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3.1 – CONCEITOS ELEMENTARES APLICADOS À JURISPRUDÊNCIA
As decisões judiciais, em regra, reafirmam os mesmos conceitos e princípios já abordados. Todavia, mesmo dominando a base teórica e conceitual que envolve o tema, sua aplicação na prática demonstra-se complexa e exige muita cautela por parte do magistrado quando da análise de sua aplicabilidade.
Apenas a título de ilustração, apresento aqui o acórdão proferido no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em 1987, o qual se destaca por ter sua construção em plena consonância com a doutrina já analisada, servindo de referência para a compreensão da capitulação do dolo eventual aos crimes de trânsito49:
RELATÓRIO:
1. PHS foi denunciado, (...) como incurso no disposto pelo art. 121, caput, do Código Penal e art. 62 da Lei das Contravenções Penais, em face dos fatos (...):
(...) o denunciado PHS, dirigindo o caminhão Merdes-Benz(...), embriagado, atropelou conscientemente e matou Arneu Rieger, ocasionando-lhe múltiplas fraturas na cabeça e no tronco com desorganização total da massa encefálica. (...) o denunciado dirigia o veículo Mercedes-Benz em direção a Três Passos, vagarosamente. Repentinamente, o denunciado trocou de pista, ficando na contramão, mas sempre em direção à cidade de Três Passos e, nessa posição, atropelou a vítima, que caminhava junto à sarjeta. JLE, que tudo presenciara, correu ao local, pois o caminhão parara, mas permanecia funcionando. Ao ver a vítima caída, junto ao rodado esquerdo do caminhão, JLE bateu na cabine do caminhão e disse ao denunciado: Pare que tem gente debaixo do caminhão. Dito isto, o denunciado tentou arrancar o veículo e não conseguiu, deixando o caminhão recuar meio metro, aproximadamente. Então, arrancou acelerando fortemente o veículo e passou sobre o corpo da vítima.
JLE continuou gritando e correu atrás do caminhão, pedindo que o denunciado parasse, mas não foi atendido. Nessa ocasião, JLE viu a placa do caminhão, que era XB-0534. Ao retornar à sua mão de direção (lado direito da estrada), o denunciado quase atropelou a menina CMS que transitava naquele local.
2. Ao final, foi pronunciado nos termos da pretensão ministerial(...).
VOTO DO RELATOR:
A prova indica que o réu foi advertido pela testemunha JLE, sobre a presença de uma pessoa sob o caminhão e que, apesar dessa advertência, não tomou nenhuma providência no sentido de evitar o acidente. Ao contrário, deu partida ao veículo.
Ora, Sr. Presidente, esse desinteresse pela sorte daquela que viria a ser a vítima é que extrema, que caracteriza a diferença entre dolo eventual e culpa consciente. O réu demonstrou nenhuma importância pelo que poderia ocorrer. Não se trata de ter confiado não ocorresse o resultado, porquanto o que existe nos autos até o momento está a indicar ter havido, realmente, um desinteresse real pela sorte da vítima. E isso é o quantum satis para deixar caracterizado o dolo eventual. Trata-se, a pronúncia, de uma peça de cognição incompleta, cabendo assim, ao Júri, posteriormente, examinar a correção, ou não, da tese acusatória.
Meu voto é no sentido da confirmação da decisão de pronúncia.
Presidente (Des. Marco Aurélio C. M. Oliveira):
Ouvindo o voto de V. Exa., lembrei-me daquela velha lição de Nelson Hungria: Toda vez que o réu age na dúvida, a sua conduta gravita na órbita do dolo eventual. (...) De maneira que quanto a esse fundamento, em relação a esse ponto de vista, acompanho a manifestação do eminente Relator.
O Des. Cristovam Daiello Moreira
De acordo. Acredito até que ele não agiu na dúvida, agiu indiferente à dúvida.
Através de uma análise minimamente atenciosa é possível perceber que trata-se de hipótese de ocorrência de dolo eventual pois, ao contrário da maior parte dos casos submetidos ao judiciário, neste é facilmente identificável a indiferença com que a agente agiu com relação à produção do resultado morte da vítima.
Mesmo após ter sido alertado por um transeunte da existência de uma pessoa caída próxima às rodas do veículo, o condutor acelerou o veículo, passando por sobre o corpo da vítima, eliminando qualquer possibilidade de sobrevivência, evidenciando assim sua anuência do agente para com o resultado. A previsibilidade do evento também fica comprovada pelo fato do condutor estar embriagado, o que demonstra que, assumiu os riscos de um possível evento, uma vez que os efeitos do álcool sob a coordenação do motorista são notórios.
Nota-se que esta interpretação foi assimilada tanto pelo juiz que prolatou a decisão de pronúncia em primeira instância, como pelo relator, o qual afirmou que “(...) esse desinteresse pela sorte daquela que viria a ser a vítima é que extrema, que caracteriza a diferença entre dolo eventual e culpa consciente”.
Embora o desembargador Marco Aurélio C. M. Oliveira também se posicione pela ocorrência do dolo eventual, declara haver dúvida sobre o animus dolandi do agente, invocando o princípio in dubio pro societate para justificar a decisão de pronúncia. Esta afirmativa é contestada pelo desembargador Cristovam D. Moreira que, de forma acertada, defende que o agente agiu de forma “indiferente à dúvida”.
Na realidade, a conduta do autor do fato neste caso foi tão desumana e reprovável que chega a ensejar o entendimento de dolo direto.
3.1.1 – Desclassificação de Modalidade
Passaremos agora a analisar uma decisão judicial em que, ao contrário da anterior, não há acolhimento do dolo eventual, ocasionando a desclassificação do crime da modalidade dolosa para a culposa.
Norteando-se pelos fundamentos já explorados no item 2.2.3, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul decidiu pela desclassificação da imputação do crime do dolo eventual para a culpa consciente em ocorrência de atropelamento50 do qual resultaram duas vítimas fatais:
RELATÓRIO:
Marcelo N. R. foi denunciado por infração ao artigo 121, caput, por duas vezes, pelo artigo 129, § 1º, I e II, e pelo artigo 69, todos do Código Penal, porque (...), dirigindo uma camionete tipo D-10, em velocidade acima da permitida para o local e sob efeito de bebida alcoólica, perdeu o controle do veículo, vindo a subir na calçada e a colher duas senhoras, que faleceram em conseqüência de terem sido atingidas pelo veículo, além de ferir uma terceira pessoa.
Foi o ora recorrente preso e autuado em flagrante e mantido preso até que o Juiz de Direito da Vara do 1ª Tribunal do Júri desta Comarca, entendendo que o réu não agiu com dolo, quer direto, quer eventual, desclassificou a infração para a competência do Juiz Singular, dando-o como incurso nas penas do artigo 121, § 3º, e 129, § 6º, ambos do Código Penal.(...) Dessa decisão, o Ministério Público (…) interpôs recurso em sentido estrito, pretendendo, nas extensas razões, que o réu seja pronunciado nos termos da denúncia e julgado pelo Tribunal Popular. (...)
VOTO DO RELATOR:
As provas existentes nos autos, (...) já havia gerado uma certa divergência no sentido da competência, visto que a propensão era de serem os autos encaminhados à Justiça Criminal Comum e não a uma das varas da competência do Júri. (...) Todavia, em que pese ter sido a denúncia recebida como sendo da competência do Júri, ao longo da construção criminal restou evidenciado, de forma cabal, tratar-se de um delito de acidente de trânsito, delito este culposo por excelência. (...) Não há provas nos autos de que o réu tivesse a menor das intenções de provocar as mortes e as lesões imputadas como sendo dolosas. (...) Pouco importa o fato de estar o réu sob efeito de substância alcoólica ou de efeito análogo, em quantidade superior àquela prevista na lei de trânsito, pouco importa também se o recorrido imprimia velocidade um pouco superior àquela que seria o limite razoável. O que importa é saber se, dirigindo o veículo sob efeito de substância alcoólica, imprimindo velocidade um pouco superior à permitida, a manobra por ele praticada, que implicou a perda do controle do veículo e conseqüente atropelamento das vítimas, foi acidental ou teria ele manobrado de maneira a aceitar um possível resultado danoso.
O dolo eventual pressupõe que o agente pratica a ação aceitando um resultado que, embora não queira, uma vez alcançado, era perfeitamente previsível, ou seja, embora não queira o resultado admitia que poderia ocorrer, enquanto, na culpa, o agente dá causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia, ou seja, a ocorrência de um resultado não procurado nem admitido, embora haja a previsibilidade da ocorrência, que é diferente da aceitação de um resultado como alternativa. (...) Desse modo, o recorrido deu causa ao resultado, perdeu o controle do veículo e o veículo, totalmente desgovernado, é que subiu à calçada e acabou por atingir as vítimas, e ainda causou dano material em um imóvel. (...) Se o réu nem sequer tinha o controle do veículo, não há querer lhe imputar a prática de um ato voluntário, tendente à obtenção de um resultado. (...) Rejeito o recurso na sua pretensão de ver na conduta do réu Marcelo N. R. um dolo, quando, na realidade, a sua conduta ajusta-se àquela definida como culpa stricto sensu ou culpa propriamente dita, que não pode nem deve ser confundida com culpabilidade.
Note-se que, nesta decisão o relator afirma de forma taxativa que os crimes de trânsito são “culposos por excelência”, com esta redação o magistrado admite já possuir um juízo previamente formado sobre a inadmissibilidade da incidência do dolo eventual aos crimes de trânsito, indiferente às circunstâncias que envolvam o fato. Sendo esta a postura adotada pelo magistrado, não lhe resta outra opção a não ser pela desclassificação do crime da modalidade dolosa para a culposa.
Embora toda a doutrina pesquisada posicione-se de forma uníssona sobre a necessidade da identificação do animus dolandi para que se configure o dolo eventual, o juiz não deve esperar fórmula psíquica ostensiva, devendo extrair o elemento subjetivo do crime dos fatos concretos. Não cabe ao magistrado desvendar o que se passava pela mente do agente no iter criminis, pois caso assim proceda, estará incapacitado a identificar a conduta dolosa.
Como já demonstrado anteriormente, o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou afirmando que ao embriagar-se voluntariamente, o agente assume os riscos advindos de sua conduta posterior. Ademais, a jurisprudência é firme no sentido de pronunciar o réu em caso de dúvida, aplicando-se o princípio in dubio pro societate.
No caso em tela, não restando dúvidas quanto à voluntariedade da embriaguez, não nos parece ter sido a posição defendida pelo ilustre desembargador a mais acertada. Deveria ter decidido pela pronuncia do réu eis que, naquele estágio processual vigorava o princípio do in dubio pro societate.
3.2 – Admissibilidade do Dolo Eventual aos Crimes de Trânsito
Como já foi abordado anteriormente, para que ocorra o dolo eventual, faz-se necessária a previsibilidade do resultado e o consentimento do agente para com o resultado. Com base neste último pressuposto, parte da doutrina entende pela inadmissibilidade do dolo eventual em crimes de trânsito que resultem em dano potencial ao próprio agente, como colisões frontais e transversais.
Esta corrente doutrinária parte da hipótese de que não é razoável admitir que em determinadas condutas — como por exemplo forçar ultrapassagem pela contramão em via de mão dupla — o agente aceite a possibilidade de colidir frontalmente contra outro veículo, colocando sua própria integridade em risco.
Para esta corrente, acreditar que este condutor consentiu com a possibilidade de uma colisão frontal, expondo sua própria vida ao risco de morte, implica acreditar que o agente agiu imbuído de um desejo suicida.
Desta mesma forma posicionou-se o ilustre professor Nelson Hungria51 ao relatar caso real que acompanhou no Estado do Rio Grande do Sul:
Dentre alguns casos, a cujo respeito fomos chamados a opinar, pode ser citado o seguinte: três rapazes apostaram e empreenderam uma corrida de automóveis pela estrada que liga as cidades gaúchas de Rio Grande e Pelotas. A certa altura, um dos competidores não pôde evitar que o seu carro abalroasse violentamente com outro que vinha em sentido contrário, resultando a morte do casal que nele viajava, enquanto o automobilista era levado em estado gravíssimo, para um hospital, onde só várias semanas depois conseguiu recuperar-se. Denunciados os três rapazes, vieram a ser pronunciados como co-autores de homicídio doloso, pois teriam assumido ex ante o risco das mortes ocorridas. Evidente o excesso de rigor: se estes houvessem previamente anuído a tal evento, teriam, necessariamente, consentido de antemão na eventual eliminação de suas próprias vidas, o que é inadmissível. Admita-se que tivessem previsto a possibilidade do acidente, mas, evidentemente, confiariam em sua boa fortuna, afastando de todo a hipótese de que ocorresse efetivamente. De outro modo, estariam competindo, in mente, estupidamente, para o próprio suicídio.
Neste mesmo sentido manifestou-se Wunderlich52 — ferrenho defensor da inaplicabilidade do dolo eventual aos crimes de trânsito — ao declarar que o dolo eventual “(...) não é um ‘dolo de borracha’. A elasticidade do conceito é tamanha que chegamos ao ponto de tentar caracterizar o dolo eventual em acidentes de trânsito, onde, num raciocínio lógico, seria impossível admitir-se a presença do elemento volitivo”.
Em outra decisão polêmica53 proferida pelo desembargador Reynaldo Ximenes Carneiro, ao analisar caso de atropelamento que resultou na morte de uma vítima e na perda do membro inferior de outra, causado por condutor em estado de embriaguez e excesso de velocidade, o magistrado decidiu pela ocorrência da culpa consciente por entender pela impossibilidade da incidência de dolo eventual nos crimes de trânsito.
No referido acórdão, o relator alega que “em tema de delitos de trânsito, não se coaduna com o entendimento de que possa estar o agente imbuído do elemento subjetivo relativo ao dolo eventual...”.
Com a devida vênia, esta não parece ser a interpretação mais adequada. São inúmeras as decisões, em todos os Estados brasileiros, que acolhem a possibilidade da incidência do dolo eventual aos crimes de circulação, sendo esta também a posição mantida pelos tribunais superiores.
Quando da análise do mesmo processo pelo STJ em sede de recurso extraordinário, o ministro Gilson Dipp54 (STJ) reformou a referida decisão, fundamentando com a alegação de que
O Tribunal a quo desclassificou a conduta do réu para a modalidade culposa, sob o fundamento de que em delitos de trânsito não se admite a hipótese de dolo eventual, uma vez que o agente não assume o risco de produzir o resultado. (...) É descabida a tese de que os delitos decorrentes de acidentes de trânsito são sempre culposos, por se tratar de uma generalização, não admitida por esta Corte. (...) Reconhecida, na sentença de pronúncia, a ocorrência de dolo na conduta do agente, não cabe a sua exclusão sob o frágil fundamento de que os delitos de trânsito só são puníveis à título de culpa.
Ainda nesta mesma esteira posicionou-se o ministro José Arnaldo da Fonseca ao afirmar que “este Egrégio Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre não ser possível ‘generalização no sentido de se excluir, sempre, o dolo em delitos praticados no trânsito’”55.
3.3 – Afronta ao Princípio da Legalidade pelo Poder Judiciário
3.3.1 – Mudanças Advindas da Lei 9.503/97 e o Dolo Eventual
Em tese o advento da Lei 9.503/97 não teria o condão de alterar o entendimento dos Tribunais sobre a questão da incidência do dolo eventual, haja vista que não houve absolutamente nenhuma mudança na teoria do dolo e da culpa adotadas pelo legislador, eis que estas encontram-se no Código Penal.
Seria leviano afirmar categoricamente que houve incremento substancial no número de julgados acatando a ocorrência de dolo eventual nos crimes de trânsito, haja vista que, para apurar este fenômeno de forma isenta seria necessário efetuar levantamento estatístico de todos os julgados de uma determinada área, realizando-se então a comparação antes e após a vigência da Lei 9.503/97.
Todavia, a hipótese acima mencionada (acréscimo no número de julgados amparados no dolo eventual após o ano de 1997) foi citada em mais de um artigo pesquisado, o que nos faz acreditar que o referido fenômeno esteja realmente ocorrendo, a ponto de se fazer sentir na prática pelos operadores do direito.
Esta alteração se fez tão perceptível que o Juiz de Direito, Dr. Leandro Passig Mendes56 abordou o fenômeno em sentença criminal:
Particularmente nos chamados crimes de trânsito, que até bem pouco tempo não possuíam diploma legislativo específico, que ocorreu com a vigência da Lei n° 9.503/97, que tipificou os delitos cometidos na direção de veículos automotores e aumentou sensivelmente as punições penais e administrativas, a questão mereceu tratamento bastante diversificado, não sendo raros os casos de pronúncia em infrações dessa natureza, que contaram com o apoio da mídia e de parcela significativa da população, abalada com os elevados índices de mortes no trânsito. (...) Antes da vigência da Lei n° 9.503/97, evidentemente, a matéria relativa aos crimes de trânsito não tinha disciplina específica e as mortes ocorridas eram tipificadas no art. 121, § 3°, do Código Penal, com pena de detenção entre um e três anos, que não raramente acarretavam penas menores que geralmente eram substituídas por restritivas de direitos, conforme a previsão do art. 44 do Código Penal. (...) Todavia, a falta de legislação específica sobre a matéria e punições diferenciadas daquelas previstas pela lei penal comum para os crimes de trânsito não podem ser utilizadas como argumentos válidos para que haja ampliação indevida do conceito de dolo eventual, com flagrante violação dos princípios do direito penal moderno, que repele a responsabilidade objetiva ou decorrente de presunção. (...) Por isso, se antes da Lei n° 9.503/97, não havia punição mais eficaz e severa em relação aos crimes de trânsito, não se pode racionalmente transferir a questão para o campo do dolo eventual e, com base nisso, acolher a denúncia por crime doloso contra a vida onde efetivamente não existem elementos para tanto.
A justificativa encontrada é que esta mudança se daria principalmente em função do clamor popular por maiores punições, haja vista que, como já fora dito, não ocorreu nenhuma mudança substancial na legislação que justifique este incremento.
3.3.2 – O Clamor Popular e a Imparcialidade do Julgador
O juiz na posição de condutor do processo se vê por vezes pressionado pela opinião pública a reprimir de forma mais enérgica os crimes de grande repercussão. Este anseio em corresponder à expectativa popular pode produzir distorções na interpretação dos fatos e culminar na indevida condenação por crime na modalidade dolosa do agente que agiu apenas com culpa.
Sobre este assunto, Bitencourt57 narra que na década de 90 iniciou-se no TJ/RS um movimento chamado de “política criminal do terror”, sendo seguido por forte corrente jurisprudencial que passou a reconhecer a existência de dolo eventual em acidentes de trânsito de grande repercussão, de forma indiscriminada.
Como ilustração, é possível citar o acórdão58 prolatado no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no qual o desembargador relator descreve de forma objetiva não só que sua motivação para decidir daquela forma se ampara nos “reclamos sociais”, como também que existe verdadeira construção jurisprudencial com base nesta pressão popular:
Dolo eventual. Acidente de trânsito. Para atender reclamos sociais contra aquilo que denominam de impunidade pelas penas brandas em acidente de veículo, a jurisprudência tem aceitado a tese do dolo eventual em que o agente, depois de beber grande quantidade de cerveja, em casa noturna, sai em velocidade elevada e abalroa outro veículo estacionado, ferindo várias pessoas. Apelo improvido. Condenação mantida.
Nesta mesma esteira, o desembargador Luiz Carlos Biasutti59 afirmou em decisão judicial que
faz pouco tempo que os delitos de trânsito eram sempre culposos. Hoje, com o crescente número de acidentes provocados por motoristas irresponsáveis, que fazem de seu veículo uma arma, retirando a vida de pedestres e de outros motoristas responsáveis, já se admite o indiciamento, em casos tais, por delito doloso.
Manifestando seu repúdio a este movimento “pró-dolo”, Andreazza60 pontua que
por decisão de política criminal, o Poder Judiciário resolveu dar à sociedade a resposta por ela esperada, punindo tais delitos de grande repercussão social com seriedade, o que só pode ser feito no âmbito do dolo. Isto tem sido demonstrado como clara tendência extraída das decisões mais recentes dos principais tribunais do país, no sentido de afirmar a impossibilidade de afastamento genérico do dolo eventual, ainda que em detrimento da técnica e do primor interpretativo da lei.
Os magistrados têm o dever de atuar sempre com imparcialidade e limitados ao princípio da legalidade (previsto no artigo 5º, XXXIX da CF/88, “(…) não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”). Não obstante, ao julgar um fato, o juiz deverá emitir uma decisão imparcial, baseada apenas nas provas carreadas aos autos do processo e, ao delimitar a pena, esta haverá de ser adstrita aos limites previstos pelo legislador.
A Constituição Federal
estatuiu, em seu artigo 95, uma série de prerrogativas
inerentes ao exercício da magistratura, de forma que os juízes
gozassem de total liberdade para
apreciar os pleitos a eles
submetidos, sem risco de retaliações por ferirem
interesses políticos.
É inconcebível que, em tempos contemporâneos, membros do poder judiciário atuem de forma parcial e dirigida para satisfazer a pretensões populistas, quando existem dispositivos constitucionais especificamente criados para resguardar sua isenção. Não é este o papel que se espera do judiciário. Se as leis não mais espelham as aspirações da sociedade, então compete ao poder legislativo readequá-las, e não ao judiciário inovar de forma arbitrária.
O advogado criminalista Wunderlich61, sustenta que
o dolo eventual nos crimes de trânsito é uma ficção jurídica utilizada fantasiosamente para compensar uma legislação inadequada e, assim, atender aos reclamos da mídia. Diga-se, ainda, que serve para acabar com aquilo que a mídia (odiosa imprensa leiga) e os profetas dos ´movimentos´, mais das vezes emulados pela mesquinez de ideologias ´baratas´, classificam de impunidade.
Ainda defendendo o descabimento do dolo eventual aos delitos de circulação, Shecaira62 afirmou que
Não se deve, sob a influência da pressão da mídia, reconhecer qualquer alteração na estrutura do delito, para mandar alguém a júri. Por mais grave que tenha sido a conduta culposa, não pode ela ser transformada em dolosa, sob pena de criarmos um direito penal do terror que venha a satisfazer interesses punitivos extra-autos.
Também de forma isenta e respeitosa aos limites impostos pela lei, posicionou-se o desembargador Alves de Andrade no Tribunal de Justiça de Minas Gerais63 em decisão proferida naquele órgão:
Age sob modalidade de culpa consciente e não dolo eventual o condutor do veículo que, mesmo inabilitado, em velocidade excessiva e apresentando sintomas de embriaguez, atropela pedestre, não se podendo dizer que o mesmo quis ou admitiu positivamente que o resultado se produzisse. A atividade jurisdicional não pode sofrer injunções ditadas pelo clamor social que emerge de certos delitos de trânsito, sob pena de instalar-se a insegurança jurídica, extrapolando o Julgador suas funções para transformar-se também em legislador, em afronta à divisão tripartite de Poderes. (…) O clamor social que o trágico evento deflagrou, traduzido em manifestações populares, no sentido da punição do responsável é perfeitamente compreensível. Merece o acusado receber as conseqüências de sua reprovável conduta, de acordo com o direito positivo aplicável. Todavia, o Juiz não pode transmudar seu papel, de interprete da lei para legislador (…) Inadmissível que o judiciário, embalado pela comoção e revolta popular, arroste a legislação pertinente ou faça sua aplicação conforme a repercussão que o fato suscitar no meio coletivo. Seria a instalação do caos e da insegurança jurídica, a mesma que reinava antes do racionalismo implantado pela revolução francesa.
Cabe ainda citar a opulenta decisão proferida pelo Des. Paulo Gallotti do Tribunal de Justiça de Santa Catarina64 que, dada a sua pertinência ao assunto aqui tratado, merece ser transcrita em sua integralidade:
Particularmente nos chamados crimes de trânsito, que até bem pouco tempo não possuíam diploma legislativo específico, que ocorreu com a vigência da Lei n. 9.503/97, que tipificou os delitos cometidos na direção de veículos automotores e aumentou sensivelmente as punições penais e administrativas, a questão mereceu tratamento bastante diversificado, não sendo raros os casos de pronúncia em infrações dessa natureza, que contaram com o apoio da mídia e de parcela significativa da população, abalada com os elevados índices de mortes no trânsito.
Antes da vigência da Lei n. 9.503/97, evidentemente, a matéria relativa aos crimes de trânsito não tinha disciplina específica e as mortes ocorridas eram tipificadas no art. 121, § 3°, do Código Penal, com pena de detenção entre um e três anos, que não raramente acarretavam penas menores que geralmente eram substituídas por restritivas de direitos, conforme a previsão do art. 44 do Código Penal.
Todavia, a falta de legislação específica sobre a matéria e punições diferenciadas daquelas previstas pela lei penal comum para os crimes de trânsito não podem ser utilizadas como argumentos válidos para que haja ampliação indevida do conceito de dolo eventual, com flagrante violação dos princípios do direito penal moderno, que repele a responsabilidade objetiva ou decorrente de presunção.
A respeito da caracterização do dolo eventual em acidentes de trânsito, que particularmente entendo possível em algumas situações, não se pode deixar de transcrever recente artigo publicado pelo advogado gaúcho Alexandre Wunderlich:
Teorias são defendidas e sofrem críticas e aplausos ao mesmo tempo. Isto está na essência da própria dogmática jurídica. In casu, a legislação brasileira adotou a teoria do consentimento para caracterizar o dolo eventual. Ocorre que, quer se queira ou não, o espírito de vindita ainda impera no coração da humanidade. Os familiares das vítimas do trânsito clamam por penas mais severas e o fim da denominada 'impunidade'. Em face disso (...), existe uma tendência que, partindo de uma equivocada ilação jurídico-penal, cria o mais gravoso enquadramento jurídico nos casos de morte no trânsito. A tendência em se enquadrar os crimes de trânsito na figura do dolo eventual foi evidenciada pelo Juiz do TACrimSP Carlos Biasotti, que sabiamente se manifestou:
“Em verdade, ainda que em números discretos, conhecem-se casos de motoristas que respondem a processo perante o Júri, por haver causado a morte de pedestres. Tê-la-iam causado por inobservância desmarcada de regras de trânsito, como: dirigir em estado de embriaguez, trafegar em velocidade incompatível com a segurança, desobedecer ao sinal fechado ou à parada obrigatória, disputar corrida por espírito de emulação etc. A essência da qualificação legal do crime, a acusação pública deduzira-a desta fórmula: o motorista que, naquelas condições dirigia seu veículo, se não quis a morte da vítima (dolo direto), ao menos assumiu o risco de produzi-la (dolo indireto eventual). Pelo que, havendo cometido o crime dolosamente, deverá ser julgado pelo seu juiz natural: o Júri. Tal conclusão, que parece acautelada por sólido fundamento, desapresenta, no entanto, quando submetida ao crisol do raciocínio lógico, documento de seriedade: afeta encerrar silogismo inabalável, todavia, é menos que uma operação fantástica do espírito, porque é um imprudente sofisma (vênia!). Primeiro que o mais, a afirmação de que o autor de morte no trânsito, naquelas circunstâncias, deve ser julgado pelo Júri, porque praticou o delito dolosamente, contém falsa premissa. Deveras, não foi dolo o que aí pudera ter existido, nem sequer dolo eventual, senão culpa (ainda consciente). No dolo eventual, de feito, a doutrina imprimiu sempre esta nota conspícua: não basta a caracterizá-lo tenha o agente assumido o risco de produzir o resultado lesivo; necessita que nela haja consentido. Vindo ao nosso ponto: motorista, de quem se afirmasse que obrara com dolo eventual, cumpria a que, além de ter assumido o risco de causar a morte da vítima, com isso mesmo houvera concordado, o que repugna ao bom senso e afronta a lição da experiência vulgar”.
Parece que diante da grande discussão sobre o tema, Lenio Streck segue o caminho da razão e dos novos paradigmas do Direito Penal moderno, registrando que a figura do “dolo eventual não deve ser utilizada como pedagogia ou remédio contra a violência no trânsito”. Nesse sentido, como disse Streck, o Direito não deve ser aplicado 'hobbesianamente' ou, como bem acentuou Bitencourt, o Direito Penal não serve como “panacéia de todos os males”.
Na realidade, num planeta extremamente motorizado, a expressão empregada na legislação brasileira tornou-se inadequada. 'Assumir o risco' é pouco. Em sentido lato, para 'assumir o risco' basta sentar à direção de um veículo. É preciso mais do que isso, sob pena de darmos demasiada elasticidade ao conceito e, assim, punirmos não só o agente que age dolosamente, mas até o motorista que age culposamente, como se em todos os crimes de trânsito com resultado morte estivesse presente a figura do dolo eventual.
Portanto, totalmente equivocada e divorciada dos novos paradigmas do Direito Penal moderno a tentativa de se levar os crimes de trânsito ao plenário do Júri e, com isso, aplicar a reprimenda mais gravosa. Não podemos permitir que seja dada demasiada elasticidade à ficção jurídica dolus eventualis, nem que tripudiem sobre a teoria geral do delito, para suprir uma legislação inadequada ou para atender os ditos reclamos sociais' (O Dolo Eventual nos Homicídios de Trânsito: Uma Tentativa Frustrada, Revista dos Tribunais, vol. 754, p. 470/475).
Por isso, se antes da Lei n. 9.503/97 não havia punição mais eficaz e severa em relação aos crimes de trânsito, não se pode racionalmente transferir a questão para o campo do dolo eventual e, com base nisso, acolher a denúncia por crime doloso contra a vida onde efetivamente não existem elementos para tanto.
Desta forma o célebre magistrado sintetizou em sua decisão todas as questões trazidas à análise neste item, passando pela contextualização histórica da legislação, abordando a questão da submissão dos juízes à pressão política advinda do clamor popular, culminando com a conclusão de que, tratando-se da hipótese de dolo eventual, não será admissível a constituição de fórmulas pré-concebidas ou generalizações, eis que não existe relação de causa e efeito entre os fatos e a capitulação criminal.
Sempre será necessário um grande esforço dos profissionais do direito envolvidos no processo para desvendar a existência do animus dolandi e, por conseguinte, do dolo eventual na conduta do agente.
4.1 – CONSIDERAÇÕES SOBRE AS INFRAÇÕES DE TRÂNSITO
É cediço que, para que o acidente de trânsito obtenha contornos de “crime de trânsito”, será necessário que pelo menos um dos envolvidos no incidente tenha agido ao menos com culpa, quiçá dolo, pois, não há que se falar em crime de trânsito se todos os envolvidos no evento agiram com a cautela e destreza que lhes eram exigidas, ou se o resultado não lhes era previsível.
As condutas praticadas na condução de veículos, que podem ocasionar a ocorrência de crimes de trânsito culposos (por imprudência, imperícia ou negligência) são reprimidas em sua quase totalidade por infrações administrativas tipificadas pela Lei 9.503/97, nos artigos 162 a 255 (conduzir veículo sob efeito de bebidas alcoólicas ou substância de efeitos análogos, em mau estado de conservação, pela contramão de direção, efetuar ultrapassagem em local proibido, etc).
Neste sentido, é forçoso concluir que a ocorrência dos crimes de trânsito invariavelmente estará vinculada ao cometimento de infrações de trânsito pelos envolvidos. Neste contexto, faz-se necessária uma análise mais aprofundada das decisões judiciais sobre o assunto, para que seja obtida a compreensão sobre como o tema é tratado na prática pelos Tribunais.
4.2 – Metodologia Empregada durante a fase de Pesquisa
Para atingir o objetivo proposto neste capítulo, foram efetuadas pesquisas jurisprudenciais nos sites dos Tribunais de Justiça de todo o país durante o período de julho a outubro de 2006, excluindo-se apenas os Estados do Piauí, Alagoas, São Paulo, Rio Grande do Norte e Amazonas, que apresentaram problemas durante este período (nos dois primeiros, os sites dos TJ não disponibilizavam pesquisa jurisprudencial, no de SP as respostas não tinham vínculo com as palavras utilizadas para pesquisa e, nos dois últimos o mecanismo de busca, embora disponível, apresentou-se inoperante durante todo o período de duração das consultas).
As consultas foram realizadas utilizando-se sempre o mesmo critério de busca nos diversos sítios da internet, de forma a possibilitar a análise tanto qualitativa quanto quantitativa dos resultados obtidos. No item 4.3.1, foram utilizados como critério de busca as palavras “ultrapassagem” e “dolo”; no item 4.3.2 foram utilizadas as palavras “excesso” e “velocidade”; no item 4.3.3 foram utilizadas as palavras “álcool” ou “embriaguez”; e, finalmente, “racha” ou “pega” no item 4.3.4.
Com a metodologia empregada, além de ser obtido extenso conteúdo jurisprudencial, também foi possível a análise quantitativa dos dados, de forma a compreender melhor o posicionamento dos Tribunais sobre as matérias em análise. Embora não tenha sido empregada uma rígida metodologia no que concerne à apuração quantitativa das respostas obtidas durante a pesquisa (o que nos permitiria obter resultados estatísticos fidedignos), o método de trabalho empregado possibilitou o exame crítico dos resultados, sendo extraídas diversas conclusões que serão abordadas em momento oportuno.
É importante frisar que certamente não foram encontrados todos os acórdãos que versam sobre os temas em análise, pois com certeza alguns destes não se utilizaram das palavras utilizadas como critério de busca. Todavia, a metodologia empregada foi a que melhor se adequou ao objetivo de obter uma amostragem particular sobre cada questão em análise.
Foram transcritos alguns trechos das decisões encontradas, de forma a demonstrar as diferentes argumentações utilizadas, bem como características e nuances regionais. Ademais, a exposição de variadas sentenças, fundamentadas em dispositivos diferentes e com decisões de mérito que seguem em direções antagônicas, franqueia ao leitor a oportunidade de comparar as alegações utilizadas e formar sua própria convicção sobre o tema.
4.3 – ANÁLISE JURISPRUDENCIAL
4.3.1 – Ultrapassagem Proibida ou Forçada pela Contramão de Direção
O Código de Trânsito Brasileiro define em seu artigo 29, incisos IX e X as normas de conduta elementares para ultrapassagens de veículos automotores. Preceitua-se que a ultrapassagem será realizada, em regra pelo lado esquerdo e que, antes de inicia-la o condutor deverá certificar-se de que
nenhum condutor quer venha atrás haja começado uma manobra para ultrapassá-lo; quem o precede na mesma faixa de trânsito não haja indicado o propósito de ultrapassar um terceiro; e que a faixa de trânsito que vai tomar esteja livre numa extensão suficiente para que sua manobra não ponha em perigo ou obstrua o trânsito que venha em sentido contrário.
O desrespeito às referidas normas de circulação dá ensejo ao cometimento da infração administrativa prevista no artigo 203, V do mesmo diploma legal. Contudo, a despeito da citada conduta constituir infração de trânsito autônoma, não se pretende aqui analisar a questão sob a ótica do direito administrativo, mas, sob o paradigma do direito penal. Neste aspecto, passaremos a dissecar a possibilidade da capitulação do dolo eventual às ocorrências originadas em função da prática desta infração de trânsito.
4.3.1.1 – Análise Crítica da Jurisprudência
A doutrina outrora analisada mostrou-se contrária à hipótese de dolo eventual nos crimes de trânsito provenientes de ultrapassagens efetuadas em contrariedade à lei de trânsito. Alega-se que o condutor que inicia ultrapassagem em local indevido, em momento algum consente com a possibilidade de colidir frontalmente com veículo que venha da direção contrária. Na realidade o condutor confia em sua habilidade e presume ter condições de efetuar a ultrapassagem em gerar danos a ninguém. Como não há assentimento à produção do resultado, não haveria que se falar em dolo eventual.
De acordo com esta linha doutrinária, admitir a indiferença do condutor na produção de uma possível colisão frontal importaria em reconhecer seu próprio impulso suicida, dada a gravidade deste tipo de acidente. Desta forma, a responsabilidade penal é nestes casos é melhor caracterizada na esfera da culpa, na modalidade imprudência.
Neste mesmo sentido posicionou-se Edmundo José de Bastos Jr ao afirmar que65
Nos delitos de trânsito, há um decisivo elemento de referência para o deslinde da dúvida entre dolo eventual e culpa consciente: o risco para o próprio agente. Com efeito, é difícil aceitar que um condutor de veículo, na plenitude de sua sanidade mental, seja indiferente à perda de sua própria vida – e, eventualmente, de pessoas que lhe são caras - em desastre que prevê como possível conseqüência de manobra arriscada que leva a efeito, como, por exemplo, uma ultrapassagem forçada ou sem visibilidade.
Nesta mesma direção segue a jurisprudência, como se depreende da leitura do acórdão prolatado pelo desembargador Jose Eduardo M. de Almeida66:
Relegando a apelante os cuidados mínimos e necessários que se deve ter ao proceder uma ultrapassagem, o fazendo em local proibido, vez que constava na pista asfáltica faixa dupla contínua e, o mais grave, com a visibilidade prejudicada pela fumaça que soltava o referido caminhão, reduzindo-lhe bastante a visão, procedeu aquela a sobredita ultrapassagem vindo a tocar no guidon dum biciclo que trafegava em sentido contrário, ocasionando a queda de ambas, notadamente a morte imediata da garupeira (...) Configura-se delito culposo quando o agente voluntariamente inobserva o dever de cuidado por intermédio da imprudência, prevendo a possibilidade de um resultado não pretendido, ocasionado dano contra o bem jurídico tutelado pela lei penal incriminadora.
Existem, todavia, manifestações em sentido contrário, porém, estas representam parcela expressivamente menor. Foram encontradas centenas de acórdãos que adotavam a hipótese da culpa consciente, entretanto, buscando pelas mesmas “palavras chaves” (“ultrapassagem” e “dolo”), foram encontradas apenas 10 decisões que abarcavam a corrente que reconhecia a existência do dolo eventual (1 no RJ, 1 no MS, 6 em SC e 2 no RS), dentre as quais citamos a proferidas pelo desembargador Gilberto da S. Castro67:
O motorista, profissional há muitos anos, experiente, que, dirigindo seu caminhão em velocidade superior à permitida, efetua ultrapassagem em local proibido, e bem sinalizado, adentrando na contramão de sua direção, vindo a se chocar com veículo dirigido por uma das vítimas, que estava com os faróis acesos, em desrespeito e desprezo à vida de seu semelhante, assume conscientemente o risco de produzir o resultado morte, caracterizando o dolo eventual.
No item 1 dos anexos (p. 72) podem ser encontradas transcrições de outras decisões judiciais encontradas durante o processo de pesquisa, abordando tanto a hipótese do dolo eventual quanto da culpa nos casos de ultrapassagem.
4.3.2 – Excesso de Velocidade
O Código de Trânsito Brasileiro preceitua em seu artigo 43 que
ao regular a velocidade, o condutor deverá observar constantemente as condições físicas da via, do veículo e da carga, as condições meteorológicas e a intensidade do trânsito, obedecendo aos limites máximos de velocidade estabelecidos para a via.
Em seguida, o artigo 61 regulamenta as velocidades máximas a serem impostas às vias públicas nacionais e, em por fim, o artigo 218, delimita as penalidades, a serem aplicadas a quem as desrespeitar (multa pecuniária e, dependendo do caso, suspensão do direito de dirigir). Contudo, assim como no item anterior, também não nos interessa neste trabalho investigar a questão sob a esfera administrativa, mas apenas os reflexos desta conduta sob a luz do direito penal.
Numa breve análise, poderemos concluir que o fato de trafegar com veículo em velocidade excessiva, incompatível com a via utilizada, por si só não constitui elemento que caracterize o dolo eventual, eis que, como já fora dito diversas vezes, para que este se materialize, será indispensável a representação do resultado, bem como o assentimento do agente para com este.
Desta forma, somos compelidos a concluir que a mera condução de veículo automotor em velocidade excessiva não caracteriza per si o dolo indireto, pois considerar que todo condutor que excede os limites de velocidade consente com a possibilidade de provocar um atropelamento fatal, ou uma colisão com outro veículo mostra-se tão exagerada que chega a soar como fantasioso.
Na realidade esta conduta identifica-se muito mais com a possibilidade de culpa, ainda que consciente, pois o condutor conhece os riscos inerentes ao excesso de velocidade, mas acredita em sua habilidade e presume ser capaz de chegar ao seu destino incólume.
4.3.2.1 – Análise Crítica da Jurisprudência
De forma quase unânime posicionou-se a jurisprudência pesquisada, aqui representada pelos acórdãos proferidos pelos desembargadores Antonio F. Bayma Araújo68 e Elba Aparecida N. Bastos69:
NÃO ESTÁ POR CONFIGURAR O ANÍMICO NA MODALIDADE DOLO EVENTUAL, EM CRIMES DE ACIDENTE DE TRÂNSITO, O SIMPLES ALEGAR DE SE ENCONTRAR O AGENTE, AO TEMPO DO FATO, POR DESENVOLVER VELOCIDADE EXCESSIVA, NOTADAMENTE SE INCOMPROVADO O AGIR COM ANIMUS DOLANDI.
Só excepcionalmente delito na circulação do trânsito configura crime doloso - doloeventual. Necessária a presença de circunstâncias objetivas que permitam concluir que o agente assentiu com o resultado letal. O excesso de velocidade na rodovia colhendo a vítima que iniciava a travessia, não demonstra e existência de doloque desloca a competência para o júri. Despronuncia-se o réu para que na origem prossiga conforme art. 410 do CPP, remanescendo a culpa stricto sensu.
Embora a prática desta infração de forma isolada não acarrete via de regra no reconhecimento do dolo eventual, existem diversos acórdãos que manifestam entendimento pela ocorrência do dolo indireto quando o excesso de velocidade acrescenta-se a outros fatores, tais como a embriaguez do condutor, ou em casos de “racha” (competição não autorizada em via pública).
Existem ainda decisões que, contrariando a regra, acolhem a tese de dolo eventual unicamente em virtude do excesso de velocidade imprimido pelo agente ao seu veículo. Foram encontrados apenas três acórdãos com este conteúdo, na contramão de centenas de decisões que acataram a tese de crime culposo. Vale aqui citar os acórdãos de autoria dos desembargadores Benito Figueiredo70 e Ranolfo Vieira71, para ilustrar esta corrente de pensamento:
A PROVA TESTEMUNHAL E A PERÍCIA DEMONSTRARAM QUE O RÉU TRANSITAVA EM ALTA VELOCIDADE, ASSUMINDO O RISCO DE PRODUZIR O RESULTADO MORTE, O QUE EQUIVALE AO DOLO EVENTUAL.
IMPUTACAO DE AGIR DO REU COM DOLOEVENTUAL, CARACTERIZADO PELA VELOCIDADEEXCESSIVA (...) A VELOCIDADEEXCESSIVA, NO CASO DOS AUTOS, CARACTERIZA, CONFORME A ACUSACAO, O DOLOEVENTUALOU INDIRETO.
No item 2 dos anexos (p. 74) são transcritas outras decisões judiciais encontradas durante o processo de pesquisa, abordando tanto a hipótese do dolo eventual quanto da culpa nos casos de excesso de velocidade.
4.3.3 – Condução Sobre o Efeito de Bebida Alcoólica
O ato de conduzir veículo automotor sob a influência de álcool (ou outra substância entorpecente de efeitos análogos) constitui não só uma infração administrativa de trânsito (art. 164 da Lei 9.503/97, com nova redação dada pela Lei 11.275/06), como também crime autônomo (neste caso existe a necessidade materializar-se o “perigo de dano”), conforme o art. 306 da Lei 9.503/97.
Enquanto a infração de trânsito do art. 164 é reprimida com pena de multa pecuniária e suspensão do direito de dirigir, o crime do art. 306 é punido com pena de detenção, de seis meses a três anos. Todavia, assim como nos casos anteriormente analisados, o foco deste estudo não é a infração administrativa, tão pouco o crime autônomo.
A condução de veículo automotor sobre efeito de bebida alcoólica será analisada aqui tão somente como fator desencadeador para crimes de trânsito, constituindo-se, neste caso, em agravante para os crimes de homicídio culposo e de lesão corporal culposa (arts. 302, § único, V; e art. 303, § único c/c art. 302, § único, V, todos da Lei 9.503/97).
O ato de conduzir veículo automotor embriagado é, tal qual o ato de dirigir o veículo em excesso de velocidade, uma conduta que isoladamente, não acarreta per si na incidência de dolo eventual em caso de sinistro.
É lógico concluir que se houver ingestão de bebida alcoólica por parte do condutor, e este não apresentar nenhuma alteração em seu estado de consciência, continuando a guiar seu veículo com destreza e cautela, não há que se falar em culpa ou dolo direto/indireto, eis que, neste caso, será um elemento irrelevante em caso de acidente.
A ingestão de bebida alcoólica apenas passa a ter relevância para o estudo da responsabilização penal quando provoca alterações no estado de consciência e/ou atenção do usuário. Neste sentido, havendo alteração do estado de consciência/atenção do indivíduo, fatalmente haverá um comprometimento de sua habilidade, que via de regra culminará na prática de ações imprudentes e/ou negligentes à direção e, ocorrendo um sinistro, certamente este se dará não apenas em virtude da mera embriaguez, como já explicado, mas cumulado a outras ações imprudentes, tais como a condução do veículo com excesso de velocidade, ultrapassagem forçada, transitar pelo acostamento, pela contramão de direção, etc.
Até mesmo o crime autônomo previsto no art. 306 só subsistirá se a conduta externada pelo condutor gerar perigo de dano concreto, fato que se cristalizará através de condutas imprudentes ou negligentes.
Neste mesmo sentido posicionou-se o Des. Nilton M. Machado72, ao afirmar que
A embriaguez do motorista envolvido em acidente, sendo caracterizadora do crime previsto no art. 306, do CTB, não resulta, por si só, em presunção de culpa em relação a eventual lesão corporal ou morte advinda do evento. Para reconhecimento da culpa do motorista embriagado há que se demonstrar, objetivamente, por elemento concreto e visível, tenha agido com imprudência, imperícia ou negligência.
4.3.3.1 – Actio libera in causa e os Tipos de Embriaguez
Como já abordado anteriormente, para que se caracterize o dolo indireto será necessário identificar que o autor do fato tinha condições de prever o evento desastroso e, mesmo assim, prosseguiu de forma indiferente.
As opiniões sobre a incidência do dolo eventual aos crimes de trânsito gerados em virtude de condutores embriagados são antagonicamente diferentes. Parte dos doutrinadores sustenta que, mesmo que o condutor esteja totalmente entorpecido — “fora de si” — no momento do sinistro, responderá pela produção do resultado a título de dolo, eis que ao começar a consumir bebida alcoólica sabia que poderia perder a consciência sobre seus atos. Sustentam ainda que os malefícios da ingestão de bebidas alcoólicas são regularmente alvo de campanhas educativas institucionais, e já são de conhecimento público, não podendo o autor escusar-se de sua conduta por alegar desconhecimento dos efeitos nocivos da bebida.
Ademais, o Código Penal adotou a teoria da actio libera in causa, que preceitua que não deixa de ser imputável quem se pôs em situação de inconsciência ou de incapacidade de autocontrole, dolosa ou culposamente, e nessa situação comete crime.
Todavia, para um melhor discernimento sobre o assunto, é necessário o entendimento sobre as diferenciações doutrinárias sobre os diversos tipos de embriaguez. Primeiramente abordaremos a embriaguez voluntária que divide-se em simples e preordenada, e posteriormente a embriaguez culposa, passando em seguida pela a embriaguez acidental (subdivida em embriaguez fortuita e forçosa) e, finalmente, abordando a embriaguez patológica.
4.3.3.1.1 – Embriaguez Voluntária Simples
A embriaguez voluntária simples, nada mais é do que a gerada em virtude do consumo excessivo de álcool por livre disposição do agente. É o caso típico do indivíduo que vai a uma confraternização entre amigos, uma festa e se embebeda. Muitas vezes este indivíduo não tem antecedentes criminais ou histórico de violência, mas ao beber demais e retornar à sua residência dirigindo, patrocina um crime de trânsito (atropelamento de pedestres sobre o passeio ou colide frontalmente com outro veículo ao efetuar uma manobra arriscada).
Este tipo de embriaguez será causa de aumento da pena em caso de homicídio culposo ou lesão corporal culposa praticados na direção de veículo (art. 302, § único, V, lei 9.503/97), contudo, não aumentará ou atenuará a pena caso o fato criminoso tenha previsão no Código Penal. Também não será causa de exclusão da punibilidade do agente, pois o próprio Código Penal preceitua em seu art. 28, II que “não excluem a imputabilidade penal a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos”.
Como dito anteriormente, existe corrente que defende que o indivíduo envolvido em crime, nestas circunstâncias, deve responder pela modalidade dolosa do crime, eis que, embora não tivesse o animus necandi, quando iniciou sua bebedeira tinha pleno domínio de suas faculdades e a previsibilidade de que, se bebesse, poderia perder seu autocontrole e realizar uma barbaridade. Desta mesma forma manifestou-se o professor de medicina legal dr. Rinaldo Pellegrini73 ao afirmar que
O ébrio, que cometeu crime, é punível porque era livre na sua atuação relativamente ao fato inicial, isto é, ao primeiro anel da cadeia que constituiu, a seguir, o nexo de causalidade entre a embriaguez e o crime; a sucessiva atividade criminosa do agente, ainda que alheada ao contrôle deste, foi, portanto, provocada por uma ação ‘voluntária’ (o abuso inconsiderado do álcool), que resultou na embriaguez e à qual pode ser referido o evento.
Na defesa desta mesma corrente pronunciou-se o desembargador Souza Varella74:
Motorista que em rodovia de grande movimento, dirige seu veículo em alta velocidade e embriagado, vindo a atropelar ciclista. "Urge sejam considerados dolosos (dolo eventual), levando-se em conta que o motorista, na fase inicial e parte do processo de ingestão de bebida alcoólica, permaneça lúcido e consciente, portanto, em condições de avaliar que, se continuar a beber e vier a assumir a direção de veículo motorizado, poderá causar resultados danosos, mas mesmo assim não renuncia à ação, ao contrário, anui à possibilidade de produzir um evento antijurídico" (Neuton Dezoti - Professor em Botucatu - Univ. Est. Paulista - in RT vol. 623/407).
Em contraposição a esta perspectiva, existe corrente doutrinária que sustenta que os crimes (incluindo-se os de circulação), praticados por cidadãos em estado de embriaguez voluntária simples, só poderão ser penalizados a título de culpa, eis que um dos requisitos necessários para a caracterização do dolo (ainda que eventual) é a previsibilidade do evento, não sendo razoável esperar que o indivíduo que vai a confraternização beber com amigos detenha a previsibilidade de que horas mais tarde poderá vir a atropelar e matar alguém em decorrência daquela conduta.
O agente não queria cometer o ato e nem tão pouco era indiferente à sua produção quando iniciou a ingerir álcool. Por não haver assentimento e, tão pouco, previsibilidade, não haveria que se falar em crime doloso, apenas culposo (se houver previsão legal).
Nesta esteira manifesta-se Rogério Greco75:
(...) Não se pode partir do princípio de que todos aqueles que dirigem embriagados e com velocidade excessiva não se importem em causar a morte ou mesmo lesões em outras pessoas. O dolo eventual, como visto, reside no fato de não se importar o agente com a ocorrência do resultado por ele antecipado mentalmente, ao contrário da culpa consciente, onde este mesmo agente, tendo a previsão do que poderia acontecer, acredita, sinceramente, que o resultado lesivo não venha a ocorrer. No dolo eventual, o agente não se preocupa com a ocorrência do resultado por ele previsto porque o aceita. Para ele, tanto faz. Na culpa consciente, ao contrário, o agente não quer e nem assume o risco de produzir o resultado porque se importa com a sua ocorrência. O agente confia que, mesmo atuando, o resultado previsto será evitado (...) Com isso queremos salientar que nem todos os casos em que houver a fórmula embriaguez + velocidade excessiva haverá dolo eventual. Também não estamos afirmando que não há possibilidade de ocorrer tal hipótese. Só a estamos rejeitando como uma fórmula matemática, absoluta. (...) Imagine o exemplo daquele que, durante a comemoração de suas bodas de prata, bebe excessivamente e, com isso, se embriaga. Encerrada a festividade, o agente, juntamente com a sua esposa e três filhos, resolve voltar rapidamente para a sua residência, pois que queria assistir a uma partida de futebol que seria transmitida pela televisão. Completamente embriagado, dirige em velocidade excessiva, a fim de chegar a tempo para assistir ao início do jogo. Em razão do seu estado de embriaguez, conjugado com a velocidade excessiva que imprimia em seu veículo, colide o seu automóvel com um outro e com isso causa a morte de toda a sua família. Pergunta-se: Será que o agente, embora dirigindo embriagado e em velocidade excessiva, não se importava com a ocorrência dos resultados? É claro que se importava.
Também existe corrente que defende que o momento em que o indivíduo começa a ingerir bebida alcoólica não se configura a execução do crime propriamente dito, mas mero ato preparatório, eis que, sendo interrompido, não restará nada a punir, nem mesmo a título de culpa76. Desta forma,
falta ao agente o elemento subjetivo em relação a um crime certo e determinado, uma vez que, no momento em que se embriaga, não tem sequer a previsão de que irá cometer um delito. O elemento subjetivo existe somente em relação à embriaguez (o ato de embriagar-se é livre), porém, esta não é causa do delito.77
Desvinculando-se o consumo da bebida alcoólica da conduta que gerou o acidente, não haverá respaldo para acusação com fulcro em dolo indireto, sendo obrigatória a qualificação com fulcro na culpa, modalidade imprudência ou negligência.
4.3.3.1.2 – Embriaguez Voluntária Preordenada
Ocorre quando o indivíduo se entorpece voluntariamente para “criar coragem”, livrar-se dos freios morais e éticos impostos pela sociedade, para então cometer um crime que, se estivesse sóbrio, possivelmente não teria coragem para fazer a efeito.
Esta hipótese se coaduna perfeitamente com a teoria da actio libera in causa, eis que neste caso, o agente literalmente “se pôs” em situação de embriaguez, devendo responder por seu ato. Há previsibilidade e consentimento no evento, eis que sua execução é premeditada e que o agente realmente deseja a produção do resultado.
Ademais, a embriaguez preordenada qualifica o crime, majorando sua pena (caso o fato delituoso esteja previsto no Código Penal), uma vez que o próprio Código Penal determina expressamente em seu art. 61, II, l que “são circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime ter o agente cometido o crime em estado de embriaguez preordenada”.
Tratando-se de homicídio ou lesão corporal culposas praticadas na direção de veículo, será aplicada apenas a qualificadora do art. 302, § único, V, não se aplicando o dispositivo do Código Penal por aplicação do princípio da especificidade (princípio adotado na solução de conflitos aparente de normas).
4.3.3.1.3 – Embriaguez Culposa
Ocorre quando o indivíduo, fazendo uso de substância alcoólica, não tendo a intenção de se entorpecer, perde o controle e se embriaga. O fato da embriaguez não ser desejada é irrelevante para o direito penal, pois o que terá relevância será se a embriaguez se deu em virtude da livre disposição de vontade, ou se foi imposta coercitivamente por outrem. Neste caso, o agente responderá pela embriaguez voluntária.
4.3.3.1.4 – Embriaguez Fortuita
Ocorre quando o indivíduo é levado ao estágio de embriaguez involuntariamente por fazer uso de uma substância entorpecente sem o conhecimento do potencial entorpecente e despersonalizante da substância. Ocorre em trotes de faculdades, quando são misturadas substâncias alcoólicas a refrigerantes e dadas aos calouros sem o conhecimento destes, provocando-lhes estado de embriaguez.
Se a embriaguez é total, a punibilidade do agente é excluída, por expressa determinação do Código Penal (art. 28, §1o), o qual preceitua que
É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Todavia, se a embriaguez é parcial, será apenas causa de redução da pena (art. 28, §2o do Código Penal), eis que
A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, por embriaguez, proveniente de caso fortuito ou força maior, não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
4.3.3.1.5 – Embriaguez Por Força Maior ou “Forçosa”
Ocorre quando uma força externa obriga o agente ao consumo de substancia entorpecente. É o caso do cidadão que é obrigado a ingerir aguardente durante cárcere privado, para contar suas senhas bancárias aos seus algozes.
O indivíduo que é acometido de embriaguez por força maior é protegido pelos mesmos dispositivos legais estudados no item anterior, pois a situação, juridicamente, se equivale à embriaguez fortuita.
4.3.3.1.6 – Embriaguez Patológica
A embriaguez patológica é reconhecida como doença pela Organização Mundial da Saúde. Trata-se de uma disfunção cerebral que ocasiona transtorno da consciência, também conhecido no ramo da psicopatologia por “estado crepuscular”. Diferencia-se da embriaguez normal pelo fato de que, neste caso, a ingestão de pequenas quantidades de álcool ocasionam um estado de excitação exagerada e descargas comportamentais agressivas.
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