho natural. Pregava-se, ainda, a nítida distinção de papéis maternos dos papeis paternos para a boa formação do "eu" na criança, cabendo á mãe os cuidados com o filho em seus primeiros anos. Ela era orientada a sentir prazer com isso, excluindo de sua vida quaisquer outros interesses, e a presença simbólica do pai já era considerada suficiente. Nesse sentido, a responsabilidade e o poderio maternos aumentaram, enquanto os paternos diminuíram: o papel do pai limitou-se a ser o de mantenedor da família e o patriarcado familiar foi sendo substituído pelo patriarcado estatal.
No Brasil, em 1910, o Partido Republicano Feminino foi criado para que as mulheres pudessem expressar suas opiniões, lutando por sua emancipação no setor de prestação de serviços e no sufrágio 89, feminino. Logo após as mulheres terem adquirido o direito ao voto em 1932, ele, foi suspenso em nível nacional até o ano de 1945, posto que o Congresso Brasileiro foi fechado pelo então Presidente da República Getulio Vargas (GIORDANI, 2006, p.73).
De Souza et al. (2000) e Louro (2001a) afirmam que, mesmo com a volta da democracia no Brasil, após o Golpe Militar de 1964, o movimento feminista fez pouco progresso até o início dos anos 1970 (GIORDANI, 2006, p.73).
A Lei nº 11.340/06 contém dispositivos especializantes, que são os artigos 5º e 7º, definindo o que constitue violência doméstica e familiar contra a mulher, contemplando a vis corporalis, psicológica, patrimonial, sexual, moral, deixando explicitado que a violência doméstica é aquela sem vínculos parentais e a violência familiar entre parentes e pessoas com vínculos afetivos.
A despeito da distinção já está devidamente evidenciada nos artigos suso mencionados, ainda assim é importante citar posicionamento que robustece e rechaça qualquer dúvida, sobretudo que enunciado por Fabrício da Mota Alves, assessor parlamentar no Senado da República, o qual, registrando o testemunho de quem assistiu aos debates que antecederam a aprovação da Lei nº 11.340/2006, afirma que o inciso I do artigo 5º da referida lei, abrange, inclusive, agressões perpetradas contra empregadas domésticas, o que defluiria da dispensa do vínculo familiar e da possibilidade de agregação apenas esporádica das discussões á aprovação de uma proposta concreta de combate á violência doméstica e familiar contra a mulher (CUNHA; PINTO, 2007).
Para caracterização da violência mister se faz a presença simultânea e cumulativa de qualquer dos requisitos do artigo 7º, cumulados com os pressupostos do artigo 5º, da lei predita.
3.1 REFLEXOS EM OUTRAS ESFERAS DO DIREITO
Os artigos 5º e 7º descrevem condutas que caracterizam motivos para separação com atribuição de culpa e geração dos efeitos legais pertinentes, especialmente aqueles relativos ao direito de guarda dos filhos, posse dos bens do casal até a última ação da partilha e eventual direito á pensão alimentícia. Ademais, comportamentos subsumíveis nas hipóteses dos artigos 5º e 7º autorizam o deferimento de medidas cautelares de proteção da mulher e, alguns casos, da prole e do patrimônio do casal, ainda que não caracterizem, rigorosamente, condutas penalmente típicas, porquanto a Lei nº 11.340/06 não é exclusivamente penal, mais uma lei mista, idônea a influenciar também o direito civil, processual e administrativo.
Vê-se com clareza meridiana que os artigos mencionados não configuram tipos penais incriminadores, mais sim normas não-incriminadoras do tipo explicativos.
O parágrafo único do artigo 5º da lei sob exame traz em seu comando "As relações pessoais relacionadas nesse artigo independem de orientação sexual", gerando fortes polêmicas, uma vez que, a redação é intrincada e pouco esclarecedora dando ensanchas a interpretação ampliativa de que estaria reconhecendo as relações homoafetivas, advindo daí um novo conceito de família. Para Maria Berenice Dias, desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), (PORTO, 2007), uma vez que a violência de que trata a Lei nº 11.340/06 é aquela que se dá no ambiente doméstico e familiar. Resulta óbvio que a lei ao desconsiderar a orientação sexual da vítima para os fins de sua proteção, está reconhecendo a família formada de mesmo sexo que já não pode mais ser considerada apenas sociedade de fato. E chega a afirmar que:
No momento em que é afirmado em que está sob o abrigo da lei a mulher, sem se distinguir sua orientação sexual, alcançam-se tanto lésbicas como travestis, transexuais e transgêneros que mantém relação intima de afeto em ambiente familiar ou de convívio. Em todos esses relacionamentos como nos transgêneros feminino justificam especial proteção (PORTO, 2007, p. 35).
Ao que parece a lei alterou profundamente o conceito de "família", reconhecendo como entidade familiar as relações homoafetivas.
4.1 CONCEITOS DE TRAVESTIS, LéSBICAS E TRANSEXUAIS:
Para complementar este opúsculo, mister se faz buscar os conceitos do que seja travestis, transexuais e lésbicas, e posteriormente entender o alcance da norma sob apreciação, sobretudo em face do principio da reserva legal.
Os conceitos de travestis e lésbicas segundo o sexólogo Cláudio Picarzio (2006) são os seguintes:
a) Travestis: "Já com os travestis, a coisa é um pouco diferente mas num nível fundamental. Não se sabe ainda como, nem por que, mas os travestis não tem uma identidade só, masculina ou feminina. Eles tem as duas. Eles se sentem homem e mulher, os dois conceitos se misturando dentro deles como ingredientes num liquidificador. Ora eles se sentem mais femininos, ora mais masculinos, mas ambas estão sempre presente e eles não tem o desejo de anular nenhum dos dois lados. Infelizmente, seus corpos nascem com apenas um sexo - homens ou mulheres. O que eles fazem então? Adaptam o seu corpo para alcançar, o máximo possível, essa outra metade da essência deles que veio faltando. Os que nascem homem, a maioria, querem por peitos e quadril, etc..." Normalmente os travestis optam em não efetuarem cirurgia de mudança de sexo, permanecendo com o órgão genital masculino, já que se sentem completos sendo homem e mulher ao mesmo tempo.
b) Lésbicas: "lésbica é o termo utilizado para se referir as mulheres que possuem orientação sexual. Nas palavras do sexólogo Cláudio Picarzio", orientação sexual tem a ver com desejo, com atração. Com quem você quer ir pra cama? Com alguém do seu sexo? Com alguém do sexo oposto? Tanto faz? São três respectivamente: homossexual, heterossexual e bissexual.
c) No tocante aos transexuais, o conceito nós é dado pela resolução nº. 1652 do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, que está assim redigido em seu artigo 3º acima "que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados: 1) desconforto com o sexo anatômico natural; 2) desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primarias e secundarias do próprio sexo e ganhar a do sexo oposto; Permanência desses distúrbios de forma continua e consistente por, no mínimo, dois anos; 4) ausência de outros transtornos mentais".
A doutrina predominante discorda da eminente desembargadora Maria Berenice Dias, mormente que a nossa Carta Política em seu artigo 226 reconhece como entidade familiar a união entre homem e mulher, que vem repetida no artigo 1.723 do Código Civil de 2002, impossibilitando a união de pessoas do mesmo sexo. Verbi gratia o entendimento esposado por Cunha e Pinto (2007), aduzindo que as medidas previstas nesta lei aplicam-se também ás uniões homossexuais, mas são cuidadosos em restringir seu âmbito apenas áquelas entre mulheres.
Ao que parece não poderia ser de forma diversa, pois indubitavelmente a lei tem força cogente somente para a violência no gênero da pessoa e o destinatário da proteção da norma legal é a mulher, em observância ao princípio da reserva legal, definido no artigo 1º do Código Penal Brasileiro e inscrito com garantia constitucional no artigo 5º, XXXIX, da Carta Magna: "Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal". Sendo vedado, portanto, a aplicação da analogia in malam partem no direito penal incriminador, bem como a interpretação integrativa ou ampliativa.
Na obra "Violência doméstica e familiar contra a mulher", o autor, ao se manifestar sobre o assunto, assim aduziu:
Ao sustentar que as relações enunciadas neste artigo independem de orientação sexual não quis o legislador afirmar que "as relações pessoais enunciadas nesse artigo independem do gênero dos envolvidos", isto porque, orientação sexual é conceito diverso de gênero que só tem real interesse quando a orientação sexual da pessoa é diversa do seu gênero. Deste modo, sendo a intenção da lei a proteção da mulher, o legislador ressalvou tão-somente que tal proteção deve ser a mesma, ainda quando esta mulher tiver uma orientação masculinizada ou quando o agressor homem tiver uma orientação sexual feminina. Todavia, tratando de violência baseada no gênero, seria interpretação ampliativa, vedada em direito penal, a que pretendesse responsabilizar uma mulher por agredir outra, nos moldes dos artigos 5º e 7º da Lei 11.340/06, ainda que se provasse que ambas mantivessem relações homoafetivas entre si (PORTO, 2007, p. 36).
O articulista está a esposar o entendimento que a Lei nº 11.340/06, visa á proteção da mulher ainda que esta tenha uma orientação masculinizada, não abrangendo o homem que tenha orientação sexual feminina.
A lei trata desigualmente o homem e a mulher, incrementando a severidade penal sempre que uma mulher for vitima de violência doméstica ou familiar. O nosso legislador partiu da evidente constatação de que, em nossa sociedade, a mulher é reiteradamente oprimida pelo homem, razão pela qual em seus preceitos a lei procura eliminar ou erradicar esta discriminação, oferecendo os instrumentos nela contida, a começar pelo direito penal, com inegável repercussão na esfera administrativa, civil, trabalhista, como já se disse alhures, com o fito de transformar a realidade secular de violência de gênero.
Em uma análise açodada poder-se-ia dizer que em se tratando de violência de gênero só figuraria no pólo ativo o homem, o que constitui um raciocínio não condizente com a finalidade precípua da lei, sobretudo se feito o cotejo do que está ínsito no parágrafo único do art. 5º da lei sobejamente mencionada.
O que está definido de modo inconteste é que a lei visa proteger a mulher, portanto fixa um sujeito passivo próprio das formas de violência especificadas, é o que a depreende do texto legal, e da doutrina majoritária, como se vê:
Nesse sentido é o posicionamento inicial em analise preliminar da Lei nº. 11.340 in PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Anotações preliminares á Lei nº. 11.340/06 e suas repercussões em face dos Juizados Especiais Criminais. (Jus Navigandi, acesso em: 14. fev. 2007. Publicado ainda em 14. fev. 2007. Publicado ainda nos sites do tj.rs.gov.br.institucional.estudos e mp.rs.gov.br.caocrim. Em geral todos os autores e comentaristas da lei que tivemos oportunidade de consultar e ouvir também não estão especializando o sujeito ativo dos crimes de violência doméstica, entendendo-o como podendo ser tanto o homem como a mulher.
5.1 CONCURSO DE PESSOAS
O crime pode ser praticado por uma ou várias pessoas em concurso, formando um vínculo psicológico entre eles, situação prevista no Código Penal Brasileiro em seu artigo 29, §§ 1º, 2º, conforme abaixo transcrito:
Art. 29. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.
§ 1º Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço.
§ 2º Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.
Ponto relevante a ser estudado é quanto ao concurso de pessoas nos crimes definidos pela Lei nº11.340/06. Inevitavelmente mister se faz distinguir o que é autoria, co-autoria e participação, uma vez que cada agente responderá na medida de sua culpabilidade, prevendo diminuição de pena na menor importância.
Autor, a definição é simples não exigindo muito esforço, e configura com a execução da ação prevista no tipo e o co-autor que é também participante, realiza com o autor a execução do delito e com ele está no local do evento. Participante, que pode ser o instigador ou o cúmplice, age por detrás do executor, instigando sua vontade ao crime ou auxiliando-o materialmente para aquele, e fica longe do lugar da infração.
A distinção acima foi de extrema importância, pois a indagação que se faz, vindo a constituir o busílis reside em saber se é admissível á co-autoria ou a participação nos crimes protegidos pela Lei nº 11.340/06.
Em magistral situação hipotética apresentada, as palavras de renomado doutrinador:
Assim, no caso da mulher que ajuda homem á agredir sua companheira, esposa ou namorada, obrando em situação de violência domestica, e tendo conhecimento das relações domesticas, familiares ou de convivência entre estes, também ela responde pelo delito do artigo 129, § 9º, do CP. Com as restrições do art. 41 da Lei 11.340/06 que proíbe os benefícios da Lei 9.099/95 em situações de violência doméstica contra a mulher. Caso contrario, se, por exemplo, ignorasse as relações especificas entre eles responderia apenas pelo delito do artigo 129, caput, do CP e ainda poderia beneficiar-se da Lei 9.099/95 em sua plenitude (PORTO, 2007, p. 34).
O autor do brilhante exemplo transcrito acima fez uma análise do que é autoria e co-autoria em conjunto com o art. 30 do CP, que dispõe: "Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime".
Portanto, para que essas "circunstâncias" se comuniquem aos co-autores ou partícipes é necessário que sejam destes conhecidos. O desconhecimento da circunstância elementar pode elevar a condenação por delito menos grave ou á absolvição, conforme o caso.
Neste passo é importante registrar que a comunicabilidade das circunstâncias de caráter pessoal elementares, em regra, são incomunicáveis, mas, quando elementares do crime, isto é pertencente ao próprio tipo, comunicam-se aos participantes desde que delas tenham conhecimentos.
Assim podemos constatar que na prática do delito do art. 129, § 9º do CP, envolvendo relações de parentesco, convivência, coabitação doméstica e hospitalidade, configura elementares do tipo penal e, sendo do conhecimento do co-autor ou partícipe a ele se comunicam.
Para se chegar á conclusão do que é lesão corporal leve, o fazemos por exclusão, haja vista que nos §§ 1º, 2º, e 3º do art. 129 do CP estão previstos os resultados que tornam a lesão grave, gravíssima ou seguida de morte, de modo que, a lesão corporal leve é aquela que não causa quaisquer dos eventos mencionados nos §§ retrocitados e em seus respectivos incisos.
A Lei nº 11.340/06 manteve o texto integral do artigo 129 § 9º, modificado pela Lei nº 10.886/04, apenas ampliando a pena máxima para três anos e reduzindo a mínima para três meses, com isso excluindo do âmbito da Lei nº 9.099/95.
6.1 PRINCÍPIO DA INSIGNIFICANCIA
Quanto a aplicação deste princípio desenvolvido pelo eminente jurista alemão, Claus Roxin, na década de 60, na vigência do artigo 129, sem a alteração inserida pela lei que ora examinamos, era discutível a sua aplicação, pois em alguns julgados admitia-se e em outros já não se admitia, citando-se abaixo os divergentes posicionamentos jurisprudenciais:
TACRSP: "Em casos especialíssimos, é de se admitir que uma lesão, de tão mínima, não se mostre relevante para o Direito Penal, pois se mostraria absolutamente desproporcional o apenamento criminal em face de um ferimento, levíssimo, sequer visível em um primeiro momento" (RT 713/363). TACRSP: "Se forem levíssimas as lesões corporais sofridas pela vitima, é de se aplicar a teoria da insignificância" (JTACRIM 88/407).
TACRSP: "Em sede de crime de lesão corporal é inadmissível a aplicação do principio da insignificância, visto que, a integridade física do ser humano constitui bem superior que merece proteção especial da lei" (RJDTACRIM 15/117). TACSP: "O simples fato de serem insignificantes as lesões não basta absolvição pelo delito do art. 129 do CP. Impõe-se a solução, porque o bem jurídico protegido é a incolumidade da pessoa na sua realidade corporal-anímica" (JTACRIM 29/387) (MIRABETE, 2003, p. 864).
Hodiernamente, sendo inaplicável a Lei nº 9.099/95 no caso de violência doméstica e familiar, por maior razão, não há acolhimento ao princípio da insignificância, uma vez que como já dissemos a Lei nº 11.340/06 veio para coibir e erradicar a violência doméstica e familiar, rechaçando integralmente a violência de gênero feminino, obviamente tendo como destinatário desta proteção a mulher, que indubitavelmente no recesso do lar é a parte mais fraca, indefesa, é alvo fácil para ser agredida pela parte mais forte, o marido, companheiro, namorado etc.; portanto, contando com proteção especial, razão pela qual há óbice a aplicação do princípio já mencionado, ainda que por pretensa política criminal.
A Lei nº 11.340/06 não admite as medidas despenalizadoras da Lei nº 9.099/95, consequentemente também inadmissível á aplicação do princípio da insignificância, ainda que sobre pretensa aplicação de política criminal, restando ao agressor a suspensão condicional da pena.
Indubitavelmente houvera influência dos movimentos feministas, no sentido de eliminação da possibilidade de aplicabilidade da Lei nº 9.099/95, pois atribuíam a banalização da violência doméstica e familiar aos institutos acolhidos pela lei retrocitada, inclusive imputavam as renúncias das vitimas ao comportamento do próprio magistrado.
Há pesquisa da insigne Carmem Hein Campos, integrante da Ong -Themis - Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero de Porto Alegre revela a banalização da violência doméstica, sintetizando seus estudos, na forma que subsegue:
Tal banalidade é afirmada pelos números dessa violência nos Juizados: 70% dos casos julgados nos Juizados Especiais referem-se á violência conjugal e 90% deles terminam em conciliação com a renúncia da vitima á representação. é precisamente na conciliação que reside uns maiores problemas para as mulheres nos Juizados: a decisão terminativa do conflito é, na grande maioria das vezes, induzida pelos Juizes (...) Então, na pratica, o grande números de renúncias é originados pelo comportamento do próprio Magistrado. Tal postura fere o direito da vitima de ver aplicada a pena. A preocupação dos juizes parece ser a de diminuir o número de processos que é bastante elevado. Pouco importa se a vítima sai satisfeita com a solução dada ao caso. é por isso que nos juizados a conciliação com a renuncia do direito com a representação é a regra (CAMPOS, 2003, apud PORTO, 2007, p. 40).
É forçoso concluir que o Legislador ao inserir o artigo 41 na Lei nº 11.340/06, o fez em atendimento aos reclamos dos movimentos feministas de maneira que há expressa condenação do Juizado Especial Criminal, na medida em que o artigo 41 da Lei nº 11.340/06 determina a não aplicação da Lei nº 9.099/95.
A lei á qual foi proposta de estudo desta monografia incrementou o poder punitivo do Estado, diminuiu o status libertatis, excluiu benefícios despenalizadores (artigo 41), alterou penas (artigo 44), bem como estabeleceu normas majorante, inseriu agravante (artigo 43), e prisão preventiva (artigos 20 e 42).
O artigo 41 da Lei nº 11.340/06 está assim redigido: "Aos crimes praticados com violência domestica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9099 de 26 de setembro de 1995".
A despeito do artigo 41 da Lei nº 11.340/06 afastar a possibilidade da aplicação da Lei nº 9.099/95, não se deve fazer uma leitura açodada desse artigo, sendo necessário espiolhar e ler de modo acurado, para se concluir que é aplicável a Lei nº 9.099 nos caso de contravenções penais, sendo as mais comuns (vias de fato artigo 21, perturbação do trabalho ou sossego alheio artigo 42, importunação ofensiva ao pudor artigo 61 e perturbação da tranq-ilidade artigo 65). Deste modo, vê-se que a Lei nº 9.099/95 continua sendo aplicável no tocante as contravenções penais, afastando-se a possibilidade somente no atinente aos crimes. E ainda é importante não se olvidar que a analise que hora se faz deve estar em consonância com o artigo 17 da lei sob estudo, que veda penas de sexta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.
7.1 APLICAÇÃO DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DA PENA
Para definirmos se é cabível o sursis nos delitos previstos na Lei nº 11.340/2006, inicialmente é importante entender quando é cabível a suspensão condicional da pena, instituto também conhecido por sursis.
Malgrado constar a expressão "poderá" no artigo 77 da lei substantiva penal, trata-se de um direito penal público subjetivo do condenado, obviamente desde que presente seus requisitos. Se não concedido pelo juiz pode ser obtido por intermédio de habeas corpus.
7.2 OS SISTEMAS DO SURSIS
1º) Sistema anglo-americano (probation system): neste sistema verificando o juiz que o réu merece o benefício, declara-o responsável pela prática do fato, suspende o curso da ação penal e marca o período de prova, ficando o beneficiário sob orientação e fiscalização de funcionários (probation officeres), com incumbência de realizar seu reajustamento social. Há suspensão da sentença condenatória, que não é proferida.
2º) Sistema belga-francês (europeu continental - consoante este sistema o juiz condena o réu, determinando a suspensão condicional da execução da pena privativa de liberdade. é o nosso sistema.
7.3 REQUISITOS DA SUSPENSÃO DA PENA
O Código Penal Brasileiro estabelece os requisitos para que não se execute a pena privativa de liberdade ao condenado, e o faz em seu artigo 77, I, II, III, que se preenchidos, acarreta a suspensão condicional da pena, e nesse passo se faz necessário transcrevê-lo, conforme subsegue:
Art. 77. A execução da pena privativa de liberdade, não superior a dois anos, poderá ser suspensa, por dois a quatro anos, desde que:
I - o condenado não seja reincidente em crime doloso;
II - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias autorizem a concessão do benefício;
III - não seja indicada ou cabível a substituição prevista no artigo 44 deste Código.
Ao que parece a Lei nº 11.340/2006 ressuscitou o sursis, na medida em que em seu artigo 41 inadmitiu a aplicação da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 .
Em sendo o crime do artigo 129 § 9º do CP apenado com três meses a três anos de detenção, deixou de ser delito de menor potencial ofensivo e conforme os artigos 17 e 41 da Lei nº 11.340/2006, não há como aplicar-se as medidas despenalizadoras da transação penal ou da suspensão condicional do processo.
Dessume-se do que acima foi exposto, que a única fórmula para evitar a prisão no caso do crime do art. 129 § 9º e os demais delitos quando praticados em situação de violência doméstica e familiar, será a suspensão condicional da pena com base no artigo 77 do Código Penal.
In casu, para melhor compreensão do estudo desenvolvido e explanação do contido na presente monografia e explicitação quanto a natureza da ação no crime tipificado no artigo 129 § 9º do CP, quando praticado contra a mulher, é importante fazer, ainda que de forma perfunctória, um conceito de ação penal e classificação subjetiva das ações.
8.1 AÇÃO PENAL
Conceito: O Estado é o detentor do direito de punir, pois os bens ou interesses tutelados pelas leis penais são eminentemente públicos, sociais, de maneira que, a aplicação da sanção legal ao infrator da norma penal, jamais poderia ficar ao talante do particular.
O modo de garantir a observância da lei é através do Estado - Administração - investigando o fato, quem foi o seu autor, e o faz através de órgãos próprios - Polícia Judiciária - que em procedimento persecutório administrativo leva as informações necessárias para outro órgão - Ministério Público - que ao formular a denúncia provoca a ação do juiz, e restando comprovada a responsabilidade do infrator aplicará a sanção legal.
Esse direito que tem o Estado de levar ao conhecimento do juiz que em tese constitui crime, delimitando a autoria e concomitantemente pleiteando a aplicação do direito penal objetivo, é o que chamamos direito de ação penal.
8.2 CLASSIFICAÇÃO SUBJETIVA DA AÇÃO PENAL
Dispõe o artigo 100 do Código Penal:
Art. 100. A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido.
.§ 1º A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça.
§ 2º A ação de iniciativa privada é promovida mediante queixa do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo.
§ 3º A ação de iniciativa privada pode intentar-se nos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal.
§ 4º No caso de morte do ofendido ou de ter sido declarado ausente por decisão judicial, o direito de oferecer queixa ou de prosseguir na ação passa ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.
Preceitua o artigo 24 do Código de Processo Penal:
Art. 24. Nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir,de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.
§ 1º No caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, o direito de representação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.
§ 2º Seja qual for o crime, quando praticado em detrimento do patrimônio ou interesse da União, Estado e Município, a ação penal será pública.
Preconiza o artigo 30 do Código de Processo Penal: "Ao ofendido ou a quem tenha qualidade para representá-lo caberá intentar a ação privada".
As ações penais se classificam em públicas ou privadas. Interessa-nos no momento o estudo da ação pública, esta promovida pelo Ministério Público, sendo regra no nosso direito. A ação publica pode ser condicionada ou incondicionada.
Diz-se incondicionada quando o seu exercício não depender de manifestação de vontade de quem quer que seja. Condicionada, quando a propositura da ação penal depender de uma manifestação de vontade. Esta manifestação de vontade se cristaliza num ato que se chama de representação ou requisição do Ministro da Justiça.
Dito isto, a discussão quiçá das mais importantes, se refere á ação penal, nos casos em que a lesão corporal é de natureza leve - artigo 129 § 9º do CP, e praticado contra a mulher nas relações doméstica e familiar, se permanece ou não a exigibilidade da representação.
8.3 AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA OU PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO?
Trata-se de ponto controvertido e somente com o tempo a doutrina e a jurisprudência, firmará posicionamento acerca da ação penal na lesão de natureza leves nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Sabe-se que há duas posições doutrinárias, figurando como defensores juristas dos escóis de Damásio Evangelista de Jesus e Luiz Flavio Gomes, cujos entendimentos invocamos:
Segundo Damásio de Jesus (2006),
O artigo 129 do Código Penal, que descreve o crime de lesão corporal, alterado pela Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006, a denominada " Lei Maria da Penha, ganhou a seguinte redação em seu § 9º :
Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, com quem conviva ou tenha convivido ou, ainda prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:
Penal - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.
A forma qualificada, embora aplicável também ao homem, visou principalmente dar maior proteção aplicável também ao homem, visou principalmente dar maior proteção á mulher que se vê agredida no âmbito doméstico e familiar.
Nos termos do artigo 16 da mesma lei, Nas ações penais públicas condicionadas á representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia á representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denuncia e ouvido o Ministério Público,
Por sua vez, o artigo 41 do novo estatuto determina que "Aos crimes praticados com violência doméstica ou familiar contra a mulher, independente da pena prevista, não se aplica a Lei nº. 9.099, de 26 de setembro de 1995" (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais),
Diante das duas disposições, de indagar-se: a ação penal por crime de lesão corporal resultante de violência domestica ou familiar contra a mulher é pública incondicionada ou pública condicionada representação?
Haverá duas posições:
1ª - a ação penal por crime de lesão contra a mulher, resultante de violência domestica ou familiar, pública incondicionada, tendo em vista que o artigo 41 da Lei 11.340/06 excluiu, nesse caso, a aplicação da Lei nº. 9.099/95, em que se inclui o artigo 88 que previa a representação como condição de procedibilidade.
2ª. - trata-se de ação penal pública condicionada á representação (nossa posição).
Segundo entendemos, a Lei nº 11.340/06 não pretendeu transformar em publica incondicionada a ação penal por crime de lesão corporal cometido contra mulher no âmbito doméstico e familiar, o que contraria a tendência brasileira da admissão de um Direito Penal de Intervenção Mínima e dela retiraria meios de restaurar a paz no lar.
Público e incondicionado o procedimento policial e o processo criminal, seu prosseguimento, no caso de a ofendida desejar extinguir os males de certas situações familiares, só viria piorar o ambiente domestico, impedindo reconciliações.
O propósito da lei foi o de excluir da legislação a permissão para aplicação de penas alternativas, consideradas inadequadas á hipótese, como a multa e a prestação pecuniária, geralmente consistente em cestas básicas (art.17). O referido artigo 88 da Lei nº. 9.099/95 não foi revogado, nem derrogado. Caso contrário, a ação penal por vias de fato e lesão corporal comum seria também pública incondicionada, o que consistiria em retrocesso legislativo inaceitável.
Além disso, de ver-se o artigo 16 da Lei 11.340/06: não teria sentido falar em renúncia á representação se a ação penal fosse pública incondicionada.
A lei brasileira enfrentou o mesmo dilema no qual se viram envolvidas outras legislações: o do empowerment das mulheres. O início da persecução criminal e seu prosseguimento devem ser deixados nas mãos das mulheres ou o poder de decisão pertence somente ao Estado, sem a interferência daquelas? Aceita a primeira alternativa, sendo a ação penal de exclusiva iniciativa da vitima, sem interferência do Estado (ação penal privada), sua decisão de processar ou não o autor da violência e de prosseguir ou não com a persecução criminal pode derivar de inúmeros motivos e situações: reconciliação, vingança, medo, pressão, susto no agressor, trauma etc. sob outro aspecto, sabemos que, nas ações penais privadas, poucos são os casos de condenação. Além disso, deixar o poder de iniciativa só com a vítima enfraqueceria a política publica de minimizar esse mal social. Adotada a segunda opção, tornando a ação penal pública incondicionada, o episódio pode resultar em condenação do autor, o que, tratando-se de marido, ensejaria até a ruína da família.
Entre os dois caminhos, a lei brasileira escolheu o meio termo, desprezando as duas variantes - nem ao céu, nem a terra. Decidiu-se por uma posição intermediária, em que a ação penal não é exclusivamente privada, nem pública incondicionada. Daí ter acolhido a opção da ação penal dependente da representação. Como consta do guide for Law Enforcement Officiais on "Effective Responses to Violence against Women" "a autodeterminação das mulheres deve ser um dos princípios que norteiam a atividade policial e a da justice Criminal" (Consulex, Brasília, ano X, n. 237, 30 nov. 2006).
Já para Luiz Flavio Gomes (2006),
Nos termos do artigo 16 da Lei nº. 11.340/06, "nas ações penais públicas condicionadas á representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia á representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público".
O citado artigo, de modo incompreensível, diz que a audiência (designada para que a vitima manifeste sua renúncia) deve ser realizada antes do recebimento da denuncia (sic), Nesse ponto, salve melhor juízo, o legislador escreveu palavras inúteis. Se a renuncia só pode ocorrer antes do oferecimento da representação e se o MP antes dessa manifestação de vontade da vitima (condição especifica de procedibilidade) não pode oferecer denuncia, parece evidente que a lei não poderia ter feito qualquer menção ao recebimento da denuncia.
Considerando-se o disposto no artigo 41 da nova lei, que determinou que aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a lei nº. 9.099/95 já não se pode falar em representação quando a lesão corporal culposa ou dolosa simples atinge a mulher que se encontra na situação de Lei 11.340/06 (ou seja, numa ambiência doméstica, familiar ou intima).
Nesses crimes, portanto, cometidos pelo marido contra a mulher, pelo filho contra a mãe, pelo empregador contra a empregada doméstica, não se pode mais falar em representação, isto é a ação penal transformou-se em público incondicionada (o que conduz a instauração de inquérito policial).
Não existe nenhuma incompatibilidade, entre o artigo 41 e o artigo 16. O primeiro excluiu a representação no delito de lesão corporal culposa e lesão simples. No segundo, existe expressa referência a representação de mulher - vitima. Mas é evidente que esse ato só tem pertinência em relação a outros crimes (ameaça, crimes contra honra da mulher, contra sua liberdade sexual quando ela for pobre, etc.), aliás, nesses outros crimes, a autoridade policial vai colher a representação da mulher (quando ela desejar manifestar sua vontade) logo no limiar do Inquérito policial ( art.12, I da Lei nº. 11.340/06) (Consulex, Brasília, ano X, n. 233, 30 set. 2006).
A novel lei ainda será objeto de ampla discussão, pois os posicionamentos doutrinários supra-expendidos, sobretudo se os delitos de lesão leves quando cometidos em situações de violência doméstica e familiar estão ou não sujeito a representação, ainda não se firmaram, bem como o entendimento jurisprudencial quanto a natureza da ação, isso até a conclusão do presente trabalho.
Este tópico já foi de certa forma tangenciado, na medida em que se tratou do princípio da isonomia insculpido no artigo no artigo 5º, I da Magna Carta:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito á vida, á liberdade, á igualdade, á segurança e á propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
O constituinte, ao igualar homens e mulheres acatou rigorosamente uma solicitação há muito reclamada. Expressando em termos constitucionais as longas lutas travadas contra discriminação do sexo feminino. E ao fazê-lo garantiu mais do que a igualdade perante a lei. Assegurou a igualdade real, material. Logo, vê, homens e mulheres que estiverem em situação idêntica, não poderão, seja qual for o argumento, sofrer qualquer cerceamento em suas prerrogativas e nos seus deveres, sob pena de infringir a manifestação constituinte originária.
Os que argúem inconstitucionalidade invocam o artigo supra e fazem inúmeras indagações, apontam alguns artigos que carregam essa eiva, e normalmente citam como exemplo o delito de lesões leve que no mesmo contexto familiar - doméstico, conforme as circunstâncias e o sexo do agressor, entendem haverá tratamento diferenciado, uma vez que a famigerada lei impõe ao agressor se homem a prisão em flagrante delito ou inquérito policial por portaria, sem possibilidade de se beneficiar dos institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95, ao passo que em situação inversa, ou seja o homem figurando na condição de sujeito passivo no ilícito penal e com lesão na mesma proporção, sendo a agressora a mulher, a esta não se impõe a prisão em flagrante delito e sim lavratura de termo circunstanciados portanto menos gravoso.
Ponto discutível é quanto aos crimes patrimoniais e as imunidades penais dos artigos 181 e 182 do CP, em face do disposto do artigo 7º, inciso IV da Lei nº 11.340/2006. Para uma melhor compreensão do estudo que se realizará é necessário, a transcrição dos artigos referidos:
Art. 181. é isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo:
I - do cônjuge, na constância da sociedade conjugal;
II - de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural.
Art. 182. Somente se procede mediante representação, se o crime previsto neste título é cometido em prejuízo:
I - do cônjuge desquitado ou judicialmente separado;
II - de irmão, legítimo ou ilegítimo;
III - de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita.
Os artigos supra transcritos abarcam a imunidade absoluta e a imunidade relativa sendo objeto de interesse desta exposição. O conceito da primeira é caracterizado pela isenção de pena, de modo que não pode ser instaurado inquérito policial e muito menos ação penal contra o beneficiário, por falta de interesse de agir, vez que não é possível a imposição de pena. Embora antijurídico e culpável, inaplicável a sanção penal. E a segunda prevista no artigo 182 do CP, por razão de política criminal exigiu como condição de procedibilidade a representação para instauração para ação penal pública.
A jurisprudência pátria, quando da existência dos tribunais de alçada, em observância aos artigos já mencionados, sempre acolheu as imunidades, vejamos:
Inadimissibilidade de instauração de inquérito policial -TACRSP: "Nos termos do art. 181 do CP, é isento de pena, por imunidade absoluta e obrigatória, quem comete qualquer um dos crimes contra o patrimônio, previstos no titulo II do citado Codex, em prejuízo do cônjuge, na constancia da sociedade conjugal, o que, por si só, impede a instauração de inquérito policial ou mesmo de ação penal, por falta de interesse de agir" ( RT 764/574).
Crime cometido após a separação judicial - TACRSP: "Tendo o furto contra cônjuge ocorrido depois de decretada judicialmente a separação de corpos não cabe a aplicação da norma do art.181, I, do CP, regendo-se a hipótese pelo art. 182, I, do mesmo diploma" (RT. 528/357).
Viu-se que a lei, doutrina e a jurisprudência sempre tiveram como base, a isenção dos crimes patrimoniais envolvendo cônjuges, desde que não haja emprego de grave ameaça ou violência á pessoa. Nos casos de imunidade absoluta ocorre a isenção de pena e nos casos de imunidade relativa, como condição de procedibilidade exige-se a representação, doravante com a Lei nº 11.340/06 surgem controvérsias quanto aos crimes patrimoniais e as causas de imunidades penais.
Na obra "Violência doméstica e familiar contra a mulher", o autor trouxe á baila a discussão acerca do assunto, quando assim consignou:
Sendo, pois, propósito da lei alcançar, sob o conceito da violência doméstica, os crimes patrimoniais não-violentos como o furto, especialmente o furto de coisa comum a usurpação, o dano, apropriação indébita e o estelionato, calha questionar se a Lei 11.340/06 revogou as causas de imunidade penal previstas nos incisos I e II do art. 181 do CP, das quais deriva isenção de pena ao agente que comete qualquer delito patrimonial, sem violência real ou grave ameaça, contra o cônjuge na vigência da sociedade conjugal, ascendente ou descendente, seja o parentesco legitimo ou ilegítimo, civil ou natural em hipóteses subsumíveis nos arts. 5º e 7º, IV, da Lei 11.340/06.
Guilherme de Souza Nucci, comentando o inciso IV do art. 7º da Lei Maria da Penha, referente ás hipóteses de violência patrimonial, asseverou não ver grande utilidade de sua previsão no contexto penal,pois " lembremos que há as imunidades (absoluta ou relativa),fixadas pelos arts.181 e 182 do Código Penal, nos casos de delitos patrimoniais não violentos no âmbito familiar". Ou seja, para este autor, as imunidades referidas não foram revogadas (In Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, São Paulo:Revista dos Tribunais, 2006,867). A nosso ver, entretanto,ocorre a derrogação (revogação parcial) de tais dispositivos, porquanto esta se dá não apenas na forma expressa, mas também na modalidade tácita, de sorte que, quando a Lei Maria da Penha enfatiza tão acentuadamente o caráter criminoso da violência patrimonial contra a mulher, conceituando as formas existencializadoras desta modalidade de violência, deixou implícito que qualquer regra anterior que imunizasse penalmente o autor de delitos abrangidos no conceito ali sedimentado estava revogada (PORTO, 2007, p. 61).
A desembargadora Maria Berenice Dias comunga com entendimento de Porto, no tocante a não aplicabilidade das imunidades absoluta ou relativa dos artigos 181 e 182 do Código Penal, sobretudo quando assim asseverou:
A partir da vigência da Lei Maria da Penha, o varão que "subtrair" objetos da sua mulher pratica violência patrimonial (art. 7º., IV). Diante da nova definição de violência doméstica, que compreende a violência patrimonial, quando a vítima é mulher e mantém com o autor da infração vínculo de natureza familiar, não se aplicam as imunidades absoluta ou relativa dos arts. 181 e 182 do Código Penal. Não mais chancelando o furto nas relações afetivas, cabe o processo e a condenação, sujeitando-se o réu ao agravamento da pena (CP, art. 61, II, f) (DIAS, apud CABETTE, 2007).
Ab initio, em análise puramente literal da nova lei, parece fora de dúvida que a resposta afirmativa se impõe, e as imunidades ou impunibilidades absolutas do art.181, I e II do CP estão revogadas parcial e tacitamente pela Lei nº 11.340/06, que alenta a punição dos crimes praticados em situação de violência patrimonial contra o cônjuge mulher. Frise-se que se trata mesmo de derrogação,ou seja, revogação parcial, porque se o delito for praticado pela mulher contra o homem acredita-se que persiste a escusa absolutória em questão.
Porém, o tratamento desigual dado pela lei aos dois gêneros, ao menos nesse ponto, arranha o principio constitucional da igualdade, especialmente, porque se afigura destituído de razões lógicas ou racionais. Se, com efeito, no tangente á violência real, a compleição física do homem, normalmente mais avantajada, bem como suas características hormonais o capacitam mais ao uso da força bruta, no que toca á possível prática de delitos patrimoniais contra o consorte condômino, não se vislumbra, com clareza, quais as vantagens que concorrem em favor do cônjuge-varão que justifique tratamento tão desigual.
Assim é que não causa surpresa se, no futuro, for reconhecida a inconstitucionalidade parcial do dispositivo em questão por afronta ao principio da igualdade, pois a proteção da igualdade não significa necessariamente a equalização linear e absoluta dos interesses e das prerrogativas legais, uma vez que, ao contrario na persecução de uma maior igualdade material, admite-se tratamentos legais diferenciados, é imprescindível que esta diferenciação formal-legal tenha supedâneo em motivação racional.
Em julgamento recente pela 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, deu-se início ao julgamento, em 21/09/2007, em que se discute a constitucionalidade da "Lei Maria da Penha" ora transcrito:
A última sessão de julgamento da 2ª Turma Criminal, composta pelos desembargadores claudionor Abss Duarte, Romero Osme lopes e Carlos Eduardo Contar, sob a presidência do primeiro, trouxe ao Tribunal de justiça do Estado uma polêmica discussão que tem movimentado o cenário jurídico do pais, notadamente no âmbito penal.
Na ocasião, foi apreciado um recurso (Recurso em Sentido Estrito) referente ao processo nº 2007.023422-4, em que o Ministério Público recorre da decisão do juiz da Vara Única de Itaporã (MS), o qual considerou Inconstitucional a Lei nº 11.340, de 07/08/2006, conhecida por "Lei Maria da Penha", criada com o intuito de coibir e previnir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
O relator do processo, Des. Romero Osme Lopes, em seu voto, teceu suas considerações acerca da referida norma jurídica mantendo a decisão de primeira instancia e negando provimento ao recurso do Ministério Publico, por também considerar a "Lei Maria da Penha" Inconstitucional, uma vez que fere princípios basilares da Carta Magna, como a isonomia e a proporcionalidade.
Antes a complexidade e a polêmica da matéria, o Des.Contar pediu vistas do processo para analisá-lo mais detidamente, tendo em vista a repercussão que os efeitos dessa decisão alcançará. O Des. Claudionor preferiu aguardar para se manifestar, de modo que o processo está adiado, em principio, até a próxima sessão de julgamento.
Controle de Constitucionalidade - No Brasil, vige a presunção de constitucionalidade das normas infraconstitucionais, isto é, todas as leis, em sentido amplo, são consideradas constitucionais até que se prove o contrario. Há, no entanto, um controle exercido por órgão dos três Poderes constituídos, de modo a garantir a regularidade no processo de elaboração das normas jurídicas brasileiras.
Tanto o Legislativo, quanto o Executivo exercem tal controle previamente, por meio de suas Comissões de Constituição e Justiça (CCJ) ou força do veto do chefe do poder (presidente, governador ou prefeito). Entretanto, ambos os modos descritos são superáveis, isto é, não impedem que a norma em elaboração seja publicada e produza efeitos.
Assim sendo, consagrou-se no país o sistema de controle jurisdicional, exercido pelo judiciário, por ser o único capaz de retirar a eficácia de um dispositivo legal considerado inconstitucional.Esse controle exercido pela justiça, por sua vez, pode ocorrer de modo difuso ou concentrado.
Na primeira hipótese, qualquer órgão jurisdicional (magistrado ou tribunal) pode declarar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica ao apreciar um caso concreto, como ocorreu em Itaporã. Já de outro modo, ao Supremo tribunal Federal (STF) compete julgar se alguma espécie normativa é ou não constitucional. Neste caso, não há um caso especifico, analisa-se a lei em tese, em abstrato.
Cabe ressaltar que a decisão do magistrado de Itaporã, caso seja mantida pela 2ª Turma Criminal do TJ, vai retirar a eficácia da "Lei Maria da Penha" apenas nesse caso especifico, entre as partes envolvidas no litígio. Para que a referida lei perca eficácia em âmbito nacional, há que ser suscitada sua inconstitucionalidade junto ao STF.
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