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O tema da morte surgiu em E1 enquanto uma possibilidade sombria no horizonte. Porém, surgia como um conteúdo do inconsciente quando fumava maconha. Isso faz lembrar Zoja (1992) que, no capítulo "A iniciação à dependência de drogas", lembra que a droga ativa o inconsciente, porém sem que haja elaboração de seus conteúdos pelo sujeito. É o que ocorre com E1: há uma espécie de ruminação do tema, sem que houvesse qualquer atitude de mudança por parte dele. A certeza vinha: ele irá morrer um dia. Mas isso só servia para que se espantasse com o fato. E já que se assombrava com isso, seria porque não havia aventado essa hipótese antes? Haveria ele de viver eternamente? Porém, mais importante: o que E1 fazia com isso? Ao que parece, nada, até decidir procurar um tratamento, provavelmente por causa da depressão que o assolava.
A realidade o estava assolando: ele um dia iria para o cemitério. Talvez o que o perturbava mais é a possibilidade de ser conduzido mais cedo a esse final, já que estava em um caminho onde isso é mais propício. Percebe-se aí uma mistura de funções: a sensação inferior lhe traz a realidade, o faz "apalpar" melhor o que lhe ocorre no momento, enxergar o que está ocorrendo; e a intuição, agora não mais sob domínio da consciência, mais imersa no inconsciente, lhe traz possibilidades sombrias, irresistíveis, opressivas.
E2: Não, foi só pensamento. Porque você chega num ponto, numa área em que você utiliza droga; aí chega uma hora que você não tem pra usar mais e fez a dívida mesmo devendo. Entendeu? Aí ocorre aquela mentira: "Não, amanhã eu pago você. Não, amanhã eu dou, e tal". Daí, através dessa pessoa que você sabe que... Uma hora ou outra você acaba sendo ameaçado por ela. E por ser ameaçado por ela, você acaba tentando se matar...
[...]
P: Mas você teve tentativa? Você tentou se matar?
E2: Não. Na hora deu vontade, mas eu não quis.
[...]
E2: [...] Traficante que você devia passa a não cobrar mais... Ficou por isso mesmo. A gente somos amigos, tranquilo. Como ocorreu comigo: de eu ir na igreja, testemunhar o que Deus fez; lá tinha um traficante que eu devia seiscentos reais pra ele. Aí ele falou pra mim que eu só devia nossa vida a ele e nem comentava o assunto.
Em ambos os entrevistados ocorre o que Zoja (1992) aludiu quando falava sobre iniciação – não se previnem e recebem a droga com uma atitude completa de desprevenção. Ocorre um envenenamento psíquico devido à não assimilação do símbolo. Entretanto, o tema sobrevém a E2 através de algo mais concreto: a dívida. Mas a morte perseguia a ambos, do mesmo modo.
Em certo ponto, E2 relata o que podemos considerar, em princípio, algo como uma modificação de seu tipo psicológico (consulte o Apêndice C). O pesquisador pergunta se ele sempre havia sido como descrevia o seu tipo psicológico (sensitivo). Ele então diz: "Eu era mas não sabia. Quando eu tava usando droga". O pesquisador insiste e ele confirma, dizendo que deixou de ser devido às drogas. O pesquisador então procurou saber como ele tinha certeza disso. E2 responde que havia se analisado e se avaliado, acrescentando que "depois que eu conheci a droga eu não fui mais o mesmo. Diferente... Sei lá! Não sentia bem, não sentia feliz, não sorria... As meninas, os amigos desprezavam...". Procurando avaliar ainda mais a segurança do entrevistado com relação ao que sabia, formulou a pergunta de maneira diferente, aludindo a uma possível dúvida: "Então, mas será que o seu tipo psicológico é o mesmo de antes?".
E2: Eu creio que... Cinquenta por cento era. Se tornou cem por cento depois que eu conheci Jesus. Não sonhava em [...], mas eu sempre tive uma visão assim. Entendeu? Eu não vivia isso como o senhor relatou, mas eu tinha visão disso que o senhor leu. Eu não cheguei a praticar, a entrar em ação nessas áreas. Mas cheguei a pensar, a analisar... Ter visão disso. E agora, nessa vida que eu estou, né, vejo que era isso.
[...]
E2: Eu sonhava assim.
Percebe-se nesse trecho como o entrevistado insiste em que tinha o mesmo tipo psicológico, mas era apenas "cinquenta por cento", ou no tempo em que usava droga "não tinha a visão" ou "não vivia isso". É como se parte do uso consciente de sua função sensação fosse suprimida, retirada do seu uso voluntário, para se tornar uma espécie de sonho – "Eu sonhava assim". Observa-se aí como havia uma espécie de troca de lugares: a droga assumia o primeiro plano e a personalidade consciente do sujeito transforma-se em um sonho, um ser em potencial, de forma secundária. De certo ponto de vista, é como se ele morresse para que o que estava morto, inconsciente, viesse à tona.
Por fim, o pesquisador alude a formas mais estruturadas e metódicas do seu tipo psicológico: "perfeccionista, diligente, quer dizer, que se esforça, e capaz de trabalhar com afinco. Muito paciente com pormenor, com detalhes. São capazes de executar sem problemas todos os detalhes que precisam ser feitos para que o projeto seja levado a cabo". Então, questionado se achava que, quando usava drogas, apresentava essas características, respondeu, depois de uma pausa mais ou menos longa, que "essa visão a gente não consegue ter". Ele não conseguia se perceber desse modo. Foi aí que concluiu:"eu sonhava assim". Não havia como ele ser observador e atentar a detalhes ou ser perfeccionista e esforçado, pois tudo isso exige vontade consciente do ego (JUNG, 1991b). E isso não é possível com a maioria das drogas (ESCOHOTADO, 1997).
Torna-se claro que E2 se descrevia como sendo sensitivo introvertido quando não estava sob efeito da droga. Porém, uma vez sob domínio desta, seu tipo psicológico se alterava. O modo como conhecia a si mesmo, o que sabia ser ele mesmo desaparecia, imergia no inconsciente. Então, o que sabia ser ele passava a fazer parte de um sonho, de uma meta a ser alcançada no futuro – assim parecia intuir sua função inferior. E isso só parecia materializar-se paulatinamente no presente, concomitante ao seu tratamento. Ele não era quem conhecia no momento da intoxicação. A vida estava desmoronando, seu tio e sua família foram morar longe, sua mãe já não parava em casa, seu irmão foi preso, etc. O mesmo ocorre com E1. Mas ambos não podiam fazer mais nada, pois não estavam em contato com a realidade. Não havia mais um eu – pelo menos, não aquele eu costumeiro, ágil nas ocasiões em que mais precisava intervir na realidade, para confrontá-la. Parecia que, pelo menos simbolicamente, por enquanto, foi suficiente que morressem para a vida de antes, sem que isso precisasse ocorrer fisicamente.
O ENTORPECIMENTO E OS LIMITES DA CONSCIÊNCIA
Ao que tudo indica, o crack e a cocaína, como estimulantes que são, como refere Escohotado (1997), parecem estimular diretamente a atitude e a função principal do dependente.
Eu saí dali eletrizado na Dutra ali. Eu andava pela Dutra, né, que era mais fácil, né? Não tem mão, nem nada. Você pega a reta e vai. E aí, rapaz, em dois minutos tava lá no X. Parecia uma máquina pedalando. Porque estimula, né? Lembra do Maradona? Cheirava para correr. Entendeu? Ela estimula. Ela dá disposição para você. Você pode estar o dia inteiro sem comer. "Ai, eu não aguento levantar...". Se você der um tiro na cocaína, se for boa, você levanta e vai até o fim do mundo. Ela te proporciona... Não há barreira para você, não há cansaço.
Como descrito anteriormente na sessão resultado, o tipo intuitivo introvertido é incansável, pois não presta atenção às sensações. Assim, não tende a julgar corretamente a extensão, por exemplo, de uma estrada, e a disposição que requererá para transpô-la. Sob o efeito da droga, porém, essa característica da função superior ultrapassa os seus limites. "Se você der um tiro na cocaína, se for boa, você levanta e vai até o fim do mundo." Não há barreira alguma e nem cansaço. O corpo não existe. Apenas a intuição, livre para voar, como se o dependente estivesse sonhando. Todo o condicionamento aprendido pelo ego ao longo dos anos, de forma a reprimir o que é considerado "inservível" à sociedade, e reforçar as qualidades consideradas mais úteis aos circundantes e ao indivíduo, conforme Jung (1991b), vai abaixo. Não existe mais a realidade, os limites da realidade. O corpo é uma máquina, não um organismo.
Ocorre aqui uma inflação do ego de E1, mencionada por Batista (2002). Essa é uma manifestação característica do arquétipo: "uma espécie de força primordial se apodera da psique e a impele a transpor os limites do humano, dando origem aos excessos, à presunção (inflação!), à compulsão, à ilusão ou à comoção, tanto no bem como no mal" (JUNG, 1987b, p. 62). Sob o efeito da droga pode-se dizer que o dependente abre-se ao poder dos arquétipos, identificando-se com eles. Ele não é mais humano: ou é uma máquina – pode-se pensar em uma espécie de homem biônico, ou um deus que não conhece os limites de qualquer atividade física.
Por um lado, a cocaína e o crack proporcionavam essa estimulação para E1. Por outro, o efeito mais tenebroso da função inferior também ficava liberto dos limites impostos pela consciência. "Aquilo me propunha um prazer, vamos dizer, por dentro. Mas ao mesmo tempo isso é uma coisa de louco! Porque ficava com medo. Fumava aquilo ali, via os outros me catando, via a polícia invadindo a minha casa, via neguinho me matando..." Para Aranha (2006), esse fenômeno equivale à psicopatologia da intuição, já que proporciona uma alucinação. A intuição é superestimulada, reprimindo a sensação em alto grau, imerge no inconsciente para libertar-se das cadeias da consciência. Essa constatação parece confirmar a hipótese apresentada no capítulo "Drogas: caminho para certas funções" de que determinado tipo psicológico pode procurar o uso de uma droga para reforçar sua função principal.
As imagens na intuição introvertida, segundo Jung (1991b), aparecem destacadas do sujeito, como existindo por si mesmas, sem relação com ele, isso porque a intuição exclui a cooperação da sensação. Porém, como a intuição era a função superior de E1, de adaptação ao mundo, que lhe dava segurança para lidar consigo mesmo, torná-la não manipulável pelo ego, incontrolável, o deixava fortemente inseguro. Por um lado era isso que ele queria – libertar-se das amarras do conhecido, do que está condicionado, da consciência. Como a intuição para ele está fortemente associada ao eu, como já aludido, o uso da droga proporcionava uma aparente libertação desse eu, mas trazia o medo das consequências da operação de uma função descontrolada.
Por outro lado, é como se E1, no uso da droga, pudesse conhecer as duas faces de Deus: a qualidade e a potência de sua luz (ZOJA, 1992). A primeira é aprazível, a segunda, terrível. Ora, Jung recusava a "traçar uma linha divisória absoluta entre possessão e paranóia" (JUNG, 2000, p. 127). Ele entendia a possessão como uma identificação do ego com um complexo ou um arquétipo. É a própria essência da inflação. A identificação ocorre com o lado prazeroso, mas o "possuído" tenta negar a face negativa do arquétipo, o que advém simbolicamente como perseguição. Pode-se perceber essa paranóia também como a perseguição da realidade, na forma da sensação inferior, enquanto sentimento de culpa.
E2 não relata os efeitos da cocaína nem do crack, o que já foi relatado espontaneamente por E1. Porém, como E2 expôs que a maconha o pacificava, provavelmente ele havia ingerido crack ou cocaína quando quase cometeu homicídio para com uma mulher no próximo capítulo. O que fica claro com relação a ele é que, seja qual for a droga que estivesse usando nesse momento, o que ela fazia, analogamente ao que ocorria com E1, era libertar sua função inferior das amarras que a estrutura da consciência lhe impôs, como já foi analisado.
Demonstrou-se neste ponto como certas drogas psicotrópicas liberam o seu usuário dos limites da consciência, dos condicionamentos do que se costuma chamar de "real", seja na subjetividade do indivíduo, seja fora dele. O dependente é levado a se perceber enquanto um ser extra-humano, ilimitado, um deus. Esse fenômeno corresponde ao que, na psicologia analítica, se denomina inflação. No entanto, notou-se que E1 apresentava, além dos efeitos de um ego inflado durante o entorpecimento, um medo intenso sem motivo determinado. Como a droga, segundo Zoja (1992), introduz seu usuário no inconsciente, sua função superior, arraigada no campo da consciência, imerge também, tornando-se indomável. O ego não tem mais condições de operar suas funções em uma determinada direção. Está imbuído em se render. "A natureza humana é portadora de um combate cruel e infindável entre o princípio do eu e o princípio do instinto: o eu, todo barreiras; o instinto, sem limites; ambos os princípios com igual poder" (JUNG, 1987b, p. 27). Daí a tremenda insegurança; daí a patologia da intuição. Limites restringem a liberdade, mas também transmitem segurança, pois são a matéria-prima do ego.
O TORPOR E OS COMPORTAMENTOS NAO HABITUAIS
Os efeitos das drogas sobre o dependente podem ser muito desastrosos. Na descrição do seu tipo psicológico, percebeu-se que tipos como E2 não são impulsivos. Porém, na situação abaixo, sob influência da droga, E2 não tinha dúvidas de como agir.
E2: [...] A pessoa morava no bairro de casa, onde eu morava, e era como se fosse uma pessoa que queria dominar o local... Queria tirar as pessoas do bairro... Fazer assim... Tumulto pra todo mundo reunir e eles expulsarem a pessoa daquela parentela, daquele bairro. Aí eu estava um dia usando droga... Eu usei, vendi algo que não era meu, e na minha mente o inimigo fez eu pegar uma barra de ferro e utilizar pra matar essa mulher. Só que daí eu fui até o local e não cheguei a entrar na casa dela porque ela morava num sobrado. Aí nessa, eu ficava ameaçando ela: "Desce aí pra você ver se eu não vou matar você!". Porque se descesse, aí poderia ter acontecido algo mesmo. Porque, geralmente, quando a pessoa usa, além de vir o grau da droga com ela, tem um espírito maligno. [...]
O que E2 chama de "espírito maligno" já foi abordado no capítulo sobre os perigos da unilateralidade da consciência como a personificação, na consciência, de complexos autônomos. O episódio descrito acima relata como a personalidade, sob domínio da droga, fica à mercê de forças inconscientes, não podendo mais contar com a direção das funções, atitudes e valores morais acolhidos pelo ego. E2 se viu prejudicado pela citada mulher e, ao que parece, tomou sua atitude de expulsar as pessoas do bairro como uma afronta pessoal. De uma pessoa reservada, que prima pela precisão dos fatos, que raramente expressa no semblante suas emoções, parecendo muito calmo, se comporta de uma maneira totalmente oposta. No tipo sensação introvertido, a intensidade das reações é sentida apenas no íntimo, e normalmente são imprevisíveis – é isso justamente o que é extravasado exteriormente. "Eu não sabia disso. Depois que eu... Eu acabei me tornando cristão eu acabei conhecendo isso. Que além de a droga fazer um efeito, o inimigo entra também pra querer azarar mais ainda." Além do efeito da droga, há o "inimigo" interior, a função inferior primitiva, trancafiada por muito tempo, uma intuição tirânica e independente do ego que sopra desígnios malignos na consciência de E2. "A hipersensibilidade e as fortes reações emocionais – desde a paixão até a raiva cega – são um sinal incontestável de que a função inferior, justamente com um ou mais complexos, foi ativada. Isso, naturalmente, dá origem a uma infinidade de problemas de relacionamento" (SHARP, 1990, p. 26). As consequências não demoraram:
E nessa que eu tava ali, aí virou uma viatura da civil, preto e branca, aí eles pegaram e levaram eu pra delegacia. Por eu ter feito isso. Daí eu cheguei lá, o delegado tava lá e eu... Ele pegou e falou assim: "Ah, vai lá na sala"; falou que era uma tentativa de homicídio. Creio eu que ela inventou um punhado de coisas. Aí colocaram eu no curral, lá, que é uma celinha, e de lá me levaram preso. Aí lá eu fiquei uns seis meses. Fiquei lá seis meses, e depois de seis meses, depois eu saí. Mas mesmo assim continuei na... Usando droga.
O mesmo ocorre com E1, quando se separa da mulher e se muda para perto de uma "biqueira". Ele pede para que a mulher alugue um carreto e pegue todas as coisas que havia comprado: eletrodomésticos, aparelhos de TV, jogos de cozinha, etc. Mas ela não faz isso a tempo. E1 acaba por vender tudo para adquirir droga. "Eu catei e vendi tudo. Usei tudo em droga. Desfiz de tudo. Tinha muita panela boa, coisa cara... Talheres... Tudo, tudo, eu vendi tudo! Tênis novo, roupa nova, vendi tudo! Para o consumo da droga...". Essa forte reação emocional, impulsiva, denuncia o afloramento de complexos, de conteúdos sombrios que se apossam do dependente, fazendo-o exercer comportamentos que normalmente não existiriam em seu estado usual de consciência, em concordância com Von Franz (1990).
Percebe-se aqui como a psicologia analítica e seu simbolismo, principalmente quando se refere ao linguajar comum, ajuda a esclarecer o que aparece comumente como superstição. "Espírito" seria uma forma de se perceber intuitivamente a operação de um complexo na psique (JUNG, 1991b). Ao mesmo tempo, a droga abre o dependente à experiência do numinoso (ZOJA, 1992). Com acesso a essa vivência do Self, ele identifica-se com este, realizando sentimentos de onipotência, que separam o dependente do estritamente humano, o que foi atestado por Batista (2002). Parece que disso também advêm os atos impensados de E1 e E2, aludidos acima. Afinal, só os mortais possuem limites não conhecidos por deuses. O primeiro se desfez de todo o seu patrimônio de homem casado e o segundo quase arruinou sua vida na tentativa de cometer um homicídio.
Outro aspecto abordado por Zoja (1992) e Bloise (apud SILVEIRA FILHO e MOREIRA, 2003) no capítulo "A iniciação à dependência de drogas" diz respeito ao herói negativo. "É sobretudo na idade de crescimento que a pessoa se dá conta da necessidade de experiências heróicas e de identificações com figuras de heróis. É difícil, porém, que as lutas de hoje permitam que se viva tal esforço solitário e heróico de uma forma responsável e não anti-social" (ZOJA, 1992, p. 23). O episódio que E2 descreveu parágrafos atrás, onde queria fazer justiça com as próprias mãos livrando o bairro daquela mulher que estava querendo expulsar "as pessoas" do seu bairro e assim dominar o local, é bem característico. Ele tornou-se o herói do grupo que, como ele, usava as drogas – ou era usado por elas. E ao que parece, esse herói negativo, pelo menos durante o torpor, era composto principalmente pelos desmandos da função inferior, como já descritos aqui.
A utilidade de se abordar essa oposição entre comportamentos tipicamente humanos daqueles imaginados como característicos dos deuses ou da oposição entre o comportamento tipológico normal para o entorpecido é a de se mostrar que quando o dependente usa a droga não é ele que está ali. Ele usa suas faculdades da consciência de forma totalmente desordenada e desorientada, podendo portar-se, em certas situações, como um herói negativo, enfrentando a sociedade estabelecida. Então, só lhe resta encarnar o mito de Narciso. Deixa de viver a própria vida, a própria realidade, para embarcar rumo a uma aventura muitas vezes sem volta, onde o corpo aparece apenas como um barco soçobrado, vestígio de uma existência.
O PAPEL DAS FUNÇÕES AUXILIARES NA RECUPERAÇAO
No caso de E1, sob o domínio da droga, ele não entendia que fazer mal para si também era fazer mal à sua família, uma vez que ele fazia parte dela.
E1: [...] Agora que eu tô são de drogas, não tô bebendo, eu penso assim: "Puxa vida, viu! Quantas vezes, eu com dinheiro no bolso, podia ir lá e gastar com chocolate que fosse... Podia comprar refrigerante para as crianças... R$ 10,00 eu usava numa porcaria de negócio, que só faz mal pra gente." Só que eu via pelo lado assim: "Ah, eu tô fazendo mal pra mim, meu! Fica na sua que...". Vamos supor, eu falava assim: "A geladeira tá cheia, não tá? Tá precisando de alguma coisa?", "Ah, eu preciso de xampu". Ela ia lá e comprava tudo o que estava precisando. Pegava e gastava tudo. Entendeu? Aí eu falava: "Ah, o que você está precisando não tá aí? Então porque você tá me enchendo o saco? Eu não tô fazendo mal pra você. Eu tô fazendo mal pra mim". Eu pensava dessa maneira.
Jung (1991b), quando aborda o intuitivo introvertido, fala sobre a necessidade deste não parar na percepção, pois aí passa a se contentar e deixar-se determinar pela contemplação de suas fantasias. Ele permanece no puramente estético (a intuição é uma função irracional, perceptiva, como a sensação). Porém, basta um pequeno desenvolvimento de uma função de julgamento para transferir a atenção que se volta ao puramente estético para o moral. E é isso o que parece ocorrer aqui com E1. Não há dados suficientes para dizer se E1 tinha sua função pensamento mais diferenciada antes de se envolver com as drogas. Mas uma coisa é certa: sob o seu domínio, não havia como pensar, como refletir de modo a se colocar no lugar do outro. Ele apenas voltava para si mesmo, para suas atividades narcísicas. Mas agora, depois de mais de um mês sem ocupar-se com elas, recupera a razão e o domínio sobre seus pensamentos.
Em dois momentos da entrevista, E1 narrou que
em casa mesmo, eu cheguei a usar em frente da minha mãe. Eu usava assim abertamente. Na frente da minha mãe, na frente do meu irmão... Não tinha mais, vamos dizer, não tinha mais controle. Entendeu? [...] Eu ficava usando droga. Não escondia de ninguém, usava na frente de qualquer um. Usava na frente da minha esposa, na frente dos meus filhos. É uma decepção muito grande pra mim agora.
Curiosamente, os introvertidos intuitivos "têm uma vaga noção de sua própria existência física ou do efeito que isso tem sobre os outros. Muitas vezes pode parecer (sobretudo para o extrovertido) que, para eles, a realidade não existe – que estão simplesmente perdidos em fantasias infrutíferas" (SHARP, 1990, p. 91). Sua intuição podia ser impelida, estimulada sem nenhuma restrição de sua consciência, sem nenhum limite – o entorpecente garantia isso. Se sua função pensamento o ajudava a julgar mais corretamente, a contrabalançar os extremos de sua função superior, parece que isso não ocorria em hipótese alguma sob o poder da droga. Tudo indica que as consequências do uso contínuo das drogas fez com que E1 julgasse, agora mais distanciado no tempo em relação aos fatos deteriorantes da sua vida, de forma mais isenta. Longe das drogas, sua intuição pode lhe apresentar ou reaver outras possibilidades:
Eu sempre tive um sonho de fazer, de formar uma família, pra não ser o que a minha foi: desunida, só briga. [...] Eu amo muito ela e tô labutando pra ver se eu reconcilio meu casamento, pra ter ele de volta. Pra eu fazer tudo ao contrário, e daí eu ter minha família realmente como eu queria.
Embora isso não queira dizer que E1 tenha se recuperado completamente, essa nova maneira de pensar já é uma forma de prevenção à antiga maneira de entrega às drogas. Constitui, sem dúvida, um dos passos iniciais para a libertação.
Um processo parecido ocorre com E2:
E2: [...] Aí, depois disso, minha vó morreu, a gente entramos nas drogas, começou o movimento, o tráfego, a bandidagem... Aí minha vó já era falecida; morava eu, a minha mãe, o meu tio e a esposa dele. Ele teve uma filha. Só que ele viu que a barra era muito pesada; ele decidiu se retirar de lá. Ele se retirou e ficou eu e minha mãe. Daí minha mãe não aguentava ver nós naquela vida... Ela saia para trabalhar era oito, nove horas, e voltava só meia-noite. [...]
E2: Ah, assim, quando eu tava no mundo não, mas depois que eu passei dessa fase aí eu comecei a cair em "si", a olhar pra mim: "Nossa! Preciso ter um emprego, preciso ter um trabalho... Preciso cuidar da minha mãe, ter uma casa própria, né? Ter uma esposa, filhos no lar, né? E viver uma vida digna, tranquila, em paz... Uma vida honesta... Ter uma convivência boa.
Para o sensitivo introvertido, "quando o inconsciente está apenas um pouco reforçado, a participação subjetiva da sensação se ativa a ponto de encobrir quase totalmente a influência do objeto" (JUNG, 1991b, p. 374). Ora, a droga, conseguindo esse reforço ao inconsciente, trará uma concepção ilusória da realidade, e fará as pessoas próximas a esse tipo sentirem-se desvalorizadas. E nos casos mórbidos, ainda segundo o autor, o indivíduo pode não ser capaz de distinguir entre o real e sua percepção subjetiva. Ainda que essa distinção desapareça por completo na psicose, essa percepção subjetiva pode influenciar profundamente as outras funções psíquicas e iludir o sujeito, apesar da clara visão do objeto em toda a sua realidade. E essa mesma morbidez parecer ser produzida pela dependência química.
Porém, num segundo momento, o que ele faz é comparar seus valores antigos com os atuais. Ele despreza a antiga vida e valoriza as condições que poderá conseguir no presente. E isso é um exercício do sentimento, que E2 possui como função auxiliar. Ele não fala como E1 em pensar, mas em ter, e não no sentido consumista, mas enquanto construção de uma vida própria. Então, ele traz à fala palavras próprias dos valores dos sentimentos: "vida digna, tranquila, em paz... Uma vida honesta. Ter uma convivência boa". Assim como E1, ele caiu em si, conseguiu sair da morbidade que a droga havia produzido, parecendo também desenvolver um pouco mais sua função judicativa auxiliar sentimento.
Comentou-se nesta parte como a droga pode afetar as funções da consciência, imergindo-as no inconsciente, desestruturando a operação do que é destinado justamente a servir à adaptação ao mundo e a si mesmo. O desenvolvimento de novas funções, que venham apoiar a função principal de modo mais efetivo, de acordo com Jung (1991b), propicia um ponto de vista mais completo acerca da realidade e de si mesmo. Nesse sentido, seu desenvolvimento amadurece a personalidade, ajuda o dependente a se livrar das drogas, a dar um outro sentido às suas perdas e às possibilidades do presente, como parece ter ocorrido, com mais ou menos intensidade, com os entrevistados.
INTROVERSAO: CAUSA OU EFEITO?
Não é objeto deste trabalho analisar as atitudes de introversão ou extroversão. No entanto, como essas atitudes influem no modo como as funções sensação e intuição operam – no mundo ou no sujeito, assim como no destino do dependente químico, vale aqui algumas considerações a respeito.
Estatisticamente, de acordo com a Tabela 2, foram constatados 61,1% de introvertidos e 38,9% de extrovertidos. Na população geral, conforme o Quadro 7, a distribuição é de 75% para extrovertidos e 25% para introvertidos. Algumas dúvidas ficam em suspenso:
a. Que fatores contribuíram para que isso ocorresse?
b. O alto índice de introvertidos deve-se a uma seleção natural de acordo com o tratamento específico, regras e relações dentro da Casa?
c. Será que a maior parte dos dependentes químicos são introvertidos?
d. No caso afirmativo, eram-no antes de adentrarem ao mundo das drogas?
e. Caso afirmativo, quais fatores os predisporiam ao uso da droga?
f. Na hipótese da letra "d" ser respondida com uma negativa, será que as drogas influenciam os extrovertidos, de algum modo, de forma que acabem mudando sua atitude? Ou isso ocorre devido à necessidade de se protegerem da sociedade por algum motivo?
Estas, e muitas mais, são perguntas pertinentes a outras possíveis pesquisas. O que se pôde levantar neste trabalho foram indícios de que pode existir uma espécie de "seleção natural" nesta e em outras instituições, como foi cabalmente constatado por Zacharias (1995) na PM paulista.
Se as perguntas "c" e "d" forem respondidas positivamente, isso poderá indicar uma possível desaprovação da sociedade ocidental quanto às características da introversão.
Nenhuma cultura é propriamente perfeita; sempre estará mais ou menos de um lado ou de outro, isto é, uma vez o ideal da cultura será um ideal extrovertido e o valor principal estará no objeto e em sua relação com ele, outra vez o ideal é introvertido e o valor principal reside no indivíduo ou sujeito e nas relações com a idéia. (JUNG, 1991b, p. 83)
Continuando, o autor afirma que sob a influência do Cristianismo, cujo princípio é o amor cristão, e por conseguinte a violação da individualidade, surgiu a cultura coletiva, que ameaça o indivíduo de desaparecer. Este só pode subsistir enquanto ser coletivo. Identificado à função coletiva, será considerado adequado; caso contrário, suas funções inferiores e não-desenvolvidas ficarão de lado e ele se tornará um bárbaro, enquanto o primeiro se deleitará iludido quanto ao seu real barbarismo.
Enfim, este capítulo visa levantar questões que não foram respondidas neste trabalho. Mas por outro lado, alude ao perigo dos tempos atuais, onde são enfatizadas certas funções em detrimento de outras. Para onde o homem está focando seu olhar? Para a máscara ou para o ser que porta a máscara? Essas considerações dizem respeito não só ao uso de drogas, mas a muitas outras atividades humanas, e principalmente ao trabalho. Parece que tudo aquilo que leva o homem para longe de sua inteireza, de sua plenitude no uso consciente de suas faculdades, atua como "droga".
Esta pesquisa analisou a relação da dependência de drogas com as funções intuição e sensação, segundo a teoria junguiana. A ordenação das variadas experiências individuais através do entendimento da operação das funções psíquicas em relação à dependência química trouxe um melhor entendimento da influência desta sobre aquelas e vice-versa.
Constatou-se que a maior parte dos dependentes em tratamento na Casa de Recuperação pertence ao tipo psicológico sensação introvertido, e tem o sentimento como função auxiliar. Evidenciou-se a similaridade dessa tipologia com a encontrada por Zacharias (1995) em instituições militares de São Paulo com relação às características da função sensação. Inclusive indícios de favorecimento de certos tipos psicológicos em prejuízo de outros, o que reflete diretamente sobre os procedimentos terapêuticos adotados e sua eficácia.
Verificou-se que o prejuízo de um intuitivo em relação à dependência química pode ser maior, demandando maiores esforços para que se livre dela, isso devido à similaridade dos efeitos de certas drogas com a operação da intuição. A aplicação do QUATI em dependentes poderia indicar práticas terapêuticas mais em consonância com tipos psicológicos específicos, como neste caso. Para isso, há necessidade de pesquisa com relação a outros tratamentos.
A comparação do modo como indivíduos de funções opostas vivenciam os efeitos da maconha foi bastante ilustrativo. Enquanto o tipo sensitivo introvertido adere às impressões subjetivas produzidas pela droga, o tipo intuitivo introvertido atenta-se ao processamento de imagens correspondente a essas impressões. Mais uma vez tornou-se evidente a necessidade de pesquisas de tratamentos consonantes com os tipos psicológicos e até da adequação das campanhas preventivas de forma a abranger uma gama abrangente de tipologias.
A análise da dinâmica das funções superior e inferior nos dependentes entrevistados deixou claro também como ocorre o processo simbólico de iniciação do dependente ao nível dessas funções. Sob efeito da droga, ambos não operavam ou não se orientavam psiquicamente de forma coerente. Sua função superior atuava de forma patológica e seu ego desmoronava. O que se constatou foi um processo de total desestruturação funcional, que promovia a desconstrução de sua organização psíquica. Ocorria paralelamente uma inflação com instâncias arquetípicas que os distanciava ainda mais da realidade e de seus entes queridos. Prazerosa, essa impressão de não ter limites trazia junto uma forte insegurança – uma compensação do fato de se negar a realidade e de se apegar a uma ilusão. À possessão, ou à identificação, ou ainda à inflação advém a paranóia, aspectos inseparáveis. Por conseguinte, não é o indivíduo que está vivendo, mas o arquétipo nele, seja sob a forma de um deus ou de um herói negativo. Dessa forma, compreendeu-se melhor o papel da função inferior e de vários outros aspectos analíticos nos fatos relatados pelos entrevistados.
Demonstrou-se também, na medida do possível e das limitações do material analisado, o papel das funções auxiliares na recuperação do dependente. A forma como elas emergiram no caso dos entrevistados permitiu compreender como podem colaborar para o tratamento, acrescentando outros pontos de vista complementares ao da função principal, que também tinha oportunidade de operar com maior eficácia longe dos efeitos do entorpecimento. As funções auxiliares, tornadas mais conscientes, além de proporcionarem uma adaptação melhor ao mundo, tornam-se colaboradoras da consciência, e não seu obstáculo, o que ocorre quando estão imersas no inconsciente. Isso constitui um acréscimo à utilidade do estudo da tipologia psicológica em relação com a dependência química, seja na forma de tratamentos ou de medidas preventivas.
Por fim, este trabalho trouxe a abertura de um horizonte de pesquisas possíveis com relação às funções psíquicas. Várias questões ainda ficaram sem resposta, e as obtidas aqui precisam de mais material confirmativo, pois se baseiam tão somente em dois estudos de caso. Enquanto pesquisa qualitativa, seria de bom alvitre o acréscimo de estudos quantitativos, que teriam respostas mais efetivas às encontradas aqui com o parco número de indivíduos no universo pesquisado.
Encerra-se este trabalho com uma reflexão psicológica do autor que perpassou todas as reflexões construídas até o momento:
O autoconhecimento de cada indivíduo, a volta do ser humano às suas origens, ao seu próprio ser e à sua verdade individual e social, eis o começo da cura da cegueira que domina o mundo de hoje. O interesse pelo problema da alma humana é um sintoma dessa volta instintiva a si mesmo. Que este meu trabalho esteja a serviço desse interesse. (JUNG, 1987b, p. IX)
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Arquétipo: "O conceito de arquétipo... deriva da observação reiterada de que os mitos e os contos da literatura universal encerram temas bem definidos que reaparecem sempre e por toda parte. Encontramos esses mesmos temas nas fantasias, nos sonhos, nas idéias delirantes e ilusões dos indivíduos que vivem atualmente. A essas imagens e correspondências típicas, denomino representações arquetípicas. Elas nos impressionam, nos influenciam, nos fascinam. Têm sua origem no arquétipo que, em si mesmo, escapa à representação, forma preexistente e inconsciente que parece fazer parte da estrutura psíquica herdada, e pode, portanto, manifestar-se espontaneamente sempre e por toda parte." (JUNG, 1991a, p. 369-370).
Iatrogênico: De acordo com Houaiss (2001), iatrogênico refere-se à iatrogenia – produção de ações ou pensamentos tendo como referência a prática médica.
Individuação: "A individuação significa tender a tornar-se um ser realmente individual; na medida em que entendemos por individualidade a forma de nossa unicidade, a mais íntima, nossa unicidade última e irrevogável; trata-se da realização de seu si-mesmo, no que tem de mais pessoal, e de mais rebelde a toda comparação. Poder-se-ia, pois, traduzir a palavra "individuação" por "realização de si mesmo", "realização do si-mesmo". Constato continuamente que o processo de individuação é confundido com a tomada de consciência do eu, identificando-se, portanto, este último com o si-mesmo, e daí resultando uma desesperadora confusão de conceitos. A individuação não passaria, então, de egocentrismo e auto-erotismo. O si-mesmo, no entanto, compreende infinitamente mais do que um simples eu... A individuação não exclui o universo, ela o inclui." (JUNG, 1991ª, p. 373).
Inflação: "Expansão da personalidade além de seus próprios limites, pela identificação com um arquétipo ou com a persona e, em casos patológicos, com uma personalidade histórica ou religiosa. A inflação tem por símbolo a rã que pretende tornar-se um boi. Desenvolve-se um senso exagerado da importância pessoal; comumente, esta última é compensada por um sentimento de inferioridade." (JUNG, 1991a, p. 373).
Personificação: De acordo com Jung (1991), personificação é a forma como os conteúdos do inconsciente são representados a nós principalmente através dos sonhos. Os complexos e os arquétipos, por serem autônomos, acabam se apresentando como entidades independentes dentro de nossa personalidade.
Propriocepção: Estado relativo a proprioceptivo: "2. Capaz de receber estímulos originados no interior do próprio organismo" (FERREIRA, 1986, p. 1404).
Self (Si-mesmo): "É o arquétipo central da ordem, da totalidade do homem, representado simbolicamente pelo círculo, quadrado, quatérnio, pela criança, pelo mandala, etc. O si-mesmo é uma realidade sobre-ordenada ao eu consciente. Abrange a psique consciente e a inconsciente, constituindo por esse fato uma personalidade mais ampla, que também somos... [...] O si-mesmo é também a meta da vida, pois é a expressão mais completa dessas combinações do destino: o indivíduo." (JUNG, 1991a, p. 375-376).
Sombra: É "a parte inferior da personalidade. Soma de todos os elementos psíquicos pessoais e coletivos que, incompatíveis com a forma de vida conscientemente escolhida, não foram vividos e se unem ao inconsciente, formando uma personalidade parcial, relativamente autônoma, com tendências opostas às do consciente. A sombra se comporta de maneira compensatória em relação à consciência. [...] No sonho, a sombra tem frequentemente o mesmo sexo que o sonhador." (JUNG, 1991a, p. 377).
APÊNDICE A – Questões da Entrevista de Anamnese
PARTE I
1. QUEIXA PRINCIPAL E HISTÓRIA DA DEPENDÊNCIA
Descrever (de preferência com as palavras do paciente, os sintomas, sinais e comportamentos, desde o início do último episódio até o presente momento):
Já se consultou no passado com médico ou psicólogo (ou profissional de saúde mental) para problema dos nervos: _______ Há quanto tempo foi a primeira consulta? ______ Já tomou remédio para os nervos? ______ Há quanto tempo tomou pela primeira vez? ________ Muitas pessoas procuram ajuda de benzedeira, padre, pastor, centro espírita, ou outra pessoa com poderes de cura. Você já procurou alguma ajuda desse tipo? ______ (caso sim, qual? _____________________). Há quanto tempo (anos e meses)? _________ O resultado foi: ___________________ (1. ajudou muito, 2. muito bom, 3. ajudou um pouco, 4. não mudou nada, 5. ruim) Internação psiquiátrica: ___________ (Caso sim, há quanto tempo foi a primeira internação psiquiátrica? _________) Quantas internações psiquiátricas teve até hoje? ______ Em média, quanto duraram as internações? ______ (1. Menos de 1 mês, 2. Um a 2 meses, 3. Dois a 6 meses, 4. Seis meses a 1 ano, 5. Mais de 1 ano) Há quanto tempo foi a última internação? ______
2. ANTECEDENTES MÓRBIDOS PESSOAIS (0=Não; 1=Sim)
Psiquiátricos: episódios psiquiátricos anteriores (descrever): Tentativas de suicídio: _____ Quantas: ______ Brigas, agressões: ______ Problemas legais (processos): ______ Problemas coma polícia: ______
3. HÁBITOS (0=Não; 1=Sim)
Álcool: já usou esporadicamente bebidas alcoólicas? ______ (Já sentiu que deveria parar ou diminuir a bebida? ______ Sentiu-se chateado consigo mesmo pela maneira com que costumava beber? ______ Costumava beber pela manhã para diminuir o nervosismo ou a ressaca? ______ As pessoas o aborreciam porque criticavam o seu modo de beber? ______ Há quanto tempo bebia pesadamente? ______
Tabagismo: ______ (cig./dia: ______) Café: ______ (xíc. Peq./dia: ______)
Benzodiazepínicos (Valium, Lorax, Rivotril...): ______ Quais? __________________ ________________ Quantos mg/dia? ______ Há quanto tempo? ______________ Drogas ilícitas: ______ Quais? ____________________________________________ Há quanto tempo? ___________ Que frequência e quantidade? _______________________ Drogas injetáveis: ______
4. EXAME PSÍQUICO (estado mental atual e nos dias anteriores à consulta; utilizar de preferência, as palavras do paciente):
1. Aspecto geral: cuidado pessoal, higiene, trajes, postura, mímica, atitude global do paciente; 2. Nível de consciência; 3. Orientação alo e autopsíquica; 4. Atenção; 5. Memória (fixação e evocação); 6. Sensopercepção; 7. Pensamento (curso, forma e conteúdo); 8. Linguagem; 9. Inteligência; 10. Juízo de realidade; 11. Vida afetiva (estado de humor basal, emoções e sentimentos predominantes); 12. Volição; 13. Psicomotricidade; 14. Consciência e valoração do Eu; 15. Vivência do tempo e do espaço; 16. Personalidade; 17. Descrever sentimentos constratransferenciais; 18. Crítica em relação aos sintomas; 19. Desejo de ajuda; 20. Se for o caso, a internação é voluntária ou involuntária?
Súmula do exame psíquico (fazer um resumo, utilizando os termos técnicos).
5. HISTÓRIA DE VIDA (descrever):
1. Gestação e parto: criança desejada? Doenças da mãe na gravidez, condições do parto e ao nascer; 2. Desenvolvimento no 1º e 2º anos de vida (amamentação, idade em que engatinhou, ficou em pé, andou e falou); 3. Comportamento durante a infância: relacionamento com os pais, irmãos e amigos; 4. Na escola: relacionamento com colegas e professores, rendimento escolar, aceitação de regras, brigas, etc.; 5. Puberdade e adolescência: como foi a menarca, primeiros namoros, sexualidade, desenvolvimento da identidade, trabalho/profissão, relação com pais; 6. Vida de adulto jovem: casamento, sexualidade, filhos pequenos, amizades, aceitação de responsabilidades; 7. Vida adulta madura e velhice: evolução do casamento, relação com amigos e filhos, aceitação do envelhecer e da morte.
PARTE II
Entrevista focalizada, de acordo com Gil (1996). Abrange detalhamento da relação da função psicológica do entrevistado com as drogas, com orientação através do QUATI, conforme Zacharias (2000).
APÊNDICE B – Conteúdo da Primeira Entrevista de Anamnese
ENTREVISTA REALIZADA ENTRE MARÇO E ABRIL DE 2009
NOME: E1 –ESCOLARIDADE: Ensino Médio Incompleto – IDADE: 27 – SEXO: Masculino
LEGENDA: P – Pesquisador / E1 – Entrevistado Nº 1
P: Você já consultou no passado com médico ou psicólogo que de saúde mental para problema dos nervos?
E1: Não.
P: Você já procurou uma ajuda desse tipo?
E1: Não.
P: Você já internou em algum hospital psiquiátrico?
E1: Não.
P: Você já teve tentativa de suicídio?
E1: Vontade. Não tive coragem. Muita vontade já antes de vir para cá. Não sei se foi depressão. Já pensei muito nisso. Porque sempre, sei lá... Minha vida nunca foi maravilha, não. Então, por que eu não morro de uma vez? É uma coisa meio assim, direto. Para que dever?
P: Mas tentativa não? Só o pensamento?
E1: Não.
P: Brigas agressões, teve?
E1: Já.
P: Problemas legais, com a justiça, com a lei, já teve?
E1: Já.
P: Com a lei, nesse sentido, com a polícia, né?
E1: Antes de vir para cá mesmo, eu tive dois conflitos. Eu fui a juízo. Eles me pegaram, depois tive que passar pelo juiz, não é? Fiquei preso oito dias, depois eu fui para julgamento, no caso.
P: Você já usou esporadicamente bebidas alcoólicas?
E1: Já. Mas era assim: não era vício. Só que, quando bebia também, bebia até...
P: Já sentiu que deveria parar ou diminuir a bebida?
E1: Já. Eu tinha consciência. Na hora que eu tinha consciência, eu já tava lá.
P: Você já se sentiu chateado consigo mesmo pela maneira como costumava beber?
E1: Sim.
P: Costumava beber pela manhã para diminuir o nervosismo ou a ressaca?
E1: É aquele ditado ditado: "Evite a ressaca – mantenha-se bêbado!". Já. Experimentei de tudo.
P: As pessoas o aborreciam porque criticavam seu modo de beber?
E1: Depende... Vinham fazer comentários... Minha esposa mesmo, vinha e falava: "Para de beber!", "Eu vou parar. Eu vou parar. Para de falar! Para de falar! Tá enchendo o saco, meu!".
P: Há quanto tempo bebia pesadamente?
E1: De pouco agora? Desde que separei da esposa há uns três ou quatro meses. Eu sempre bebi. Só que daí, vamos supor, direto mesmo... Porque eu sempre trabalhei. Só agora larguei da minha esposa. Fui embora... Desandou de vez.
P: Cigarro?
E1: Fumei. Parei por conta própria. Eu fumava um maço de cigarro por dia. Parei. Ah, falei: "Vou parar". Quando voltei foi com dois maços de cigarro por dia. Aí foi pior. Foi indo, foi indo... Fumava o dia inteiro, a noite inteira... Uma vez fui ao pronto-socorro, aí o médico me disse que eu tinha bronquite. Que não podia fumar de jeito nenhum. Eu tenho bronquite. Eu gostava dos cigarros mais fortes. Eu gostava de Marlboro, Hollywood... Porque me sustentavam. Sabe? Demorava mais para eu fumar. Mas mesmo assim eu fumava bastante. Aí o médico disse: "Cria vergonha na sua cara!". Esculachou mesmo. Esculachou de verdade no consultório. Ele falou assim: "Cria vergonha na sua cara, rapaz! Você tem problema no pulmão! Essa porcaria de cigarro no seu bolso, aí... Você não tem vergonha na cara não?". Fui errado, mas também não precisava falar daquele jeito... Mas guardei no coração. "Você fumando... Tô falando pro seu bem. Porque a gente fala manso, e os outros não escutam. Então vou ser bem claro com você: você fumando cigarro, o tanto de vida que você tem, você vai durar um terço você fumando. Se chegar a um terço". Ele falou bem assim. Eu peguei e fui num lugar lá. Aí parece que foi de Deus mesmo. Não é por que tô aqui não. O médico me dá um esporro, daí eu peguei e vi um cartaz do que ia no cigarro. Daí eu vi lá: a composição é de veneno de rato, naftalina, veneno de barata, acetona – de dar em unha... Formol, que usa em morto... Eu falei: "O quê? Eu tenho que parar realmente. Eu tenho que conseguir. Eu vou ser forte. Eu vou parar com ele". Daí, onde eu ia, eu ia com um maço de cigarro. Não dava pra ninguém e não fumava. E parei de fumar com ele no bolso. Daí, de pouco agora, eu fumava. Mas tipo assim, só na hora que eu tava usando. Não por vontade. Daí dava vontade de fumar, quando tava louco. Mas não era um vício não... Um negócio estranho. Eu fumava na hora que eu queria.
P: Então era uma média de quantos cigarros?
E1: Então, eu viciei, parei, viciei mais ainda. Daí eu parei mesmo. Daí eu fumava por dia, vamos supor, tinha dia que fumava dois... Às vezes quando eu estava usando, porque eu usava droga... Um dia às vezes usava dois sem nada. Mas então, em uma questão de meia hora, eu fumava dez. Vamos dizer assim: acendia um e outro. Mas só na hora que tava ruim, só. Entendeu? Era um negócio bem diferente um do outro.
P: E café?
E1: Eu não tomo, eu nunca tomei. Agora, aqui, eu tomo café com leite. Eu nunca gostei de café. Eu tomo porque não tem exceção...
P: Droga, assim, como Vallium, Lorax, Rivotril... Você conhece?
E1: Não. Não...
P: Isso aí é mais remédio...
E1: É, esse Rivotril, eu acho que já ouvi falar uma vez. Se não me engano, acho que tinha um rapaz que tomava isso aí. Foi embora esses dias... Ficou um mês sem.
P: Então, droga ilícita você tomava, né?
E1: Droga ilícita... O usuário de drogas? Eu usava, eu fumava crack.
P: Só crack?
E1: Eu fumava cocaína, fumava maconha... O que tivesse. Não gostava muito de maconha não. Maconha deixa a gente lerdo. Eu gostava de coisa que deixava a gente... Sabe? Sei lá... Uma sensação diferente. Não gostava.
P: Você gostava do que, então?
E1: Olha, o que eu gostava realmente era do crack.
P: Por que?
E1: Ah, é difícil eu explicar. Mas eu... Como eu vou explicar isso aí? A sensação... Era uma coisa diferente. Era uma coisa de louco se você parar para pensar. Porque depois que eu usava eu ficava com medo. Eu aprontei muito. Eu via a polícia invadindo. Ficava olhando para o telhado, que ia gente entrar pra me pegar... Não dava para entender mas, a sensação que ela propõe pra gente... É estranho, não sei nem como explicar isso para você, é uma coisa de louco mesmo, isso aí. Entendeu? Ficava... Tinha medo da porta... Eu tinha medo de... Você tava do meu lado, imagina, para usar, daqui a pouco ficava com medo de você mesmo...
P: Mas então o que ela passava de bom para você então?
E1: Nada, se você for analisar... Só que eu esquecia de tudo, entendeu? É uma coisa...
P: Tudo o que você fala são os problemas...
E1: Tudo... É, entendeu? Vamos supor: você estava ali – "Puxa minha vida acabou! O que não sei o que..." Você esquecia de tudo... Você ia para outro planeta, vamos falar a verdade. É um mistério vamos dizer assim. É um negócio muito diferente. Uma coisa de louco realmente, viu? Você não queria saber de ninguém, não saía na rua, não saía da porta pra fora... Trancava tudo. Me trancava. "Abra a porta!", "Não, que abrir a porta o que!". Às vezes eu chegava usar... Daí vamos supor assim... Uma vez eu fui em Cachoeira Paulista e o meu irmão estava lá. Ele usa também. E graças a deus eu tive notícia. Ontem tive uma ligação, e fiquei sabendo que ele está tranquilo. É, vamos supor... Eu peguei e... E trancava a porta. Daí ia usar. Usava um, daí já cismava que tinha alguém na porta. Eu pegava facão e ficava andando dentro de casa. Igual, em casa mesmo, eu cheguei a usar em frente da minha mãe. Eu usava assim abertamente. Na frente da minha mãe, na frente do meu irmão... Não tinha mais, vamos dizer, não tinha mais controle. Entendeu? Daí uma vez eu tava usando, e minha esposa trabalhando. Daí a pouco, meu pai e a mãe dormindo no quarto. Na cama, com o facão na mão, imaginando que a minha esposa estivesse ali com alguém. É coisa de louco!
Não que você vá agredir alguém, você não vai agredir ninguém... Entendeu? Pelo contrário, eu usava a droga e ficava com medo. A polícia ia me catar, alguém ia me matar... Eram essas coisas que vinham na minha cabeça. Mas o... Daí chegou uma certa fase, que fiquei. Comecei a ficar cismado com coisas que não tinha nada a ver. Você escuta voz, você escuta gente entrando... Você vê gente entrando. Entendeu? Coisa que não existe... Tanto você tá ali com a cabeça naquilo que alguém vai pegar, que você vê, você escuta passo... Está vindo ali. Passa a mão em qualquer coisa, se vier um, eu dou uma. É um negócio de louco mesmo...
P: Mas tinha visão também? Você via coisas?
E1: É, você está vendo, você olhava assim: "Nossa! Tem alguém lá no fundo...". Mas não tem. No escuro, vamos dizer assim, parece que tem alguém olhando... Eu queria me esconder onde ninguém via. Vamos supor, o carro tá aqui, eu estava aqui e eu estou cismado com a porteira, então eu ia ficar aqui atrás do carro aqui olhando lá e... Não sei porque: eu tô cismado com aquilo lá e eu estou protegendo aquele lado. É uma paranóia que deus me perdoe! Só pela misericórdia de Deus mesmo!
P: E assim: é... Você começou a usar qual droga?
E1: Oh, foi da seguinte maneira. Foi cocaína, eu fui na casa do meu irmão que sempre foi do crime, o mais velho. Desde novo ele foi "desandado" nessa vida. Daí o que aconteceu? Minha mãe às vezes pedia para eu ir na casa dele, onde ele morava. Eu morava em X, ele morava lá no Y. Minha mãe falava: "Vai lá! Vai ver como M está! Leva roupa para ele, vê se ele tem roupa suja." Então, era mais prático, não é? Minha mãe, uma senhora, vamos dizer assim, não anda tanto... Não vai ficar pegando uma contra-mão. Então um jovem de bicicleta, rapidinho, vai e volta, né? Então uma vez cheguei lá e o meu irmão falou "Entra aí, vai!" Daí eu entrei e estava ele e os colegas dele no quarto. E até esse colega dele, que está com Aids, não sei se já morreu, se está para morrer, está no final acredito. Ele travava a porta do quarto com um soquete de pilão. Sabe um soquete de pilão? Daí ele travava entre o guarda-roupa e a porta assim, para a mãe dele e ninguém entrar. Daí ele entrou, cravou ali, e fiquei meio assustado. Daí o que aconteceu? Daí ele tava contando assim, eu nunca tinha visto, foi pela primeira vez. Daí ele começou a contar aquele monte de papelote de cocaína. O meu irmão traficava, né? E o pessoal ficava tudo envolvido ali. Aquele monte de cocaína sim. E aí começou a abrir um monte de pacotinho, outro pacotinho assim no prato, sabe? Para eles usarem. Daí enrolaram cada um uma nota de 50 ali, e começaram a fazer a roda. Cada um começou a fazer o seu risco de cocaína. Não sei se o senhor conhece... Um risco assim do pó. E cada um cheira aquilo ali. Daí o H perguntou pro meu irmão: "E daí, M, vai envolver?", "Não, tá envolvido. Vai cheirar também, né, E1? Toma aqui!" Quer dizer, o meu irmão não perguntou se eu queria, ele já intimou eu a usar. E ali, naquele constrangimento, eu falei: "Eu vou falar não? Eu nunca tive conhecimento... Sempre tive medo do meu irmão". Peguei, fui e usei. Entendeu? Eu saí dali eletrizado na Dutra ali. Eu andava pela Dutra, né, que era mais fácil, né? Não tem mão, nem nada. Você pega a reta e vai. E aí, rapaz, em dois minutos tava lá no X. Parecia uma máquina pedalando. Porque estimula, né? Lembra do Maradona? Cheirava para correr. Entendeu? Ela estimula. Ela dá disposição para você. Você pode estar o dia inteiro sem comer. "Ai, eu não aguento levantar...". Se você der um tiro na cocaína, se for boa, você levanta e vai até o fim do mundo. Ela te proporciona... Não há barreira para você, não há cansaço.
P: E você gostou?
E1: Não, foi a primeira experiência. Daí meu irmão foi lá uma vez e levou uma garrafa de cola. Deixou lá. E falou pra mim: "Nossa! Isso aí é não sei o que..." e ficou na minha cabeça. "E não sei o que...". Aí eu vou falar para você, fiquei logo na curiosidade naquele dia. Só que não sabia cheirar. Geralmente coloca dentro do saco a cola, e cheira, né? Daí eu peguei a lata, e fiquei olhando que lá. "Mas o que que isso aqui faz, né? Deixa louco? O que que é isso aqui? É para colar as coisas? Eu era moleque. Não tinha conhecimento de nada. Daí eu abri a lata, e senti cheiro. "Nossa! Mas que cheiro forte! Que cheiro horrível ! Como que consegue?" Aí eu fui inalando aquilo ali sem querer. Na hora que eu vi eu tinha apagado, derramado a cola em mim, na cama da minha mãe. Quando eu voltei, já estava lavado de cola. "O que aconteceu?" Sem querer eu tinha ficado drogado, sem perceber. Daí eu fui na minha mãe, eu tava todo melado com cola, cola de sapateiro, uma lata grande, aquelas colas assim, entendeu? "Nossa, meu santo Deus! Mãe, eu não sei o que aconteceu. Eu abri para ver e agora que eu tô vendo, eu tô...". Minha mãe não conseguiu, deixou a casa inteira... Eu dormi com a porta aberta, com a janela aberta e tudo. A gente não conseguia dormir à noite. A casa inteira recendendo cola. Daí, depois disso, foi, né? Daí foi influencia, né, na escola. Daí eu já tive experiência... Aí uma vez um rapaz me falou : "Vamos comprar um "papel"? Não sei o que...", "Que graça tem a cocaína?". Aí eu falei: "Uma vez eu experimentei". "Vamos comprar um papel, que não sei o que... Nós dois..." Entendeu? Aí foi indo... Daí surgiram algumas pessoas que já tinham mais conhecimento também... Aí foi indo... Já tive aquela facilidade, que eu já sabia... "Ele, foi bom?" "Foi bom." "Não... Vamos dar um tiro aí, que tira essa lerdeza da cachaça", "É mesmo!", "Eu lembro que pedalei uma vez até altas horas." Aí era cocaína todo dia, todo dia. O pessoal que se reunia, e usava cocaína todo dia.
P: Por quanto tempo você ficou assim?
E1: Assim como?
P: É... Usando drogas?
E1: Eu uso droga há mais de dez anos. Desde o craque, cocaína, há mais de dez anos. Eu comecei, não sei se eu tinha quinze ou dezesseis anos... Eu estou com vinte e sete.
P: Com que frequência? Quantidade?
E1: Ah, variava, porque eu sempre trabalhei. Então não podia ficar me desgastando às vezes, na semana de serviço. Mas às vezes mesmo assim eu não estava nem aí. Por várias vezes eu varava a noite usando droga, e ia trabalhar. Vinha... Às vezes cansava, às vezes não. Vamos supor: às vezes tinha varado a noite usando droga. Trabalhava. Varava a noite de novo; trabalhava. Aí, ia assim. Entendeu? Por que ela... Você não consegue dormir. Mesmo que tenha acabado, o efeito ficava por muito tempo. Eu usava droga aqui, vamos supor... Quatro horas acabou a droga... Eu deitava. "Tem gente na janela! Tem gente na porta! Tem gente entrando!" Ou então: "Alguém vai chamar pra usar..." Daí o que acontecia? Eu ficava a noite acordado. Três, quatro horas deitado na cama sem dormir. Não conseguia. É uma coisa de louco... Deus me perdoe! Olha, essa droga veio para destruir realmente. Eu tinha tudo do bom e do melhor, até a moto... É, tirei a moto no nome da minha esposa... Passei, porque eu com o dinheiro na mão para pagar, eu ia e usava droga. Entendeu? Eu fui, separei dela, e levei todas as coisas. É, porque ela ficou na casa da minha mãe, e tinha tudo. E eu, como ia morar sozinho, não tinha nada. Tinha home theater na caixa, geladeira nova, jogo de sofá, televisão nova... O home theater... Sabe daqueles que têm rádio AM FM, é karaokê, é tudo... De primeira; coisa de primeira. São cinco caixinhas e uma caixa maior. Entendeu? Tudo com nota, minhas coisas. Televisão de controle, de 20 polegadas nova... Tudo novo. Até, daí eu peguei, fui morar no cemitério... Aonde eu fui morar era biqueira, aonde vendia. Foi a pior coisa que eu fiz. Eu tava morando na rua do correio, lá no centro... Muito caro. Lá era mais barato, mas o barato saiu mais caro para mim. Eu peguei, liguei para minha esposa e falei: "Oh, faz um favor: você vai lá em casa... Eu não tenho dinheiro para pagar o carreto, porque se tivesse eu mandava tudo para você. Pega, e leva tudo, antes que seja tarde. Eu ainda avisei ela. Ela pegou e não foi, não me ouviu. Eu catei e vendi tudo. Usei tudo em droga. Desfiz de tudo. Tinha muita panela boa, coisa cara... Talheres... Tudo, tudo, eu vendi tudo! Tênis novo, roupa nova, vendi tudo! Para o consumo da droga...
P: Com que frequência, mais ou menos, você usava?
E1: Ah, era frequentemente... Quando não era todo dia, era... O máximo que ficava sem usar drogas era dois dias. Aconteceu de eu ficar um mês, dois meses, mas eu voltava... Mas era sempre. Agora de pouco eu usava todo dia. Todo dia e bastante.
P: E quanto? Qual a quantidade?
E1: Bastante, né? Por que nunca satisfaz você... Nunca satisfaz, entendeu? Eu dava um jeito de arrumar droga de qualquer jeito... Saía, arrumava dinheiro com um, dinheiro com outro... Quando não dava eu vendia as coisas... Então, eu tava sempre atrás. De madrugada... Daí se você não tem, então, eu tinha casa... O pessoal não gosta de usar na rua... Então eu tinha a casa, onde o pessoal podia usar. A gente usava junto.
P: Injetável você nunca usou?
E1: Não. Isso aí, graças a Deus... Eu não tenho medo de agulha, mas isso aí... Eu tinha medo, porque eu vi o pessoal que usava lá... Então, estava quase todo mundo morto. Tomava baque lá e... Aí eu vi e falava: "Ah Deus me perdoe! Mais feio ainda!" Você ver o pessoal tomar baque, o sangue escorrendo, e eles lambendo... Enchendo a seringa, e voltando na veia... É feio! Nunca tive coragem não...
P: E há quanto tempo você está aqui?
E1: Domingo faz um mês e quinze dias... Eu entrei dia [...].
P: Então faz um mês que você não usa? Antes de entrar aqui você usava? Antes de entrar aqui eu fui pro albergue, fiquei lá cinco dias. No sexto dia eu tive oportunidade de usar lá, e disse não. Lá eu tive oportunidade. Dentro do albergue. Um rapaz saiu para a rua, voltou com droga... Na hora que eu fui no banheiro eles estavam usando o famoso "capetinha", que é o craque enrolado com cigarro.
P: Me diga o seguinte, agora, vamos ver um pouco da sua vida. Você sabe alguma coisa da sua gestação, do parto seu?
E1: Não.
P: Como que foi...
E1: Nada, nada.
P: E se, por exemplo, seus pais planejaram para ter você, ou foi sem esperar?
E1: O meu parece que foi planejado sim, meu irmão é que parece que foi sem...
P: Foi sem planejar.
E1: Foi o resto do tacho, como se diz... Eu não tenho muita certeza não, mas eu, parece que... Eles estavam... Tipo assim... Ah, foi bem... Entendeu? Agora no parto do meu irmão, parece até que minha mãe se abalou muito, ela não queria não. Aí depois até ela operou... Não quis mais não. No do mais novo...
P: Doença dela na sua gravidez: ela teve alguma doença?
E1: Que eu saiba não.
P: O parto foi normal?
E1: É, foi parto normal, minha mãe nunca teve cesárea...
P: Você ouviu sua mãe falar sobre isso? Amamentação... Que idade que você engatinhou? Você lembra dessas coisas?
E1: Eu sei que eu mamei muito. Eu mamei... Até falavam que era um bezerrão. Passou da época de mamadeira, e eu amava ainda.
P: Idade que você engatinhou...
E1: Eu não tenho certeza se é verdade... Eu não tenho certeza se eu mamei, até os 8 anos... Eu não tenho certeza... Mas eu mamei muito. Até a mãe fala: eu chupei chupeta, até meus dentes são ruins por causa disso.
P: E idade que você engatinhou, você lembra? (pausa) Que você ficou em pé, que você engatinhou, que você falou...
E1: Ela falava que foi rápido. Parece que quando engatinha é com um mês... Normalmente. Não é um mês? Parece que a com onze meses, uma coisa assim... Porque eu lembro que com meu filho foi com isso. Ela falou: "Ah, o N foi igual ao E1." Foi rápido. É, disso eu sei mais ou menos por causa disso: ela me comparou com meu filho. Ela disse que foi a mesma coisa. O meu primeiro filho eu tirei da fralda com um ano e pouco... Passou de um ano e meio ele saiu da fralda.
P: Como é que você se relacionava com seu pai, com sua mãe, com seus irmãos e com seus amigos na sua infância...
E1: Minha mãe, eu nunca me dei bem com ela. Ou melhor, ela nunca se deu bem comigo. Então, vice-versa, porque, com meu pai sempre teve assim aquele, aquele afeto, carinho por mim. Eu não sei – parece que minha mãe tinha raiva disso... Tudo que acontecia: briga dela... Tudo o que acontecia na vida dela o culpado era eu. Entendeu? O meu pai morreu, "Você que é o culpado, rapaz!", "Você tá matando seu pai!". Entendeu? Ela sempre me culpou por causa de tudo. Entendeu? Eu sempre fui o culpado de tudo com relação à minha mãe.
P: E com o seu pai...
E1: Ah, com meu pai era uma maravilha. Ele me consolava. Ele vivia... "Deixa pra lá sua mãe!". Ele estava ali sempre comigo. Ele tá de idade, tá de idade. Meu pai tá com 75 anos, tá bem "fracão". Então ele fica mais na cama. Levanta e fala, mas nem conversar dá... "Oi..." (sussurro). Fala bem fraco devido à idade. Mas ele sempre me apoiou. Ele falava para mim: "Você tem que trabalhar. Você tem que ser independente. Para você não sofrer futuramente." Entendeu? Ele sempre pensava no meu futuro. "Você tem que aprender, vai trabalhar." Então, ele nunca foi contra eu trabalhar desde novo, porque ele passou por isso também. Ele teve que sair de casa novo. Então ele aplicou em mim, entendeu? Para que eu não sofresse, se acontecesse. Tipo assim, ele me preparava se algo acontecesse. "É, pega aqui o ovo, eu vou te ensinar. Vai fritar um ovo pra você aprender. Se um dia você precisar, você não vai depender de ninguém. Você não vai precisar ficar na mão de ninguém". Entendeu? Porque ele sofreu muito. Então, tudo que ele passou ele não queria que eu passasse. Ah, eu não tive dinheiro para dar pra escola. "Toma!". A felicidade que ele não teve, ele queria passar para mim. Minha mãe, não. Minha mãe falava que meu pai estava me estragando. E ela tinha raiva disso.
P: E com seus irmãos? Amigos?
E1: Então, meu irmão, o mais velho, me bateu muito. Eu ficava na mão dele, né? Por causa que ele sempre foi violento, e tudo... Me batia. Eu ia falar pra minha mãe. Minha mãe brigava com ele, e tudo, mas ele sempre foi violento. Ele foi revoltado, porque ele sempre teve problema em uma perna. Quando ele era pequeno ele foi tomar uma injeção na farmácia, o farmacêutico pegou o nervo e ainda quebrou a agulha na nádega dele. Depois ainda pegou e puxou com alicate e tudo... Só que daí... Faz muito tempo... Aí minha mãe pegou, foi atrás dele, e ele fugiu. O farmacêutico fugiu, vendeu a farmácia e fugiu. Então, ele sempre foi revoltado com esse problema dele. No entanto que ele tá preso. Não sei se é a sexta ou sétima cadeia dele. Tá preso lá no X. Ele pegou doze anos.
P: Problema do que, que você fala?
E1: Então, daí a perna dele começou a inchar, inchar, inchar... Depois afinou. Ele não tem movimento na perna. Morreu a perna dele, vamos dizer assim. Como se fosse paralisia infantil, só que não foi paralisia. Foi causada por uma injeção. Daí, ele é muito revoltado por causa disso. Entendeu? E o meu irmão mais novo também... Não sei... É porque eu era o foco mesmo. Uma vez meu pai, ele não era de brigar comigo... Começou a brigar comigo por causa do meu irmão mais novo. Ele gostava dele também. E: "Ah, pai, o E1 tá brigando comigo." Uma vez meu pai pegou e deu um safanão nele. Eu na sala, assistindo televisão, meu pai no quarto, ele... Eu acho que o meu irmão mais novo tem problema. Ele tem problema na coluna, que tava torta. Ele teve fazendo tratamento... Ele tomou tegretol, para mente... Meu irmão mais novo teve problema. Não sei se ainda tem, até. Esse tempo atrás, dormindo, ele teve umas convulsões, bateu a boca, ficou sangrando... Aí, eu tava na sala sem televisão, eu morava na Z, até... Esse meu irmão na cozinha, na cadeira: "Olha aí pai! O E1 tá batendo em mim, pai! Ai, ai! Pai, olha aí!" Meu pai correu e olhou: "Uai, o E1 tá na sala...", "Ai, ai, pai. O E1 tá me batendo." Tinha prazer de ver eu apanhar. Ele falou: "Ahhh, seu safado! Então você tá... É? Então tome, filho!". Sabe? Então tinha umas coisas desse tipo... Meu irmão, até agora de pouco, ele fazia as coisas e jogava nas minhas costas também. O mais novo... Eu fui o foco dessa família... Não sei, é incríveL! Agora há pouco até, deu uma briga feia lá na rua de casa. Uma vez lá, o meu irmão pegou e apareceu com uma bermuda e uma camiseta. "Não, isso aí eu comprei. Pode ir lá e larga lá na boca, lá pra nós..." Daí eu larguei. Eu não tô sabendo... Daí, eu vejo minha mãe brava lá, querendo matar eu... "O que foi?" "Ah, você vendeu o negócio do F na biqueira. Pode dar um jeito de pegar!", "Eu vendi?". Ele foi falar para a namorada dele. Ele fez a cagada, e foi falar para a namorada dele: "Puxa vida, o E1 catou o meu negócio e vendeu...". Sabe, ele fazia as coisas e jogava nas minhas costas.
P: É, difícil, né? E na escola? O relacionamento com colegas, professores?
E1: Ah, era meio difícil, viu? Quando ia com a minha cara, eu ia...Quando não ia, o negócio... Sei lá, estreitava, viu? Não é que eu não ia com a cara... Tava indo muito bem... Aí chegou numa fase... Às vezes dificultava meu aprendizado. Ali naquilo ali... E às vezes eu não queria perguntar. Meio fechadão. Às vezes queria perguntar, mas, já via que a professora não tava com paciência. Às vezes ela falava: "Ah, mas não aprende... Eu expliquei tantas vezes..." Então, eu já não perguntava mais. Deixava passar. Aí depois: "Por que você não fez?", "Ah, eu vou perguntar pra ficar escutando?". Discutia... Entendeu? É uma coisa complicada... Quando me dava bem, dava. Mas quando chegava alguma coisa, às vezes... Uma palavra ali, já encerrava minha comunicação com aquela pessoa.
P: E...
E1: Até hoje é assim!
P: Rendimento escolar seu...
E1: Então, às vezes ia bem... E às vezes... Bloqueava tudo ali. Sou uma pessoa boa, mas ao mesmo tempo... Aquele negócio de... Vai guardando, vai guardando, aí uma hora explode! É ruim até, sabe? Igual eu tô conversando aqui, tem hora que é bom. Mas não é assim não... Tô conversando aqui tudo assim, que é uma pesquisa... Eu sei que... Mais... Sabe uma hora que você tá pensando, um negócio que você tá guardando ali... Dá vontade de você dar cabeçada na parede... Aquele negócio te incomoda! Eu vou falar pra você: eu vou pra um canto, eu choro... A pessoa pergunta: "E1, você está bem?". Eu falo: "Pergunta ali para o F." Ele trabalha na cozinha. "Você tá pensativo...". "Não, não é nada." Daqui a pouco: "Você está bem?", "Tô, tô jóia, tô bem." A pessoa vê, eu sinto que a pessoa vê, porque muda muito em mim. Eu me tranco mesmo.
P: É, será que você sente receio, de que a pessoa não vai te entender?
E1: Não, não é bem por esse lado não, eu não gosto de expor o que é meu. [...] Essa parte a gente tem consciência, né? Não é sempre que a gente tem que ser trancado... Tem hora... Ah, isso é esquisito. Tem hora, eu confesso, eu não me entendo não. Meio... Sei lá! Diferente mesmo!
P: Como foi sua adolescência, no período em que seu corpo começou a mudar?
E1: É, eu sempre ficava no espelho. Eu era moleque e pensava: "Será que vou ter barba, né? Que eu não tenho..." Hoje em dia eu acho bom, que eu não gostei desse negócio de barba não. Eu tenho só uma barbicha aqui, mas eu não gostei não. É um favor, graças a Deus que eu não tenho barba!
P: Mas você lidou bem com isso, com essa mudança? Ou você tinha vergonha?
E1: Ah, no começo a gente pensava muito, né?
P: A voz...
E1: É, mudou bem, porque no começo também eu pensava muito com relação a mulher... Eu pensava: "Puxa, como é que é? Como é que vai ser?" Eu ficava muito preocupado com isso, sabe? Uma relação assim... Não chegava em ninguém... Eu era sempre muito reservado quando era adolescente, mais novo. Por que? Por causa disso, né? Ficava meio naquela... Enquanto ficava gente andando pela sala, eu ficava no meu canto quieto lá... Eu, por exemplo, não tinha uma borracha. Eu olhava para o vizinho, olhava, olhava a borracha, mas eu não pedia. Eu não gosto dessas coisas. Você entendeu? E também sou muito cuidadoso com o que é meu.
P: E os primeiros namoros?
E1: Vamos ver se eu me lembro... No primeiro beijo a menina me agarrou, lá na S., a J. Eu era novinho... Desde pequeno, eu não sei, eu tenho olhos claros, meu cabelo era bem loirinho, grandinho, cortado surfista, boa aparência... Meu pai, graças a Deus, era aposentado pela prefeitura, uma aposentadoria boa, e ele continuava trabalhando. Entendeu? Então ele tinha dois serviços, era aposentado. Lá em casa tinha fartura, eu sempre tinha dinheiro no bolso... Sempre tive do bom e do melhor que o meu pai deu. Nunca deixou faltar nada. Ele cuidou dos filhos da minha mãe, deu nome para eles... Para você ver, o meu pai com os filhos da minha mãe... Meus irmãos por parte de mãe, ele criou, entendeu? Então eu sempre fui, não para me gabar, eu sempre fui cobiçado pelas meninas. "Ah, que não sei o que..." Onde estava uma, "Ah, que não sei o que...". Até na escola, uma vez, eu passava assim: "Tira os olhos, sua baranga! É meu namorado!". Coisas desse tipo chegaram a acontecer comigo. Sabe, umas coisas de olhar... Eu nunca gostei disso. Não gostava não: "Ou, vai dar baixaria? Pode sumir de perto de mim!". Eu espaventava já. Eu não gosto, como os outros, de aparecer. Isso não é comigo, não. Meu negócio era reservado. [...] Era igual o mineiro, vamos dizer, "come quieto". Sabe? [...]
P: Então, cara, como é que foi sua sexualidade?
E1: A minha sexualidade?
P: É, com relação às namoradas...
E1: É, eu era muito tímido, né? Mas depois mudou, daí. Era muito tímido, mas depois que eu tive conhecimento, eu saía com as meninas. Eu não tinha oportunidade porque eu não atingia a meta que ela queria. Porque eu sempre ficava contraído, vamos dizer... Eu ficava "Puxa, eu não vou deixar a mão na cintura, não..." Porque o homem tem o instinto de avançar, só que eu não tinha experiência. Então eu ficava: "Não, eu não vou.". Entendeu? Eu não tinha aquele negócio de adiantar a mão um pouco mais para baixo, um pouco mais para cima... Daí, até que aconteceu a primeira vez... Daí é aquele negócio, você vai conversando com pessoas que já tem mais experiência, essas coisas. Eles vão te falar: "Faz isso, faz aquilo". Daí você vai avançando, até chegar uma hora em que você está sem vergonha. Nesse sentido assim, mas não de modo que todo mundo veja. Não. Agora, vamos supor, ficava alguém, na época de escola, assim, no meio das pessoas... Eu não queria ver perto de mim, não.
P: Como foi para você desenvolver aquilo que é seu? Por exemplo, "Eu gosto disso, e não daquilo". A sua identidade, você, o seu jeito.
E1: Vamos supor, decidido no que eu quero e no que eu não quero?
P: Isso.
E1: Se eu quero, eu quero; se eu não quero, eu não quero!
P: Isso. Foi assim ou teve uma hora que você acordou para isso? "Não, eu não tenho que fazer o que os outros esperam".
E1: Ah, não. Vamos supor... Vamos ver se eu entro mais detalhadamente no que o Sr. está falando aí...
P: Quando você começou a distinguir o que é seu do que é dos outros. "Não, isso sou eu!", e você assumir isso.
E1: Então, vamos supor nesse caso... Aquilo que é meu... Você assumir, como assim?
P: Você assumir... Você não estar nem aí, se você é diferente...
E1: Ah tá! Isso aí eu nunca... Tipo assim, eu não esquentava a cabeça. Não, isso aí... Vamos supor, quando eu era novo eu tinha o que é chamado "medo", de você fazer alguma coisa e estar errado. Certo? Ah, então você não faz aquilo por que? "Ah, já apanhei... E agora, se eu faço aquilo outro... Tá errado também – eu vou apanhar". Hoje em dia se eu falar: "Ah, vou fazer um negócio ali". Eu tenho muita atitude... Não sei se a palavra certa é "atitude". Vamos supor: a pessoa tem medo... Como esses dias eu disse pro G: "Vamos fazer tal coisa". Ele falou: "Ah não, não tenho ordem". Eu falei: "Tô louco! Vai fazer isso aí e não vai matar ninguém. É para o bem de todos os outros... Vamos fazer!" Eu já jogo por esse lado. "Vamos fazer. Depois pode falar que foi comigo, que fui eu. Eu assumo". Entendeu? Eu pego e falo.
P: Mas, a identidade sua... Como é que vou dizer? Você chegar a uma noção de quem era você...
E1: Tipo assim: eu sou capaz disso, eu sou capaz daquilo...
P: Capaz... Eu tenho essas idéias, que são diferentes dos outros...
E1: Ah, entendi. Acho que desde adolescente eu... Eu tinha isso. Sempre fui determinado em certas áreas.
P: Adolescência em torno de que idade?
E1: Ah, de uns 16, 17 anos... Acho que foi a partir do momento em que comecei a conhecer tudo. Que eu comecei a conhecer as coisas do mundo assim... Baile... Eu comecei a ver tudo, foi onde eu comecei a falar: "Ah, isso eu vou fazer!", "Ah, eu não quero papo com aquilo, não". Ao mesmo tempo que eu comecei a ver a expansão do mundo eu comecei a ver quem eu era.
P: E você andava em grupo?
E1: Nunca gostei.
P: E trabalho e profissão? Você já trabalhou de que?
E1: Muitas coisas. É o Bombril – mil e uma utilidades. Eu desenvolvi rápido. Eu trabalhei em açougue... Vê como é diferente: eu já trabalhei em recondicionamento de válvula de botijão. Sabe a válvula de botijão? Eu ia, tirava... Troca de mola, pino, borrachinha... Você não acredita que tem todas essas pecinhas assim... Eu trabalhei com jato de areia. Você se machuca. O jato de areia, você pode se machucar se não souber mexer. Como eu lixava peça no esmeril, na palha de aço, como eu montava no meio das meninas... Fazia tudo na firma. Aonde ele me colocava, eu desenvolvia.
P: E você se deu bem lá?
E1: Sim. Eu não sei se trabalhei lá uns nove ou dez meses... Eu descobri que estava para falir. Daí eu fiz de tudo para ele me mandar embora. Eu sou decidido. Se eu quero, eu quero; se eu não quero também... "Não, vai falir e eu vou ficar na mão? É o primeiro emprego, mas eu já tenho noção. "Ficar aí e ter que entrar na justiça para poder receber?". Entendeu? Daí eu peguei e falei: "Manda embora, me manda embora!". Fiquei enchendo o saco até ele me mandar embora. Ele falou: "Não, não vou mandar você embora. Você é um bom funcionário", "Não, mas pode me mandar embora!" Daí acabaram as peças do serviço... Era uma chácara, tipo ali no C. Era uma chácara do [...].
P: Então faliu mesmo?
E1: Faliu! Mas você sabe que é difícil, né? E pede serviço, e eles são exigentes. Daí começaram a limpar a chácara – foice, enxada na mão... Eu falei: "O que? Não vou fazer!" Eu queria que ele me mandasse embora... Sentei embaixo da árvore. Ficava embaixo da árvore o dia inteiro. E os outros ficavam ralando. Eu queria que me mandassem embora... "Tô dando motivo. Então vou ficar parado recebendo...".
P: Aí ele decidiu?
E1: Não, daí um dia ele me chamou. Eu estava sentado embaixo do jataí, comendo jataí lá; ele deu a ré no carro e me chamou: "Vai trabalhar!" "Eu não vou trabalhar! Eu quero que o senhor me mande embora". Ele me olhou – "Você é um bom funcionário, rapaz. Você quer ser mandado embora?", "Quero", "Então você pode passar lá no escritório. Fazer o que? Você não quer trabalhar...". Aí ele me mandou embora. Pagou eu certinho... Trabalhei em açougue; arrumei confusão lá. Eu entrei como entregador. Fazia entrega de bicicleta. Sou bom pra caramba de pedalar. E sabe aquele cara que sabe a profissão, mas não quer deixar você aprender? Parece que a pessoa tem medo que você... Ele tá vendo que primeiro eu era entregador, depois fui fazer linguiça; já me colocaram para desossar carne... Tipo assim, o cara tem medo de eu crescer e ele perder o emprego. Parece... Representa isso. Você entende? Daí briguei com ele. Uma vez o cara entrou na frente, eu catei a faca, fui pro lado dele... Deus me livre! Tinha acabado de amolar a faca e me encheu o saco... Eu falei: "O que? Seu safado! Então espera aí!". Fui... "Pelo amor de Deus! Pelo amor de...", "Esse cara é um..."; falei um monte... Umas duas ou três vezes eu encontrei com ele. Daí até o... Eu sempre me dei bem com o patrão. Nessa parte eu sou comunicativo: não sou motivo de brincadeira – o sério é sério, vamos fazer ali no pé da risca... Entendeu? Daí ele pegou e falou assim, o J: "Olha...". Sabe onde é o açougue S, ali no Z? Trabalhei ali. Daí ele pegou e falou assim: "Oh, E1, você... Olha, vou dar dois dias pra você. Não vou descontar do salário. Olha pra você ver – não vou descontar do seu... Você pode ficar dois dias na sua casa de boa, descansando. Tô te dando. Descansa!". Daí eu peguei e saí. Dois dias. Falei: "Nossa! Que alívio! Ficar dois dias... Não vou sair do serviço não, e tal...". O dia que foi para eu voltar, cheguei lá, olhei no rosto do cara... Na hora fechei a cara e falei: "Não! Pode fazer minhas contas que eu não aguento olhar pra esse cara! Não aguento olhar pra ele!". Daí eu fui no escritório... "E aí, o que vamos fazer?", "C., eu faço um acordo e aí tá bom. Ficar aqui eu só perco... Só perco". Daí ele foi honesto comigo mais do que eu pensei. Foi bom porque graças a Deus eu trabalhei direito e nunca fiz nada de errado pra ele, né? Ou melhor, cheguei a fazer e ele não viu. Então, o que os olhos não vêem o coração não sente, né? Segundo o ditado... E ele pegou e falou: "Olha, vai lá no escritório e manda fazer a conta como se eu tivesse mandado você embora. Faz um acordo nesse valor. Nós cortamos a metade... Vê quanto dá lá, a gente faz um acordo". Fui lá, somei, e no dia que foi para eu voltar lá, falei: "Deu novecentos e pouco". Ele pegou e falou: "Ah, deu esse valor?", "Deu". Ele pegou, pôs a mão no caixa e pagou tudo. [...] Eu sou desse tipo: se eu discuto com você agora, agora eu tô mudando o meu jeito aqui, né? Mas é difícil, hein?! Não olho pra sua cara... Posso até falar com você, mas não olho pra você. Fechado mesmo. E até o meu patrão pegou e falou assim: "Você tem certeza que você quer?", "Quero". Então ele pegou e falou: "Então vai lá, vamos fazer a conta como se eu fosse mandar você embora, e o que der, a gente faz um acordo de valor". Quando eu falei o valor pra, ele falou: "Toma aqui, oh. Você me ajudou muito". Eu não volto atrás de onde eu saio também. Não tenho isso de... Tem gente que sai, volta, sai, volta... Eu... "Não, saí uma vez... O que eu vou fazer lá?" Eu penso dessa maneira.
P: Sabe uma coisa que pode te ajudar nisso aí? É você expressar para a pessoa o que ela fez você sentir. Entendeu? Mas isso não precisa ser de modo violento. Pode ser falado de modo até tranquilo. Pega, chega pra pessoa... É difíciL! (risos) É difícil, de qualquer maneira! Você chega pra pessoa: "Oh, fulano..."
E1: Eu só vou guardando... Entendeu? Só vou guardando. Uma hora eu chego e falo: "Não dá mais pra mim". Aí acabou. Isso é o que me estraga totalmente.
P: Mas assim... Você chega pra pessoa e diz: "Oh, fulano, lembra quando você falou assim, assim, assado... Você falou isso pra mim assim ontem. Pois é, eu me senti dessa forma. Me senti humilhado, tá? Me senti pra baixo pra caramba! Pô... Não concordo por causa disso, disso, disso..." E aí vai... Entendeu? É uma coisa... (risos) É complicado! Você sente vergonha? Sente o que?
E1: Não é vergonha, não. Ah, sei lá... Eu fico pensando assim: "Poxa, eu tô fazendo do bom e do melhor, e não tá bom? Então vai fazer!" Entendeu? Porque eu, quando pego pra fazer alguma coisa, eu gosto de fazer bem. Ou então eu não gosto e falo: "Eu não vou fazer. Eu não vou acertar fazer isso aí". Entendeu? Então, eu procuro dar o máximo de mim e às vezes a pessoa chega e: "Ah...". Sabe? Você vê que ela despreza você, vamos dizer assim. Não sei se é a palavra certa. Despreza o que você fez ali. Ah, cara, eu não quero nada não. É complicado! Sabe? É como se fosse um rancor. Eu vou guardando mesmo... Vou guardando... E pra mim não vai fazer falta... Tipo assim: não fede e não cheira. Ele no canto dele e eu no meu. Complicado! (risos)
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