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A intuição e a sensação em dependentes de drogas na perspectiva da psicologia analítica (página 2)


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Segundo Chalub e Lisieux (2006), um estudo realizado pela OMS em catorze países, os diagnósticos mais comuns foram depressão (10,4 %), ansiedade (7,9 %) e transtornos do uso de substâncias psicoativas (2,7 %).

Os transtornos por uso de substâncias psicoativas exercem considerável impacto sobre os indivíduos, suas famílias e a comunidade, determinando prejuízo à saúde física e mental, comprometimento das relações, perdas econômicas e, algumas vezes, chegando a problemas legais. Vários estudos assinalam a associação entre transtorno do uso de substâncias psicoativas e violência doméstica, acidente de trânsito e crime. (CHALUB & LISIEUX, 2006)

Os autores acima citam um estudo brasileiro que concluiu com um índice de 60,1 % para a prevalência de doença mental por uso de álcool ou outras substâncias na população de réus submetidos a exame de responsabilidade penal no Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso (RS) no ano de 2000. Outra pesquisa apontada, realizada na Colômbia, entre condenados por homicídio, concluiu que 24% das vítimas haviam consumido alguma substância (73% álcool e 27% cocaína). Na Inglaterra e no País de Gales, um estudo da prevalência de doença mental em 2.662 homicidas apontou que entre a população mais jovem, o abuso de drogas era mais comum, em comparação com o abuso de álcool, que se destacou na população acima dos 50 anos. No México uma investigação urbana sobre a violência doméstica encontrou uma prevalência de 42% de violência sexual, 40% de violência física e 38% de violência emocional, onde o uso de álcool ou outras drogas era concomitante. O estudo dos autores conclui sobre a possível associação entre os transtornos do uso de substâncias e a criminalidade, dada a grande proporção de atos violentos quando os agressores, as vítimas ou ambos estão envolvidos com o álcool ou as drogas.

Um levantamento apontado por Burns (2001), foi feito por estudantes do Laboratório de Toxicologia da USP. Recolhidos aleatoriamente o sangue e a urina de quarenta e dois cadáveres de mortes violentas (acidentes de trânsito, suicídios, mortes acidentais, afogamentos, homicídios) no Instituto Médico-Legal de S. Paulo, acharam 45,23 % de cocaína em todos os cadáveres, sendo 64 % nos casos de homicídio. Isso indica um uso generalizado da cocaína no Brasil, quando se trata de mortes violentas.

Este estudo poderá constituir uma proposta promissora para o campo da Psicologia da Saúde. Acompanhando a definição desse novo campo da psicologia,

Health Psychology é um agregado de contribuições específicas da Psicologia para a promoção e manutenção da saúde, a prevenção e tratamento de doenças, a identificação de etiologias e diagnósticos voltados à saúde, doença e disfunções relacionadas, e para análise e promoção do sistema de cuidados com a saúde e formação de políticas de saúde. (MATARAZZO, 1980, p. 815 apud TRINDADE, 2003, p. 11)

Sem dúvida, este trabalho pretende contribuir com a Psicologia da Saúde, pois poderá influenciar, no que tange à dependência de drogas, em atitudes mais objetivas para com a saúde, a doença, o sistema de cuidados com a saúde, a prevenção e a formação de políticas de saúde.

Jung (1991b) utilizou sua tipologia psicológica com a finalidade de obter um instrumento crítico para ordenação da caótica profusão de experiências individuais e para entendimento das suas variações. Desta maneira, o pesquisador pretende aqui uma ordenação das experiências e das variações individuais dos dependentes químicos de forma a se extrair algum elemento comum além daqueles que já tenham sido abordados em outras pesquisas. Além disso, esta pesquisa poderá ampliar a compreensão da psicologia junguiana acerca da dependência de drogas, enriquecendo-a com outros objetos de estudo.

Ao mesmo tempo esta pesquisa será auspiciosa com relação à própria formação do pesquisador e à formação geral em psicologia, visto que colabora em um campo ainda pouco explorado com relação ao ponto de vista da psicologia analítica. Ao mesmo tempo, dentro dessa psicologia, apresenta a associação das funções da consciência com a dependência de drogas, um tema novo e, salvo melhor juízo, ainda inexplorado, pelo menos no Brasil. Daí o caráter exploratório que esta pesquisa empresta.

A hipótese desta pesquisa é que existe um grande papel das funções intuição e sensação com a sujeição às drogas. Essa relação pode passar, inclusive, pela patologização dessas funções. Portanto, objetiva-se verificar a relação entre a dependência química e as funções psíquicas intuição e sensação em dois sentidos: averiguar como estas operam na personalidade de um dependente e como a dependência química as influencia. Portanto, pretende-se aqui acrescentar elementos na compreensão da ligação psíquica possível entre o indivíduo e as drogas psicotrópicas.

A revisão de literatura constará de uma breve definição e descrição dos tipos psicológicos como entendidos por Jung (1991b). Haverá então o exame dos fatores psicossociais e simbólicos que atuam de forma a beneficiar a dependência de drogas. Após, será tratada a dinâmica da intuição e da sensação e sua ligação com a dependência, com o mito de Narciso e com drogas específicas. Mais adiante, apresenta-se um alerta aos perigos da unilateralidade do uso das funções e sua psicopatologia. Finalmente, haverá a apreciação do emprego inovador e eficaz de técnicas expressivas na recuperação de dependentes.

REVISAO DA LITERATURA

  • JUNG E OS TIPOS PSICOLÓGICOS

Segundo Sharp (1990), o modelo dos tipos psicológicos de Jung faz referência à dinâmica da energia psíquica e ao modo como cada indivíduo se norteia e se conduz no mundo, habitual ou preferencialmente. Se a libido dirige-se ao objeto (mundo exterior), trata-se de uma atitude extrovertida; se se dirige ao mundo interior, fala-se de uma atitude introvertida. Do ponto de vista energético, segundo Jung (1991b), a função é uma forma de expressão da libido que permanece idêntica a si mesma sob diversas condições. E pode se orientar para o objeto ou para o sujeito, dependendo da atitude habitual. As funções psíquicas são uma forma de se conduzir a consciência de modo a se desenvolver uma adaptabilidade à vida.

Ele também as classificou como racionais (ou judicativas) e irracionais (ou perceptivas, i. e., que não depende de qualquer razão ou juízo). As primeiras seriam as funções pensamento e sentimento; as outras, a intuição e a sensação. As irracionais o seriam porque se atêm a fatos concretos, sem fazer julgamento sobre o significado das coisas ou pessoas e sobre o seu valor. Sendo assim, tudo o que é captado é obtido diretamente, sem nenhuma elaboração, seja via sentidos (sensação), ou via inconsciente (intuição). Seus conteúdos de operação são, portanto, a interpretação sensorial de estímulos externos ou internos ao corpo e as diferentes possibilidades de sua vinculação mútua, respectivamente. As racionais já se baseiam em um processo reflexivo e de desenvolvimento sequencial, que se sintetiza em um julgamento particular, tendo como objeto as idéias ou os sentimentos.

Assim ficariam distribuídas a classificação e as atividades das funções:

Irracional

Sensação

Assegura que algo existe

Racional

Pensamento

Diz do que se trata

Racional

Sentimento

Fornece o seu valor

Irracional

Intuição

Coloca a par de suas possibilidades

Quadro 1 - Atribuição das funções da consciência de acordo com Jung (1991b)

Desta forma, segundo Jung (1991b), ninguém pode prescindir de qualquer função de adaptação, sob a pena de solapar gravemente o equilíbrio psíquico. No entanto, constata-se geralmente um uso "automático" de certa função específica, o que não exclui o uso das outras. O tipo psicológico se define por esse uso habitual de certa atitude e função, o que a caracteriza como tendo uma qualidade mais desenvolvida, então batizada de "função superior". A "função inferior" consiste naquela menos utilizada pelo indivíduo, e de qualidade oposta à função superior. As "funções auxiliares", ou "laterais", consistem naquelas que são secundárias ao indivíduo, e que são "mais ou menos" inconscientes. Portanto, elas estariam assim dispostas:

Monografias.com

Figura 1 - Disposição das funções da consciência segundo o esquema de oposição

Fonte: Sharp (1990, p. 14)

A posição do pensamento na parte superior do esquema é arbitrária. O importante aqui é demonstrar a oposição das funções entre si (pensamento e sentimento; sensação e intuição), e a disposição das funções chamadas superior, inferior e auxiliares.

Assim, ele classificou os oito tipos psicológicos conforme o quadro a seguir:

Pensamento extrovertido

Pensamento introvertido

Sentimento extrovertido

Sentimento introvertido

Sensação extrovertida

Sensação introvertida

Intuição extrovertida

Intuição introvertida

Quadro 2 - Os tipos psicológicos em relação às funções superiores

Fonte: baseado em Jung (1991b)

A função inferior é aquela que fica para trás no processo de desenvolvimento funcional. Por sua experiência, Jung (1991b) constatou a impossibilidade de se diferenciar as quatro funções simultaneamente, principalmente devido às condições desfavoráveis das circunstâncias em geral. As condições sociais ditam o que é mais importante desenvolver, seja devido à natureza individual ou aos meios mais úteis ao sucesso social. A identificação com a função superior normalmente é total, sempre ou quase sempre. Daí é que surgem os tipos psicológicos. Essa unilateralidade do desenvolvimento psíquico acaba relegando uma ou mais funções ao esquecimento. Daí a qualificação de "inferiores" no sentido psicológico, e não psicopatológico, pois não são doentias, mas retardadas.

Essa unilateralidade inicial é, segundo Jung (1991b), essencial para a diferenciação de uma função, pois é necessário que as partes da psique se destaquem da totalidade para o acesso à consciência. "Enquanto alguma função ainda estiver fundida com uma ou outras mais funções, [...] de modo a não poder manifestar-se autonomamente, está ela em estado arcaico e não está diferenciada, isto é, não é uma parte separada do todo e com vida própria. Um pensamento não diferenciado é incapaz de pensar separado de [...] sensações, sentimentos e intuições [...]" (JUNG, 1991b, p. 404). Uma função indiferenciada também se encontra confundida em seus diferentes aspectos. Uma sensação indiferenciada pode misturar diferentes sentidos, como a audição colorida. Um sentimento indiferenciado pode misturar amor e ódio, em outro exemplo. Portanto, a diferenciação consiste na separação das funções entre si e em seus diferentes aspectos individuais.

Conforme Jung (1991b), a função inferior, nos casos normais, é consciente em seus efeitos, enquanto fenômeno (como no caso da aparência externa de uma pessoa). Porém, não é reconhecida em sua importância (como no caso do desconhecimento mais profundo de alguém). No neurótico ela e sua energia caem totalmente ou em parte no inconsciente, tornando-se incompatível com a função privilegiada. O inconsciente é então vivificado de modo não natural, resultando em fantasias correspondentes à função arcaica. Uma vez conscientizadas, estas trazem a possibilidade de aprimoramento futuro da função inferior. Portanto, existe um processo dialético das funções psíquicas.

Para uma comparação mais esquemática dos tipos aludidos, os quadros a seguir tornam sua descrição bem mais compreensível:

EXTROVERSAO (E)

INTROVERSAO (I)

  • Impulsivo

  • Não pode compreender a vida até que a tenha vivido

  • Atitude relaxada e confiante

  • Esperam que as águas provem ser rasas e mergulham prontamente em experiências novas e não tentadas

  • Atenção voltada para o exterior

  • Interesse e atenção dirigida a acontecimentos objetivos, principalmente os de seu ambiente imediato

  • Seu mundo real é o externo das pessoas e coisas

  • Os gênios que civilizam

  • Pessoas de ação que alcançam a prática

  • Vão da ação à consideração e retornam à ação

  • Conduta governada por condições objetivas em assuntos essenciais

  • Dedicam-se exageradamente a exigências externas

  • Compreensíveis e acessíveis sempre sociáveis, sentem-se mais à vontade no mundo das pessoas e coisas do que no mundo das idéias

  • Expansivos e menos impressionáveis

  • Descarregam as emoções na medida em que elas vem

  • Fraqueza típica: tendência para a superficialidade intelectual

  • Preeminentes no que fazem

  • A saúde e integridade da personalidade dependem de um desenvolvimento balanceado da atitude oposta

 

Exemplos:

Freud, Darwin, Theodore Roosevelt e Franklin Roosevelt

  • Hesitante

  • Não pode viver a vida até que a tenha compreendido

  • Atitude reservada e questionadora

  • Esperam que as águas provem ser profundas e fazem uma pausa para sondar o novo

 

  • Atenção voltada para o interior

  • Interesse e atenção voltados para eventos interiores

 

  • Seu mundo real é o interno das idéias e da compreensão

  • Os gênios da cultura

  • Pessoas de idéias e invenções abstratas

  • Vão das considerações para a ação e voltam para as considerações

  • Conduta governada por valores subjetivos em assuntos essenciais

  • Defendem-se o possível de exigências externas em favor da vida interior

  • Impenetráveis, taciturnos e tímidos, ficam mais à vontade no mundo das idéias do que no mundo das pessoas e coisas

  • Internos e apaixonados

  • Retém suas emoções e as guardam como sendo explosivas

  • Fraqueza típica: tendência à não praticidade

  • Discretos no que fazem

  • A saúde e integridade da personalidade dependem de um desenvolvimento balanceado da atitude oposta

 

Exemplos:

Jung, Adler, Einstein e Lincoln

Quadro 3 – Comparação das atitudes da consciência

Fonte: Myers (1992, p. 56, apud ZACHARIAS, 1995, p. 106)

SENSAÇAO (Ss)

INTUIÇAO (In)

  • Encaram a vida sempre observando as coisas e exigindo estimulação dos sentidos

  • Buscam conscientizar cada impressão dos sentidos e estão cientes do ambiente externo

 

  • São rápidos em perceber, sacrificando a inspiração

  • São amantes do prazer e consumistas

  • Amando a vida como ela é, têm uma grande capacidade de se dedicar ao prazer

 

  • São geralmente satisfeitos

  • Exigem possuir e ter prazer e, sendo muito observadores, são imitativos, querem ter e ser o que os outros tem e são

 

  • São muito dependentes do ambiente físico

 

  • Detestam intensamente toda e qualquer ocupação que requeira supressão dos sentidos e são muito relutantes em sacrificar prazeres presentes visando ganhos futuros

 

  • Preferem a arte de viver no "aqui-agora" para a satisfação de empreendimentos e para atingir objetivos

  • Contribuem para o bem da comunidade, apoiando qualquer forma de diversão, recreação e toda a variedade de conforto, luxo e beleza

  • Correm o perigo de ser frívolos, a menos que equilibrem os seus objetivos através do desenvolvimento de um processo de julgamento

  • Encaram a vida com expectativa, buscando inspiração

  • Admitem as impressões dos sentidos somente quando relacionados à inspiração do momento

  • Desenvolvem a imaginação, sacrificando a percepção

  • Por natureza, são pioneiros e inventores

  • Não tendo gosto pela vida como ela é, têm pouca capacidade para viver e aproveitar o presente

  • São incansáveis

  • Forte desejo por oportunidade e possibilidades, sendo muito imaginativos, são inventivos, originais e indiferentes ao que outras pessoas têm ou fazem

  • São muito independentes do seu ambiente físico

  • Desaprovam intensamente toda e qualquer ocupação que necessite concentração sustentada pelos sentidos, e estão prontos a sacrificar o presente de maneira ampla. Não vivem o presente e nem gostam dele

  • Preferem o gozo de empreendimentos e do alcance de objetivos e prestam pouca ou nenhuma atenção à arte de viver o "aqui-agora"

  • Contribuem para o bem da comunidade com sua capacidade inventiva, empreendimentos e força de liderança, inspirada nas direções de interesses humanos

  • Sempre em perigo de serem inconstantes e faltar-lhes persistência, a menos que um equilíbrio seja obtido através do desenvolvimento de um processo de julgar

  • Quadro 4 – Comparação das duas funções perceptivas

    Fonte: Myers (1992, p. 56, apud ZACHARIAS, 1995, p. 109)

    PENSAMENTO (Ps)

    SENTIMENTO (St)

    • Valorizam a lógica sobre o sentimento

    • Impessoais, tendo mais interesse em coisas do que no relacionamento humano

    • Se forçados a escolher entre dizer a verdade nua e crua ou dizê-la de forma indireta, eles preferem a primeira alternativa

    • Mais fortes em habilidade de execução do que em contato social

    • Têm a tendência de questionar as conclusões dos outros, com propensão a achar que os outros estão errados

    • Rápidos e profissionais, parecem carecer de amizade e sociabilidade, sem que seja intencional

    • São geralmente capazes de organizar fatos e idéias numa sequência lógica que afirma o assunto, faz a pontuação necessária e chega a um final sem repetição

     

    • Suprimem, desvalorizam e ignoram sentimentos incompatíveis com julgamentos racionais

    • Contribuem para a comunidade pelo seu criticismo intelectual presente em seus hábitos, costumes e crenças, expondo os pontos errados, solucionando problemas e dando suporte à ciência e à pesquisa para o aumento do conhecimento da compreensão humana

    • Tipo encontrado mais em homens

  • Valorizam o sentimento sobre a lógica

  • Pessoais, mais interessadas nas pessoas do que nas coisas

  • Se forçados a escolher entre dizer a verdade nua e crua ou dizê-la de forma indireta, eles preferem a segunda alternativa

  • Mais fortes em contato social do que em habilidades de execução

  • Têm a tendência de concordar com os que estão à sua volta, pensando como os outros e acreditando que os outros estão certos

  • Amigáveis e sociáveis, encontram dificuldades em serem objetivos

  •  

    • Acham difícil saber onde começar uma frase ou em que ordem apresentar as idéias. Podem ser repetitivos, fornecendo mais detalhes que o tipo Pensamento quer ou acha necessário

    • Suprimem, subestimam ou ignoram pensamentos ofensivos a julgamentos baseados no sentimento

    • Contribuem para a comunidade através do seu apoio leal às boas obras e aqueles movimentos considerados bons pela comunidade, a respeito dos quais sentem que sejam corretos e que podem servir efetivamente

     

    • Tipo encontrado mais em mulheres

    Quadro 5 – Comparação das duas funções judicativas

    Fonte: Myers (1992, p. 56, apud ZACHARIAS, 1995, p. 111 e 112)

    Por fim, constituiu-se neste capítulo um panorama geral acerca da estruturação da tipologia junguiana, da dinâmica das funções, sua oposição, sua categorização e, ao final, sua descrição geral. Esse estudo extrapola-se para vários outros problemas que podem explicar ou se combinar com as questões da dependência.

    • A INICIAÇAO À DEPENDÊNCIA DE DROGAS

    Jung (1991b) utilizou a tipologia psicológica com a finalidade de se obter um instrumento crítico para ordenação da caótica profusão de experiências individuais, para entendimento das variações individuais e também como uma orientação com relação às diferenças em que se baseiam as variadas teorias psicológicas. Desta maneira, pretende-se aqui uma ordenação das experiências e das variações individuais dos dependentes químicos de forma a se extrair algum elemento comum além daqueles que já tenham sido abordados em outras pesquisas.

    Em uma breve referência às atitudes psíquicas, Zoja (1992), em sua obra que relaciona iniciação e dependência química, explica que enquanto na sociedade ocidental a extroversão é um valor, o álcool se presta principalmente para aumentar a coesão do grupo. Ele refere-se a vários autores, dizendo que

    acham que a tolerância para com uma droga numa dada sociedade corresponde à sua postura psicológica dominante: o álcool é mais aceito no Ocidente, onde nos interessamos pelos objetos exteriores, ao passo que o haxixe é mais aceito no Oriente, onde predomina a introversão. (ZOJA, 1992, p. 126)

    Portanto, nesse ponto, o autor aproxima-se da apreciação deste trabalho, relacionando a tipologia psicológica à dependência de drogas.

    Ainda segundo o autor acima, as drogas possuem pelo menos dois efeitos típicos: um simbolizante, em que facilita a experiência simbólica, com a ativação do inconsciente; outro hipertrófico, alterando temporariamente a relação do ego com o superego. Os alucinógenos aproximam-se mais do primeiro pólo e o álcool do segundo, pois este não mostra uma relação tão direta e mais fácil com a experiência simbólica e imagética quanto aqueles. No entanto, embora as drogas alucinógenas prestem-se a uma facilitação da experiência simbólica, estas não são elaboradas, pois não estão inseridas em um contexto estruturante que acompanham e limitam o uso da droga.

    Culturalmente, para Zoja (1992), os dependentes químicos subestimam a droga por uma atitude ingênua e de desprevenção. Subestimam os obstáculos toxicológicos e também os culturais e psicológicos correspondentes. No corpo haverá sintomas de envenenamento. Mentalmente, não havendo como assimilar a experiência, reagirão também como se estivessem envenenados.

    O autor percebe a cultura ocidental como repressora da temática da morte, que é tida como associada à doença e não como um evento natural, a ponto de ser considerada como tabu, tal como a sexualidade o foi por muito tempo. Os antigos duelos, por exemplo, enquanto um combate ritual e heróico para se suplantar o oponente, já não existem, pois o Estado tomou para si e despersonalizou o uso da violência, proibindo-a aos particulares. "Talvez", continua, "os bárbaros aceitassem certa quantidade de sangue como o mal menor, para serem consequentes com uma exigência psicológica: que, através do "juízo de Deus", em seus atos se exprimisse diretamente a divindade (nós diremos: uma instância arquetípica)" (ZOJA, 1992, p. 24). Porém, no lugar dos pequenos combates individuais, presenciam-se grandes guerras, grandes duelos impessoais, onde milhões de pessoas morrem em nome de entidades nacionais ou ideológicas.

    A vida se empobrece e perde interesse quando não se pode arriscar o que no jogo da existência é a mais alta aposta: a própria vida. Ela se torna vazia, insípida como um flirt[1]americano, em que fica estabelecido desde o começo que nada pode acontecer, ao contrário de uma relação amorosa do Velho Continente, na qual os dois parceiros estão sempre conscientes das sérias consequências a que se expõem. (FREUD, 1976, apud ZOJA, 1992, p. 24)

    A alternativa que a sociedade atual propõe ao sujeito é "diluir-se na insignificância de existências regidas pelas instituições. [...] A prevenção de quase todas as formas de morte foi assumida pelas instituições públicas" (ZOJA, 1992, p. 23): ninguém morre de fome por desemprego graças às indenizações do Estado; quem não deseja comer é alimentado à força; o idoso é internado; e a eutanásia[2]é proibida!

    Semelhante posição é adotada em um capítulo especial de Hermann e Riech (1988), através do diretor do Centro de Informação e de Ajuda Psicológica e Social da Associação Caritas de Berlim, Sr. Berndt Georg Thamm, e do psicólogo conselheiro do serviço "Droga", da mesma associação, Sr. Horst Brömer. Segundo eles, os jovens gostam de correr riscos, sequiosos que são de experiências pessoais "em um mundo em que eles são cada vez mais raros" (HERMANN e RIECH, 1988, p. 203).

    Zoja (1992) e Bloise (apud SILVEIRA FILHO e MOREIRA, 2006) enfatizam a necessidade de experiências heróicas e de identificações com figuras de heróis no desenvolvimento humano. E a vida moderna dificilmente se apresenta como uma responsabilidade individual, totalmente inserida nos princípios da comunidade ou se fazendo seu intérprete, como no passado. Tudo já está traçado e previsto em rígidas regras, só restando ao indivíduo segui-las para seu sucesso, como em uma receita culinária. Poda-se a originalidade e a responsabilidade pelo próprio caminho. Mas a necessidade de parâmetros para a libertação do mundo parental mantém-se constante e se expressa nas batalhas contra o mal, nas mortes, no abandono, nas perdas e nos desafios contidos nos jogos de videogames e nas histórias em quadrinhos, tão fascinantes para os jovens em geral.

    Assim, a iniciação às drogas acaba por constituir um ingênuo e inconsciente empreendimento para se conseguir uma identidade e um papel definidos, ainda que negativamente, através e com referência aos valores sociais. Isso porque "só pode ser cavaleiro errante quem for cavaleiro do mal" (ZOJA, 1992, p. 23). O dependente químico representa o papel arquetípico de herói negativo, em busca de uma identidade heróica, nos fugazes momentos de contato com a droga.

    É interessante acompanhar como essa necessidade de uma identidade acompanha o desenvolvimento da jovem protagonista da biografia de Hermann e Riech (1988): Christiane F. A seguir serão apresentadas algumas de suas considerações sobre a família, o conjunto habitacional onde morava, a escola e sua "turma".

    No conjunto Gropius[3]aprendia-se, por assim dizer, automaticamente, a desobedecer às proibições. Aliás, tudo ou quase tudo era proibido, principalmente brincar com aquilo que era divertido. O conjunto era pontilhado de placas. Os pretensos parques que separavam os prédios eram verdadeiras florestas de placas e quase todas essas placas proibiam qualquer coisa às crianças (alguns anos mais tarde eu copiei todos os "proibidos" em meu diário). (HERMANN e RIECH, 1988, p. 23)

    Com isso, a jovem aprendeu que "tudo o que era permitido era incrivelmente chato e tudo o que era proibido, divertido" (HERMANN e RIECH, 1988, p. 27). Segundo Zoja (1992), na tentativa da justiça tornar-se mais equânime e equidistante, acaba se racionalizando, pois a lei e as regras em geral conformam-se distantes e impessoais, ao contrário do arquétipo, que sempre tende a exprimir-se em configurações pessoais, através de preceitos de ordem valorativa e moral do indivíduo. Há privação geral de experiências arquetípicas diretas que ocasiona uma queda da tensão vital. E esse aumento da tensão vital foi buscado pela jovem nas drogas.

    Ela não se sentia "alguém", uma pessoa, um ser vivente, na sua escola. Com isso, ela passou a proceder como quando cursava o primário – falando baixo, interrompendo e contestando os professores, quando achava que eles erravam ou por princípio próprio.

    A turma de amigos de Cristiane fumava maconha uma tarde. Ela ainda não a conhecia, embora soubesse que era proibida. Cada um do grupo tragou a droga, inclusive sua amiga. Recusou quando chegou sua vez, apesar de não ter essa intenção. "Tinha tanta vontade de fazer parte da turma! Mas era uma droga! Eu não podia ainda! Isso me causava realmente muito medo" (HERMANN e RIECH, 1988, p. 40). Percebe-se aqui o conflito que tomou conta da protagonista: de um lado, tentava repudiar a droga por ser um artigo proibido; por outro, não se sentia parte integrante da turma, pois havia algo que todos faziam que só ela recusava fazer. Além disso, ela admirava os membros do grupo. Sentia que emanavam de si mesmos uma "superioridade", fato que a desconcertava, pois não gritavam, não brigavam e nem aterrorizavam ninguém. Essa discrepância que ela sentia parece referir-se ao fato de que ela entendia por "superior" justamente aqueles que usavam recursos agressivos para impor sua vontade. Sua turma não era agressiva.

    Observa-se neste momento como Cristiane estava constituindo sua identidade a partir dos modelos que lhe eram apresentados. Ela admirava a maneira amigável da turma porque seu comportamento era agressivo. Derivava da regra de vida passada por seus pais: bater ou apanhar. Aprendeu a lição aos poucos, primeiro agredindo os professores mais frágeis, depois passando a perturbar os professores mais temidos, conseguindo aí angariar a simpatia dos colegas. Sua turma tinha a vantagem de não necessitar agredir ninguém, o que elimina o sentimento de culpa atribuído à hostilidade. O grupo lhe transmitia sua supremacia através do relacionamento com as drogas, que era algo proibido pela sociedade e pelas autoridades constituídas. Isso num nível mais ilegal que seu próprio comportamento agressivo. Ilustra-se, assim, o que Zoja (1992) afirmou atrás sobre a identidade heróica com referência aos valores sociais.

    Não queria nada dos rapazes. Ainda não me interessava pelo sexo oposto. Só tinha doze anos e não havia tido sequer uma menstruação; o que eu queria era poder contar a todos que Piet[4]estivera em minha casa. Assim os outros pensariam que nós havíamos saído juntos ou, pelo menos, que eu fazia parte da turma. [...] Eu já havia evoluído muito. Familiarizara-me não somente com a música de que eles gostavam, mas também com o seu linguajar diferente e tudo o mais. Tratei de aprender aquele vocabulário tão novo para mim. E isto me parecia mais importante que a matemática e os verbos ingleses. (HERMANN e RIECH, 1988, p. 41)

    Cristiane F. se importava muito com que os outros pelo menos pensassem que era parte da turma, mesmo se isso ainda não tivesse se efetivado. O poder atrativo e fascinador do grupo era muito forte para a protagonista. Ela tinha carência de estar um tanto embalada e voando. Voar envolve certa distância da realidade, do chão. E ela queria livrar-se da escola e de casa. Suas notas diminuíram muito, e em casa não se sentia aceita nem pela mãe, nem pelo padrasto, que não gostava de animais, com quem Cristiane se identificava. Ela já não se sentia uma pessoa na escola e via os animais – e o grupo, mais como amigos do que seus pais. Em acréscimo, ficou obcecada pela sensualidade do seu corpo, que utilizava para manifestar um ar misterioso, desconhecido e, talvez por isso, de firmeza e segurança. Tudo isso fazia com que se sentisse ainda mais diferente do mundo das pessoas "normais".

    A droga torna-se a mensageira de um "outro mundo", bastante vivo, contrastando com a estreiteza da vida cotidiana. É um "poder" que permite tocar o mundo do inconsciente ocasionando uma revelação. Continuando, Zoja (1992) afirma que o consumo de drogas sempre existiu e se acentua nos estados de crise da coletividade, indícios de uma necessidade de renovação.

    A minha hipótese é que toda tentativa de iniciação, quando não está suficientemente consciente, nem protegida por rituais, nem inserida num complexo cultural coerente, mobilize do modelo arquetípico, sobretudo o processo de morte, quer porque é o primeiro e mais simples, quer porque, ao contrário da regeneração, é facilmente realizável de modo literal, como morte orgânica: e a necessidade, frustrada na sua expressão simbólica, tende a se literalizar. (ZOJA, 1992, p. 58)

    Essa literalização do que era para ser uma expressão simbólica do arquétipo da morte ocorre com os dependentes de drogas (SILVEIRA FILHO, 1997).

    Por fim, este capítulo pretendeu demonstrar, através de Zoja (1992), como o problema da dependência química está relacionado com a atitude psíquica da sociedade ocidental em geral e com certos fatores culturais. A repressão de temáticas ligadas à morte, através da extrema intervenção do Estado em questões individuais, produziu uma carência maior de vitalidade devido à privação cada vez mais intensa de riscos. Com isso a responsabilidade e a originalidade próprias, que favoreçam papéis positivos, reduziram. A iniciação às drogas oferece a oportunidade para uma identidade e um papel contrários à sociedade, uma abertura mais irrestrita e repleta de riscos. Com isso, a iniciação enquanto morte tende a se literalizar, o que constitui grande parte da problemática atual da dependência química.

    • AS FUNÇÕES INTUIÇAO E SENSAÇAO E AS DROGAS

    Antes de prosseguir com essas considerações, é bom assinalar para o fato de que as comparações que se fazem aqui entre os efeitos da droga com a função intuição e/ou sensação não tem a intenção de torná-las patológicas. O objetivo é demonstrar como certas drogas podem constituir um meio mais favorito, em determinados contextos psicossociais, para reforçar, amortecer ou tornar doentia alguma função psicológica, como explicado no capítulo "Psicopatologia das funções e a dependência química".

    Conforme Jung (1991b), a preferência do uso da intuição reprime o pensamento, o sentimento e especialmente a sensação, já que esta, em um emprego consciente, estorvaria a intuição. "A sensação perturba a impressão pura, isenta e ingênua por meio de estímulos importunos dos sentidos que dirigem o olhar parar a superfície física, exatamente para as coisas além das quais a intuição quer chegar." (JUNG, 1991b, p. 348). É óbvio que o tipo intuitivo utiliza-se de sensações, mas ele não se orientará por elas, que são apenas pontos de partida de suas impressões. "Não é a sensação fisiologicamente mais forte que obtém primazia, mas qualquer outra que foi altamente valorizada pela atitude inconsciente do tipo intuitivo." (JUNG, 1991b, p. 348). "A intuição precisa olhar as coisas de longe ou de modo vago, a fim de captar um certo pressentimento vindo do inconsciente, semicerrar os olhos e não olhar os fatos muito de perto" (VON FRANZ, 1990, p. 51), e por isso eles são imprecisos e vagos com relação à descrição de fatos em geral. Sua consciência tem que estar constantemente ofuscada, desfocalizada e sombria para captar as possibilidades, que percebem de modo subliminar.

    A sensação, entendida como uma simples e direta impressão dos sentidos, é fortemente reprimida. O importante aqui seriam as percepções provocadas pela ação de certas drogas no cérebro, que teriam o efeito turvador sobre a consciência do dependente, o que é requerido pela intuição. Elas se convertem, conforme Silveira Filho (1995), em um meio eficaz para o dependente químico fugir da realidade objetiva e subjetiva insuportável, alterando sua percepção.

    As situações comuns da vida parecem, de acordo com Jung (1991b), lugares fechados que a intuição deve abrir. Ela sempre procura novos recursos, novas saídas e possibilidades na vida exterior.

    Em pouco tempo, toda situação de vida se torna, para a atitude intuitiva, uma prisão, uma cadeia opressora que é preciso romper. Às vezes, os objetos parecem ter valor quase exagerado, sobretudo quando devem servir a uma solução, a uma libertação ou à descoberta de nova possibilidade. Mal cumpriram sua função como degrau ou ponte, parece que já não têm utilidade e são relegados como acessório incômodo. Um fato só vale enquanto abrir novas possibilidades que o ultrapassam e dele libertam o indivíduo. (JUNG, 1991b, p. 349)

    Ora, percebe-se aqui que possibilidade o caminho das drogas não irá abrir ao dependente. Este

    [...] se encontra diante de uma realidade objetiva ou subjetiva insuportável, realidade esta que não consegue modificar e da qual não consegue se esquivar, restando-lhe como única alternativa a alteração da percepção desta realidade. Esta alteração da percepção da realidade pode ser obtida através do uso da droga. [...] Estabelece-se assim um duo indissociável indivíduo-droga, onde tudo o que não é pertinente a essa relação passa a constituir pano de fundo na existência do dependente. Este duo permanece indissociável enquanto a droga for capaz de propiciar esta alteração da percepção de uma realidade insuportável, respondendo assim pela manutenção do equilíbrio do indivíduo. Para o dependente, a droga é uma questão de sobrevivência. Não ter a droga é perder-se. E a droga pode, ao mesmo tempo, ser a possibilidade de resgate de aspectos de sua identidade. (SILVEIRA FILHO, 1995, p. 7)

    Para Zoja (1992) o recurso à droga geralmente é motivado pela insignificância do modo de vida atual: cinzento, sem sentido, levada por reflexo automático (ou "empurada com a barriga", no linguajar trivial). Esse estado de coisas, para o dependente químico, constitui uma impressão extremamente desagradável, mas inescapável nas condições de vida contemporâneas. Daí a recorrência à intuição ou sensação patológicas[5]funções perceptivas e de contato com as possibilidades do mundo interno e externo, mas que, uma vez prejudicadas, livram o sujeito desse modo de vida confuso.

    No uso da intuição introvertida em particular, a atenção se volta para o mundo interior e seus objetos – os elementos do inconsciente. Estes se comportam, consoante Jung (1991b), como se fossem objetos exteriores, constituindo uma realidade psíquica, paralela à realidade física, e percebidas praticamente com a mesma nitidez com que a sensação extrovertida percebe os objetos exteriores. São imagens subjetivas do que não se encontra na experiência externa, mas no inconsciente coletivo. "Parecem destacadas do sujeito, como que existindo em si mesmas, sem relação com a pessoa" (JUNG, 1991b, p. 376).

    Segundo APA (2002), um especificador dos transtornos induzidos por cannabis, cocaína (e suas outras formas) e alucinógenos em geral, são percepções sensoriais distorcidas, tais como alucinações em que o indivíduo sabe serem induzidas pela substância, e sensação de lentidão no tempo. Percebe-se aqui uma analogia patente entre a droga como amplificador do anuviamento da consciência requerido para o exercício da intuição.

    O aprofundamento da intuição leva naturalmente o indivíduo a um grande afastamento da realidade palpável, de modo a tornar-se completo enigma até mesmo para as pessoas mais chegadas. Se for artista, apresentará sua arte coisas extraordinárias, estranhas ao mundo, reluzentes em todas as cores, ao mesmo tempo importantes e banais, belas e grotescas, sublimes e ridículas. (JUNG, 1991b, p. 378)

    Com "aprofundamento da intuição" Jung parece se referir a uma unilateralidade da consciência do sujeito, que pode, segundo sua intensidade, ser até patológica. Mais à frente esse tema será abordado.

    Silveira Filho (1995) coloca que

    Na dinâmica de diversos dependentes de drogas, a fantasia seria vivida e procurada através da droga como uma realidade em si mesma, como uma "alucinação do real", devido à ausência da capacidade de simbolização. Tratar-se-iam de alucinações na medida em que as imagens e representações psíquicas, na ausência de simbolização, seriam experienciadas como exteriores ao eu, não podendo portanto serem abstraídas na forma de ideação. Dada sua dificuldade em elaborar o simbólico, o dependente viveria em um mundo governado pelos princípios mágicos. Uma vez que para o referencial arquetípico o mundo mágico é de forma similar extremamente simbólico, preferimos considerar o dependente como alguém possuído e escravizado pelo símbolo e consequentemente paralisado para a elaboração simbólica. (SILVEIRA FILHO, 1995, p. 33)

    Quando Silveira Filho (1995) referiu-se no parágrafo acima à "alucinação do real", pareceu aludir ao transtorno da função intuição mencionado no capítulo sobre a psicopatologia das funções. Zoja (1992) já se referiu a essa capacidade de simbolização no capítulo "A iniciação à dependência de drogas", páginas atrás. O que é importante ressaltar aqui é a similaridade da experiência da função intuição introvertida com a do dependente de drogas com parca capacidade de simbolização. Silveira Filho (1995) utiliza-se do entendimento de Byington (1987) sobre o desenvolvimento da personalidade a partir da psicologia analítica para explicar a estruturação egóica através dos ciclos arquetípicos matriarcal, patriarcal e de alteridade. Para este, a capacidade de simbolização ou elaboração simbólica efetua-se de acordo com a tipologia individual de cada um. Isso ocorre, inicialmente, através da primeira e segunda funções mais desenvolvidas ao longo da vida e, quando possível, também pelo exercício da terceira e quarta funções. Percebe-se aqui que a capacidade de simbolização, se ocorrer sem transtornos, sobrevém naturalmente em qualquer tipo de personalidade.

    O importante a destacar neste capítulo não é simplesmente a analogia da experiência da intuição, particularmente da introvertida, com os conhecidos estados eufóricos patológicos de certas drogas. Mas o fato de que esse mesmo efeito, quando sob o poder da droga, torna-se incontrolável pelo sujeito. Manifesta-se de forma impulsiva, ilimitada, indomável. E isso poderá fazer com que sua sujeição às drogas constitua uma dificuldade maior do que representaria a outros tipos psicológicos. E é aí que está a doença: naquele que se dispõe a usar insistentemente a droga para funcionar de forma totalmente desestruturada, como se verá adiante com Aranha (2006).

    • NARCISO, O ESPELHO E A DEPENDÊNCIA DE DROGAS

    Silveira Filho (1995) fez um estudo analítico da dependência de drogas a partir da psicologia simbólica de Carlos Byington, um pós junguiano. Para ele

    A grande variabilidade e diversidade de fatores que favorecem o aparecimento da dependência correlacionam-se com a impossibilidade de se caracterizar uma "personalidade do dependente". A especificidade da farmacodependência consiste na inexistência de uma especificidade estrutural do dependente de fármacos. Por mais que a nosografia psiquiátrica insista em categorizá-la como uma entidade nosológica autônoma, a clínica da farmacodependência não consegue reconhecer nada mais sistematizável do que uma conduta toxicomaníaca. Assim, em princípio, não podemos falar em "doença", mas apenas em "conduta". (SILVEIRA FILHO, 1995, p. 5)

    Aqui o autor está se referindo a uma estruturação da dependência em termos de "personalidade do dependente". Por isso, este trabalho evitará, na medida do possível, uma associação explícita de um tipo específico ao uso das drogas. A prioridade será analisar o papel das funções psíquicas intuição e sensação e sua dinâmica no uso crônico e dependente das drogas. Como elas são influenciadas pelo uso de drogas? Por sua vez, como a dependência química interfere na sua operação? O que fica claro mais adiante é que o uso continuado de drogas psicotrópicas acaba por resultar em um desvio do uso normal das funções, configurando sua psicopatologia.

    A associação intuição/sensação e a dependência de drogas, pretendida aqui, é arquetípica. Isso fica claro quando remetemos a conduta toxicomaníaca aos mitos, como fez Batista (2002) com o mito de Narciso, donde podemos extrair outras estruturações arquetípicas dessa prática, vinculando-as às funções estudadas.

    Assim,

    [...] temos em ?????ss?? (Nárkissos) o elemento ????? (nárke), que, em grego, significa "entorpecimento, torpor", cuja base deve ser o indo-europeu (s)nerg, "encarquilhar, estiolar, morrer". [...] Relacionando-se, depois, com a flor narciso, que era tida por estupefaciente, nárke será a base etimológica de nossa palavra narcótico e toda uma vasta família com o elemento narc-. (BRANDAO, 1991, p. 173)

    Brandão (1991) ainda descreve a flor narciso como bonita, estéril, inútil e venenosa, que se extingue após uma vida breve e produz um perfume que causa torpor. Compara-a ao próprio Narciso, que também "é estéril, inútil e venenoso" (BRANDAO, 1991, p. 173). Lembra também a ligação da flor com as cerimônias de iniciação, sobretudo relativas ao culto de Deméter e Perséfone. Narcisos plantados em túmulos representavam a morte enquanto sono. Isso remete de novo ao capítulo "A iniciação à dependência de drogas", na referência que Zoja (1992) faz da necessidade do dependente químico de literalização da morte, no lugar de uma vivência simbólica.

    Ele também alude à hýbris de Narciso em sua violência contra o envolvimento amoroso e erótico com o outro. "A atividade da reflexão (voltar-se para si mesmo) domina e exclui a necessidade de alimentação, de sexualidade comum, da atividade da entrada de qualquer pensamento ou impulso novos." (BRANDAO, 1991, p. 184). É o encantamento por esta reflexão, essa imagem fugidia, que ilude Narciso, como descreve Ovídio:

    É uma chama que a si própria alimenta. Quantos beijos lançados às ondas enganadoras! Para sustentar o pescoço ali refletido, quantas vezes mergulhou inutilmente suas mãos nas águas. O mesmo erro que lhe engana os olhos, acende-lhe a paixão. Crédulo menino, por que buscas, em vão, uma imagem fugitiva? O que procuras não existe. Não olhes e desaparecerá o objeto de seu amor. A sombra que vês é um reflexo de tua imagem. Nada é em si mesma: contigo veio e contigo permanece. [...] Estirado na relva opaca, não se cansa de olhar seu falso enlevo, e por seus próprios olhos morre de amor. (BRANDAO, 1991, p. 181)

    Se se imaginar no comentário sobre Narciso acima que Ovídio refere-se a um dependente químico, ter-se-á uma imagem muito aproximada de sua condição, das sensações que a droga produz e de sua pertinência, como descreve Batista (2002).

    A dependência de drogas revela uma paralisação no desenvolvimento da psique (BATISTA, 2002). É considerada como uma tentativa de retorno e aproximação do Self (ou Si-mesmo), sem que o ego esteja suficientemente forte para fazê-lo de forma discriminada, com discernimento. Ocorre uma inflação do ego, uma identificação exacerbada, sobrevindo sentimentos de onipotência, o que separa o dependente químico da experiência humana, dificultando o caminho de volta. No desenvolvimento do ego, chega um momento em que este luta contra o desejo de regressão às origens e, vencendo-o, garante uma estruturação egóica com energia suficiente para triunfar sobre a inércia psíquica. A identificação com o Self oferece uma solução imediata para as angústias do toxicômano.

    No entanto, a aspiração deste trabalho é oferecer uma análise da operação das funções da consciência na dependência química, o que envolve a abordagem específica, inclusive, de certas drogas como solução para angústias e não outro tipo de subterfúgio. A motivação principal seria o fato de o dependente privilegiar em sua consciência determinadas funções em detrimento de outras, por vezes até mesmo de sua função superior, configurando arranjos definidos que o predisporiam à dependência de determinadas drogas.

    Ora, "A sensação perturba a impressão pura, isenta e ingênua por meio de estímulos importunos dos sentidos que dirigem o olhar para a superfície física, exatamente para as coisas além das quais a intuição quer chegar" (JUNG, 1991b, p. 348). É óbvio que a intuição utiliza-se de sensações, mas apenas se orientará por elas enquanto pontos de partida de suas impressões. "Não é a sensação fisiologicamente mais forte que obtém primazia, mas qualquer outra que foi altamente valorizada pela atitude inconsciente do tipo intuitivo." (JUNG, 1991b, p. 348). "A intuição precisa olhar as coisas de longe ou de modo vago, a fim de captar um certo pressentimento vindo do inconsciente, semicerrar os olhos e não olhar os fatos muito de perto" (VON FRANZ, 1990, p. 51), e por isso eles são imprecisos e vagos. Sua consciência tem que estar constantemente ofuscada, desfocalizada e sombria para captar as possibilidades, que percebem de modo subliminar. Ainda assim, a operação normal da intuição conforma-se à "prova da realidade" (ARANHA, 2006).

    Já a função sensação se atém às impressões dos sentidos. Porém, sob o efeito de certas drogas também se desorganiza. A fuga da realidade, da percepção do mundo através da operação saudável da função do real, configuraria um espelho que simularia uma outra realidade para Narciso (BRANDAO, 1991). Esse espelho não reflete a realidade, mas o que Narciso quer, e constitui uma distorção doentia da operação de cada função psíquica, o que prejudica a consciência.

    Ora, muitas drogas têm justamente essa propriedade de obscurecer a consciência. Dessa forma, elas se tornam, conforme Silveira Filho (1995), em um meio eficaz para os dependentes químicos, inseridos em um determinado conjunto variado de fatores, fugirem da realidade objetiva e subjetiva insuportável, alterando seu funcionamento psíquico.

    • OS EFEITOS DAS DROGAS E A OPERAÇAO DAS FUNÇÕES

    Este capítulo fará uma breve análise de certos conteúdos da obra "O livro das drogas", de Escohotado (1997). Esta traz uma descrição detalhada dos diferentes efeitos psíquicos e impressões de várias substâncias psicoativas. É importante para este trabalho porque, através da comparação desses efeitos psíquicos com as particularidades das funções da consciência, ajudará a cumprir o objetivo desta pesquisa ao nível bibliográfico. Constitui um importante material empírico que inclui as próprias experiências subjetivas do autor supracitado e de outros na forma de relato introspectivo.

    O autor, uma das maiores autoridades mundiais sobre drogas, acredita no conhecimento como o melhor estímulo para uma conduta racional e o consequente exercício da liberdade. Sua preocupação é a de constituir uma "educação farmacológica" em oposição à barbárie farmacológica. Constata, junto com Zoja (1992), que a "ebriedade – especialmente com coisas alheias ao menu lícito – não apenas continua despertando interesses como se tornou um rito de amadurecimento para uma certa parte dos jovens, apesar das difíceis condições impostas pelo mercado negro" (ESCOHOTADO, 1997, p. 16).

    Tratando das desvantagens do uso exacerbado de estimulantes muito ativos, tais como a cocaína, a anfetamina e a catina [sic], Escohotado (1997) afirma que ocorre a produção de estados intoleráveis.

    Por isso, o grande abuso deve sempre ser explicado em função de um determinado tipo psicológico[6]A maioria das pessoas evita sofrer essas reações. É arriscado esboçar os traços genéricos de tal tipo psicológico, mas uma de suas características é a falta de energia intelectual, quando não uma forma de infantilismo ou retardo. (ESCOHOTADO, 1997, p. 133)

    Aqui não fica muito claro a que o autor quer se referir com "falta de energia intelectual". Logo após ele alega o que parece ser um estado exacerbado de carência intelectual, apontando "uma forma de infantilismo ou retardo". Provavelmente esteja se referindo a um retardamento enquanto "uma lenta evolução mental" (HOUAISS, 2001), já que colocou "retardo" pareado com "infantilismo". Isso corresponderia, analiticamente, a um uso inferior da função pensamento, ou uso exclusivo de uma das funções irracionais – intuição e sensação, sem desenvolvimento do pensamento como função auxiliar, isso com relação ao uso das drogas estimulantes.

    Em outra parte, o mesmo autor aponta para outros indícios em relação ao campo psíquico:

    As diferenças baseadas na atividade farmacológica têm algo de arbitrário quanto às drogas que agora nos ocupam, pois o efeito depende muitas vezes de fatores alheios e compostos específicos e alheios até mesmo às doses. Além da personalidade individual[7]os chamados set ("ambiente") e setting ("preparação") têm um grande peso para inclinar a experiência a maravilhas ou horrores, e estabelecer sua duração. (ESCOHOTADO, 1997, p. 185)

    Ora, no que tange à personalidade individual, a hipótese deste trabalho pode elucidar certos elementos. Um determinado tipo psicológico pode procurar o uso de uma droga para reforçar sua função principal, o que é de se esperar normalmente, já que é sua função mais adaptada, onde o indivíduo encontra segurança em operar (JUNG, 1991b). Sentindo-se mais seguro no uso de certa função, frente a fatores ameaçadores, um determinado tipo poderá tender a exacerbar mais ainda a função privilegiada. (Como possibilidade, pode também procurar usá-la para suprimir sua função superior, mas isso é improvável, devido às razões já apresentadas.) No entanto, esse uso das drogas para reforçar a função superior terá um efeito mais ou menos intenso e/ou diferente, de acordo com a função privilegiada pelo indivíduo, conforme se percebe com Escohotado (1997). Pois, como se observou há pouco e se verá a seguir, determinadas drogas privilegiam a intensificação de determinadas funções da consciência e não outras, inclusive tornando seu funcionamento doentio.

    Escohotado (1997) divide os capítulos do seu livro e, por conseguinte, as drogas, de acordo com o efeito psíquico produzido por elas e o comportamento correspondente. Apesar de sua classificação não se prestar a fins científicos por basear-se em dados introspectivos, sua contribuição constitui dados empíricos em que o emprego da psicologia analítica torna passível uma sistematização mais abrangente, tal como fez Jung (1991b). O quadro a seguir reproduz a classificação feita por ele em seu sumário, com algumas adaptações e supressões.

    EFEITO GERAL

    DIVISÕES

    DROGAS

    Em busca da paz

    (apaziguadoras)

    Dentro do produzido pelo corpo

    Ópio, morfina, codeína, heroína

     

    Fora do produzido pelo corpo

    Metadona, buprenorfina, pentazocina, tranquilizantes maiores e menores, benzodiazepinas, soníferos, cloro-fórmio, éter, gás hilariante e fentanilas, vinhos e licores

    Em busca do brio puro

    (estimulantes)

    Estimulantes vegetais

    Café e coca

     

    No plano químico

    Cocaína, crack, anfetaminas, cafeína e estimulantes de ação muito lenta.

    Em busca da excursão psíquica

    (visionárias)

    Substâncias de potência leve a média

    MDMA ou ecstasy, maconha e haxixe

     

    Substâncias de alta potência

    Mescalina, LSD, ergina, cogumelos psilocibinos e seus alcalóides, ayahuasca, iboga e kawa

    Quadro 6 – Síntese do efeito psíquico geral das drogas

    Fonte: baseado em Escohotado (1997)

    Com relação às funções aqui estudadas, de acordo com Jung (1991b), as drogas apaziguadoras atuariam no sentido de diminuir as dores e o sofrimento (ESCOHOTADO, 1997). Nesse sentido, elas atuam diretamente sobre as sensações proprioceptivas, atenuando-as, proporcionando alívio às pessoas em geral. E por serem narcóticas (amortecedoras dos sentidos), favorecem mais a intuição do que as sensações e poderiam ser procuradas pelos indivíduos com o propósito de reforçar aquela função. O uso da intuição em primeiro plano sacrifica a percepção e torna o indivíduo incansável (vide Quadro 4), justamente por distanciar sua atenção das sensações do corpo. Provavelmente, este não as utilizaria com o objetivo de alívio de sofrimento corporal, objeto primordial da função oposta – a sensação. Os sensitivos – outro nome usado por Von Franz (1990) para os tipos sensação, poderiam se contentar usufruindo das impressões subjetivas produzidas por elas. Portanto, no tocante a essas drogas, haveria pelo menos dois motivos diferentes para a dependência, conforme a atenção recaia na intuição ou na sensação.

    Um exemplo de droga apaziguadora é o ópio. Segundo Escohotado (1997), o ópio oferece uma intensificação das qualidades mentais e uma disposição de calorosa benevolência, de se fazer grandes coisas de forma nobre e generosa. A imaginação e o pensamento são exaltados de acordo com a capacidade individual. O autor aponta dois aspectos observados não relacionados ao seu poder analgésico: o "sono crepuscular", "onde se apagam os limites entre o desperto e o adormecido, as fontes que elaboram os sonhos deixam de ser compartimentos fechados e, ou a consciência se aguça até penetrar tais domínios ou o inconsciente se livra de ataduras" (ESCOHOTADO, 1997, p. 59). Ocorre então a possibilidade de se examinar detidamente os sonhos no momento em que são produzidos e de interpretá-los simultaneamente. Esse "sono crepuscular" artificial é o mesmo princípio de funcionamento da intuição, como visto no capítulo "As funções intuição e sensação e as drogas". Por outro lado, percebe-se também aqui o favorecimento do pensamento.

    O segundo aspecto tem a ver com o não comprometimento com as opiniões estabelecidas. Ao intoxicado leve ou moderadamente pelo ópio é mais fácil mudar de idéia por razões reflexivas. Isso está de acordo com a atitude divergente do intuitivo para com opiniões tradicionais sobre as coisas, assim como com a capacidade de alteração reflexiva das idéias do pensativo (tipo pensamento), já mencionados anteriormente.

    As estimulantes afastam a sonolência e modificam mais o humor. A cocaína, como exemplo de estimulante, altera os sentimentos e as emoções. O autor, ao citar Freud e Hammond (sem referências), afirma que pequenas doses espaçadas produzem euforia e vigor, enquanto as altas ocasionam agitação, mal estar físico e comportamento desordenado. Seu uso crônico debilita o sentido crítico.

    As drogas visionárias em geral – existem algumas particularidades – ressaltam diretamente a intuição, o que afasta as sensações. Do uso diferenciado da intuição decorre a característica especialmente visionária dos xamãs, videntes e profetas (VON FRANZ, 1990). Em harmonia com essa afirmação, os derivados do cânhamo têm sido "um veículo de meditação para xamãs, faquires, iogues e dervixes" (ESCOHOTADO, 1997, p. 197). Porém, outras drogas incluídas nessa mesma categoria potencializam a empatia (no sentido de capacidade para o contato com os sentimentos), como o ecstasy, e acuram o ouvido e intensificam as sensações corporais, como a maconha.

    Procurou-se demonstrar aqui as similaridades do efeito das diversas drogas e da operação das funções psíquicas. Observar essas similaridades pode ser importante na medida em que, como cada indivíduo tende a apegar-se fortemente a determinada função, formando um tipo psicológico, o efeito de certa droga, sendo similar àquela, pode denunciar um obstáculo a mais no sentido de se libertar da dependência química. Com certeza, a confecções de analogias no âmbito bibliográfico é bem mais fácil do que na prática. No entanto, essas observações, além de poder servir como subsídios à análise que terá lugar na discussão, denunciam aspectos que só outras pesquisas, de determinadas constituições, poderão tentar responder. Embora possam dar margem a estereótipos se não manipuladas cuidadosamente, não podem deixar de ser explicitadas, uma vez que formam verdadeiramente elementos equivalentes.

    • OS PERIGOS DA UNILATERALIDADE DA CONSCIÊNCIA

    Outro problema que bem pode estar relacionado à conexão postulada entre as funções da consciência e a dependência de drogas, assim como a todos os pontos abordados anteriormente, é o da unilateralidade da consciência. O tipo psicológico, como disse Jung (1991b) constitui uma forma de adaptação à realidade através do uso mais frequente de uma função psicológica específica. Porém, existem quatro tipos de função da consciência que podem ser abordadas segundo duas atitudes – introversão e extroversão, compondo assim os oito tipos psicológicos, segundo esse autor. Posteriormente, "Isabel Briggs e Katharine C. Briggs elaboraram o indicador de tipos MBTI ao longo de muitos anos de pesquisa e de reavaliação constante de sua forma" (ZACHARIAS, 1995, p. 157). O MBTI compõe, assim, dezesseis tipos psicológicos. Ele leva em conta na categorização, além das funções superiores, que constituem o tipo psicológico básico dos sujeitos, as funções auxiliares, que formam a segunda ou terceira função mais desenvolvida após a principal (JUNG, 1991b).

    Este via o desenvolvimento de apenas uma função da consciência como uma insuficiência para a adaptação à vida:

    Deve haver uma razão pra existirem caminhos diferentes de adaptação psicológica: evidentemente um só não é suficiente, pois o objeto parece apenas parcialmente compreendido quando ele é, por exemplo, algo meramente pensado ou sentido. Numa atitude unilateral ("típica") permanece um déficit no trabalho de adaptação psicológica que aumenta com o passar dos anos e que, mais cedo ou mais tarde, evoluirá para um distúrbio na adaptação, forçando o sujeito a uma compensação. A compensação, no entanto, só é conseguida por meio de uma amputação (sacrifício) da atitude até então unilateral. Surge, assim, um represamento temporário de energia e um excesso em canais até então não usados conscientemente, mas inconscientemente à disposição. A deficiência de adaptação que é a causa eficiente do processo de conversão manifesta-se subjetivamente como um sentimento de vaga insatisfação[8]Uma necessidade espantosa e extraordinária de salvação tomou conta da humanidade e fez surgir um florescimento inaudito de todos os cultos possíveis e impossíveis na antiga Roma. (JUNG, 1991b, p. 34)

    Além disso, Jung (1991b) afirma que essa unilateralidade no exercício de apenas uma função conduz o indivíduo ao erro. Privilegiar uma só função beneficia a sociedade em detrimento do indivíduo. "[...] as grandes organizações de nossa cultura atual lutam pela extinção total do indivíduo, uma vez que se baseiam integralmente no emprego maquinal das funções privilegiadas e pessoa humana. Não são as pessoas que importam, mas uma de suas funções diferenciadas" (JUNG, 1991b, p. 82). Assim, o indivíduo atual resvala apenas para uma função, a qual representa um valor coletivo e garante sua sobrevivência. Isso constrói um grande abismo entre o que ele é (como indivíduo) e o que apresenta ser (enquanto parte da coletividade). "Sua função é desenvolvida, mas não sua individualidade" (JUNG, 1991b, p. 83).

    Segundo Jung (1987b), essa exacerbação de uma função provoca um conflito entre as funções e conteúdos inconscientes e conscientes. Mas o problema maior disso tudo é quando o conflito não é compreendido claramente, pois aí dá origem a sintomas neuróticos. Estes visam exprimir o lado não reconhecido do indivíduo. Ele não pode lidar com o conflito, pois ele não mais "existe", tornando-se inconsciente. Produzem-se os complexos autônomos. Pela análise e vitória sobre enormes resistências é que esses impulsos são reintegrados à consciência, e o indivíduo voltado ao bem-estar.

    Psicologicamente, os demônios nada mais são do que interferências do inconsciente, isto é, irrupções espontâneas da continuidade do processo consciente por parte de complexos inconscientes. Os complexos são comparáveis a demônios que perturbam caprichosamente nosso pensar e agir, razão por que a idade antiga e média consideravam possessão do demônio as graves perturbações neuróticas. (JUNG, 1991b, p. 115)

    Jung (1991b) sublinha que é justamente o que é fantástico que se associa, no inconsciente, às funções reprimidas, chamadas inferiores. E devido ao fato do indivíduo não se separar dos opostos, torna-se idêntico a eles, por identificação, e, então, se dilacera internamente. E pode-se encontrar muitas referências a "espíritos" ou "demônios" nas crenças e linguajar popular, como menção justamente a esses complexos autônomos.

    A dependência de drogas faz, inconscientemente, as vezes de uma experiência religiosa para o homem comum. "Pode-se", com ela "experimentar o "numinoso": por isso, qualquer outra experiência passa a ser insignificante e a pessoa se volta para a droga" (ZOJA, 1992, p. 122). Os deuses falam com o indivíduo sem a intermediação de um rito ou do compartilhamento da experiência com um grupo, matando paulatinamente sua relação com o mundo. "Deus é poderoso demais para ser olhado no rosto. Caímos assim na experiência que São Paulo chama de "terrível". Sem observá-lo de uma distância respeitosa e prudente, caímos, sem mediações, "nas mãos do Deus vivo": a sua luz e a sua potência nos queimam." (ZOJA, 1992, p. 122).

    A toxicomania bem pode ser uma tentativa de compensação da unilateralidade da consciência.

    Mas existe ainda outra espécie de dissociação. É a do eu consciente junto com uma função escolhida que se dissociam do restante dos componentes da personalidade. Podemos qualificar essa dissociação de identificação do eu com determinada função ou grupo de funções. É muito frequente em pessoas que mergulham bem fundo numa de suas funções psíquicas e a diferenciam como única função consciente de adaptação. Bom exemplo literário desse tipo de pessoa é Fausto[9]no começo da tragédia. (JUNG, 1991b, p. 202)

    A tentativa de exaltar a função superior acabaria por forçar a compensação oriunda do inconsciente, sobrevindo o seu sacrifício. Nessa alternativa, poderia ocorrer uma especialização excessiva de alguma função, sobrevindo um sentimento de vaga insatisfação, como Jung (1991b) apontou na citação acima. O sacrifício dessa função poderia advir por meio da entrega irresponsável às drogas que tornariam as funções orientadas de forma irresponsável, não dirigida e, finalmente, patológica.

    Segundo Von Franz (1990), a função inferior é a porta por onde todas as personificações do inconsciente entram na vida do indivíduo. Didaticamente, ela explica que a esfera consciente é como um cômodo com quatro portas. E é pela quarta porta (a função inferior) que entram a Sombra e outras personificações do inconsciente. Isso não ocorre com a mesma frequência pelas outras portas, isso porque a função inferior está mais embrenhada no inconsciente, e aí permanece bárbara, inferior e não desenvolvida. Constitui o ponto fraco do indivíduo, onde as figuras do inconsciente podem passar. É sentida por este como o ponto frágil, algo desagradável, que nunca o deixa em paz, sempre causando problemas. Assim que alguém percebe ter alcançado um certo equilíbrio interior, um ponto de vista seguro, ocorre algo, fora ou dentro do indivíduo, para derrubá-lo novamente. Isso ocorre através da quarta porta, que não pode ser fechada, ao contrário das outras. Naquela, a fechadura não funciona, e por isso o inesperado pode entrar a qualquer hora. Graças a isso o desenvolvimento da personalidade não cessa, e aí a vida não pode, por isso, estagnar, petrificar em uma perspectiva errada.

    Alguém que desenvolve apenas uma função terá ainda mais problemas, de acordo com Von Franz (1990), porque terá então três portas sem fechadura por onde poderão entrar conteúdos do inconsciente. E mesmo que se consiga desenvolver três funções, ainda restará o problema da quarta porta, pois, ao que parece, não se pode fechá-la. Através dela pode-se sempre ser derrotado, vergar-se, pois sempre há mais o que se desenvolver. E isso denuncia que, aparentemente, sempre haverá alguma espécie de unilateralidade no ser humano, como já visto em Jung (1991b).

    A autora ainda explana que a Sombra e as outras personificações do inconsciente sempre apresentam características específicas, de acordo com o tipo psicológico do sujeito.

    Assim, por exemplo, a sombra num tipo intuitivo será frequentemente personificada por um tipo perceptivo. A função inferior é contaminada pela sombra de cada tipo: num tipo pensativo, ela aparecerá como um tipo sentimental relativamente inferior ou primitivo, etc. Por isso, se, ao interpretarmos um sonho, pedirmos uma descrição dessa figura-sombra, as pessoas descreverão a sua própria função inferior. (VON FRANZ, 1990, p. 84)

    E com o uso da droga o inconsciente torna-se disponível (ZOJA, 1992), liberando incontrolavelmente conteúdos sombrios e a função inferior, o que poderá ser nefasto para a vida do indivíduo.

    Por fim, demonstrou-se, neste momento, com base em Jung (1991b), Zoja (1992) e Von Franz (1990), como o exercício unilateral de apenas uma função psíquica pode acarretar transtornos no sentido de uma adaptação à realidade externa e interna muito aquém de um nível satisfatório de maturidade para o indivíduo. Essa funcionalidade unilateral deve-se à requisição da sociedade, expressa enquanto valor coletivo, que mutila a totalidade do indivíduo. A isso se seguem conflitos explicitados na forma de autonomia do inconsciente e vulgarizados na sociedade em expressões religiosas corriqueiras. Ocorre o afloramento da função inferior e seus conteúdos que, impossibilitados de integração, ocasionam maior fragmentação da personalidade. A dependência química, como ficou evidente, pode ser uma tentativa de se superar essa unilateralidade da consciência. As experiências transcendentes, numinosas, podem levar o indivíduo a encarar e se identificar com o divino em si, o que momentaneamente é intensamente prazeroso, mas que o retira do mundo humano. Nesse ponto, em geral, concorre para a efetivação da morte física enquanto literalização da busca pela morte psicológica, mudança buscada nos primórdios da vivência com as drogas.

    • O PRIVILÉGIO DE CERTAS FUNÇÕES PELAS INSTITUIÇÕES

    Zacharias (1995), em sua obra intitulada "Tipos psicológicos junguianos e escolha profissional – Uma investigação com policiais militares da cidade de São Paulo", através da aplicação do M.B.T.I. (The Myers-Briggs Type Indicator – Indicador Tipológico Myers-Briggs), conseguiu realizar comparações da PM paulista com instituições de outros países, através da teoria junguiana e seus tipos psicológicos. Por meio de uma pesquisa sobre a auto-imagem do policial, ele construiu um perfil geral dos seus principais valores e atitudes, que incluem:

    - Valores instrumentais de moralidade – honestidade e disciplina;

    - Cumprimento de regulamentos, leis e regras e submissão à hierarquia e à autoridade;

    Esses aspectos formam a base da formação dos demais valores e atitudes em geral, que encerram eficiência e dedicação completa, e estruturam as relações pessoais para além da carreira. "Ao que tudo indica, este profissional procura agir de forma sistematizada, observando rotina de trabalho, sequência de prioridades, previsibilidade e organização" e isso exige que "o policial seja disciplinado, cumprindo ordens e rotinas de trabalho sem questionamentos, deslizes ou inovações" (ZACHARIAS, 1995, p. 188). Os valores menos importantes estão relacionados com o relacionamento interpessoal e a busca de novas idéias.

    Zacharias (1995) partiu da seguinte distribuição para comparação de seus achados com a população geral:

    E – 75%

    Ss – 75%

    Ps – 50%

    I – 25%

    In – 25%

    St – 50%

    Quadro 7 – Distribuição dos traços constituintes da tipologia junguiana na população geral

    Fonte: baseado em Kiersey e Bates (1984, apud ZACHARIAS, 1995, p. 179)

    O autor encontrou uma nítida diferença entre a porcentagem da atitude introvertida na população geral (25%) para "com os veteranos da PM de São Paulo (65,10%), bem como com os recrutas (55,98%)" (ZACHARIAS, 1995, p. 180).

    Já a pesquisa com os tipos psicológicos indicou que o tipo ISTJ (no MBTI) ou ISsPs (Introvertido – FP: Sensação – FA: Pensamento – Função Inferior: Intuição) era o tipo modal, com a frequência de 43,63% para os veteranos e 31,53% para os recrutas. Quase a metade dos sujeitos de cada grupo concentrou-se em um tipo modal específico. Esses sujeitos são descritos como

    realistas, práticos e precisos, aceitam responsabilidades e procuram manter seu ambiente organizado. Apresentam calma e segurança às custas de esconderem do mundo externo suas reações emocionais. São sistemáticos e regrados, lógicos e realistas, sérios e conservadores. O estilo destes sujeitos passa necessariamente pelo senso da realidade concreta, da disciplina e da ordem. (ZACHARIAS, 1995, p. 198)

    Comparando com o padrão de valores exigido pela PM, o autor concluiu que o tipo ISTJ era bastante adequado, e que o sistema disciplina-hierarquia era bem assimilado por ele. Acrescentou que a atitude introvertida lhe conferia a qualidade de não distração no sentido de não levar em conta o que lhe ocorre à sua volta (introversão). Assim, a ordem a ser cumprida o será, não importando as condições em torno do sujeito, como lhe é requerido. O modelo tipológico do policial resume-se a aceitar e cumprir ordens e regras, obedecer à hierarquia, viver em um ambiente organizado, ser conservador e defensor da ordem em vigor em detrimento de mudanças entendidas como ameaçadoras, cumprir o dever sem dar atenção ao meio externo, perceber o mundo através da lógica e do realismo, desprezando os valores pessoais (sentimento) e idéias inovadoras (intuição), permanecendo sério e atento no que faz.

    Nota-se, neste momento, como as instituições têm um grande papel na unilateralidade da consciência dos indivíduos, como foi indicado por Jung (1991b) no capítulo anterior. Tem-se aqui uma comprovação em campo do que Jung expressara há muito tempo atrás. Aliás,

    a validade do MBTI está ligada à real habilidade demonstrada pelo sujeito nas atividades para as quais o teste o classificou. Estudos realizados por seguimentos profissionais atestam a validade do MBTI, pois demonstrou-se grande concentração de pessoas de um determinado tipo em atividades profissionais que exigiam um tipo adequado de atitude ou função (BRIGGS e MCCAULLEY, 1987, apud ZACHARIAS, 1995, p. 158)

    Portanto, ao falar-se de instituição, está-se falando da preponderância do coletivo sobre a individualidade, assim como da requisição de determinadas funções em detrimento de outras. De que forma isso estará relacionado à recuperação do dependente químico? Podem as funções adoecer?

    • A PSICOPATOLOGIA DAS FUNÇÕES E A DEPENDÊNCIA QUÍMICA

    Aranha (2006) discorre, em sua apostila voltada à disciplina de Psicopatologia Junguiana, sobre vários aspectos psicopatológicos que podem esclarecer ainda mais este estudo, apontando para uma aproximação entre as funções psíquicas e a dependência química.

    • A FUNÇAO DA PERCEPÇAO VIA INCONSCIENTE

    O autor aponta K. Bash (1965 apud ARANHA, 2006), que introduz o conceito de intuição patológica para explicar as diversas formas de idéia e percepção delirante. Segundo este, a função intuição normal (não patológica) submete-se à "prova da realidade"; já a intuição patológica resiste a ela. Essa "prova de realidade" tem a ver com o reconhecimento de intuições falsas, isto é, aquelas que não se concretizam no plano da realidade externa. "Consiste no fato de que a percepção não identifica o mundo exterior como ele é na realidade; e sim, como as transformações, efetuadas pelos nossos órgãos dos sentidos, nos permitem reconhecê-lo" (BASH, 1965 e BALLNE, 1999 apud ARANHA, 2006, p. 12). O intuitivo também têm intuições falsas. No caso da intuição patológica, as intuições falsas ou erradas, além de não serem reconhecidas pelo psicótico, encontram uma série de justificativas para a sua não ocorrência. São muito evidentes nos delírios sistematizados e ricamente elaborados.

    A intuição, que por definição de JUNG, é a percepção via inconsciente, quando patológica, interfere na cadeia de sensopercepção por diversas formas. Nas ilusões[10]que por si só não constitui um estado mórbido, mas pode denotar um estado emocional mais ou menos intenso; desde pequenas oscilações do normal até situações patológicas, uma vez que os enganos da ilusão podem afetar a percepção dos sentidos, ocorre a influência da intuição patológica na cadeia sensoperceptiva, em nível da percepção, quando a sensação é normal. Ocorre nos mais diversos estados patológicos, sendo frequente nas intoxicações exógenas de diversas origens, alcoolismo, uso de drogas[11]dependências medicamentosas em estados iatrogênicos. As ilusões são frequentes em estados normais, quando há abaissement du niveau mental, cansaço crônico, excesso de atividade física ou mental, mas também nos estados depressivos e nas psicoses. (ARANHA, 2006, p. 12-13)

    Para Aranha (2006) as ilusões são precedidas pela percepção normal de um estímulo sensorial qualquer. Já as alucinações são percepções sem estímulo externo, sem objeto. A percepção aí é considerada real, tendo em vista a convicção inabalável da pessoa que alucina. Segundo o autor, um objeto alucinado pode ser percebido mais nitidamente do que um objeto real, tendo em vista que sua origem é interna e livre de todas as variáveis que acompanham os estímulos ambientais (intensidade da luz, corporeidade, etc.). Essas falsas percepções decorrem da influência da intuição patológica sobre a sensação. Resumindo, "na cadeia da sensopercepção a ilusão ocorre quando a sensação é normal, e a percepção é distorcida pela intuição patológica, enquanto que na alucinação a intuição patológica já interfere no nível da sensação" (ARANHA, 2006, p. 13). Decorre dessas considerações uma pista para a possibilidade do emprego de processos de diferenciação das funções psíquicas intuição ou sensação.

    É interessante notar como os sintomas da psicopatologia da função intuição está totalmente relacionada aos efeitos mais conhecidos da ingestão de drogas.

    A conclusão, conforme exposto por Aranha (2006), seria de que, para certos dependentes químicos, os efeitos e a consequente dependência química, podem decorrer de uma patologização da função intuição, a qual pode inclusive interferir na função de realidade – a sensação.

    • A FUNÇAO DO REAL

    Aranha (2006) começa revisando a função sensação citando que

    a sensação é idêntica à percepção, [...] não se refere apenas ao estímulo psíquico exterior, mas também ao interior, isto é, à alteração dos órgãos internos. Por essa razão, a sensação, num primeiro plano, é sensorial, ou seja, percepção transmitida por meio dos órgãos do sentido e dos "sentidos somáticos". (JUNG, 1991b, p. 438)

    Segundo ele, por gostarem de exercer atividades mais práticas, apresentam dificuldade em criar fantasias e não são atraídos pelo desconhecido. Logo após, o autor cita longamente Jung (1991b), onde este discorre sobre a sensação indiferenciada (ou concreta) e a diferenciada (abstrata ou desenvolvida). A primeira, como já exemplificado parágrafos atrás, sempre mistura seus elementos a representações, sentimentos e pensamentos, é reativa, isto é, geralmente não é dirigida pela vontade nem controlável. A segunda poderia ser chamada de estética, ocorre de forma pura (não é misturada às outras funções), pode destacar elementos sensoriais isoladamente e perceber suas nuances, ocorre sempre de forma controlada, sob direção da vontade, e é útil principalmente ao artista. A função sensação seria das mais antigas, constituindo-se a partir da própria formação fetal, organizando-se com o aparecimento dos órgãos dos sentidos. Assim, ela refere-se "à captação de estímulos físicos do meio ambiente pelos órgãos dos sentidos. A psiquiatria francesa tradicionalmente refere-se à função sensação como a função do real" (ARANHA, 2006, p. 16). Daí sua importância para a psicopatologia, pois alterações nessa função ocasionam graves prejuízos ao equilíbrio psíquico.

    O autor passa então a enumerar diversas alterações da sensação que ocorrem em várias doenças. Classifica-as em circunscritas e em difusas. As primeiras referem-se a uma perda ou diminuição sensorial localizada apenas em um dos órgãos dos sentidos. Exemplos seriam a audição diminuída e a cegueira histérica. Nas alterações difusas ocorre uma turvação sensorial global. Estas são bem conhecidas nos estados crepusculares dos histéricos.

    Outra alteração seria a hiperestesia, que consiste em um aumento da sensação a um nível de intensidade acima do normal. Geralmente, há o acompanhamento de uma superexcitação do reflexo dos tendões, da sensibilidade fisiológica e uma aceleração do ritmo dos processos psíquicos. A hiperestesia pode ocorrer nos casos onde a capacidade de adaptação está comprometida, tais como em estados de grande ansiedade, de fadiga ou de esgotamento, em neuróticos, nas histerias, nas manias, no hipertireoidismo, no tétano, na raiva (hidrofobia), nas enxaquecas e, às vezes, em certos casos de epilepsia.

    Na hipoestesia ocorre a diminuição da sensibilidade, como na anestesia ou analgesia. A diminuição da sensibilidade sensorial pode ser observada nos estados de depressão, embora com aumento da propriocepção.

    Percebe-se aqui que a patologia da sensação restringe-se basicamente à sua intensidade exacerbada ou lenitiva, podendo chegar a uma completa falta de percepção até a uma sensibilidade exagerada. Do mesmo modo esses efeitos também são encontrados de variadas maneiras nos dependentes de drogas. No entanto, possivelmente eles estarão relacionados ao tipo psicológico dos sujeitos, assim como ao tipo de drogas, como relatado no Quadro 6.

    • O EMPREGO DE TÉCNICAS EXPRESSIVAS E AS FUNÇÕES PSÍQUICAS

    Oliveira et al (2003) atestam a baixa aderência ao tratamento de alcoolistas e dependentes químicos, assim como a eficácia terapêutica das intervenções tradicionais. Na procura de desenvolver estratégias mais eficazes, criaram-se os Grupos de Acolhimento no Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (PROAD) da UNIFESP em 1993. O PROAD parte da hipótese de que as intervenções têm maiores possibilidades de êxito quando atendem as peculiaridades da população-alvo.

    Em 2000 formou-se o Grupo de Argila e Pintura, onde foram introduzidas técnicas expressivas, sob coordenação de dois psicólogos. O encontro é semanal, com duas horas e meia de duração, inicia-se com um relaxamento e após há a expressão livre com argila e pintura. O grupo é aberto, não necessita de agendamento e a presença não é obrigatória.

    Os autores afirmam que o abandono da dependência está ligado ao encontro de um novo sentido para a vida, já que o uso incessante da substância define a existência do usuário. Ao parar de consumir a droga, o dependente sente um grande vazio. "Se o indivíduo não sente falta da droga, não tem que conseguir dinheiro para consumi-la, não vai mais encontrar seus companheiros de "balada", enfim, o dependente perde sua rotina e suas referências" (OLIVEIRA et al, 2003, p. 227). Esse vazio, essa "falta da falta", só pode ser deixada para trás se não mais representar a única maneira de viver. Por isso, na hora da "fissura", o dependente tem a alternativa de recorrer ao Grupo de Acolhimento.

    Após uma frequência mínima, o indivíduo geralmente consulta um psiquiatra e um psicólogo no PROAD para exames e diagnóstico, assim como possível medicação e acompanhamento. Nesse ponto, os autores relatam que muitos diminuíram ou pararam com o uso da droga devido à participação no Grupo de Acolhimento. Após essa triagem, o dependente pode ser encaminhado inclusive para outros atendimentos. "As diferentes modalidades terapêuticas disponíveis no PROAD (psicoterapia individual, familiar, de grupo, atendimento clínico e oficinas) visam à produção de subjetividade, que é estimulada a cada encontro" (OLIVEIRA et al, 2003, p. 228). Durante as diversas atividades, diferentes modelos identificatórios são oferecidos de acordo com o momento e a particularidade de cada um, ocorrendo o resgate da identidade do sujeito, que pode então se sentir como singular. Isso tira a droga do centro da vida. O coordenador do grupo, atento ao ritmo e qualidade das vozes se mantém no limiar – nem dentro, nem fora – e faz circular as questões no grupo, tecendo com as emoções e sentimentos uma espécie de rede: a teia do sentido. Nada é garantido, nada é certo: apenas o profundo acolhimento do grupo. Esse é o processo terapêutico.

    Partes: 1, 2, 3, 4, 5


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