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A longa jornada, então, começou.
CAPÍTULO 1
(Apenas um repasse de conceitos amplos)
"Então, formou o SENHOR Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego da vida, e o homem passou a ser alma vivente. [...] E plantou o SENHOR Deus um jardim e pôs nele o homem que havia formado. [...] Do solo fez o SENHOR Deus brotar também, a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal" (todos os grifos no original) (Velho Testamento: Gênesis 2:7; Gênesis 2:9)[3].
"Aí estava implantada, no Jardim do Éden, a caixa de Pandora que foi violada pelos habitantes da Terra – Adão e Eva. A violação das regras, pelo casal adâmico, ocorreu não sem a ajuda da Pandora (a Eva bíblica) que, sucumbindo a tentadora curiosidade, induziu seu companheiro Adão, no cometimento da violação, ou seja, de comer a maçã que culminou por trazer-lhes as vicissitudes e flagelos, até então desconhecidos em seu Paraíso"[4].
Eis, em formato resumido, o introito deste capítulo que expõe a versão divina do surgimento do homem na Terra. Se for uma parábola, o leitor que me perdoe, mas restou mal explicada ou, no mínimo, parabólica em excesso.
Em contraposição, analisemos as vertentes explicativas providas pela antropologia e pela paleontologia, i.e., pela Ciência Humana[5]
Florentino Ameghino (1854-1911), naturalista argentino reconhecido internacionalmente como "o Darwin sul-americano", em seus profundos estudos de geologia, paleontologia e antropologia, acabou gerando uma das grandes polêmicas internacionais, com sua obra "Filogenia: princípios de classificação transformista baseados sobre leis naturais e proporções matemáticas"[6], na qual, contrariando Darwin, situa a origem do homem na região do Pampa argentino. Mediante uma série de 186 trabalhos científicos – hoje compilados em 26 volumes – este estudioso apresentou provas contundentes e irrefutáveis sobre o nascimento da espécie humana, a partir dos primatas de Sul-América do período Cretáceo (último período da Era Mesozoica ou Secundária, que transcorreu aproximadamente entre 225 e 65 milhões de anos atrás – Ilustração 1, veja detalhe na parte inferior do quadro).
Enquanto iam se extinguindo os dinossauros, primatas primitivos que com eles conviveram milhões de anos iam sendo identificados por seus fósseis que, segundo Ameghino, podiam ser denominados de Notopithecus, Adaphitecus e Henricosbornia. A característica principal destas espécies era o seu pequeno tamanho, embora em diversificação existisse uma extensa variedade deles. Durante a Era Cenozoica (65 milhões de anos atrás), estes primatas evoluíram para uma estrutura mais próxima à dos verdadeiros símios, embora permanecessem com o menor porte que os caracterizava. Entre estes, Ameghino destaca o Homunculites e os Pitheculites, localizados na região da Patagônia argentina (65-44 milhões de anos), sendo que dos Pitheculites descenderam os Homunculídeos do Eoceno Superior (44-38 milhões de anos)[7].
Dentre estas espécies, as que mais se destacam são os Homúnculos, os Anthropos e os Pitheculus, cuja principal característica reside em seu crâneo muito semelhante ao do humano, embora de pequenas dimensões, sendo o mais aproximado o do Anthropos (ainda mais semelhante ao dos humanos, todavia mantendo as dimensões muito menores), com grandes chances de possuir inteligência, conforme o comprovam os toscos artefatos encontrados e certos indicadores de que já se serviam do fogo[8]
Fonte: Reproduzido de FÓSSEIS... (1998, p. 15)[9].
Ilustração 1 – Os fósseis fascinantes
Observemos, agora, um comparativo entre as ideias centrais do naturalista argentino, Florentino Ameghino, e os do seu colega britânico, Charles Darwin – Ilustração 2. Tomando como base de análise os descobrimentos realizados por ambos, na antropologia e na paleontologia, estritamente na Era das Ciências, tais registros foram lavrados no século XIX como marco em que se insere o processo de sistematização de descobertas, informações e conhecimento científico sobre a teoria humana[10]
datas |
Charles Darwin |
Florentino Ameghino |
1809-1882 / 1854-1911 |
nascimento-morte |
nascimento-morte |
1859 |
Principal teoria: "Evolução como paradigma" |
Principal teoria: "Transformismo" |
1859 |
"A origem das espécies" |
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1871 |
"A ascendência do homem e seleção em relação com o sexo" |
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1872 |
"A expressão das emoções no animal e no homem" |
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1889 |
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"Contribuição ao conhecimento dos mamíferos fósseis da República Argentina" |
1889 |
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"Filogenia: princípios de classificação transformista baseados sobre leis naturais e proporções matemáticas" |
1906 |
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"Formações sedimentais do Cretáceo Superior e do Terciário de Patagônia" |
(segue)
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Bases Teóricas |
Ideia Central |
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Transformismo (Ameghino) |
"O que afirmam os transformistas é que os seres em geral, e cada espécie em particular, não apareceu por acaso, repentinamente; que nada se forma do nada; que, por conseguinte, tudo deve ter antecessores [...] que o homem descende de uma forma inferior extinta, que por sua vez teve sem dúvida por origem um tipo primitivo do qual se separaram igualmente em épocas sumamente remotas as formas precursoras do homem"[11]. |
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Evolução (Darwin) |
"[...] o homem não é produto da criação divina e nem fruto de várias origens. [...] o homem e o macaco têm origem comum; têm o mesmo antepassado" [...]. Darwin utiliza conceitos como "competição", "seleção do mais forte", "evolução", "hereditariedade"[12]. |
Fonte: Criação do Autor em base a vários autores pesquisados[13]
Ilustração 2 – Diferenças entre o Transformismo e a Evolução?
As expedições e pesquisas realizadas por Florentino Ameghino – justiça seja feita – foram solidamente auxiliadas por seus irmãos (também naturalistas), Carlos e Juan Ameghino, aos quais coube estruturar e promover expedições durante quinze anos, dentre as quais se destacam aquelas direcionadas à região de Tierra del Fuego (Terra do Fogo), entre a costa atlântica e a cordilheira dos Andes. Em carta enviada ao seu irmão Florentino (em 10 de março de 1891), Carlos registra:
"As margens do Rio Gallegos, contrariamente às minhas expectativas, não contribuíram muito, principalmente em razão das dificuldades experimentadas na exploração dos usualmente inacessíveis penhascos, e eu fiquei maravilhado pela descoberta, muitos anos antes agora, dos restos do Homalodontoterium e Nesodontes, animais muito raros nessa formação"[14].
A Ilustração 3 expõe a região onde Carlos Ameghino realizou suas longas explorações, acumulando vestígios importantíssimos de espécies existentes no Mioceno e que enobreceriam o Museo de la Plata (Museu da Prata), à época dirigido por Francisco P. Moreno. E falando em Moreno, vale lembrar que Florentino Ameghino e seus irmãos foram inestimáveis colaboradores desse importante museu argentino e amigos de Moreno, amizade que acabou sucumbindo sob rivalidades científicas existentes entre Moreno e Florentino. Dito impasse relacional viria a ser saneado apenas nos idos de 1902, quando Moreno nomeou Florentino designando-o como diretor do Museu Nacional de Buenos Aires, sete anos depois recebendo outra grande honraria: acadêmico da Faculdade de Filosofia e Letras em Buenos Aires (1909). Florentino Ameghino, considerado sábio na comunidade científica internacional, aproximava-se então dos seus derradeiros passos neste mundo que tanto o atraiu e o reconheceu em seus estudos naturalistas.
Fonte: Extraído de Vizcaíno, Kay & Bargo (2012)[15].
Ilustração 3 – Região das explorações de Carlos Ameghino
A bem da verdade e da justiça, tanto Darwin e Ameghino como tantos outros naturalistas e cientistas de renome mundial, mediante o conjunto de investigações que promoveram, contribuíram para elucidar, mesmo que em parte (embora substancial), o surgimento do homem na Terra. Mencionemos os que consideramos mais importantes e suas bases teóricas:
Charles Darwin (naturalista de origem inglesa), sem dúvida, foi o grande nome de repercussão internacional nos estudos paleontropológicos. Foram cinco longos e trabalhados anos a bordo do HMS Beagle (entre 1813 e 1836), maior parte desse período destinado às expedições e investigações em terra. Delas advirão suas três principais obras científicas: "A Origens das Espécies" (1859), "A Descendência do Homem e Seleção em relação ao Sexo" (1871) e "A Expressão da Emoção em Homens e Animais" (1872).
Florentino Ameghino (naturalista argentino), posterior a Darwin, destacou-se similarmente no cenário internacional em seus estudos e pesquisas paleontropológicas – nomeadamente por ser um autodidata reconhecido pela comunidade científica. Dos seus estudos, destacam-se três obras de relevo: "Contribuição ao conhecimento dos mamíferos fósseis da República Argentina" (1889), "Filogenia, princípios de classificação transformista baseados sobre leis naturais e proporções matemáticas (1890)" e "Formações sedimentarias do Cretáceo Superior e do Terciário de Patagônia" (1906). Seu trabalho desbravador foi estreitamente auxiliado por seus filhos cientistas, Juan e Carlos.
Em território continental africano, os estudos e investigações da família Leakey – antropólogos quenianos – permitem a descoberta de uma espécie de grandes macacos – os hominídeos – que, ao longo de seis milhões de anos, evoluíram em interação com o meio ambiente e geraram diversas espécies. Há aproximadamente três milhões de anos, em território denominado África Central (na região do lago Rudolph, Quênia), uma dessas espécies originou o Homo habilis – também conhecido como Homo sapiens –, que veio a ser classificado como o primeiro ser humano arcaico. A Richard Leakey pertence o domínio da descoberta (em 1972) de um esqueleto feminino – conhecido pelo nome de "Lucy" – datado de cinco milhões a 3,5 milhões de anos atrás. E aproximadamente um milhão de anos depois do descobrimento do Homo habilis, conheceu-se seu descendente direto, o Homo Erectus (1,8 milhão a cem mil anos atrás), a quem lhe é atribuída a capacidade e criatividade de manufaturar implementos (a exemplo do machado de pedra). Esta espécie seria a pioneira no processo migratório, deslocando-se para a Ásia e a Europa. "O gênero Homo sapiens, o ser humano arcaico, não deixou descendentes entre os seres humanos modernos e inclui várias espécies hoje extintas"[16].
Professor de Biologia e Antropologia da Universidade de Stanford (USA), Richard G. Klein (1941---) figura na nominata dos grandes estudiosos da história humana. Este reconhecido estudioso situa – no tempo e no espaço – a linha evolutiva dos indivíduos separando-as entre aquela que levava aos seres humanos, daquela direcionada aos chimpanzés (o parente mais próximo). Estes se assemelhavam muito com os humanos quando caminhando sobre o chão; preferiam fazê-lo sobre as duas pernas – eram os australopitecos ou macacos bípedes. Nas próprias palavras de Klein: "Se compararmos esse período [refere-se às modestas raízes da humanidade e suas expressivas mudanças em tão curto espaço de tempo] à duração de uma vida humana, os cinco ou sete milhões de anos de história podem parecer incrivelmente longos, mas são muito breves se comparados aos três a cinco bilhões de anos de história da vida na Terra, ou até mesmo aos 25 milhões de anos de história dos macacos"[17]. Klein ainda relata outra grande descoberta feita em 1942 por um dos alunos do professor de anatomia da Universidade de Witwatersrand (Johanesburgo), Raymond Dart: um fóssil de crâneo de babuíno – veja Ilustrações 4 (localizações das descobertas) e 5 (crânio da Criança de Taung). Depois de um trabalho minucioso de limpeza da área dos fósseis revela-se o rosto e partes adjacentes do crânio de uma criatura jovem, com aparência de macaco. Nas análises se descobriria ter sido os de uma criança.
Fonte: Extraído de Klein (2005, p. 27)[18].
Ilustração 4 – Localizações dos sítios de australopitecos
Fonte: Extraído de Klein (2005, p. 28)[19]
Ilustração 5 – Crânio da criança de Taung, África do Sul
Dito indivíduo, segundo Dart, pertenceria a uma espécie até então desconhecida, "intermediária entre os antropoides vivos (macacos) e o homem", e em razão disso constituindo-se em ancestral da raça humana. Posteriormente, passou a denominar-se de Australopithecus africanus (macaco africano do sul), ou simplesmente australopiteco. Mais tarde ainda, os Fosseis de Java, nada obstante fosse incontestável sua genuinidade, descobriu-se serem mui posteriores ao africanus, pertencentes a uma espécie mais avançada: a do Homo Erectus. O crânio Taung, embora sem total confirmação, passou a ser localizado num marco de pelo menos dois milhões de anos. A Ilustração 6 expõe as espécies humanas usualmente já reconhecidas como existentes antes de um milhão de anos atrás.[20]
Claro que há um número expressivo de paleoantropólogos que versam sobre as origens do ser humano, mas, não sendo o objetivo central do nosso estudo, preferimos citar apenas estes e sugerir àqueles leitores que buscam informações mais completas que o façam em obras específicas que transitam particularmente por este tema e, sem dúvida, com muito mais propriedade à deste humilde escriba que ora estão a ler.
Fonte: Extraído de Klein (2005, p. 31)[21]
Ilustração 6 – Distâncias temporais entre espécies humanas comumente reconhecidas que existiram antes de um milhão de anos atrás
2.1 A origem da vida
Partamos de uma questão essencial: o que é a vida? De imediato, todo e qualquer leitor remeterá tal questão a uma dualidade analítica: a ótica materialista e a ótica idealista, ou, por outros termos, a natureza material e a essência espiritual. Observem que estamos ante dois caminhos absolutamente distintos, pois, se optarmos por percorrer a senda do materialismo, teremos que nos restringir às leis da natureza que ordenam os seres vivos y que, essencialmente, seguem uma segunda dualidade: o mundo orgânico (composto por todos os seres vivos) e o mundo inorgânico (formado por tudo o que é inanimado). Da contraposição desses dois universos distintos – orgânico/animado; inorgânico /inanimado– se destaca o que os diferencia: os primeiros possuem vida, os segundos não a possuem, são elementos inertes, não-efetivos[22]
A "Teologia Sistemática", de Paul Tillich (1886-1965), teólogo alemão-estadunidense, nos traz alguma luz à complexa teoria da vida. Em final do século XIX e inícios do século XX surgiram duas escolas que permitem, por comparação, compreender essa luz. Na Europa Continental, reconhecidos filósofos como Nietzsche, Dilthey, Bergson, Simmel e Scheler, compunham a escola filosófica da vida, com forte influência sobre os existencialistas. Nesse mesmo período, nos Estados Unidos, desenvolvia-se em paralelo a filosofia do processo, "antecipada pelo pragmatismo de James e Dewey e plenamente elaborada por Whitehead e sua escola"[23].
Para Tillich, não é pacífica a conceituação de vida, mas, pela filosofia do processo, entender-se-ia compreensível quando confrontada com a experiência da morte. "[...] a polaridade de vida e morte sempre coloriu a palavra "vida"", afirma Tillich, complementando: "Este conceito polar de vida pressupõe o uso da palavra para designar um grupo especial de seres existentes, isto é, os "seres vivos". [...] Esse conceito genérico de vida é o padrão a partir do qual se formou o conceito ontológico de vida"[24], ou seja, a vida como "efetividade do ser", em contraposição ao mundo inorgânico. Para ilustrar sua asserção, este estudioso recorda que todo ser possui duas qualificações principais: sua essencialidade e sua existencialidade. Assim, os seres possuidores de poder (potencialidade) contam com a dinâmica que lhes permite ser efetivos ("a potencialidade de toda árvore é a arboridade"; por analogia, a potencialidade de todo humano é a humanidade). Vale expor, ainda, a explicação de Tillich a respeito, destacando-a em razão do seu poder de essência conceitual que lhe provê de sustentação solidamente fundamentada:
"Há outras essências, como as formas geométricas (por exemplo, o triângulo), que não têm esse poder. Contudo, aquelas que se tornaram efetivas sujeitaram-se às condições de existência, como a finitude, a alienação, o conflito, etc. Isso não significa que elas percam seu caráter essencial (a árvore continua sendo árvore), mas significa que elas caem sob o domínio das estruturas da existência e estão sujeitas a crescimento, distorção e morte"[25].
Uma vez que conseguimos (mesmo que superficialmente) definir o que é a vida, retrocedamos no tempo até o momento em que essa vida aparece em nosso planeta. Segundo a obra de Madigan, Martinko, Dunlap e Clark[26]dentre outras congêneres em tom praticamente consensual, a idade do nosso planeta estaria situada ao redor dos 4,5 bilhões de anos (em base à análise de isótopos radiativos de decaimento lento), durante os quais se presume que haja existido um processo contínuo de alterações físicas e biológicas. Dito processo – ainda presumidamente, embora em bases científicas e da análise de fósseis químicos –, à altura dos 4 bilhões de anos criou condições que permitiriam que a vida se originasse na forma microbiana a partir das origens das células mais primitivas "e da diversificação metabólica microbiana até a origem dos eucariotos"[27] /[28] /[29], cuja origem aproximada situa-se em 2 bilhões de anos (veja Ilustração 7).
Fonte: Extraído de Madigan, Martinko, Dunlap, Klark (2010, p. 369).[30]
Ilustração 7 – Micrografia eletrônica de varredura de microfósseis bacterianos em rochas de 3,45 bilhões de anos (Barberton Greenston Belt – África do Sul).
Façamos agora, por oportuno, um breve parêntesis na teoria biológica da vida terrena, para destacar uma questão fundamental em nossa tese, em paralelismo ao exposto: a teoria teológica, que remonta ao segundo milênio anterior à Era Cristã.
O Tomo I da "Bíblia da Infância" (1850), da lavra de Martinho de Noirlieu (antigo sub preceptor do Duque de Bordeaux), em meados do século XIX, serviu para catequizar os infantes de oito a onze anos através dessa obra especialmente elaborada para eles. O teor da mesma – que advém da doutrina religiosa cristã da época de Moisés (2º milênio a.C.) – se dirige aos infantes nestes termos:
"No princípio, meus queridos meninos, o mundo ainda não existia. Não havia então sol, nem terra, nem mar, nem coisa alguma de tudo vos agora vedes. Só Deus então existia, porque só ele é eterno, isto é, nunca teve princípio nem há de jamais ter fim. Deus pois criou o céu, e a terra, com tudo quanto neles se contém. Criou-os do nada, e só pela sua palavra, e empregou seis dias para acabar esta grande e magnífica obra".
Mais adiante, a Bíblia dos Infantes aborda a criação do homem nestes termos:
"O céu e a terra, meus meninos, sim eram belos, e magníficos; mas todas as criaturas, que neles se continham, eram, ou inanimadas, isto é, sem vida, como o sol, os astros, as árvores, e plantas, ou destituídas de razão, como os animais, que não falam. Assim faltava no mundo uma criatura racional, que fosse capaz de conhecer, de amar a Deus, e de louvar dignamente: Disse Deus então: "Façamos o homem à nossa imagem, e semelhança; presida aos peixes do mar, às aves do ar, e aos animais brutos da terra". Tomando, pois, uma pequena porção de terra, dela formou o corpo do primeiro homem, e depois uniu a este corpo uma alma racional".
"É pois o homem criado à imagem de Deus, e por conseguinte de uma natureza muito superior às dos animais. A sua alma tem alguma coisa de divina. Mas não vos pareça por isso, meus meninos, que Deus tenha rosto, ou corpo, como vos tendes, por vos ensinarem que fostes criados à sua imagem. Deus não tem corpo; e se vos criou à sua imagem, é unicamente porque vos deu um espírito capaz de o conhecer, um coração capaz de o amar, e uma vontade livre para poderdes obrar o bem, e evitar o mal".
"Honrai em vos a imagem de Deus; não vos assemelheis aos animais irracionais, por ignorância, por preguiça, por cólera, por glutoneria. Esforçai-vos quanto vos for possível por vos fazerdes, pelo exercício das virtudes cristãs, bons, santos, e perfeitos como Deus"[31].
Uma análise superficial do texto ora exposto parece suficiente para perceber-se que os ensinamentos cristãos simplesmente assumiram as crenças que advinham de, pelo menos, dois milênios antes de Cristo, passando de geração em geração e – claro – solidificando-se como pretensos fatos (alguns reais, outros tergiversados e outros, ainda, criados) que ratificavam tudo o exposto na Bíblia dirigida aos infantes. E assim, a religião cristã foi tomando forma, estrutura e sinonímia de verdade irrefutável. A ignorância popular em sua tentativa de compreender o incompreensível (os fenômenos da natureza em sentido lato) se encarregou de fazer o resto: a existência de um deus todo-poderoso, criador dos céus e da terra, de todos os seres que nele habitam – racionais ou irracionais –, e de todas as coisas inanimadas. As bases do Cristianismo estavam lançadas e iriam crescer portentosamente (em termos de estruturas físicas imponentes e riquíssimas) e extremamente severas (em termos de educação cristã rígida, tutelada por castigos inimagináveis àqueles que ousassem enfrenta-la, a exemplo do abusivo e abominável "Santo Ofício").
2.1.1 O Homem e seus deuses
Citemos, em preâmbulo, as sábias palavras de Francisco José Gómez Fernandez, emérito estudioso do homem e sua relação com a religião como pressuposto fundamental de sua existência e de tudo o mais que subjaz ao seu redor, em seu complexo meio terreno de vida. Afirma este estudioso nas primeiras páginas da sua obra:
"Hoje em dia se admitem, quase como uma verdade inquestionável, os postulados de Rudolf Otto, seguidos mais tarde por Mircea Eliade. Ambos defenderam em sua época que a religião era um componente estrutural do ser humano, portanto, que forma parte inseparável do homem e é constitutivo do mesmo (grifos nossos). Efetivamente, o homem tem uma necessidade antropológica de crer em um ser superior, seguramente para dar resposta a essas perguntas essenciais da vida humana. [...] O homem é um animal religioso por natureza, não obstante atualmente se nega por muita gente tal qualidade, o certo é que a ninguém resulta indiferente o tema, sobretudo quando as circunstâncias adversas da vida pioram"[32] (grifamos).
Observemos, a título de complementaridade, o que expõe Fustel de Coulanges (1830-1889), historiador francês, positivista e gênio do século XIX, em suas análises sobre as cidades antigas, servindo-se, como referência, das sociedades gregas e romanas:
"A comparação das crenças e das leis mostra que uma religião primitiva constituiu a família grega e romana, estabeleceu o matrimônio e a autoridade paterna, fixou os graus de parentesco e consagrou os direitos de propriedade e de herança. Esta mesma religião, depois de amplificar e estender a família, formou uma associação maior, a cidade, e reinou nela como na família. Dela hão procedido todas as instituições e todo o direito privado dos antigos. [...] Sabemos o que pensavam os arios [povo de estirpe nórdica descendente dos antigos indo-europeus, entre dez e quinze séculos antes da Era Cristã; do termo ario irá surgir posteriormente e na Alemanha, o termo ariano] de Orienta há trinta e cinco séculos".[33]
Em realidade e desde épocas remotíssimas, sempre esteve presente no ser humano o temor e o respeito pelo desconhecido. O que advinha depois da morte? Simplesmente tudo acabava com a finitude do corpo? Não. A alma permanecia viva indefinidamente, nalgum lugar desconhecido, quiçá metafísico, um alter-cosmo. Tanto é assim que, na Antiguidade, ante a morte do indivíduo, "Se derramava vinho sobre a tumba para acalmar sua sede e se depositavam alimentos para satisfazer sua fome"[34].
Esse temor ao desconhecido, associado à incompreensão da finitude da vida, desde as mais remotas eras motivou o ser humano a crer, necessariamente, em algo mais que a mera e efêmera vida. As religiões – desde as mais primitivas – tiveram esse fundamento para alimentar e realimentar suas crenças em entidades divinas, metafísicas. Tudo era atribuído à ira ou à benevolência e/ou amor dos deuses. Raios e trovões infernais, períodos de estiagem e inundações etc., representavam a ira divina, enquanto dizimavam populações castigadas por algum motivo, não raro, incerto e incompreendido. Multiplicação de proles saudáveis e fartura de alimentos, pelo contrário, eram atribuídas ao amor dos deuses, como prêmio pelo atendimento aos seus desejos e ditames divinos. Em outras palavras, os fenômenos naturais (meteorológicos, biológicos, etc.), ante sua total incompreensão, demandavam tais explicações metafísicas que, supostamente, facilitavam a absorção dos seus benéficos e/ou perversos efeitos, inibiam o temor ao desconhecido.
Brian Morris[35]em sua análise sobre a essência da religião, faz referência aos escritos de Feuerbach como compondo, em estreito compasso com Hegel, as bases do que viria a ser o pensamento de Marx e Engels. Se bem fora entusiasta defensor e discípulo hegeliano, Feuerbach optou por trilhar uma teoria eminentemente materialista ateísta, rechaçando a teologia cristã e a filosofia hegeliana. Os próprios seguidores de Hegel, no entanto, viriam a subdividir-se em duas ramificações: os hegelianos de direita (a exemplo de Karl Goschel e Karl Rosenkranz, este último biógrafo de Hegel), cuja tendência ideológica aproximava-se bastante do cristianismo ("tudo o que é real é racional"), e os intelectuais radicais (como Bruno Bauer e David Strauss), naturalistas com forte tendência ao ateísmo.
Segundo o relato de Morris,
"A obra Vida de Jesus (1835) de David Strauss significou na prática o primeiro impulso do movimento dos jovens hegelianos. Strauss intentou interpretar o cristianismo em termos da filosofia hegeliana e, ao assim fazê-lo, chegou a rechaçar qualquer visão teológica da tradição bíblica. Os relatos do Evangelho eram, segundo ele, mitos que deviam ser interpretados em termos naturalistas (grifamos). As autoridades consideraram o livro de Strauss radical e subversivo; isto não impediu que fosse criticado por outro jovem hegeliano, Bruno Bauer, que chegou a expressar uma extremista "filosofia da crítica pura""[36].
Em todo caso, coube a Feuerbach, em sua Crítica à filosofia hegeliana (1839), denegar a perspectiva fenomenológica de Hegel apelidando-a de teologia disfarçada, para sobrepor-lhe sua própria visão prática e materialista. Feuerbach advogava com veemência na defesa do ser humano como ser natural em base a uma aproximação empírica à realidade. A filosofia de Feuerbach – disserta Morris – tomava "como princípio, não a substância de Spinoza nem o ego de Kant e Fichte nem tampouco o Absoluto de Schilling [...] [e] Hegel, isto é, nenhum ser conceitual meramente abstrato, senão um real – o homem –"[37]. Precisamos, portanto, analisar a história das religiões, o caleidoscópio formado pelo arco-íris que vai do sagrado ao profano.
2.1.1 Entre o sagrado e o profano
As religiões, nos albores de suas propostas investigativas, foram fundamentadas originalmente em fontes diversas que serviam de referência para as mais variadas análises: os mitos, os ritos, os deuses, as superstições, entre outras, situadas ao longo do largo trajeto histórico da vida humana. Nesse específico contexto narrativo, as hierofanias[38]se constituíam em verdadeiros documentos históricos, visto que é sempre "em certa situação histórica onde o sagrado se manifesta. As experiências místicas, inclusive as mais pessoais e mais transcendentais, sofrem a influência do momento histórico"[39]. Esta estudiosa relata-nos um exemplo que bem ilustra sua assertiva:
"O índios, por exemplo, veneram certa árvore denominada açvattha; a manifestação do sagrado nesta espécie vegetal é transparente só para eles, pois só para eles a açvattha é uma hierofania e não simplesmente uma árvore. Em consequência, esta hierofania não é unicamente histórica (assim como todas o são), senão que é também local. Sem embargo, os índios também conhecem o símbolo de uma árvore cósmica (axis mundi), e esta hierofania mítico-simbólica é universal, visto que as árvores cósmicas se encontram em todas as partes nas antigas civilizações"[40].
Se fossemos nos aprofundar nesta vertente analítica, certamente que demandaria toda uma vasta obra que analisasse as incontáveis formas das hierofanias e das cratofanias (lugar de poder e de sacralidade) fugindo do nosso escopo principal. Assim, sigamos situando o tema das religiões e crenças circunscritas aos nossos objetivos.
Ainda em consonância com as lições de Eliade e seu profundo e detalhado estudo a respeito, esta autora expõe a complexidade do fenômeno religioso primitivo como ordenado por diversos princípios, dentre os quais destaca os seguintes[41]
I. "O sagrado é qualitativamente diferente do profano", embora possa manifestar-se de diversas maneiras e em qualquer lugar no mundo do profano, "pois tem a capacidade de transformar todo objeto cósmico em paradoxo por meio da hierofania (no sentido de que o objeto deixa de ser o mesmo enquanto objeto cósmico, mesmo permanecendo em aparência inalterado)";
II. Esta dialética do sagrado é aplicável e válida para todas as religiões, não apenas para as chamadas religiões primitivas. Tanto é assim que ela é vista tanto no culto às pedras e às árvores, como no mistério divino da encarnação;
III. "Não se encontram em nenhuma parte unicamente hierofanias elementares (as cratofanias do insólito, do extraordinário, do novo: o mana, etc.), senão também rastos de formas religiosas consideradas, na perspectiva das concepções evolucionistas, como superiores (seres supremos, leis morais, mitologias, etc.)";
IV. Encontra-se em todas as partes – aí inclusas as formas religiosas superiores – "um sistema aonde vêm a situar-se as hierofanias elementares".
Em princípio e de maneira sumaríssima, concluímos que as religiões primitivas seguiam o caminho ora traçado, rumo ao crescimento e à sofisticação que adviriam dos avanços sociais posteriores, inerentes a cada etapa histórica da espécie humana. Por não ser escopo do nosso estudo o aprofundamento neste tema, encaminhemo-nos ao descerramento das características marcantes da principal linha religiosa que sobreviveu a todos os tempos pretéritos, desde o seu nascedouro teleológico: a religião judaico-cristã.
2.2 Simbologia e celebrações da vida e da morte, e a religião
Nos milênios que correspondem ao começo do Período Quaternário (dois milhões de anos atrás), a morte humana e animal não diferiam entre si, simplesmente deixavam de existir biologicamente, abandonados na solidão, o homem sem merecer qualquer formalidade especial, decompondo-se naturalmente[42]como sucede com os animais até o presente (salvo excepcionais casos).
"Segundo o grau de avanço da cultura, o homem começou a dar importância à morte, atribuindo-lhe o caráter de efeito da vontade de um demiurgo superior que, assim como era criador, também era quem podia dispor da extinção da vida. Porém, foi muito posterior embora não menor, a importância que adjudicou ao começo da vida, ao nascimento. Estes dois fatos, o do nascimento e da morte, foram geradores de transcendentais figurações relacionadas com o mundo vegetal e animal, com as quatro estações e com o reflorescimento, a fecundação e a frutificação"[43].
Em que momento aproximado pode ser situada a religião como normativa da vida humana? Segundo E. O. James[44]a religião, em seu sentido mais amplo e sob as mais diversas óticas, é tão antiga quanto o é a humanidade. Todavia – destaca este estudioso – "muitas das crenças e práticas das religiões superiores antigas ou modernas afundam suas raízes em certos protótipos pré-históricos que remontam ao Paleolítico", era das pedras lascadas e afiadas para uso como ferramentas ou armas primitivas (? 2,5 milhões de anos), corroborando, ainda, as lições supracitadas de Ohanian quanto a serem três as situações que mais importavam ao homem primitivo: "o nascimento e a propagação, a subsistência e a morte" – algo bastante semelhante aos anseios que acossam o ser humanos pós-moderno.
"Durante o Paleolítico, quando a vida dependia em grande parte dos azares da caça, da colheita de raízes e frutos silvestres, da pesca, do capricho das estações e de tantas outras circunstâncias que escapavam ao domínio do ser humano, a tensão emocional e a angústia eram algo endêmico (grifamos)"[45].
Esta constatação grifada no texto ora reproduzido nos permite inferir, a priori, que haveria, já desde aquela longínqua era, uma correlação entre as bases conceituais e fundadoras da religião e as ansiedades e temores humanos, no sentido de aquelas servirem como alívio destas. Ante a absoluta impossibilidade de explicar os fenômenos naturais, de lidar com eles, de manipulá-los segundo interesses e/ou necessidades pontuais, a resposta mais coerente para essa impotência renitente residiria no inexpugnável, no indecifrável, no etéreo. O temor gerado por esses fenômenos estranhos de poder ilimitado e de periodicidade imprevisível, apontavam naturalmente na direção do abstrato, do imaterial. Depreende-se deste axioma apriorístico que as crenças e as próprias religiões formalizadas a posteriori, em suas múltiplas e dissonantes facetas, nada mais eram (e continuam a ser) que a personificação e institucionalização do medo, do temor ao desconhecido, como fórmula eficaz para fundamentar o inexplicável e, assim, minorar (ou pelo menos facilitar a assimilação de) o impacto perverso das forças da natureza.
Também James arremata este fenômeno com seu próprio pensamento:
"A fim de sublimar estas situações houve que recorrer a uma técnica ritual, que se desenvolveu para fazer frente a estas exigências e para manter o equilíbrio numa organização social e religiosa em expansão"[46].
As investigações realizadas por Gustav Anton Zeuner[47]buscando identificar quando, onde e como surgiu exatamente a religião, o levaram à colina do Osso de Dragão, nas proximidades de Pequim (capital da República Popular da China), onde certos restos da era do Pleistoceno permitiram-lhe datar em aproximadamente 500 mil anos "indícios inequívocos de que já então se dava uma ideia de que a vida se prolonga além da morte". A partir dessas descobertas, James[48]resume outras descobertas nesse sentido na Europa Ocidental e seus respectivos locais:
Ritual de sepultamento: Prática já utilizada há aproximadamente 200 mil anos (meados do Paleolítico) em locais como Le Moustier e La Ferrasie (Dordonha - França) e em La Chapelle-aux-Saints (Corrèze – França).
Vivificação do corpo mediante agentes vitalizadores: Era utilizada até o Paleolítico Superior (70 mil anos, aproximadamente), quando surgiu o homo sapiens e deixou de ser praticada.
A vivificação do corpo utilizava agentes vitalizadores como o ocre vermelho, pelos vestígios encontrados nas Covas de Grimaldi (Riviera Italiana), na Cova de Paviland (Gales do Sul) e a estação típica de Cro-Magnon (Les Eyzies – Dordonha).
Culto da fecundidade e da caça: Realizado durante o Paleolítico Superior, "desde o período aurignaciense-gravetiense até o magdaleniense, que terminou entre o 20.000 e o 10.000 a.C., quando se estabeleceu firmemente o culto da fecundidade e da caça, cujo objetivo era dominar a propagação das espécies e a provisão de alimentos, além do culto dos mortos e os ritos funerários"[49].
Interlúdio estéril: Em relação a qualquer forma de avanço no âmbito religioso na Europa do norte, em finais do quarto período glacial (aproximadamente 10 mil anos a. C.), não há qualquer registro. Já em relação à cultura, foram constatadas certas repercussões "na época de transição entre o Paleolítico e o Neolítico, chamado de Mesolítico. A caça e a colheita eram ainda o meio de subsistência, com o complemento da pesca onde esta era possível. Porém este foi um período de adaptação ao ambiente pós-glacial com suas fases sucessivas boreal e atlântica entre 6.000 e 2.000 a. C., caracterizado pelas mudanças físicas da paisagem, da fauna e da flora"[50].
O grande impulso dado à religião primitiva adveio durante o quinto milênio e alcançou as regiões compreendidas entre o Vale do Nilo e a Palestina, Síria e as mesetas de Irã, estendendo-se até os vales do Tigre e do Eufrates. Os processos de descobrimento e de difusão da agricultura e da ganadaria ganharam o mundo nos próximos milênios, imprimindo uma nova dinâmica ao processo civilizatório e também à ampliação e avanço religioso. Os novos determinantes não mais eram os rituais da fecundidade e do provisionamento de alimentos, mas o cultivo das colheitas, a sucessão das estações, a cria de gado e rebanhos, "perdendo interesse as precárias condições da caça e da colheita de plantas silvestres comestíveis"[51]. Novo impulso às crenças religiosas nascia e prosperava, propiciando o surgimento de instituições "e as estruturas sociais adaptadas aos imperativos da forma de vida agrícola e ganadeira", complementa James, apontando que dito cenário perdurou durante aproximadamente cinco mil anos e, no decurso dos dois mil anos seguintes, deu lugar à Idade do Bronze, seguida logo do ferro e dos movimentos invasores de certos povos, principalmente nas regiões da Ásia, o Mediterrâneo e a Europa.
A partir daí, para a religião – literal e simbolicamente falando – o céu era o limite, para essa que se tornaria a maior indústria zilionária de todos os tempos, isenta de tributações, cujo mercado-alvo principal é a fragilidade humana e sua necessidade de dependência de um ser abstrato, divino, celestial e todo-poderoso, a quem se deve temer e, ao mesmo tempo, adorar.
2.2.1 O Deus judaico-cristão
Uma pergunta que, historicamente, muitos se fazem: "Que fazia Deus antes de criar o Mundo? Ao que Martinho Lutero responde zombeteiro: "Ficava sentado debaixo de uma árvore cortando varas para castigar os abelhudos que fazem perguntas como essa"[52].
Merece reprodução literal a lição de Boorstin neste sentido:
"A IDEIA de uma criação original por um Criador singular todo-poderoso chegou ao Ocidente através de Moisés, o maior dos profetas hebreus. Foi ele também quem anunciou a natureza paradoxal e misteriosa do Criador. Bardos e filósofos, sacerdotes e príncipes no mundo inteiro já haviam encontrado motivos bastantes para desinteressarem do mistério da Criação. Mas esse profeta hebreu, nascido no Egito de obscuros pais imigrantes de classe servil, deixou-se chamar de embaixador plenipotenciário do Criador. E deu respostas momentosas a questões candentes"[53].
Este estudioso relata-nos que a existência do Moisés histórico é incontestável e pode ser situada, segundo estudos arqueológicos mais recentes, no século XIII a. C. (o Êxodo do Egito data de 1290 a. C.). A questão sobre o "Moisés lenda" e o "Moisés real" é complexa. A um, porque os registros arqueológicos não são precisos nesse sentido. Todavia, não se há de discutir sua existência e sua origem serviçal (como filho de hebreus, escravos do faraó Ramsés II, provavelmente). E a dois, porque a estada de Moisés na corte do faraó deve ter contribuído para a aprendizagem desse "sacerdote e político talentoso, moralista persuasivo e legislador"[54], que derivou na sua assunção como profeta do judaísmo e, em tese, fundador da comunidade de Israel (como refugiado, posto que havia assassinado um egípcio, tornando-se fugitivo do reino de Ramsés II).
O relato seguinte da sua vida é comum ao de qualquer cidadão da época. Até que, segundo os escritos do Êxodo (3:2-6), ocorreu o que historiadores religiosos convencionaram em denominar de teofania, quando Moisés apascentava o rebanho do seu sogro, no local posteriormente conhecido como Monte Sinai. Relata o Êxodo nesse excerto:
"E apareceu-lhe o anjo do Senhor em uma chama de fogo no meio de uma moita; e olhou, e eis que a moita ardia no fogo e não se consumia. E Moisés disse: Agora me virarei para lá e verei esta grande visão, por que a moita não se queima. E vendo o Senhor que Moisés se virava para ver a moita [pelo outro lado], bradou Deus para ele do meio da moita dizendo: Moisés, Moisés. E ele respondeu: Eis-me aqui. E disse o Senhor: Não te chegues para cá; tira os teus sapatos de teus pés, porque o lugar em que estás é terra santa. E disse mais: Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó. E Moisés encobriu o rosto porque temeu olhar para Deus". (Êxodo 3:2-6)[55].
Estava "criado" o "deus" imaginado por Moisés, sem testemunhas, sem comprovações concretas, sem rastos palpáveis que lhe dariam a necessária credibilidade ao seu imaginador. O nome "Deus", em seu original hebreu era Javé (ou aportuguesado, Jeová, ou ainda e segundo a conversão do tetragrama YHVH, JeHoVaH) e, como entendido à época, designava "a natureza mesma da coisa nomeada; era a coisa mesma traduzida, vocalmente ou por escrito. [...] evocava a terceira pessoa do masculino singular do presente do verbo hebreu (a língua de Moisés) que significa "ser", "existir". Dizer "Jahve" era, então, afirmar "Ele existe", "Ele está ali, presente e pronto para intervir""[56].
Esclarecem Bottéro, Ouaknin & Mongt o mistério dessa existência divina, trazendo a presente as explicações de Moisés:
"[...] só se podia conhecer a realidade articulada por seu nome: noutras palavras, unicamente que Ele existia, que Ele estava ali, presente. Pelo demais é o que intenta explicar quando relata que, havendo interrogado a Javé sobre sua identidade, conseguiu uma só resposta: "Sou o que sou", isto é, "ninguém pode saber de Mim outra coisa que minha existência, minha realidade; todo o demais é mistério, impossível de penetrar e inútil de conhecer". Ao pensar e falar assim, Moisés desejava suprimir da crença em Javé, e da religião que pretendia construir em torno a Ele, todo "antropomorfismo", literalmente, toda forma humana"[57].
Se até o advento do Deus de Moisés, vigiam o antropomorfismo e o politeísmo como fundamentos de todas as religiões já existentes e, ainda, que seus milhares de deuses assumiam a forma humana e com ela se identificavam – nada obstante fossem mais poderosos, inteligentes e imortais –, a partir de Moisés passou a existir apenas um Deus, Javé, sem forma definida, sem estrutura física, supremo em sua força, em seu poder, em sua imortalidade, e que simplesmente existia, sem necessidade de qualquer comprovação, pelo contrário, arriscar-se-ia quem ousasse exigir-lhe prova da sua existência.
Detenhamo-nos neste momento e observemos alguns questionamentos:
Por que o "deus de Moisés" se deu a conhecer apenas treze séculos (ou quinze, como alguns registram) antes da nossa era?
Por que esse episódio de "dar-se a conhecer" ocorreu especificamente e isoladamente com Moisés, sem possibilidade de comprovação?
Por que esse "deus especial, único e omnipresente, todo-poderoso" permitiu, durante milhares de séculos, a extinção de espécies, o sofrimento diuturno dos grupos humanoides pré-históricos, e, sem qualquer fundamenta que até hoje tenha sido dado de forma concreta e crível, escolheu um serviçal de um faraó, assassino confesso, para se revelar?
Por que transcorreram treze ou quinze séculos mais até que o filho dessa divindade judaico-cristã nascesse como humano e pelo sistema humano de reprodução, autoproclamando-se "filho de Deus" e "salvador do mundo" e, com seu sacrifício, fundando a maior e mais poderosa religião existente na face da Terra – o Catolicismo –, omnipotente e eterna?
Por que, sendo a fé no Deus judaico-cristão o eixo ao redor do qual gira toda uma monumental e portentosa estrutura físico-espiritual-humana, a Igreja Católica condena o fideísmo como potencial agente do "subjetivismo, sentimentalismo, fanatismo, superstição e obscurantismo"[58]? Não seria um verdadeiro contrassenso, um paradoxo inextricável?
Poderia se afirmar, peremptoriamente, que há sempre racionalidade na fé?
Análises e respostas sobre estas questões irão sendo agregadas na medida em que avançamos sobre o tema central desta tese. Todavia, diga-se desde já que tudo aponta para serias contradições nos conceitos, práticas, liturgias e mandamentos que orbitam no universo judaico-cristão. E também que, à medida que avançamos, vão ficando cada vez mais cristalinos para este escriba os indicativos dos graves erros de projeto que conformam a complexa estrutura humana, em flagrante confronto com sua ingente necessidade e, mais que isso, dependência de uma crença escravizadora umbilicalmente conectada à existência de divindades, seja do tipo e do credo que forem. É cediço tal dependência humana desde priscas eras, como já se teve oportunidade de observar em páginas anteriores. Sucede que, a partir da experiência divina de Moisés, migrou-se de um politeísmo aparentemente mais saudável (como inibidor das ansiedades e medos humanos), para um monoteísmo ditatorial (causador de ansiedades, temor e terror humanos) – outro paradoxo religioso.
Explicamos: os deuses da pré-história eram pontuais, regiam (segundo o precário intelecto humano) praticamente todos os atos e fatos humanos e todos os fenômenos da natureza, mas aparentemente não passavam disso. Eram, por assim dizer, explicações grosseiras de tudo o que fosse inexplicável para o primitivo ser. Ao surgir, com a descoberta de Moisés, um único Deus (Javé), omnipotente, onisciente, eterno e criador único de todas as coisas físicas, naturais e espirituais, a sociedade crédula passou a depender unicamente das suas rígidas regras, sob pena de, em assim não procedendo, submeter-se aos severos castigos por Ele previstos ante qualquer desvio condutual. Dentre estes, os horrores de um dantesco inferno eram apenas insignificante parcela de um largo rol de promessas de sofrimento eterno, tanto quando ainda no mundo material, como posteriormente e quando já no plano espiritual. O ordenamento humano, assim, passou a reger-se por duros determinantes ditatoriais do Deus todo-poderoso, criador do céu, da terra e do inferno, tutelados por leis rígidas que não admitiam qualquer desvio de conduta, de pensamento e até de intenção.
Neste diapasão segue o pensamento de Étienne Babut:
"[...] hoje, a linguagem comum e a própria mídia, para falar do Deus dos cristãos, identificam-no como "o Todo-poderoso". "Deus" e "Todo-poderoso" se equivalem quase como sinônimos. Daí o raciocínio seguinte, considerado irrefutável: ou Deus é todo-poderoso, e então é responsável pelo mal; ou não é todo-poderoso, e então não é Deus"[59] (grifos nossos).
A assertiva de Babut pode até ser um tanto extremista, mas decididamente possui um sólido fundo de razão. Por que o mal se acumula em nossa era (já no 21º século cristão), se reproduz com requintes cada vez maiores de sadismo e de masoquismo, se multiplica indiscriminadamente com vítimas de qualquer idade, gênero, raça, posição social, ante a impassível postura do Deus cristão? É uma questão que não quer calar e sobre a qual, no momento certo desta tese, iremos debater e expor respostas oriundas de diversas fontes – crentes e descrentes.
Por enquanto e apenas para aguçar a curiosidade do leitor, observemos a posição desta autora a respeito. Explica Babut uma das estratégias que visam escusar o Senhor dessa sua inoperância ante o crescente mal:
"A teologia escolástica pensou engenhosas elucubrações para distinguir o poder absoluto de Deus (potentia Dei absoluta), afirmado por princípio, e o poder de Deus em ação ou voluntariamente não-ativado (potentia Dei ordinata). Essa apologética trabalhosa perdurou, obstinadamente, apesar dos problemas da Igreja, apesar também da chegada da modernidade e do surgimento de uma cosmovisão apreendida não da Igreja, mas da observação, da descoberta de um mundo não-cristão, de uma razão que se mostra autônoma. Definitivamente, essa apologética não convence" (grifos nossos)[60].
As palavras de Babut estão carregadas de interrogantes dificilmente questionáveis, vez que eles deixam antever as dúvidas compartilhadas por largas e majoritárias parcelas da sociedade mundial – salvo, claro, aqueles estratos reconhecidamente fanáticos da religião cristã em amplo termo. Allan Kardec[61]em sua obra "A Gênese", acompanha tais interrogantes, não obstante o faça sob outra ótica, mas com uma análise situada no âmbito natural da religião cristã. Segundo suas próprias palavras:
"Admitido que Deus houvesse alguma vez, por motivos que nos escapam, derrogado acidentalmente leis por Ele estabelecidas, tais leis já não seriam imutáveis. Mesmo, porém, que semelhante derrogação seja possível, ter-se-á, pelo menos, de reconhecer que só Ele, Deus, dispõe desse poder; sem se negar ao Espírito do mal a onipotência, não se pode admitir que lhe seja dado desfazer a obra divina, operando, de seu lado, prodígios capazes de seduzir até os eleitos, pois que isso implicaria a ideia de um poder igual ao de Deus. E, no entanto, [é] o que ensinam. Se Satanás tem o poder de sustar o curso das leis naturais, que são obra de Deus, sem a permissão deste, mais poderoso é ele do que a Divindade. Logo, Deus não possui a onipotência e se, como pretendem, delega poderes a Satanás, para mais facilmente induzir os homens ao mal, falta-lhe a soberana bondade. Em ambos os casos, há negação de um dos atributos sem os quais Deus não seria Deus"[62].
O Kardecismo e sua lógica pura, representados nas palavras do seu fundador, Allan Kardec, parecem dificilmente refutáveis. Para ilustrar o que afirma, Kardec apela a uma comparação entre os bons milagres de Deus e os maus milagres de Satanás, distinguidos pela Igreja. Em seu raciocínio lógico, Kardec deduz em primeiro lugar que, em havendo um milagre, haverá sempre uma derrogação de leis emanadas unicamente de Deus: "Se um indivíduo é curado por suposto milagre, quer seja Deus quem o opere, quer Satanás, não deixará por isso de ter havido a cura. Forçoso se torna fazer pobríssima ideia da inteligência humana para se pretender que semelhantes doutrinas possam ser aceitas nos dias de hoje". Em outras palavras e em se aceitando a existência de milagres, independentemente de quais sejam suas origens, o milagre será um efeito natural de Espíritos desencarnados ou encarnados, "como de tudo, como da própria inteligência e dos conhecimentos científicos de que disponham, para o bem ou para o mal, conforme neles preponderem a bondade ou a perversidade", arrematando: "Valendo-se do saber que haja adquirido, pode um ser perverso fazer coisas que passem por prodígios aos olhos dos ignorantes; mas quando tais efeitos dão em resultado um bem qualquer, fora [seria?] ilógico atribuir-se-lhes uma origem diabólica" (grifos nossos).
Não parece possível aos incrédulos, que os crédulos cristãos consigam assimilar todos os males já provocados às sociedades humanas desde que estas existem. Parece sim, mais plausível crer na incredulidade dos que refutam qualquer religião, quando se deparam com os horrores cometidos pelo ser humano em toda sua larguíssima existência. E diga-se mais ainda: quando muitos desses horrores partiram de ações provocadas pela própria Igreja Cristã (como nas Cruzadas e na Inquisição, na sombria Idade Média, apenas para citar dois dos exemplos mais marcantes), a pretexto de reunificar o mundo cristão e de estar combatendo o Demónio por meio de estratégias execráveis como a tortura, a imolação em fogueiras, o lento extermínio em masmorras infernais, a violenta usurpação de propriedades e valores privados, a desagregação familiar e por aí afora. E isto sem mencionar o hediondo crime de pedofilia e de abuso sexual genérico, praticados desde sempre e persistentes até os nossos dias, como a própria história os registra e como a própria Igreja Cristã acabou reconhecendo-os, procedendo ao extemporâneo mea maxima culpa (Confiteor).
Que explicações poderia a Igreja Cristã prestar às sociedades em geral, chocadas com o extermínio de grupos inteiros de indivíduos, com a morte súbita de inocentes recém-nascidos, com os conflitos bélicos intermináveis, com a criação descontrolada de armas de destruição massiva, com a deterioração ostensiva, mundializada e crescente dos conceitos e práticas mais básicas da moral e da ética, com a destruição consciente do planeta e dos seus indefesos seres naturais em amplo espectro? Até o presente, decorridos 21 séculos da Era Cristã e estando em curso o 22º século (um século a. C. e vinte séculos depois de Cristo), quais foram os efetivos avanços trazidos pela Igreja Cristã ou por qualquer outra igreja e/ou religião? Eram mais felizes e menos castigados (em sentido amplo) os nossos antepassados pré-históricos (politeístas) do que hoje, com todo o avanço científico, tecnológico, social, cultural, conjuntural, de qualidade de vida, sob o signo do monoteísmo descoberto por Moisés? Que dizer, então, do massacre de milhões de judeu-cristãos, exterminados sumariamente e de formas as mais cruéis possíveis, pelos nazistas durante a segunda Guerra Mundial? Onde estava o Deus Cristão enquanto isto ocorria com homens, mulheres, crianças e idosos?
Incontáveis são as obras que se sucederam a partir da cristianização das sociedades humanas, mas poucas são aquelas outras que analisam, com critérios bem definidos e segundo padrões terrenos de compreensão, quem é esse Deus Cristão. Tudo é vago, subjetivo, abstrato, etéreo, simbólico, parabólico, enquanto o processo de deterioração da humanidade, na contramão do discurso divino, cresce a olhos vistos e perde referências tão fortes quanto o eram em passados distantes, longínquos. É um insofismável processo crescente de distanciamento consentido entre o Deus Cristão, criador do céu e da Terra, e a realidade grotesca em sua crua nudez, sem retoques nem elucubrações.
CAPÍTULO 2
(Conceitos consentâneos)
"Con relación al mundo material, nos ha sido dable sentar esta conclusión: sabemos definitivamente que los acontecimientos tienen lugar, no por la intervención del poder divino, ejercitada aisladamente en caso particular, sino por el funcionamiento de las leyes naturales" (WHEVELL Apud DARWIN, 1963)[63].
"La única acepción clara y precisa de la palabra "natural" es la que envuelve cosa enunciada, fijada o establecida; porque lo que es natural requiere y presupone un agente intelectivo que determine su realización, esto es, que lo produzca continuamente o en tiempo regular, tanto como lo que es sobrenatural o milagroso requiere la fuerza que lo efectúe inopinadamente y de una sola vez" (BUTLER Apud DARWIN, 1963).
"Nadie ha de pensar ni sostener, basado en débil concepción de sensatez o en ecuanimidad equivocada, que le es dado al ser humano escudriñar muy lejos o estudiar demasiado en el libro de la palabra de Dios o en el libro de las obras de Dios, en la teología o en la filosofía; más bien habremos de esforzarnos los hombres procurándonos en ambos conocimientos un aprovechamiento continuo y un perfeccionamiento cada vez mayor" (BACON Apud DARWIN, 1963).
Darwin (1809-1882), naturalista britânico de reconhecido nome, criador e defensor da teoria da evolução das espécies por meio da seleção natural e sexual, nesta primeira parte da sua extensa obra, aborda importantes aspectos que intentam comprovar algumas teses que merecem sua breve análise e considerações pertinentes. As citações que abrem este capítulo (Whewell, Butler, Bacon), reproduzidas por Darwin, serviram a esse estudioso como fundamento orientador deste Livro Primeiro.
Não entraremos em detalhes sobre sua teoria, já que ela corre em paralelo com o que defendemos, ademais de ser mais ampla e detalhada, o que não se constitui no escopo deste estudo.
Uma primeira constatação que Darwin apresenta em base ao seu colega Hooker, advém dos longos estudos deste, que derivaram num importante achado: "as distintas espécies não foram independentemente criadas, senão que descendem, como variedades, de outras espécies"[64]. E para tanto, são influenciadas por fatores externos provenientes do meio ambiente e internos dos seus próprios mecanismos biológicos. Mas há mais, bem mais que essa aparente e singela fórmula.
De acordo aos estudos de Stanley (1986), a tradição pré-darwinista "em classificar hierarquicamente os indivíduos, reflexo da configuração da árvore, com seus braços maiores e suas correspondentes ramificações que representam as classes, outras divisões menores que correspondem às ordens etc., até chegar às espécies, equivalentes às mais pequenas ramificações"[65], seguia rumo ditado pelo sentido comum, nada obstante contradissessem as quatro cadeias de Cuvier[66]
Os quatro tipos de Cuvier[67]em suma, englobavam todos os animais e cada um destes, por sua vez, em várias classes, como representado na Ilustração 8. À teoria cuvieriana iria contrapor-se posteriormente a tese de Saint-Hilaire, um dos representantes do transformismo para quem existiria uma ordem mundial unificada e harmoniosa que fundamentaria a existência de uma unidade do plano estrutural de todo o reino animal[68]ou seja, contrariamente ao que Cuvier defendia, existiria uma continuidade entre os grupos, uma cadeia de seres que pressupunha a existência de indivíduos intermediários entre as classes.
Fonte: Reproduzido de Buffon (1854, p. 15).
Ilustração 8 – Os quatro tipos de animais e suas respectivas classes.
A tese era atraente: todo ser vivo começaria a vida com uma única célula e, a partir de aí, se ramificaria em quatro vias equivalentes àquilo que Cuvier convencionou em denominar de embranchements (ramificações). A partir desta teoria, Baer assumiu a compreensão de que o desenvolvimento dos indivíduos seria em forma de progressão, indo do generalizado ao especializado, base hipotética que iria posteriormente servir como um dos fundamentos da teoria darwiniana da evolução por seleção natural[69]
Mas, efetivamente ocorreu isso em nossa realidade terrestre? Poderia se denominar de desenvolvimento dos indivíduos como uma forma de progressão rumo ao especializado? O ser humano estaria se aperfeiçoando através dos tempos, em direção à excelência de vida e de compartilhamento social pacífico e construtivo, em perfeito equilíbrio com a natureza e com cada uma e toda sua larga seleção de espécies (hoje estimada em mais de 10 milhões de diferentes tipos)? As expectativas das próximas gerações, em base ao comportamento das atuais e das mais recentes por aqui transitadas, digamos, nos últimos dois mil anos (apenas para definir um marco temporal mais jovem) estariam sinalizando para um horizonte promissor em amplo termo?
Eis um questionamento que não quer calar, tal a complexa celeuma que o fundamenta e, ao mesmo tempo, o sufoca na profusão difusa de mentes desordenadas e desorientadas.
1.1 O que é a Verdade?
A verdade é uma mentira oficializada. Uma mentira universalmente sancionada que intenta disfarçar o desconhecimento da verdade verdadeira. Aquela que não há como elucidar. Pela mente de um famoso poeta espanhol contemporâneo – Ramón de Campoamor (1871-1901) – exsurge emblemática frase sobre a verdade: "E eis que neste mundo traidor, não há verdade nem mentira: tudo é segundo o cristal com que se mira". Noutras palavras, há tantas verdades quantas são as bilhões de interpretações humanas, mas há apenas uma mentira universalizada (tornada verdade) através das crenças religiosas, i.e., das explicações metafísicas, as quais carecem de explicação plausível e palpável, mantendo-se no universo do subjetivismo absoluto.
Um dos clássicos estudiosos que disserta sobre a verdade é Karl Popper, tido como o filósofo de maior influência durante o século XX em seu labor de tematizar a ciência. Para este cientista austríaco, naturalizado britânico, a disputa acerca do relativismo epistemológico se situa no desvendamento de a verdade ser o não ser absoluta. Sua tese sustenta a inexistência de uma verdade absoluta ou objetiva. E para tanto, fundamenta que coube a Alfred Tarski reabilitar essa teoria sobre a verdade:
"El mayor logro de Tarski y la auténtica importancia de su teoría para la filosofía de las ciencias empíricas radica en que él rehabilitó la teoría de la verdad absoluta u objetiva como correspondencia (Popper [1972], p.223).[70]
Vejamos como se comporta Torski no desenvolvimento da sua teoria. A noção de verdade na teoria torskiana apresenta duas caracterizações: o primeiro grupo caracterizador são as equivalência (V) obtidas a partir do esquema de oração (sentença), no seguinte formato:
V = "X é verdadeira se e apenas se "p", através da substituição de "X" por um nome metalinguístico de uma oração da linguagem-objeto e de "p" pela tradução metalinguística de dita oração. No caso de a metalinguagem conter a linguagem-objeto como parte, a tradução metalinguística de uma oração será essa mesma oração; é o que ocorre no famoso exemplo de equivalência-V: (a oração) "A neve é branca" é verdadeira se e tão-só se a neve for branca. [...] uma definição de verdade para uma linguagem-objeto determinada é extensivamente adequada se dela são deriváveis todas as equivalências-V formuláveis com as orações de dita linguagem".[71]
A segunda característica é a correspondência em base à noção de satisfação e, na prática, é esta que possui maior valor, quando em relação à primeira que ora apresentamos. Neste sentido, preleciona José Francisco Martínez Solano:
"[...] a concepção semântica de Tarski sim constitui uma boa aproximação à teoria da correspondência desde a redução à noção de satisfação. Entre eles está Fernández Moreno, que é desta opinião. Sustenta que a Teoria da Verdade de Tarski deve entender-se como uma teoria da correspondência, porque Tarski adotou o sentido referencial próprio das relações entre linguagem-objeto e metalinguagem, bem como das equivalências (V)".[72]
Assim, a Teoria da Verdade de Tarski associaria entidades linguísticas – a exemplo das funções sentenciais – a entidades do mundo (objetos ou sequências de objetos), mediante a correspondência entre elas (verdade por correspondência). A noção de verdade em Tarski, portanto, poderia ser entendida como sendo uma verdade objetiva, mas não absoluta. Ou segundo o entendimento de Haack, em sua crítica à interpretação da verdade de Tarski por Popper, "o mesmo enunciado pode ser verdadeiro numa linguagem e falso, ou sem sentido, noutra. A relatividade linguística (language-relativity) também se requer para evitar os paradoxos semânticos"[73].
Verdade literal, verdade formal, verdade absoluta, verdade relativa, verdade como representação fiel da realidade, o certo é que as teorias que transitam à procura da verdadeira verdade são – com todo respeito pelos seus autores – confusas e pouco ou nada acrescem de concreto, irrefutável, definitivamente certo.
Assim é que, depois de intermináveis, desgastantes e complexas leituras, deparamo-nos com o "Dicionário Lógico", de Elí de Gortari, um lógico e filósofo da ciência, mexicano, também contemporâneo (1918-1991), que impulsionou o materialismo dialético – sistema filosófico oposto ao idealismo filosófico –, cujo centro teórico é tudo aquilo que o famigerado marxismo-leninismo defende. A noção de verdade absoluta para Gortari – compreensível em seu materialismo extremista – é bem menos confusa do que as supra-expostas; por ela, a verdade absoluta seria:
"A correspondência estrita entre a realidade objetiva e sua representação racional. É o limite ao qual tende o conhecimento científico. Toda ideologia está condicionada historicamente; porém, é incondicional que a toda ideologia científica, a diferença das outras ideologias, lhe corresponde uma verdade objetiva, a qual representa a existência absoluta do universo. Admitir a existência de uma verdade absoluta é equivalente a admitir a existência do universo objetivo, admitir que nossos conhecimentos refletem a verdade objetiva. [...] O fato certo é que a verdade absoluta se vai descobrindo por etapas, à medida que o conhecimento científico progride. A verdade absoluta é um processo, que se realiza através da atividade prática humana, da tecnologia e do conhecimento científico teórico e experimental. Tal processo é perfectível, não está dado, é de caráter intrinsecamente dialético e, portanto, não é imutável. Similar caráter do conhecimento, de ser um processo interminável, é o que permite diferenciar entre a verdade absoluta e a verdade relativa".[74]
Acorde com o "Dicionário de Filosofia", de Gérard Durozoi & André Roussel[75]qualquer forma de materialismo que despreze, como cerne analítico, tudo aquilo que não for matéria e que admita o pensamento como uma qualidade desta, se insere no largo rótulo de materialismo. Precedido na História Antiga pelo Epicurismo (de Epicuro de Samos [341 a.C. – 270 a.C.], filósofo grego do período helênico), já fundamentava sua crença no total menosprezo dos aspectos da religiosidade e do espiritualismo, fator que iria alterar-se, séculos depois, com o surgimento do cristianismo.
A filosofia materialista dialética (de Marx) defende, em suma:
"[...] o universo como um todo rigorosamente material e dinâmico, afirma a reciprocidade das ações entre fenômenos (qualquer efeito torna-se causa e inversamente), o aparecimento de modificações qualitativas consecutivas ao acúmulo de mudanças quantitativas e a existência, no real concebido desse modo, de contradições internas cuja solução progressiva constitui o fundamento da história".[76]
Até aqui, destarte, observamos que a verdade já passou por vários prismas, nada obstante ainda não nos satisfaça em sua capacidade de permitir-nos estruturar a teoria da vida, em termos razoavelmente neutros (omni-compreensível). Que tal, então, incursionar pelo lado espiritual? Comecemos pela filósofa e teóloga alemã, Edith Stein (1891–1942) e sua perseguição incessante da verdade.
Para quem já transitou entre a fé devota e a decepção religiosa, retornando novamente à fé perdida, como é o caso de Edith Stein, a procura pela verdade tornou-se um desafio de expressiva dimensão. Desde seus anos juvenis, esta filósofa-teóloga perseguia a verdade em seus critérios científico, de conhecimento e de conteúdo da fé, sempre orientada, porém, pela verdade associada à veracidade, como sua condição sine qua non. Movia-a também uma aspiração ética: "o verdadeiro tem que ser também bom"[77]. A verdade, assim, não orbitava no campo do abstrato; tinha que estar vinculada com as questões antropológicas que inquietavam Stein e também todos aqueles indivíduos que deploravam o agnosticismo.
Sem embargo, era incisiva em sua defesa irretratável de que "A verdade eterna iluminava na Igreja, não na universidade"[78] – algo que, respeitosamente, nos parece beirar o extremismo, ou melhor, o fanatismo religioso, mas que não desmerece a capacidade de estudiosa desta mulher, figura histórica em seu sofrido percurso de vida.
Edith Stein, em suma, entende a verdade para os seres humanos como o conhecimento até um ponto indeterminado que marca o limite entre o compreensível e o incompreensível. Em suas palavras e em referência ao entendimento racional e sua limitação, quando se trata de procurar a verdade mais elevada, o homem defronta-se com uma bifurcação existencial:
"[...] ou se destroça na desesperação ou se inclina com reverência ante a verdade insondável e recebe humildemente como um presente o que a atividade natural do entendimento não pode conquistar. Então, o intelectual recebe na luz da verdade eterna a orientação correta para seu próprio intelecto. Vê que o entendimento humano não pode desvendar as verdades últimas e mais elevadas".[79]
Santo Tomás de Aquino foi o inspirador do pensamento de Edith Stein. Em sua "Summa Theologica" (1265 a 1273), este frade, teólogo e santo da igreja católica, define que "enquanto o bem é o fim do apetite, o verdadeiro é o fim do entendimento"[80]. Portanto, para Aquino, o ser está na coisa em si, enquanto a verdade está na essência (entendimento) da coisa. Kirchof traduz o pensamento de Aquino:
"A coisa considera-se verdadeira na medida em que possui a forma própria da sua natureza, enquanto o entendimento considera-se verdadeiro quando é capaz de reter e de agir sobre a imagem (phantasma) da coisa conhecida. A verdade situa-se, por conseguinte, na conformidade (adequatio) entre o entendimento e as coisas, alcançada através da capacidade divisiva e compositiva do entendimento" (destaques no original).[81]
Sob a ótica tomista se observa que a base fundamental do raciocínio reside na figura divina (Deus) como responsável pelo Ato puro e criador das coisas, a verdadeira Suprema Verdade, explica Kirchof. Assim, a verdade se situaria extra intelecto revelando uma humana divindade. Em sentido prático, Aquino resolve a complexa equação com a simbologia abstrata, etérea do ser superior, pacificando o teorema.
Heidegger (1889–1976) complica ainda mais a compreensão do conceito de verdade. No final da segunda década do século XX, este filósofo alemão propunha a verdade como representação da liberdade. Josef Pieper, em seus escritos sobre o conceito de Filosofia (volume III da sua obra), questiona de pronto a construção desse conceito e assim se refere a ele:
"Não se pode dizer que na determinação essencial da verdade como liberdade se cumpra o que normalmente se exige de uma definição, a saber, que o que se define seja mais conhecido do que o definido. Não se remete a quem pergunta pela essência da verdade a algo ainda menos evidente, a algo ainda mais complicado?".[82]
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