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"Os Grupos de Acolhimento não precisam ter meta, propósito ou significado diante de imagens e vivências trazidas pelos pacientes. O importante é acolher esses conteúdos frequentemente assustadores e permitir que novos trajetos na psique sejam trilhados" (OLIVEIRA et al, 2003, p. 229). O indivíduo oscila nessas emoções e movimenta as fixações originadas nas experiências pessoais, o que possibilita vivenciar outras escolhas que não a dependência aprisionadora. Ocorre uma ampliação do repertório do paciente que o ajuda a elaborar e integrar suas difíceis vivências, estruturando progressivamente sua personalidade. Certas atividades o auxiliam a sentir prazer também no cotidiano, o que é fundamental. Mas a simples verbalização pode não ser suficiente.
Por isso, além das técnicas tradicionais de psicoterapia, também se recorre a técnicas de desenho, pintura e escultura como expressão das imagens do inconsciente, o que permite sua elaboração de sentido e integração. Segundo os autores, Jung (1987a) afirma que produções como essas transcendem a arte: tratam-se do poder da vida sobre ele. O indizível é traduzido em formas visíveis, de maneira tosca e desajeitada. Um paciente dele percebeu que pintar o livrava de estados psíquicos aversivos e aprendeu a usar a atividade sempre que piorava. Ao pintar, o paciente plasma a si mesmo e expressa o que vai dentro de si, na forma que Jung (1987a) chama de "fantasia ativa", e mais tarde "imaginação ativa".
No Grupo de Argila e Pintura, após um breve relaxamento, os participantes se expressam livremente através da argila e da pintura durante cerca de trinta minutos. Então são convidados a observarem as suas próprias produções e as dos colegas. Dão títulos de uma ou duas palavras às suas obras. Cada um passa a expor o que fez, qual era sua intenção, o que sentiu ao fazer e o grupo comenta. Na discussão, temas centrais que sensibilizam o grupo todo começam a tomar forma. São tratados como símbolos.
Segundo Jung (1987a), há uma relação de compensação entre consciência e inconsciente e o inconsciente sempre procura complementar a parte consciente da psique, acrescentando o que falta para a totalidade. O inconsciente gera símbolos compensatórios que devem ser assimilados e integrados para serem eficazes. [...] Os coordenadores guiam a discussão procurando amplificar os símbolos que vão surgindo. A partir da discussão, as obras vão adquirindo significado, e os conflitos, mais sentidos, passando a ser mais toleráveis. Jung (1987a) já afirmara que a atividade meramente pictórica não bastava, sendo necessário compreender intelectualmente e emocionalmente as imagens a fim de integrá-las na consciência. (OLIVEIRA et al, 2003, p. 231-232)
As imagens são entendidas através das associações do autor, que é convidado a relacionar sua obra ao contexto peculiar de sua vida. Desse modo a emoção flui mais facilmente e os indivíduos compartilham a vivência um do outro, aprofundando a discussão e mobilizando os pacientes. E quando há resistência em se falar da própria produção, é levado em conta que as "imaginações ativas" também fazem efeito quando não interpretadas, se experimentadas e sentidas com extrema vivacidade. Isso porque existe aí um diálogo dos conteúdos inconscientes com a consciência, o que produz uma modificação em ambas as instâncias.
O conflito do dependente passa a ser suportável uma vez que é acolhido e a angústia compartilhada. Além disso, pode ser compreendido, e isso produz paz. O indivíduo sai do isolamento e do desespero. "O grupo às vezes dá nome para aquilo que o indivíduo não consegue nomear e o indivíduo, com o tempo, começa a falar de si e de seus sentimentos mais livremente" (OLIVEIRA et al, 2003, p. 233).
Nota-se uma evolução na produção – que retrata o processo psíquico – daqueles que frequentam mais assiduamente o grupo. As figuras arquetípicas ganham aos poucos contornos humanos.
Por meio das imagens sugeridas pela argila ou pelas pinturas, histórias são contadas. Algumas vezes são apenas cenas isoladas que o grupo tem o privilégio de compartilhar. Quando o participante é mais assíduo, pode-se compartilhar de um processo, torcer pelo colega, sentir a sua dor, comemorar suas vitórias e se contagiar com suas alegrias. A continuidade permite que se crie uma intimidade entre os participantes que acompanham o processo. Ao final da sessão, muitas histórias se passaram, mas há um traço comum que une o grupo, a solidariedade e o respeito pelo processo do outro, pela sua singularidade. (OLIVEIRA et al, 2003, p. 233-234)
Os autores passam a ilustrar a evolução de um caso através das produções de uma paciente alcoolista, que permaneceu por um ano e oito meses.
Ora, mas qual a relação dessas técnicas expressivas ou "imaginações ativas", como chamava Jung (2000), com as funções estudadas? É que, conforme Von Franz (1990), as funções inferiores são trabalhadas na imaginação ativa de acordo com a função superior do indivíduo. No caso do intuitivo, há uma necessidade de se fixar as produções oriundas do inconsciente na argila ou na pedra, fazendo-a materialmente visível, "real", de alguma forma. O sujeito terá de lidar diretamente com a matéria, alcançando sua função inferior – no caso, a sensação. Como exemplo, a autora expressa que quando um tipo pensamento trabalha o sentimento (sua função inferior), ele irá geralmente recorrer a formas exóticas e primitivas de dança e através do forte colorido de suas pinturas, que expressam as fortes índoles de seus sentimentos.
Já um tipo perceptivo (ou sensação) trabalhará sua intuição contando histórias e criando fantásticos romances, ou pintando de forma rápida, colocando a imaginação para funcionar. A autora descreveu como uma paciente sua se empenhava na imaginação ativa levando três semanas para terminá-la, pois se esforçava em corrigir, aperfeiçoar e refinar os detalhes. Ela não pintava os conteúdos do seu inconsciente tal qual estes se apresentavam. Von Franz (1990) então a orientou a pintá-los rapidamente, com as cores que se apresentassem, mesmo que imperfeitas, e as colocasse logo no papel. "Ela entrou em pânico e disse que não conseguiria, que era impossível. Mostrar-lhe isso foi como tê-la espancado, ela não suportaria fazê-lo e continuou a pintar do seu modo usual. Repetidamente ela perdeu a vinda da intuição inconsciente, pois não sabia registrá-la tal como vinha [...]" (VON FRANZ, 1990, p. 49). Se se tentar forçar um perceptivo introvertido a assimilar sua função inferior (intuição) de forma muito rápida, acabará tendo sintomas de vertigens e enjôos. É como se fosse tirado da sua base na realidade, à qual está apegado.
Percebe-se, portanto, a importância da disponibilidade de variadas atividades terapêuticas, como ocorre no PROAD, pois isso abarca uma gama maior de funções psicológicas a serem trabalhadas, e, consequentemente, de indivíduos de diferentes estágios de desenvolvimento de suas funções psíquicas.
OBJETIVO GERAL
Verificar a relação entre a dependência química e as funções da consciência intuição e sensação.
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
Investigar como as funções intuição e sensação operam na personalidade do dependente químico;
Verificar de que forma as funções mencionadas são influenciadas ou influenciam o comportamento do indivíduo em uma instituição de recuperação.
AMBIENTE
O estudo de campo se efetuou em uma Casa de Recuperação da cidade de Taubaté-SP. A instituição atende a uma média de vinte e cinco a trinta pacientes por mês, com uma equipe de funcionários e voluntários recuperados, atende há dez anos. Iniciou-se com uma chácara, que foi adaptada com o tempo.
Sua estrutura geral consiste em um salão que serve de templo e local para outras reuniões e palestras, marcenaria, escritório, cozinha, refeitório, dispensa e duas casas que servem como alojamento dos internos. Existem veículos (caminhões e ônibus) que foram doados pela prefeitura de Taubaté. Além dessas estruturas básicas, outras estruturas voltadas para oferecimento de maior conforto foram construídas ao longo do tempo: o calçamento das ruas, os quiosques, a represa, o aquário, etc., tudo construído com esforço dos internos.
A desintoxicação ocorre, segundo a direção, através da ocupação com atividades físicas de manutenção e construção de estruturas da organização e do suor decorrente delas. A instituição é eminentemente religiosa e doutrinária e os internos são solicitados diariamente a levar uma vida espiritual, de acordo com os preceitos do cristianismo evangélico. Em todos os lugares podem-se encontrar placas com dizeres bíblicos que incitam atitudes e comportamentos opostos à sujeição às drogas. A disciplina com horários e regras é bem rígida e todas as atividades são antecipadamente planejadas, de acordo com as impressões do pesquisador. O inesperado não é admitido. O ambiente passa nitidamente a sensação de simplicidade, que atinge o rústico em certos lugares, e muita tranquilidade.
PARTICIPANTES
Os dezoito participantes estavam incluídos nos seguintes critérios: gênero masculino; escolaridade irrestrita; em atendimento na Casa de Recuperação. Foram selecionados dois internos para a entrevista de anamnese através dos critérios descritos a seguir.
O teste QUATI requer uma escolaridade superior à 7ª série do ensino fundamental. No entanto, para aplicação desta pesquisa, que incluiu irrestritamente qualquer condição de escolaridade, o pesquisador esclareceu cada questão aos participantes, dando maior atenção àqueles que tinham uma escolaridade menor que a requerida, e aplicou pessoalmente o teste aos analfabetos, com a leitura das questões e a utilização de uma linguagem mais simples para sua explicação. Isto visou obter o maior índice possível de participação na pesquisa.
CRITÉRIOS DE INCLUSAO NA AMOSTRA
Nenhum sujeito selecionado para o teste se encontrava em crise de abstinência, segundo a direção da casa. Através do teste QUATI os participantes foram classificados em tipos psicológicos e foram solicitados dois voluntários dos tipos sensação e intuição – funções estudadas neste trabalho – para serem entrevistados. A solicitação decaiu apenas sobre o critério da função e não das atitudes introversão ou extroversão.
INSTRUMENTOS
QUATI – Questionário de Avaliação Tipológica – versão II, concebido por Zacharias (2000). O QUATI foi desenvolvido no Brasil, no Instituto de Psicologia da USP, e é totalmente adaptado para o brasileiro e sua cultura, podendo ser utilizado por sujeitos com escolaridade superior à 7ª série do ensino fundamental. Objetiva avaliar a personalidade através de seleção de comportamento efetuado em diferentes situações. Baseado na teoria dos tipos psicológicos de Jung, decorreu da necessidade de se ter um instrumento de avaliação tipológica em português e adequado à realidade brasileira. Pode ser utilizado em Seleção de Pessoal, Avaliação de Potencial, Orientação Vocacional, Psicodiagnóstico e etc.
O sujeito recebe um caderno com 93 questões que devem ser respondidas optando-se por "a" ou "b". Suas respostas deverão ser marcadas na folha de respostas que será entregue ao sujeito juntamente com o caderno. O teste foi aplicado em 370 alunos do curso de Administração de Empresas e Secretariado Executivo de Universidades da cidade de São Paulo. A faixa etária desta população estava entre 17 e 24 anos. Foi entregue à cada sujeito uma listagem com as definições dos 16 tipos de personalidade, conforme as definições que o próprio teste propõe. Cada um dos 16 tipos apresentam características diferentes de personalidade que são definidas por 4 letras e código. Foi pedido para que cada Sujeito lesse as descrições e indicasse na folha de respostas, dois tipos que ele achasse mais parecido com sua personalidade. A seguir foram aplicados nesses sujeitos o Teste QUATI para se definir o tipo psicológico do Sujeito e verificar a concordância ou não com a escolha por ele feita anteriormente dos tipos. Os índices de correlação variaram entre 0,23 e 0,44. O método utilizado foi a comparação direta dos resultados do teste e dos resultados do Questionário que o Sujeito respondeu. (VETOR, 2008)
Entrevista de anamnese, baseada em Dalgalarrondo (2000), que, em um primeiro momento, será parcialmente estruturada, enfocando uma série de dados da história do(s) sujeito(s); em um segundo momento, se conduzirá de forma focalizada, de acordo com Gil (1996), salientando o tema do relacionamento do(s) sujeito(s) com a droga (Apêndice A).
Aparatos eletrônicos: MP3 player (as entrevistas foram gravadas e transcritas na totalidade e foram deletadas).
PROCEDIMENTO
No primeiro encontro houve a aplicação do teste QUATI, concebido por Zacharias (2000), que classificou os dezoito sujeitos nos tipos psicológicos. No segundo e terceiro encontros, dois sujeitos se apresentaram para entrevista psicológica, os quais eram do tipo intuitivo e sensação – vide Apêndice A. Sobre estes se fez um estudo de caso. O único critério para a exclusão de sujeitos da pesquisa foi a desistência por vontade própria destes.
TRATAMENTO DOS DADOS
Os dados obtidos com no máximo dois sujeitos receberam tratamento interpretativo de acordo com a psicologia analítica. Foram analisadas a dinâmica das funções da consciência em interação com as impressões psíquicas causadas pelas drogas. A discussão se norteou, portanto, pela relação dos efeitos das drogas em interação com as funções estudadas. Daí os recortes das entrevistas pautarem-se por tudo o que estivesse relacionado, de forma direta ou indireta, às drogas e às funções dos entrevistados.
Para a discussão, os capítulos foram divididos de forma a abordar primeiramente a inserção dos tipos psicológicos estudados na instituição, passando-se à abordagem da relação entre a função superior e a dependência e vice-versa, ao papel das funções auxiliares nesse processo e, enfim, a abordagem da introversão.
ASPECTOS ÉTICOS
Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade de Taubaté e seguiu fielmente o contido na Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde, como descrito a seguir.
Foi solicitada uma carta de autorização à Casa de Recuperação escolhida para a realização da pesquisa antes da aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unitau. Todos os procedimentos de aplicação de instrumentos foram executados nesse centro de recuperação.
Mediante a permissão acima, os indivíduos que aceitaram participar da pesquisa assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Antes da aplicação dos instrumentos foram esclarecidos os objetivos da pesquisa e sua natureza confidencial.
Outros métodos de pesquisa poderiam incluir somente pesquisas em livros ou pura observação, mas seriam incompletos ou não tão definitivos quanto este pretendeu ser, nas condições disponíveis. Os pesquisadores se dispuseram a prestar esclarecimentos aos sujeitos da pesquisa sobre quaisquer aspectos e em qualquer tempo, disponibilizando telefones e endereços eletrônicos.
Não houve qualquer tipo de riscos, prejuízos, desconforto e lesões que pudessem ser provocados pela pesquisa, pois esta foi composta apenas de entrevistas e aplicação de testes psicológicos. Não houve qualquer forma de despesa para os sujeitos para a sua participação.
O maior benefício, a longo prazo, é que a participação dos sujeitos poderá ajudar no desenvolvimento de novos conhecimentos que poderão eventualmente beneficiá-los e a outras pessoas no futuro. Poderão surgir novos tipos de tratamento mais indicados para certas pessoas.
O sigilo de todos os assuntos abordados nas entrevistas e do resultado do teste psicológico foi e é absoluto. Para isso, a manipulação de todos os resultados das entrevistas e testes, assim como sua correção, foi exclusiva do pesquisador e de seu assistente, em local privado. Os resultados deste estudo poderão ser usados para fins científicos, mas o sujeito não será identificado por nome. Garantido também foi o seu direito de retirar o consentimento ou participação na pesquisa em qualquer tempo, sem qualquer prejuízo do processo terapêutico em andamento no centro de tratamento em que se encontra.
Não houve critérios para suspensão ou encerramento da pesquisa.
Quaisquer custos decorrentes da pesquisa foram de responsabilidade do pesquisador, não havendo, dessa forma, previsão de ressarcimento de gastos.
A propriedade das informações coletadas na pesquisa é do pesquisador responsável.
ANÁLISE QUANTITATIVA
As entrevistas em que se baseia o estudo de caso referido na discussão encontram-se totalmente transcritas nos Apêndices "B" e "C". Pequenas alterações foram efetuadas com a finalidade de se evitar repetições e se fazer algumas correções da língua portuguesa, embora se haja conservado certos maneirismos típicos dos interlocutores. Nomes de lugares, de pessoas e de outros elementos que pudessem denunciar a identidade dos entrevistados foram substituídos por letras aleatórias ou por "[...]". Os dois entrevistados confirmaram as descrições tipológicas que se encontram na discussão.
Tabela 1 – Resultado geral da aplicação do teste QUATI
Ord |
E |
I |
R1 |
In |
Ss |
R2 |
Ps |
St |
R3 |
Resultado |
||
1 |
21 |
10 |
11E |
18 |
13 |
5In |
14 |
17 |
3St |
EInSt |
||
2 |
16 |
15 |
1E |
18 |
13 |
5In |
19 |
12 |
7Ps |
EPsIn |
||
3 |
25 |
6 |
19E |
15 |
16 |
1Ss |
18 |
13 |
5Ps |
EPsSs |
||
4 |
21 |
10 |
11E |
13 |
18 |
5Ss |
15 |
16 |
1St |
ESsSt |
||
5 |
21 |
10 |
11E |
19 |
12 |
7In |
11 |
19 |
8St |
EStIn |
||
6 |
18 |
12 |
5E |
17 |
14 |
3In |
9 |
21 |
12St |
EStIn |
||
7 |
21 |
10 |
11E |
15 |
16 |
1Ss |
10 |
19 |
9St |
EStSs |
||
E1 |
12 |
18 |
6I |
18 |
13 |
5In |
16 |
15 |
1Ps |
IInPs |
||
9 |
11 |
20 |
9I |
18 |
13 |
5In |
20 |
11 |
9Ps |
IPsIn |
||
10 |
15 |
16 |
1I |
16 |
15 |
1In |
18 |
13 |
5Ps |
IPsIn |
||
11 |
8 |
23 |
15I |
14 |
17 |
3Ss |
19 |
12 |
7Ps |
IPsSs |
||
12 |
7 |
24 |
17I |
7 |
24 |
17Ss |
10 |
21 |
11St |
ISsSt |
||
13 |
9 |
22 |
13I |
8 |
23 |
15Ss |
14 |
17 |
3St |
ISsSt |
||
14 |
9 |
22 |
13I |
8 |
23 |
15Ss |
14 |
17 |
3St |
ISsSt |
||
15 |
13 |
18 |
5I |
12 |
19 |
7Ss |
13 |
18 |
5St |
ISsSt |
||
E2 |
6 |
14 |
8I |
3 |
5 |
2Ss |
5 |
7 |
2St |
ISsSt |
||
17 |
15 |
16 |
1I |
14 |
16 |
2Ss |
14 |
16 |
2St |
ISsSt |
||
18 |
14 |
14 |
0I |
17 |
14 |
3In |
11 |
15 |
4St |
IStIn |
Legenda: E1 e E2 – Entrevistado 1 e 2 / R – Resultado (seguido de sua ordem) At – Atitude / FP – Função Principal / FA – Função Auxiliar
E – Extrovertido / I – Introvertido / In – Intuição / Ss – Sensação / Ps – Pensamento / St – Sentimento
Em destaque encontram-se os voluntários para a entrevista de anamnese
A Tabela 1 foi ordenada alfabeticamente através da última coluna. Os nomes dos participantes não aparecem para não comprometer sua identidade. Os resultados dos dois entrevistados aparecem em negrito, no lugar dos respectivos números de ordem, como E1 (Entrevistado 1) e E2 (Entrevistado 2).
Tabela 2 – Distribuição atitudes da consciência obtidas na aplicação do QUATI
Atitude |
Nº |
% |
|
I |
11 |
61,1 |
|
E |
7 |
38,9 |
Legenda: E – Extrovertido / I – Introvertido
A Tabela 2 expressa apenas a proporção das atitudes – extrovertida ou introvertida – dos indivíduos pesquisados. Preponderam os indivíduos introvertidos.
Tabela 3 – Distribuição das funções da consciência obtidas na aplicação do QUATI
Função |
N° FP |
% FP |
Ss |
7 |
38,9 |
Ps |
5 |
27,8 |
St |
4 |
22,2 |
In |
2 |
11,1 |
TOTAL |
18 |
100,0 |
Legenda: FP – Função Principal / FA – Função Auxiliar
Ss – Sensação / Ps – Pensamento / St – Sentimento / In – Intuição
A tabela acima descreve apenas os resultados com relação às funções principais (FP), isto é, as mais usadas em geral pelos sujeitos pesquisados. Aqui, elas não estão descritas como combinadas às funções auxiliares, mas de forma isolada, para se ter uma idéia da proporção de tipos psicológicos em relação apenas às quatro funções básicas.
Tabela 4 – Distribuição tipológica por tipo de função principal obtida na aplicação do QUATI
Atitude/ |
Nº FP |
% FP |
Função |
|
|
ISs |
6 |
33,3 |
ESt |
3 |
16,7 |
IPs |
3 |
16,7 |
EPs |
2 |
11,1 |
EIn |
1 |
5,6 |
ESs |
1 |
5,6 |
IIn |
1 |
5,6 |
ISt |
1 |
5,6 |
TOTAL |
18 |
100,0 |
Legenda: FP – Função Principal / E – Extrovertido / I – Introvertido / In – Intuição / Ss – Sensação / Ps – Pensamento / St – Sentimento
A Tabela 4 descreve a proporção das duas atitudes da consciência (introversão ou extroversão) enquanto associadas às quatro funções básicas, o que totaliza oito tipos psicológicos tais como Jung (1991b) descreveu. Percebe-se que o tipo sensitivo introvertido (ISs) lidera com o dobro de internos em relação ao segundo tipo psicológico mais frequente (sentimento extrovertido - ESt).
Tabela 5 – Distribuição tipológica obtida na aplicação do QUATI
Tipos |
Quant |
% |
ISsSt |
6 |
33,3 |
EStIn |
2 |
11,1 |
IPsIn |
2 |
11,1 |
EInSt |
1 |
5,6 |
EPsIn |
1 |
5,6 |
EPsSs |
1 |
5,6 |
ESsSt |
1 |
5,6 |
EStSs |
1 |
5,6 |
IInPs |
1 |
5,6 |
IPsSs |
1 |
5,6 |
IStIn |
1 |
5,6 |
EInPs |
0 |
0,0 |
ESsPs |
0 |
0,0 |
IInSt |
0 |
0,0 |
ISsPs |
0 |
0,0 |
IStSs |
0 |
0,0 |
TOTAL |
18 |
100,0 |
Legenda: E – Extrovertido / I – Introvertido / In – Intuição / Ss – Sensação / Ps – Pensamento / St – Sentimento
A Tabela 5 indica a distribuição das atitudes em associação às funções superiores (mais usadas pelos indivíduos) e às funções auxiliares (segunda mais usada), configurando dezesseis tipos psicológicos, como estudados por Zacharias (2000).
Tabela 6 – Distribuição das funções principal e auxiliar obtida na aplicação do QUATI
Tipos |
Quant |
% |
SsSt |
7 |
38,89 |
PsIn |
3 |
16,67 |
StIn |
3 |
16,67 |
PsSs |
2 |
11,11 |
InPs |
1 |
5,56 |
InSt |
1 |
5,56 |
StSs |
1 |
5,56 |
SsPs |
0 |
0,00 |
TOTAL |
18 |
100,00 |
Legenda: In – Intuição / Ss – Sensação / Ps – Pensamento / St – Sentimento
Na Tabela 6 há uma distribuição das funções principais dos sujeitos em combinação com a função auxiliar (segunda mais usada).
InPs (E1) |
SsSt (E2) |
||||||||||||||||||||||
In |
|
Ps |
|
Ss |
|
St |
|
Quadro 8 – Características específicas das funções dos entrevistados - Legenda: E1 e E2 – Entrevistados 1 e 2
Fonte: adaptado de Zacharias (1995)
O Quadro 8 refere de forma tópica às principais características das funções principal e secundária dos tipos dos entrevistados, o que fornece de forma bastante sintética os seus traços gerais. Deve-se atentar ao fato de que o uso preponderante corresponde à função principal e que a função auxiliar subordina-se a ela (JUNG, 1991b).
DESCRIÇAO TIPOLÓGICA DO ENTREVISTADO 1 (E1) – INTROVERTIDO, INTUITIVO, PENSAMENTO
Segundo Zacharias (2000 e 1995), os introvertidos com função principal intuição, função auxiliar pensamento, cuja função inferior é a sensação, são inovadores incansáveis, em pensamento e em ação. Confiam na intuição para obter o significado real, as relações verdadeiras dos objetos e das pessoas e as possibilidades futuras das informações recebidas. Tendem a desconsiderar as idéias das autoridades ou da opinião pública sobre essas coisas. Os problemas apenas os estimulam: o impossível apenas tardará um pouco mais. Dos tipos psicológicos são os mais independentes, e às vezes extremamente teimosos. A eficiência própria e alheia é muito valorizada.
Seguros das suas inspirações, desejam intensamente que sejam realizadas, aceitas e utilizadas por outros, e não pouparão tempo ou esforços para isso. Por serem em geral decididos e perseverantes, poderão conseguir com que muitos trabalhem como eles. Apesar da sua intuição, que tende a utilizar uma percepção global, os padrões gerais de uma situação, são capazes de focalizar sua atenção em detalhes para realizarem sua visão, pois sua função auxiliar os ajuda nisso. Para Zacharias (2000), além disso, com metas tão claras, não se inquietam com possíveis obstáculos. Por isso precisam aprender a ouvir outras opiniões.
Por desconsiderarem os valores dos sentimentos (a função auxiliar é pensamento), tenderão a ignorá-los nos outros. Daí se espantarem com a irritação e a força da oposição às suas idéias. Por isso também, esses sentimentos ganham cada vez mais força no inconsciente, manifestando-se de formas e em ocasiões impróprias.
A sensação inferior desse tipo o leva à dificuldade em "perceber as necessidades do corpo e em controlar os seus apetites" (VON FRANZ, 1990, p. 55).
O quadro subsequente procura relacionar algumas expressões subtraídas da entrevista à intuição, de forma a demonstrar, mais uma vez, como E1 opera através de sua função principal. As descrições da função foram extraídas do Quadro 4, do texto acima, ou de outras referências indicadas no mesmo.
EXPRESSÕES DE E1 |
INTUIÇAO (In) |
|
"Só de pensar me dá aflição, sabe? Já começa: "Puxa! Ela não vai me querer... Será que vai?". E o que seria só um pensamento já começa a gerar aquilo ali. E vai indo... E cada vez vou pensando mais coisas, vou pensando mais coisas... E vai acelerando..." |
|
|
"Por várias vezes eu varava a noite usando droga, e ia trabalhar. Vinha... Às vezes cansava, às vezes não. Vamos supor: às vezes tinha varado a noite usando droga. Trabalhava. Varava a noite de novo; trabalhava." |
|
|
"P: Você já trabalhou de que?" E1: "Muitas coisas. É o Bombril – mil e uma utilidades." |
|
|
"Eu, por exemplo, não tinha uma borracha. Eu olhava para o vizinho, olhava, olhava a borracha, mas eu não pedia. Eu não gosto dessas coisas. Você entendeu? E também sou muito cuidadoso com o que é meu." "Vou quebrar a cara. Eu sei que [...] Mas não vou pedir." |
|
|
"Eu descobri que estava para falir. Daí eu fiz de tudo para ele me mandar embora. Eu sou decidido. Se eu quero, eu quero; se eu não quero também..." "Daqui a pouco eu já tô: "Ah!". Daqui a pouco eu tô olhando pra cá e pra lá... A pá tá aqui, que eu tô querendo pegar e vou dez vezes de lá para cá e não sei o que tô fazendo." |
|
|
"Porque eu, quando pego pra fazer alguma coisa, eu gosto de fazer bem. Ou então eu não gosto e falo: "Eu não vou fazer. Eu não vou acertar fazer isso aí". Entendeu? Então, eu procuro dar o máximo de mim." |
|
|
P: "E há quanto tempo você está aqui?" E1: "Domingo faz um mês e quinze dias... Eu entrei dia [...]." (Uma semana após a entrevista, E1 desistiu do tratamento.)
|
|
Quadro 9 - Comparação de expressões de E1 com as características de seu tipo psicológico
O esquema seguinte representa, aproximadamente, como é a configuração psíquica das funções de E1:
Figura 2 – Configuração das funções psíquicas de E1
Fonte: baseado em Zacharias (1995)
Percebe-se aqui como a função superior – intuição – é a mais distante do inconsciente, devido à alta diferenciação e operacionalidade alcançada. O pensamento é a segunda função mais diferenciada, devido à proximidade maior do inconsciente. Isso denota, segundo Jung (1991b), uma habilidade menor em se lidar com as idéias do que com as possibilidades, com as ligações dos pensamentos que independem do raciocínio e da lógica, mas que constrói novos sentidos, cria novos elementos a partir dos antigos. A sensação é a função mais distante da consciência e é inferior – a quarta na ordem em relação à consciência, dando sinais de inabilidade em se lidar e se ater às impressões dos sentidos. O sentimento também não está consciente, embora esteja mais perto desse plano do que a sensação, e constitui a terceira função na ordem de diferenciação.
DESCRIÇAO TIPOLÓGICA DO ENTREVISTADO 2 (E2) – INTROVERTIDO, SENSITIVO, SENTIMENTAL
Os introvertidos, de função principal sensação, de função auxiliar sentimento, cuja função inferior é a intuição, "são extremamente confiáveis e capazes de aceitar responsabilidades que vão além de sua obrigação. Costumam ter um respeito completo, realista e prático por fatos concretos" (ZACHARIAS, 2000, p. 35). Por isso, ainda segundo esse autor, quando percebem que é preciso fazer alguma coisa, em geral pensam a respeito e decidem contribuir. Mostram-se confiáveis e sensatos. Eles lembram e usam um grande número de fatos, e se importam com sua precisão, apreciando que sejam apresentados de forma bem clara. Raramente expressam no semblante suas emoções, parecendo muito calmos mesmo sob emergências. A intensidade de suas reações é sentida apenas no íntimo, e normalmente são imprevisíveis.
Zacharias (2000) os descreve como perfeccionistas, cuidadosos, esforçados e muito pacientes com procedimentos e detalhes. Têm capacidade para seguir todos os passos necessários para se executar um projeto. Donde contribuem muito para estabilizar situações e pessoas. Não são impulsivos, mas quando engajados em uma situação, não se distraem ou se desencorajam. Só desistem se convencidas por experiência própria. Mostram-se consistentes e conservadoras, tomando conhecimento de todos os fatos necessários que apóiem sua apreciação e as decisões a tomar com relação à situação. Daí sua tendência a comparar os problemas presentes com os que já enfrentaram.
Essas pessoas, quando da "sua utilização da função sentimento para lidar com o mundo que as cerca é muito evidente, pois são capazes de se mostrar bondosas, compassivas, diplomáticas e genuinamente interessadas nas outras pessoas; podendo ajudar muito aqueles que delas venham a necessitar" (ZACHARIAS, 2000, p. 36).
Se não desenvolverem sua função auxiliar (sentimento) adequadamente, terão problemas em julgar propriamente o mundo, fechando-se dentro de si mesmas, focalizando sua atenção tão somente nas impressões oriundas dos sentidos (ZACHARIAS, 2000).
Sua dificuldade com sua intuição inferior, de acordo com Von Franz (1990), é que não conseguem assimilar suas fantasias internas, devido à necessidade de precisão e lentidão da função consciente. "A intuição vem como um raio e, se se tentar exprimi-la, ela irá embora!" (VON FRANZ, 1990, p. 48). Ainda, para essa autora, suas intuições são geralmente de qualidade sinistra, daí serem pessimistas e negativas, se não forem trabalhadas.
O quadro seguinte relaciona a função sensação a algumas expressões de E2. Demonstra-se, assim, como E2 opera em sua função principal. As descrições da função foram extraídas do Quadro 4, do texto acima, ou de outras referências indicadas no mesmo.
EXPRESSÕES DE E2 |
SENSAÇAO (Ss) |
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"Todo dia a gente tinha relação. N... N... Era gostoso." |
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"Começava a se masturbar, a sentir uma sensação... Criava uma mulher na mente pra você desejar que ela estaria com você, e você entrando a ela e ela fazendo seu desejo." |
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"Difícil você ver uma mulher e ter uma relação com ela, e saber que a mulher já teve uma relação com outro." |
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"E2: É, viajar... Assim, tipo você sair da cidade e viajar pra outro lugar, ir numa ilha, num local... Então, ali onde você passa uma semana, duas semanas fumando ela..." |
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"É uma alegria de você não usar mais e todo dinheiro que você tem dura meses, dura anos... É uma sensação legal, algo gostoso, né? Dinheiro que você poderia gastar em um mês, você gasta em dois, três meses... Dinheiro que você poderia gastar em dois, três dias, você gasta em um mês..." |
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"Você praticar é uma coisa, ver é outra. Praticar é uma outra emoção. Agora, ver é outra. Não é a mesma emoção. Você tá utilizando o seu corpo a um, a algo... Que utiliza junto com você. Que é praticar. Agora o ver já não vem muito no caso. O ver é só pra ver mesmo." |
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"A mulher pode vestir roupa normal, ele consegue ver a mulher nua. Que ele conheceu a parte humana e física da mulher: de frente, de costas e de lado. Correto? Então a mente dele, ele deseja... Ele olha pra mulher, e ele vê ela nua – só de calcinha e sutiã." |
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"P: Há quanto tempo você usou todas essas drogas? [...] E2: Faz, dois anos e meio."
E2 está há dois anos e meio na Casa
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Quadro 10 - Comparação de expressões de E2 com as características de seu tipo psicológico
A figura a seguir representa esquematicamente a configuração psíquica das funções de E2:
Figura 3 – Configuração das funções psíquicas de E2
Fonte: baseado em Zacharias (1995)
Neste esquema a sensação é a função superior e a mais distante possível do inconsciente, caracterizando, tudo conforme Jung (1990b), uma maior habilidade em se lidar com as impressões dos sentidos de forma mais precisa, de se interpretá-las, de se atentar a elas. Em segundo lugar aparece a função sentimento, mais próxima do inconsciente que a sensação, indicando uma operacionalidade menor do sujeito em lidar com seus conteúdos. Acaba ficando subordinada ao funcionamento da função superior, que deixará os sentimentos agirem na medida em que servem às impressões subjetivas da sensação. A intuição é a quarta função na ordem de desenvolvimento, e representa sua maior autonomia em relação à vontade do indivíduo, a qual vincula-se à consciência. O pensamento está mais próximo do plano consciente do que a intuição e, por causa disso, mostra ser usado pelo sujeito de forma menos desastrada do que ocorre com a intuição, que "sopra" sinistras possibilidades.
IMPRESSÕES PESSOAIS DO PESQUISADOR SOBRE E1 E E2
A impressão pessoal dos entrevistados foi nitidamente oposta. E1 falava rápido e dispunha de muito mais idéias e descrição de fatos do que E2. Isso ocorria em prejuízo da precisão, o que já não ocorria com E2. Este falava de forma mais lenta e pareceu bem menos ansioso do que o primeiro.
Em um momento da entrevista, E1 falou da segurança que sentiu em se expressar para o pesquisador, o que ele pareceu valorizar muito. A impressão é que precisava ter extravasado os fatos que haviam ocorrido consigo, e o mesmo ocorreu com E2. Ambos não haviam tido oportunidade, até aquele momento, de repensar e reformular os fatos passados.
O momento em que E1 disse que estava aceitando tudo e em que logo em seguida relatou um episódio em que sua mãe o visitara na Casa de Recuperação foi peculiar. Pareceu que ele estava muito augustiado e que não estava consciente disso. Estava como que travando uma grande batalha interna para se assegurar de que mantinha o controle e que havia mudado. Parecia estar nitidamente convencido disso. O fato é que abandonou a instituição uma semana após a entrevista de anamnese.
E2 pareceu estar muito imbuído de sua responsabilidade e de suas tarefas dentro da instituição, como monitor que se constituíra com o tempo. Detinha agora a confiança dos dirigentes da casa. O sonho de ser responsável, de se ater à realidade, de se estruturar solidamente em uma atividade parecia ter se materializado. Sua função superior sensação, que parecia tão fora de controle no tempo da dependência química – como se fosse um sonho, parecia agora totalmente sob domínio. Às vezes pausava para se dar o devido tempo de formular sua fala. Por vezes gaguejava, mas sempre confirmava suas falas anteriores, ora com as mesmas palavras, ora com outras, embora com pequenas variações.
As entrevistas afiguraram-se como uma oportunidade ímpar de se entender melhor a subjetividade de sujeitos dependentes de droga. Grande foi a surpresa de se constatar que suas histórias ainda não haviam sido contadas e compartilhadas com outras pessoas. Seria por vergonha? Será que o que expressaram ao pesquisador ocorreu devido à vinculação deste com a psicologia? E2 estava muito imbuído em apenas ouvir os outros internos e parecia se proteger adotando o papel que lhe fora delegado. E1 costumava ficar alheio a todos, pois realmente não confiava em ninguém, como ficou explícito na entrevista. E essa falta de vínculo, nem que seja com um papel, com certeza contribuiu para sua evasão posterior.
E1 e E2 passaram uma impressão nitidamente diferente de suas personalidades. Mas a experiência da dependência de droga que os unia fazia com que se tivesse por ambos o mesmo sentimento de solidariedade por essas pessoas perdidas de si e momentaneamente reencontradas através do outro.
TRATAMENTO NA INSTITUIÇAO – ADAPTAÇAO OU SELEÇAO?
Como se pode perceber através da Tabela 5, a maior porcentagem dos tipos psicológicos encontrados na Casa de Recuperação recaem no ISsSt (At: Introvertido – FP: Sensação – FA: Sentimento), que compõe 33,3% do total, um resultado três vezes maior que o segundo tipo mais encontrado. O que diferencia, em relação ao tipo encontrado por Zacharias (1995) nas instituições militares pesquisadas, é o uso da função auxiliar, que no caso dos dependentes químicos foi sentimento, e no dos militares, pensamento. Porém, podemos encontrar em comum tudo o que diz respeito à função sensação, à introversão e ao desprezo à intuição. O autor chega a apontar que "a configuração da função intuição ou sentimento como principal, exceto no tipo ESFP[12]parece ser rejeitada pelos processos de seleção ou de socialização na corporação" (ZACHARIAS, 1995, p. 204).
A função menos encontrada na instituição de recuperação, de acordo com a Tabela 3, foi a intuição (11,1%), o que é um resultado aproximado ao do encontrado por Zacharias (1995) – 7,39% para os veteranos e 9,78% para os recrutas. Ao lado disso, também se encontrou, em relação à atitude, um resultado de 61,1% com relação à introversão, resultado próximo ao do autor citado (65,10% para os veteranos e 55,98% para os recrutas).
Outro fato interessante a se acrescentar é que, dos dois intuitivos presentes na casa, justamente o E1, cuja função principal e auxiliar era intuição e pensamento, respectivamente, o único justamente oposto ao tipo mais predominante (ISsSt), exceto na atitude (introvertida), deixou a casa uma semana após a entrevista, perfazendo menos de dois meses de internato.
Ao consultar-se o Quadro 8, que compara as principais características das funções dos dois tipos entrevistados – InPs (E1) e SsSt (E2), percebe-se que certas características da intuição, como os palpites, a especulação, a cabeça nas nuvens, a fantasia, a ficção e a imaginação, são difíceis de enquadrar em uma configuração de recapacitação que se volta para o suor ("desintoxicação pelo suor"), o realismo, o passado, o concreto, os fatos, a praticidade e a sensatez – qualidades da sensação. No entanto, nota-se a grande utilidade da função sentimento na instituição estudada, ainda que usada secundariamente enquanto função, tendo em vista que segue os preceitos do cristianismo evangélico. Com certeza, as características do pensamento também são muito úteis com relação à disciplina da Casa, mas a necessidade de convivência grupal fala mais alto, e aí as características da função sentimento prevalecem.
A análise da relação das técnicas expressivas e as funções na revisão de literatura e esses indícios colhidos em campo apontam para a necessidade de mais pesquisa a respeito dos tratamentos mais pertinentes a cada dependente químico dentro de seu tipo psicológico. A população encontrada na instituição pesquisada é muito pequena para generalizações mais precisas, mas certos indícios indicam alguns caminhos.
Há também o que se dizer com respeito à diferença das práticas terapêuticas da Casa de Recuperação e do PROAD, da UNIFESP. Neste último, há abordagens analíticas que focalizam o desenvolvimento das funções inferiores dos indivíduos, levando-os a um patamar de sentido de vida superior ao que haviam apreendido antes de sua inserção no caminho das drogas, segundo Oliveira et al (2003). A terapêutica da Casa de Recuperação parece visar à condução do sujeito à realidade e a uma vida espiritual, a qual também poderá oferecer um sentido de vida, embora tradicional – não atenta à individualidade nem à experiência do dependente. Antes, busca uma mudança direta no seu comportamento, enfatizando a prescrição de normas. Isso fica claro na análise descrita a seguir.
Na entrevista de anamnese, constante do Apêndice B, E1 narra seu relacionamento conturbado com sua mãe, com a qual nunca tinha se dado bem, ao contrário do que ocorreu com o pai. Segundo E1, ela o culpava de várias ocorrências desagradáveis. Ele inclusive tomou providências com relação à assistência social para que a mãe não o localizasse: "Ah, tenho o telefone da sua mãe!" – ela informa; "Tem? Mas você já pode riscar, porque não tenho mãe, não tenho ninguém comigo, não. Tô sozinho aqui". A mãe o visitou na Casa, querendo dar-lhe um abraço e ele não quis atendê-la. Tudo isso indica que a relação de mãe e filho não era das melhores.
Um tempo depois, a mãe aparece na Casa, E1 abaixa a cabeça e pede perdão. "Essas coisas eu não faço, não. Entendeu? Eu tô aceitando as coisas. Daí ela, pode perguntar pra ela, ela pegou e falou: "Olha, eu nunca imaginava o que o E1 fez! Nunca ele ia pedir perdão". Porque ela conhece o meu ser, né? Ela falou: "Olha, eu não pensei que isso fosse acontecer de jeito nenhum!". A primeira coisa que eu fiz foi pedir perdão pra ela. Falei com minha esposa, pedi perdão pra ela por telefone."
Pela forma como o próprio entrevistado descreve as impressões da mãe a seu respeito, após sua internação na Casa, seu comportamento mudou radicalmente. Apesar disso, não se pode assegurar se isso também se tornou estável, isto é, se integrou-se à sua personalidade. Mas uma coisa é certa: em uma instituição eminentemente cristã e constituída de uma maioria de internos cuja função é oposta à sua, a pressão para que tivesse esse comportamento deve ter sido no mínimo forte. Um alto indício dessa idéia é E1 ter desistido do tratamento na Casa após menos de dois meses de internação. Em comparação, E2, do tipo predominante na instituição, já tinha mais de dois anos de permanência. Além disso, o entrevistado expressou que está "aceitando coisas" e não que havia mudado, e estava se surpreendendo com isso. O que relatou é que a mãe, esta sim, admirou-se com isso.
Outro fato que aponta como um indício de que E1 mudara seu comportamento para com a mãe e a esposa mais devido a pressão do que por transformação da atitude consciente, é ele logo depois ter se expressado assim com relação à amizade: "Ah, eu nunca confiei... Eu nunca fui de negócio de amigo, não. Falar: "Ah, amigo". Amigo não! Eu não tenho amigo. Amigo sou eu mais eu. Não confio nem em mim!" Logo depois ele afirma que "Agora eu tô voltando, mas eu não confio nem em mim. Vou confiar nos outros? Por isso que eu sempre fui trancado... Não!" Ora, o que ele quer dizer com "Agora eu tô voltando"? Provavelmente, se refere à sua mudança recente. Mas o que ele quer dizer com a palavra "voltar", uma vez que afirma que sempre foi trancado? Voltar a ser o que era antes? É uma contradição que indica uma mudança temporária de comportamento, mas de forma nenhuma permanente. É claro que ele pode ter mudado em vários aspectos, principalmente em relação às drogas. Mas muita coisa não é certa.
Concluindo, as perspectivas traçadas neste capítulo abrem amplo terreno quanto ao que pode ser pesquisado com relação à interseção das funções psíquicas e a dependência química. A comparação com as constatações de Zacharias (1995) foram bem claras, revelando analogias das quantidades de tipos psicológicos específicos encontrados nas instituições da PM e da Casa de Recuperação, o que aponta para predisposições semelhantes em ambas as instituições por preferir determinados tipos, excluindo outros. A terapêutica da Casa de Recuperação parece voltar-se ao favorecimento das funções sensação e sentimento. Deduziu-se, como Zacharias (1995) nas instituições que pesquisou, que há uma predisposição da Casa de Recuperação a ser parcial com determinados tipos psicológicos em detrimento de outros. Entendeu-se que determinadas práticas terapêuticas podem ser mais eficazes para determinadas pessoas do que para outras, e aludiu-se às atividades do PROAD da UNIFESP. Finalmente, uma breve análise das mudanças citadas por E1 – então um interno da Casa de Recuperação, parece mostrar que se deviam mais a uma pressão externa das normas e dos membros da instituição do que a uma mobilização interna, psicodinâmica. Espera-se que muito material ainda possa ser acrescentado com relação à eficácia psicoterapêutica das instituições de recuperação.
PARANÓIA, INTROVERSAO E INTUIÇAO
E1 relatou sintomas paranóides em determinados momentos da entrevista (vide Apêndice B). Cabe aqui uma análise mais detida desse fenômeno à luz da psicologia analítica, tomando-se por base também as funções e as atitudes psíquicas. E1 aludiu primeiro espontaneamente ao fato de ouvir e ver certos elementos quando drogado, e o pesquisador procurou aprofundar essas impressões, questionando enfaticamente se ele via e ouvia "coisas".
É, você está vendo, você olhava assim: "Nossa! Tem alguém lá no fundo...". Mas não tem. No escuro, vamos dizer assim, parece que tem alguém olhando... Eu queria me esconder onde ninguém via. Vamos supor, o carro tá aqui, eu estava aqui e eu estou cismado com a porteira, então eu ia ficar aqui atrás do carro aqui olhando lá e... Não sei porque: eu tô cismado com aquilo lá e eu estou protegendo aquele lado. É uma paranóia que deus me perdoe!
[...]
Às vezes olhava assim, ficava procurando em mim a luzinha... Sabe aquele negócio de filme? A luzinha da arma? Eu ficava assim olhando, procurando: "Ihhh, alguém tá lá! Lá por fora. A janela. Tem alguém em frente da janela! Não tá mirando eu?". Coisa de louco!
Na introversão, quando muito radical, "o objeto tende a impor-se de maneira arcaica e primitiva à consciência, impressionando o sujeito insistentemente, e perseguindo-o como se fosse um fantasma" (Zacharias, 1995, p. 106). Como a introversão leva muito em conta o sujeito e os fatores subjetivos, o inconsciente compensa com uma atitude oposta, extrovertida, fascinando a consciência, e perseguindo o ego.
Percebe-se uma introversão exacerbada em E1, constatada aqui como causada pela ingestão da droga. Mas a intuição inebriada pela droga é ainda mais efetiva, provocando alucinações que justificavam essa paranóia:
Você escuta voz, você escuta gente entrando... Você vê gente entrando. Entendeu? Coisa que não existe... Tanto você tá ali com a cabeça naquilo que alguém vai pegar, que você vê, você escuta passo... Está vindo ali. Passa a mão em qualquer coisa, se vier um, eu dou uma. É um negócio de louco mesmo...
Além disso, nota-se que E1 espantava-se com os fenômenos paranóicos produzidos pela droga através de várias expressões de admiração, tais como "É uma coisa de louco!", "Fiquei muito louco!", "É uma paranóia que deus me perdoe!", "Deus me perdoe!", etc. Isso indica que E1 provavelmente, em estado normal, não induzido por drogas, não tinha propensão para pensamentos persecutórios.
Von Franz (1990) alude à inconsciência do intuitivo introvertido com respeito a fatos externos, devido ao primitivismo da sensação. Ele não assimila os fatos externos e a sensação inferior, apesar de muito intensa, aparece esporadicamente, desaparecendo logo do campo da consciência. Ora, esse fato do não apego à função do real pode explicar o reforço dos eventos paranóicos, no caso de E1 e provavelmente do seu tipo psicológico em geral, já que não se conta com apoio das sensações para debilitá-los. Conclui-se que a droga, na narrativa de E1, provocava um afastamento maior da função sensação e, além disso, uma ativação do inconsciente e uma alteração temporária da relação do ego com o superego (ZOJA, 1992). Aí, as defesas do ego eram afrouxadas artificialmente, tornando a intuição livre do seu controle, fazendo vir à tona elementos desconhecidos do indivíduo, para os quais não estava preparado para experienciar. Daí o extremo medo decorrente, seja da "luzinha" das armas, ou dos policiais, ou de qualquer outra ameaça.
Jung (1991b) chamaria esses fenômenos paranóicos de "fantasias passivas". Nelas o sujeito permanece totalmente passivo. "Elas só podem ocorrer numa dissociação relativa da psique, pois seu aparecimento pressupõe que quantidade considerável de energia se tenha subtraído ao controle consciente e se apossado de materiais inconscientes" (JUNG, 1991b, p. 407). O processo inconsciente subjacente à fantasia passiva reúne em si energia suficiente para poder quebrar a resistência da consciência. Com E1 parece que a droga anuvia a consciência, subtraindo artificialmente sua energia, o que o torna menos defensivo ao inconsciente. Desse modo, ele era tomado por fortes fantasias passivas de perseguição, fruto de uma migração do vigor da consciência para materiais inconscientes, que agora têm poder para eclodir no campo da consciência do dependente.
A intuição tornada patológica pelo uso da droga não recorria à "prova da realidade", aludida por Aranha (2006). Esse autor faz referência à intuição patológica no uso de drogas e na psicose[13]a ponto de se poder pensar no efeito da droga como uma espécie de psicose induzida. Como alude a APA (2002), um dos fatores da psicose é a não ocorrência do teste de realidade. "Na alucinação a intuição patológica já interfere no nível da sensação" (ARANHA, 2006, p. 13), ao contrário do que ocorre na ilusão, um fenômeno mais sutil. Se isso é verdade para as pessoas em geral, quanto mais para o intuitivo, que tende a reprimir a sensação! É uma conclusão claramente decorrente.
A título de conclusão deste capítulo, observa-se a importância de se estudar os tipos psicológicos de encontro com a dependência química. O alerta aos tipos intuitivos deveria ser ainda maior, pois o seu prejuízo em relação à realidade pode ser bem mais intenso. Além disso, o apoio ao estudo de novas técnicas terapêuticas, assim como a revisão de práticas tradicionais, se beneficiaria sobremaneira com essas constatações.
A INTUIÇAO, A SENSAÇAO E A MACONHA
E1 passou algumas impressões pessoais, a respeito da maconha. Ele não gostava de seu efeito – "Maconha deixa a gente lerdo. Ora, a lerdeza se refere a uma sensação subjetiva, não apreciada pela intuição. O pesquisador perguntou então se ele gostava de "viajar" no sentido de fantasiar, atividade típica da intuição.
E1: Ah, puxa vida, que delícia que é! É isso aí que apazigua um pouco minha vida. Tem tantos problemas... Daqui a pouco eu já... "Puxa vida! Olha que gostoso seria... Não?". Eu fico imaginando: olha, esses caras têm dinheiro, podem ir pro exterior... Nesses lugares não tem nada pra apresentar. Coisa boa tem o Brasil. Várias praias, lugares lindos... Pra você fazer mergulho, lugar sossegado. Conhecer bicho, ir pra água... Coisas desse tipo que eu gosto, sabe? Eu fico imaginando: "Puxa, olha eu...".
Para se aprofundar mais no modo como E1 "viajava", o pesquisador perguntou se ele ficava parado num canto para imaginar tudo isso. Qual não foi a surpresa quando ele respondeu que "Não, eu posso estar trabalhando aqui, eu tô imaginando... Não há do que se espantar se se atentar ao fato de que, se alguém alcança primazia em atuar de certa forma, poderá, dependendo da ação, realizá-la em diversas situações e momentos diferentes, até mesmo concomitantemente com outras. E imaginar é a especialidade do intuitivo (JUNG, 1991b). "Tô "viajando", mas fazendo tudo certo. Entendeu?". E para "viajar", ele só recorria à maconha, não ao crack, nem à cocaína. No Quadro 6 a maconha está categorizada como uma droga visionária, de potência leve a média, e foi relacionada como tendo um efeito similar à operação da intuição. Os efeitos colaterais, também relatados por E2, era que ela o tranquilizava e "comia que nem um descontrolado".
P: Você não gostava da moleza, né?
E1: Ah, não gostava da sensação dela, não. Você fica lerdo. Dava uma certa despreocupação também, na cabeça também, sabe? Tipo: "Nossa! Meu Deus, eu vou morrer! Um dia...". A maconha me trazia isso aí. Tipo a realidade. Eu caia em si. Um negócio estranho. É totalmente diferente o uso de uma droga da outra pra mim. Sabe, eu ficava: "Ah, não sei o que...". Eu tava na risada, daí a pouco: "Nossa meu! Pô, eu vou morrer! Vou pro cemitério, cara! Sabe, eu ficava assim. Vinha sempre isso... Acho que é por isso que eu não gostava de fumar maconha. Vinha muito a morte pra mim. Eu ficava pensando, tipo medo: "Nossa! Eu vou morrer! É tão gostoso estar aqui! Olha que delícia tomar uma...".
P: Mas ela fazia "viajar", então, também?
E1: Viajava também. (Pausa) Mas totalmente diferente.
Nota-se como E1 gosta de explorar várias possibilidades dentro da própria nação. Mas não gostava da "lerdeza", isto é, do retardamento, da lentidão que lhe provocava a maconha. Provavelmente isso se deve à abertura do inconsciente e, assim, ao afloramento da função inferior. Segundo Von Franz (1990), a função inferior costuma ser lenta, infantil e tirânica, ao contrário da superior, que é adaptada. Por isso as pessoas não gostam de trabalhar com ela. Como exemplo, ela diz da dificuldade de um intuitivo preencher um formulário de imposto. Levará provavelmente uma semana, enquanto outras pessoas poderão fazê-lo em um dia. Isso se deve à necessidade de fazê-lo de maneira correta e com precisão, o que é uma operação apropriada para a sensação, assim como o pensamento. Por outro lado, a maconha lhe trazia "tipo a realidade", ele "caia em si", e isso é uma propriedade da sensação, que aflorava através da droga de forma opressiva. Ao mesmo tempo, percebe-se em E1 que a função superior não funciona tão bem quando sob a droga, pois essas possibilidades sombrias não são próprias do funcionamento adaptado da intuição. Parece que ocorre aí uma imersão da função superior no inconsciente e uma ascensão da função inferior à consciência, provocada de maneira artificial, sem que o dependente estivesse preparado.
Agora, E2 apresentará as impressões da sensação introvertida para com a maconha (vide o Apêndice C):
[...] Então ela trazia um desejo de você viajar pra um lugar longe, depois voltar depois de um tempo.
P: Como assim?
E2: Viajar...
P: Viajar?
E2: É, viajar... Assim, tipo você sair da cidade e viajar pra outro lugar, ir numa ilha, num local... Então, ali onde você passa uma semana, duas semanas fumando ela... Então essa é a sensação que ela dá. Ela não vai trazer uma derrota pra você. Ela vai trazer um ânimo, mas ao mesmo tempo ela... Ela, você sempre tem que estar utilizando ela. Nesse caso desse tipo de maconha. Né? Que é conhecida como... São umas que são mais consideradas como "borrachinha"... Então, uma maconha boa, forte, que eles usam agora, rende mais... Tem outra conhecida como "paia", que é seca, que é muito rápida, que arde na garganta...
P: Você já provou "borrachinha", "paia", tudo?
E2: Já.
P: A "borrachinha", quando você a provou, assim, que sensação que ela te dá, que você sentia prazer?
E2: Ah, ela...
P: Que dava vontade de você retornar depois.
E2: Ah, dava vontade de você ficar bem, né? De se arrumar bem, assim, é... Não tem uma explicação legal, assim, entendeu? Que ela... Você utiliza ela e ela deixa você tranquilo. Dá o que? Dá fome, entendeu? Você sente vontade de comer coisas gostosas, coisas que criança come: seria Danone, iogurte... Tudo isso ela dá desejo de você comer, entendeu? Que é a "borrachinha". Você respeita as pessoas, você fica em paz... Ela faz a paz! Bom, isso que é a maconha.
Neste trecho, observa-se que E2 recorre a uma viagem não em imaginação, mas concretamente, para "curtir" a droga. Ele sente um bem-estar com a droga e, no geral, a descreve como pacificadora, relaxante e promotora de ânimo. Aparentemente, aqui, não há o afloramento da função inferior, como ocorreu com E1.
Percebe-se que os pontos de vista da relação dos dois tipos opostos, são também antagônicos. Enquanto a intuição embarca na maconha para "viajar" usando a imaginação (ou se deve dizer – "viajava" para aproveitar melhor a maconha?), a sensação viajava fisicamente mesmo para aproveitar melhor a droga. A sensação aproveita o prazer do momento, da viagem concreta, para desfrutar da droga, e/ou vice-versa. A intuição tem que embarcar apenas abstratamente em uma aventura, de acordo com a preferência do dependente, usufruindo, assim, da droga.
Há uma comparação interessante que Sharp (1990) faz entre a intuição e a sensação, ambas introvertidas. A primeira se dirige para as expressões do inconsciente. Citado por ele, Jung (1991b) afirma que os objetos exteriores a estimulam, mas seu interesse genuíno não se volta para as possibilidades exteriores, mas para o que eles tornaram disponível interiormente. Ela percebe os bastidores, fixando-se, fascinada, nas imagens interiores, vivenciadas como restauradas.
Cita um exemplo de Jung (1991b) onde um homem tem uma vertigem. A sensação introvertida se ateria à percepção das características do distúrbio físico – intensidade, sequência, como surgiu e quanto tempo que durou. A intuição introvertida exploraria, ao contrário, cada detalhe das imagens provocadas pela perturbação. "Ela se agarra firmemente à visão, observando, com o mais vivo interesse, como o quadro se altera, se desdobra e, finalmente, se desvanece" (SHARP, 1990, p. 90). A intuição introvertida percebe todos os processos que ocorrem na intimidade da consciência com quase a mesma clareza com que a sensação extrovertida percebe os objetos exteriores. As imagens inconscientes são valorizadas como algo vivo. Porém, como a intuição exclui a participação da sensação, as imagens aparecem como se fossem separadas do sujeito, existindo por si mesmas, sem qualquer relação com ele. Um introvertido intuitivo com vertigem, por exemplo, nunca notaria que as imagens percebidas por ele se referiam a ele mesmo. Um tipo sentimental ou reflexivo não admitiria isso.
Com relação aos entrevistados, o que era "lerdeza" para a intuição de E1 – caracterizando uma imposição incômoda a partir da sensação inferior, para a sensação de E2 era um estado de "paz". O que E1 aproveitava da "lerdeza" da maconha era a correspondente "viagem" que a mesma proporcionava pela via dos processos inconscientes da intuição. E2 não precisava aproveitar nada mais do que as impressões sensoriais da droga. E de fato não relata nenhuma experiência de viagem imaginativa como as descritas pelo primeiro, apesar da maconha estar classificada como visionária no Quadro 6, baseado em Escohotado (1997). Isso denota a relatividade dos efeitos de determinadas drogas sobre tipos psicológicos específicos.
A maconha, como droga visionária, não conseguiu mobilizar em um sensitivo (E2), pelo menos no presente estudo de caso, "viagens" imaginativas. Será que o mesmo ocorreria com drogas visionárias mais potentes como o LSD? Caso positivo, pode-se pensar na possibilidade de uma irrupção intensa da função inferior desse tipo. E pode ser que, nesse caso específico, houvesse uma cisão psicótica da personalidade do usuário (ou dependente). São conjecturas que poderão ser abordadas por outras pesquisas e que, caso se confirmem, poderão ser de enorme valor com relação à prevenção de uso de drogas específicas por certos tipos psicológicos, ou até no seu tratamento.
Tudo o que foi abordado aqui sobre as diferenças das impressões dos entrevistados acerca dos efeitos da maconha foi tratado enquanto hipótese no capítulo "Drogas: caminho para certas funções", e confirmado analiticamente.
Compreendeu-se aqui, claramente, a relação entre uma droga específica – a maconha, e as funções estudadas. Detalhou-se e comparou-se como uma função, mais uma vez, se opõe à outra e como os tipos dos entrevistados se relaciona especificamente àquela droga. Essas constatações podem servir de compreensão do processo de instalação de dependência química e como indicações para possíveis tratamentos. Também se compreendeu como certos efeitos previstos de determinadas drogas podem ter um valor relativo, dependendo da função principal do indivíduo. Possíveis limitações neste estudo com relação generalizações mais enfáticas, inclusive com relação a outras drogas, poderão ser obtidas através de pesquisas quantitativas. Porém, a hermenêutica da técnica analítica possui a vantagem de tentar abarcar um entendimento a partir do interior, da subjetividade do indivíduo, o que parece ser difícil de outro modo. Provavelmente a perspectiva tipológica do pesquisador impediu a percepção de outros pontos de vista de igual ou ainda maior validade, como apontou Jung (1991b) com relação a Freud e Adler.
A MORTE, AS FUNÇÕES PSÍQUICAS E AS DROGAS
O tema da morte é importante enquanto aborda um tipo de iniciação necessária ao homem moderno, conforme abordado no capítulo "A iniciação à dependência de drogas". Essa iniciação é levantada neste capítulo como uma forma do dependente (no caso os entrevistados) ser admitido a uma realidade misteriosa, transcendente, que ultrapassa o sofrimento que vivencia.
O primeiro entrevistado havia pensado muito em morte.
P: Você já teve tentativa de suicídio?
E1: Vontade. Não tive coragem. Muita vontade já antes de vir para cá. Não sei se foi depressão. Já pensei muito nisso. Porque sempre, sei lá... Minha vida nunca foi maravilha, não. Então, por que eu não morro de uma vez? É uma coisa meio assim, direto. Para que dever?
P: Mas tentativa não? Só o pensamento?
E1: Não.
[...]
E1: [...] Tipo: "Nossa! Meu Deus, eu vou morrer! Um dia...". A maconha me trazia isso aí. Tipo a realidade. [...] Eu tava na risada, daí a pouco: "Nossa meu! Pô, eu vou morrer! Vou pro cemitério, cara! Sabe, eu ficava assim.
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