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Neste sentido, a correta capitulação do autor à conduta por ele praticada, pode representar a diferença entre uma condenação de até quatro anos (aplicável ao homicídio culposo na direção de veículo automotor), ou por uma de até trinta anos (pena prevista para o crime de homicídio doloso qualificado).
Dada a freqüência com que o assunto é submetido ao judiciário, o domínio do tema torna-se exigência imprescindível aos profissionais do direito que atuem ou pretendam militar na área penal (que também sofrem pela dificuldade na obtenção de material de qualidade sobre o assunto, eis que a produção literária é escassa).
– Crimes Dolosos
O dicionário Houaiss1 apresenta uma definição de fácil intelecção de dolo: “em direito penal, a deliberação de violar a lei, por ação ou omissão, com pleno conhecimento da criminalidade do que se está fazendo”. Este conceito é positivado no ordenamento jurídico através do art. 18, caputdo Código Penal, o qual define que o crime será doloso “(...) quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”.
Com o intuito de analisar a existência de dolo nas ações humanas a doutrina criou quatro teorias distintas que buscam, através da análise do fato, e de elementos distintos, explicar sua incidência na prática.
1.1.1.1 – Teoria da Vontade (Teoria Clássica)
Segundo Mirabete2, esta teoria adota a idéia de que o dolo ocorrerá sempre que o agente tiver vontade de praticar a ação, e que o resultado desta seja por ele desejado. Não é exigida a consciência da ilicitude da conduta, pois esta consciência irá afetar apenas o juízo de culpabilidade (reprovabilidade da conduta típica e antijurídica) do agente, que influenciará tão somente ao cálculo de sua pena, não tendo o condão de descaracterizar a ocorrência do crime propriamente dito.
Cezar Roberto Bitencourt3 explica em sua obra que
a essência do dolo deve estar na vontade, não de violar a lei, mas de realizar a ação e obter o resultado. Essa teoria não nega a existência da representação (consciência) do fato, que é indispensável, mas destaca, sobretudo, a importância da vontade de causar o resultado.
1.1.1.2 – Teoria do Assentimento (Teoria da Assunção)
Jesus4 observa que, na teoria do assentimento, o dolo ocorrerá quando o agente, prevendo um possível resultado danoso proveniente de sua conduta, mantém-se indiferente e executa-a, aceitando assim o risco de produzi-lo. Ele não busca o resultado danoso, mas aceita com indiferença o risco de vir a produzi-lo.
Esta indiferença com que o agente aceita as possíveis conseqüências oriundas de sua conduta é o elemento essencial para que fique caracterizado o dolo através desta teoria. Se ficar comprovado que o agente agiu de determinada forma não por indiferença ao resultado produzido, mas por acreditar sinceramente que teria condições de evitar sua produção (por acreditar excessivamente em sua perícia ou na sorte, por exemplo), então não há que se falar em dolo.
O professor Julio Fabbrini Mirabete5 explica, de forma sintetizada, que “(...) existe dolo simplesmente quando o agente consente em causar o resultado ao praticar a conduta”.
1.1.1.3 – Teoria da Representação
Mirabete6 relata que a teoria da representação guarda certa semelhança com a do assentimento pois, assim como naquela, entende que subsistirá o dolo quando o agente tiver mera previsão da possibilidade de ocorrência do fato danoso e, ainda assim, opte pela continuidade de seu procedimento. Diverge da teoria anterior porque, para os adeptos desta teoria, não se leva em consideração se o agente agiu de forma indiferente à possibilidade da ocorrência do efeito danoso ou se simplesmente acreditava que este não iria ocorrer.
Este juízo subjetivo realizado pelo agente (animus dolandi) é irrelevante para a teoria da representação, pois, com base em seus fundamentos, para que o dolo subsista, bastará que o resultado danoso seja previsível à época da execução da ação.
1.1.1.4 – Teoria da Probabilidade
O jurista Cezar Roberto Bitencourt7 descreve que, na teoria da probabilidade, a análise da possibilidade de ocorrência do evento danoso é realizada com base na probabilidade baseada em levantamentos estatísticos. Assim, se estatisticamente for comprovado que a prática de determinada conduta tende a ocasionar um resultado danoso, sempre que alguém incorrer naquela mesma conduta e obtiver aquele mesmo resultado terá agido com dolo, indiferente ao chamado “elemento volitivo” (juízo de aceitação ou não do resultado provável feito pelo agente no momento em que executa a ação).
Neste sentido, poder-se-ia afirmar que todo indivíduo que conduz veículo automotor sob efeito de álcool e se envolve em acidente agirá com dolo, eis que é comprovado estatisticamente que a grande parte dos acidentes de trânsito são ocasionados por pessoas em estado de embriaguez. Esta teoria não obteve muita aceitação no meio jurídico e acadêmico, pois, assim como na teoria da representação, descarta a análise do elemento volitivo, baseando-se apenas nos elementos intelectivos.
1.1.1.5 – Teorias adotadas pelo Código Penal brasileiro
Mirabete8 nos ensina que o Código Penal brasileiro adotou a Teoria Finalista da Ação, que tem como principal fundamento o preceito de que todo comportamento humano tem uma finalidade, ou seja, “(...) não se concebe vontade de nada ou para nada, e sim dirigida a um fim. A conduta realiza-se mediante a manifestação da vontade dirigida a um fim”. Desta forma, o dolo subsistirá apenas quando o agente tiver a intenção de realizar a conduta efetivamente.
O professor Seixa Santos9 aborda a matéria da vontade dirigida à prática do ato criminoso de forma bastante elucidativa:
A votuntae scelerata (vontade criminosa), a voluntas necendi (vontade de prejudicar), enfim, a vontade é sempre uma faculdade de querer, quer contra a lei penal, quer criminosamente. Denuncia um querer criminoso. Revela uma faculdade de tender conscientemente a um fato ilícito. Age, portanto, com vontade. (...) A vontade revela a existência de critério de escolha ou axiológico. O bem é um valor positivo, para o qual o homem deve tender, o crime é um fato negativo que cumpre evitar. Não querer o crime é, também como o querer, um ato da vontade, ou volição. (...) A volição, como ato da vontade, faz parte do processo deliberativo...
A vontade do agente é elevada à condição de elemento sine qua non para caracterização da conduta típica penal. Mesmo nos crimes culposos, aonde o agente não tem sua conduta direcionada à produção do resultado, haverá responsabilização criminal quando este não empregar o mínimo de diligência necessária.
Para que seja caracterizado o dolo, deverá ser analisado tanto o elemento cognitivo (intelectual) quanto o volitivo (vontade) que envolviam o agente no momento do cometimento da ação.
O elemento cognitivo diz respeito à consciência do ato que é praticado e de suas conseqüências. Bitencourt10 explica com maestria o conceito em sua obra:
A previsão, isto é, a representação, deve abranger correta e completamente todos os elementos essenciais do tipo, sejam eles descritivos, normativos ou subjetivos. Enfim, a consciência (previsão ou representação) abrange a “realização dos elementos descritivos e normativos, do nexo causal e do evento (delitos materiais), da lesão ao bem jurídico, dos elementos da autoria e da participação, dos elementos objetivos das circunstâncias agravantes e atenuantes que supõem uma maior ou menor gravidade do injusto (tipo qualificado ou privilegiado) e dos elementos acidentais do tipo objetivo”. Além do conhecimento dos elementos positivos exigidos pelo tipo objetivo, o dolo deve abranger também o conhecimento dos “caracteres negativos”, isto é, de elementos, tais como “sem consentimento de quem de direito” (art. 164 do CP), “sem licença da autoridade competente” (art. 166 do CP), da inexistência de nascimento (art. 241 do CP) etc. Por isso, quando o processo intelectual-volitivo não atinge um dos componentes da ação descrita na lei, o dolo não se aperfeiçoa, isto é, não se completa.
O elemento volitivo refere-se à vontade do agente em realizar (ou não) o tipo penal, à indiferença (ou não) quanto à produção do resultado danoso quando opta pela execução de um comportamento que importe em risco a outrem.
O Código Penal brasileiro em seu artigo 18, I, adotou as teorias da vontade (primeira parte do art. 18, I) e do assentimento (segunda parte do art. 18, I) por serem as que levam em consideração tanto a representação como a vontade do agente. Desta forma, é possível afirmar que enquanto o dolo direto é delineado pela teoria da vontade, o dolo eventual tem seus contornos definidos pela teoria do assentimento.
As teorias da previsão e da probabilidade não foram recepcionadas em nosso ordenamento jurídico porque excluem a apreciação do elemento volitivo, ou seja, não há análise da vontade do agente ao percorrer a conduta.
Bitencourt11 afirma que a doutrina subdivide o conceito de dolo em duas espécies: dolo direto (ou imediato) e dolo indireto (novamente subdividido em dolo alternativo e dolo eventual). Esta classificação doutrinária se dá “(...) pela necessidade de a vontade abranger o objetivo pretendido pelo agente, o meio utilizado, a relação de causalidade, bem como o resultado”.
Note-se que esta diferenciação do dolo em diversos tipos é apenas doutrinária e não acarreta em nenhum efeito prático direto, eis que o Código Penal brasileiro não positivou as diversas hipóteses de dolo, equiparando todas em seu artigo 18, I.
Desta forma, pouca diferença faz se o crime foi cometido com dolo direto ou indireto (seja ele eventual ou alternativo), pois, qualquer que seja a hipótese, será reprimida com a mesma intensidade, eis que o dispositivo incriminador será o mesmo.
1.1.2.1 – Dolo Direto ou Imediato
Encontra previsão legal no art. 18, I, primeira parte do Código Penal: “diz-se o crime doloso, quando o agente quis o resultado (...)”. Neste caso, o agente efetivamente deseja o resultado danoso e utiliza dos meios necessários para atingi-lo. É o caso do indivíduo que, durante a condução de seu veículo avista seu desafeto transitando a pé sobre o passeio e arremessa propositalmente o veículo de encontro a este, causando-lhe a morte. Não há que se falar em crime culposo ou dolo eventual, o objetivo do agente era efetivamente causar a morte de seu inimigo, utilizando-se para isso do veículo que conduzia, tratando-se portanto, inequivocamente de dolo direto.
Bitencourt12 em seu Tratado de Direito Penal refere-se a uma subdivisão do dolo direto, entre de “primeiro” e de “segundo” grau. Segundo o autor, dolo direto de primeiro grau seria referente ao dano que se pretende gerar (dano desejado e provocado pelo autor), já o dolo direto de segundo grau seria relativo aos outros danos provocados em função do meio de execução escolhido pelo agente que, embora não sejam desejados pelo agente, fazem-se necessários para a consecução de seu objetivo final.
Podemos exemplificar com situação similar àquela descrita no parágrafo anterior, supondo que um indivíduo conduzindo um ônibus avista seu desafeto transitando no passeio acompanhado por sua família. O condutor imediatamente projeta o veículo contra o seu inimigo, causando a morte não só deste como também de toda a sua família. Neste caso, haverá dolo direto de primeiro grau com relação ao desafeto (objetivo da ação delituosa) e dolo direto de segundo grau com relação aos demais vitimados, pois detinha o intuito inicial de matar apenas seu desafeto, porém assumiu a produção da morte dos demais em função do meio escolhido para cometer o crime.
Na realidade, esta diferenciação quanto ao dolo de primeiro e segundo graus não é comumente utilizada pela doutrina, tendo sua aplicação limitada à dosimetria da pena, eis que, em ambos os casos, tratar-se-á de dolo direto.
1.1.2.2 – Dolo Indireto
Damásio E. de Jesus13 descreve que o dolo indireto ocorre quando a vontade do sujeito não é direcionada à produção de um resultado determinado, sendo este subdividido em dolo alternativo e dolo eventual.
1.1.2.2.1 – Dolo Alternativo
No dolo alternativo o agente possui a vontade de causar dano a outrem, porém este dano pode ser orientado alternativamente em relação ao resultado ou em relação à pessoa.
No primeiro caso o agente é indiferente ao dano produzido na vítima, satisfazendo-se tanto com o resultado mais grave quanto com o menos grave, e no segundo caso, o agente é indiferente a quem será vitimado pela sua conduta (sendo esta dirigida a um grupo, estará satisfeito com a produção do resultado danoso em qualquer um daquele grupo).
Exemplo típico
de dolo indireto alternativo com relação ao resultado é
o do indivíduo que atira contra seu desafeto, satisfazendo-se
tanto com a morte quanto com a mera lesão
cor
1.1.2.2.2 – Dolo Eventual
No dolo eventual, o agente sabe que o resultado lesivo pode vir a ocorrer, mas age com indiferença, aceitando-o e assumindo o risco de sua produção. Note-se que para que subsista o dolo eventual é essencial que o agente anteveja a possibilidade do evento danoso (previsibilidade do resultado) e que, ainda assim, demonstre-se indiferente à sua possível produção, como já foi explicado na teoria do assentimento (teorias do dolo).
Algumas decisões judiciais identificam o dolo eventual em situações em que não existe o aspecto volitivo de “aceitação” do dano. Estas decisões tentam amparar-se nas teorias da representação ou da probabilidade, que não foram recepcionadas no nosso Código Penal. O professor Bitencourt14 narra de forma extremamente didática as diferenças entre as teorias da probabilidade e da vontade:
Para a primeira, diante da dificuldade de demonstrar o elemento volitivo, o querer o resultado, admite a existência do dolo eventual quando o agente representa o resultado como de muito provável execução e, apesar disso, atua, admitindo ou não a sua produção. No entanto, se a produção do resultado for menos provável, isto é, pouco provável, haverá culpa consciente. Para a segunda é insuficiente que o agente represente o resultado como de provável ocorrência, sendo necessário que a probabilidade da produção do resultado seja incapaz de remover a vontade de agir. Haveria culpa consciente se, ao contrário, desistisse da ação, estando convencido, calcula mal e age, produzindo o resultado. Como se constata, a teoria da probabilidade desconhece o elemento volitivo, que é fundamental na distinção entre dolo eventual e culpa consciente, e que, por isso mesmo, é melhor delimitado pela teoria do consentimento.
Jesus15 assevera que o dolo eventual caracteriza-se pela presença de duas características elementares, a saber: a previsibilidade objetiva, que é a possibilidade do agente antever que a conduta a ser percorrida poderá produzir um resultado danoso (devendo esta previsibilidade se nortear pelo discernimento que um cidadão comum teria na mesma situação); e a anuência do autor para com este possível resultado (indiferença).
O ilustre promotor Sznick16 defende entendimento um pouco diferente. Segundo ele, no dolo eventual, o agente efetivamente quer a produção do resultado, pois, ao antever a possibilidade de sua ocorrência e, ainda assim insistir na conduta demonstra desejo pela produção do resultado. Em suas próprias palavras,
No dolo eventual, o agente quer o evento, mesmo que este não seja o objetivo principal de sua conduta, mas o é secundariamente querido, porque consentido. (...) No dolo eventual o resultado é previsto pelo agente não como fim, mas como objetivo secundário, que pode resultar da ação criminal e, inobstante isso, não deixa de realizar a ação. (...) O dolo não é eventual; eventual é o resultado, na sua ocorrência; isto porque o agente ao prever e admitir o resultado, implicitamente o quis.
Note-se que os entendimentos descritos apresentam uma pequena, mas importante diferença. Enquanto a doutrina majoritária defende que existirá dolo eventual quando o agente mostrar-se indiferente à produção do resultado, a interpretação defendida por Sznick sustenta que, mais que mera indiferença, o resultado produzido também será desejado pelo agente, praticamente equiparando-o ao dolo direto.
1.2 – Crimes Culposos
O crime culposo tem previsão legal no art. 18, II do Código Penal e, conforme dispõe Bitencourt17, ocorre por inobservância do dever objetivo de cuidado manifestado numa conduta que não era destinada à produção de um fim ilícito. Sobre a questão do dever de diligência, Jesus18 explica que
A todos, no convívio social, é determinada a obrigação de realizar condutas de forma a não produzir danos a terceiros. É o denominado cuidado objetivo. A conduta torna-se típica “a partir do instante em que não se tenha manifestado o cuidado necessário nas relações com outrem, ou seja, a partir do instante em que não corresponda ao comportamento que teria adotado uma pessoa dotada de discernimento e prudência, colocada nas mesmas circunstâncias que o agente”.
Além da inobservância do dever de cuidado, para que a figura do crime culposo se consolide será também necessário que o resultado seja previsível. Ao contrário do crime doloso, aonde a conduta é dirigida à produção de um resultado e, portanto, este é antevisto pelo agente, na modalidade culposa deverá subsistir ao menos a possibilidade de previsão do resultado para que o fato seja punível. Mirabete19 ensina que
A previsibilidade — como anota Damásio — é a possibilidade de ser antevisto o resultado, nas condições em que o sujeito se encontrava. Exige-se que o agente, nas circunstâncias em que se encontrava, pudesse prever o resultado de seu ato. A condição mínima de culpa em sentido estrito é a previsibilidade; ela não existe se o resultado vai além da previsão.
A regra para as infrações penais é de que todo crime seja doloso. A repressão estatal às condutas culposas só ocorrerá quando esta for prevista de forma expressa na legislação, conforme preceitua o parágrafo único do art. 18 do CP: “salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”.
Jesus20 arremata afirmando que para saber se um crime admite a modalidade culposa bastará “(...) analisar a norma penal incriminadora. Quando o Código admite a modalidade culposa, há referência expressa à culpa. Quando o Código, descrevendo um crime, silencia a respeito da culpa, é porque não concebe a modalidade culposa, só admitindo a dolosa”.
As modalidades da culpa ou “formas de manifestação da falta do cuidado objetivo” 21 são descritas no art. 18, II do Código Penal, a saber: imprudência, negligência e imperícia.
A imprudência traduz-se pela precipitação, falta de cautela na prática de determinada ação, como por exemplo, conduzir um automóvel através de um cruzamento desrespeitando as normas de preferência ou desrespeitando a sinalização de Parada Obrigatória.
A negligência diz respeito à prática de uma ação com a falta das precauções normais por displicência, indiligência, como por exemplo, abster-se deixar o veículo estacionado devidamente freiado.
A imperícia refere-se à prática de determinada conduta com a falta de conhecimentos técnicos para sua segura e correta execução, como por exemplo, não saber conduzir um veículo automotor.
1.2.1.1 – Culpa Inconsciente
Mirabete22 explica que a culpa inconsciente, juntamente com a culpa consciente são espécies de culpa. Nesta, embora o resultado seja previsível (condição sine qua non para o juízo de culpabilidade do crime, como já descrito), o agente não antevê a possibilidade do resultado por mera displicência.
Sobre a culpa inconsciente, Oliveira23 define-a através da afirmativa de que, “(...) o agente não prevê o resultado negativo para a sua ação ou omissão, porque incompetente para tanto, muito embora tal resultado seja absolutamente previsível”.
A título de ilustração é possível citar o caso de indivíduo que abandona arma de fogo displicentemente em local com fácil acesso a crianças. Embora este indivíduo não deseje patrocinar um homicídio, sua conduta torna este resultado possível por puro desleixo. Note-se que o resultado continua não sendo desejado pelo agente, ocorre por mera desatenção.
1.2.1.2 – Culpa Consciente ou Culpa com Previsão
De acordo com Bitencourt24, na culpa consciente o agente prevê a possibilidade da produção do resultado ilícito, todavia, acredita sinceramente que este não venha a ocorrer. Note-se que não bastará apenas a previsibilidade do resultado para que se configure a culpa consciente, será também forçoso que o agente não o deseje e se esforce para que este não ocorra.
A previsão cobrada do agente é a chamada de objetiva25, ou seja, a que se seria de esperar de um cidadão de raciocínio mediano que se encontrasse nas mesmas condições que ele. Em sua obra explica que
A previsibilidade objetiva se determina mediante um juízo levado a cabo, colocando-se o observador (por exemplo, o juiz) na posição do autor no momento do começo da ação, e levando em consideração as circunstâncias do caso concreto cognocíveis por uma pessoa inteligente, mais as conhecidas pelo autor e a experiência comum da época sobre os cursos causais.
Damásio E. de Jesus26 exemplifica com a hipótese do caçador que avista sua caça próxima a um confrade e percebe que, atirando no animal poderá acertar em seu companheiro. Confiando em sua pontaria e acreditando que não o atingirá, dispara sua arma, matando-o. Perceba-se que o agente não assumiu a possibilidade da produção do resultado porque acreditava que sua habilidade seria suficiente para afastá-lo.
Sintetizando, Jesus27 relata que, para que se configure a culpa consciente devem estar presentes:
1º) vontade dirigida a um comportamento que nada tem com a produção do resultado ocorrido (...); 2º) crença sincera de que o evento não ocorra em face de sua habilidade ou interferência de circunstância impeditiva, ou excesso de confiança (...); 3º) erro de execução.
Ressalva ainda que a culpa consciente é equiparada à inconsciente, sendo a pena in abstract igual para as duas espécies, pois, “tanto vale não ter consciência da anormalidade da própria conduta, quanto estar consciente dela, mas confiando, sinceramente, em que o resultado lesivo não sobrevirá”.
Os crimes de trânsito em espécie estão previstos essencialmente no Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97), do artigo 302 ao 312, aonde são previstas diversas condutas típicas, tais como o homicídio culposo e a lesão corporal culposa à direção de veículo automotor, a condução de veículo sobre a influência de álcool, a participação em competição não autorizada em via pública, dentre outras.
Embora o Código de Trânsito Brasileiro tenha inserido onze tipos penais em nosso ordenamento jurídico, limitaremos o objeto deste estudo à incidência do dolo eventual apenas aos tipos previstos nos artigos 302 (homicídio culposo) e 303 (lesão corporal culposa), haja vista que, por se tratarem de crimes contra a vida, geram um sentimento maior de repulsa e desaprovação pela sociedade.
É também pertinente o fato de que existem diversos estudos e publicações sobre os referidos dispositivos legais, ao contrário dos demais tipos penais contidos no Código de Trânsito, dos quais até a busca por jurisprudência é dificultosa.
Cabe ainda invocar que os citados dispositivos merecem atenção especial por fazerem previsão de modalidade culposa, podendo dar ensejo sobre discussão sobre a incidência da culpa consciente ou do dolo eventual (que teria o condão de mudar a capitulação do tipo previsto no Código de Trânsito para o do Código Penal).
CAPÍTULO 2 – DOLO EVENTUAL x CULPA CONSCIENTE
O entendimento da correta adequação do tipo penal à conduta percorrida pelo agente é de suma importância à prática forense uma vez que, usualmente o instituto da culpa consciente é confundido com o dolo eventual (erro comum até a experientes operadores do direito).
Esta pequena confusão pode trazer graves conseqüências para o autor de um delito de trânsito, eis que dependendo da capitulação dada pelo magistrado ao fato, a repressão estatal se manifestará de forma mais ou menos severa a uma mesma conduta praticada pelo autor (que pode se dar através de penas privativas de liberdade ou outras formas de penalização previstas em lei).
O agente que responder a processo em função de crime praticado com culpa consciente, responderá pela modalidade culposa do mesmo (ou nem mesmo será acusado de crime algum, caso exista previsão expressa da modalidade culposa do crime). Se, contudo, for processado por crime praticado com dolo eventual, responderá pela modalidade dolosa, o que resultará em substancial aumento da pena in abstract, além do seguimento do processo pelo rito especial do Tribunal do Júri (nos casos de crimes contra a vida).
No caso específico do homicídio praticado com o uso de veículo automotor — sendo este capitulado na forma culposa — a pena a ser imposta variará entre dois a quatro anos de detenção (artigo 302 da Lei 9503/97), enquanto que, sendo feito o enquadramento com base no dolo eventual (artigo 121, caput do Código Penal), a pena irá variar de seis a vinte anos de reclusão (além de seguir a tramitação específica do Tribunal do Júri).
Tanto a culpa consciente quanto o dolo eventual possuem como elemento comum a previsibilidade do resultado, pois, como já descrito anteriormente, a imprevisibilidade objetiva do resultado (a possibilidade que um cidadão mediano teria de antever o resultado lesivo) torna a conduta impassível de sanção estatal. Neste mesmo sentido posicionou-se Bitencourt28 ao afirmar que “sendo (...) imprevisível o resultado não haverá delito algum, pois se tratará do mero acaso, do caso fortuito, que constituem exatamente a negação da culpa”.
A diferenciação entre os dois institutos se dará essencialmente através da análise do elemento volitivo, que se consubstancia na aceitação ou não do resultado previsto pelo agente. Enquanto na culpa consciente o agente não aceita sua produção e só age porque acredita que terá capacidade para evitá-lo, no dolo eventual a produção do resultado é aceita com indiferença pelo agente, tanto faz que ocorra. Esse “tanto faz”, “dane-se”, é o elemento volitivo que se faz necessário para que fique caracterizada na conduta do agente o dolo eventual.
Bitencourt29 descreve de forma bastante didática a mesma teoria em sua obra:
Na hipótese de dolo eventual, a importância negativa da previsão do resultado é, para o agente, menos importante do que o valor positivo que atribui à prática da ação. Por isso, entre desistir da ação ou praticá-la, mesmo correndo o risco da produção do resultado, opta pela segunda alternativa. Já, na culpa consciente, o valor negativo do resultado possível é, para o agente, mais forte do que o valor positivo que atribui à prática da ação. Por isso, se estivesse convencido de que o resultado poderia ocorrer, sem dúvida, desistiria da ação. Não estando convencido dessa possibilidade, calcula mal e age. (...) O fundamental é que o dolo eventual apresente estes dois componentes: representação da possibilidade do resultado e anuência à sua ocorrência, assumindo o risco de produzi-lo.
Damásio E. de Jesus30 é objetivo ao afirmar que o dolo eventual diferencia-se da culpa consciente, pois naquele
o agente tolera a produção do resultado, o evento lhe é indiferente, tanto faz que ocorra ou não. Ele assume o risco de produzi-lo. Na culpa consciente, ao contrário, o agente não quer o resultado, não assume o risco nem ele lhe é tolerável ou indiferente. O evento lhe é representado (previsto), mas confia em sua não-produção.
Fernando Capez31 delineia a diferença entre ambos os institutos de forma semelhante:
A culpa consciente difere do dolo eventual, porque neste o agente prevê o resultado, mas não se importa que ele ocorra (“se eu continuar dirigindo assim, posso vir a matar alguém, mas não importa; se acontecer, tudo bem, eu vou prosseguir”). Na culpa consciente, embora prevendo o que possa vir a acontecer, o agente repudia essa possibilidade (“se eu continuar dirigindo assim, posso vir a matar alguém, mas estou certo de que isso, embora possível não ocorrerá”). O traço distintivo entre ambos, portanto, é que no dolo eventual o agente diz: ‘não importa’, enquanto na culpa consciente supõe: “é possível, mas não vai acontecer de forma alguma”.
Desta mesma forma, Mirabete32 afirma que
A culpa consciente avizinha-se do dolo eventual, mas com ela não se confunde. Naquela (na culpa consciente), o agente, embora prevendo o resultado, não o aceita como possível. Nesse (no dolo eventual), o agente prevê o resultado, não se importando que venha ele a ocorrer.
Por último citamos Rogério Greco33 que, assim como os demais doutrinadores, reafirma a necessidade da indiferença do agente para que se caracterize o dolo eventual:
Na culpa consciente, o agente, embora prevendo o resultado, acredita sinceramente na sua não-ocorrência: o resultado previsto não é querido ou mesmo assumido pelo agente. Já no dolo eventual, embora o agente não queira diretamente o resultado, assume o risco de vir a produzi-lo. Na culpa consciente, o agente sinceramente acredita que pode evitar o resultado; no dolo eventual, o agente não quer diretamente produzir o resultado, mas, se este vier a acontecer, pouco importa.
Toda a doutrina consultada posiciona-se de forma unânime sobre o assunto, não sendo encontrada nenhuma obra que defendesse a aplicabilidade da teoria da representação, que se fundamenta essencialmente na previsibilidade do evento, não ingressando na análise do animus dolandi do agente.
Conclui-se então que deve ser dispensada particular atenção à análise do fato, pois como visto, o dolo eventual diferencia-se da culpa consciente apenas em função de um elemento subjetivo, que se traduz na indiferença ou não do agente à produção do resultado lesivo.
Estando pacificado que é essencial para uma correta adequação do tipo penal à conduta percorrida pelo agente o conhecimento do elemento volitivo no momento da consumação do crime, pergunta-se: como identifica-lo? Como saber se o agente era realmente indiferente à produção do resultado?
O autor do delito dificilmente irá exprimir a sua verdadeira intenção no momento da execução do crime, pois importaria na sua própria confissão. Faz-se então necessário concluir por uma ou outra hipótese a partir da fria análise das informações que forem carreadas ao processo.
O professor Damásio de Jesus34 segue a mesma linha de raciocínio ao afirmar que o julgamento deve pautar-se sobre a conduta percorrida pelo agente, e não pelos aspectos psicológicos que determinaram aquela conduta:
Não se exige fórmula psíquica ostensiva, como se o sujeito pensasse “consinto”, “conformo-me com a produção do resultado”. Nenhuma justiça conseguiria condenar alguém por dolo eventual se exigisse confissão cabal de que o sujeito psíquica e claramente consentiu na produção do evento; que, em determinado momento anterior à ação, deteve-se para meditar cuidadosamente sobre suas opções de comportamento, aderindo ao resultado. Jamais foi visto no banco dos réus alguém que confessasse ao juiz: “no momento da conduta eu pensei que a vítima poderia morrer, mas, mesmo assim, continuei a agir”. (…) O juiz, na investigação do dolo eventual, deve apreciar as circunstâncias do fato concreto e não buscá-lo na mente do autor, uma vez que, como ficou consignado, nenhum réu vai confessar a previsão do resultado, a consciência da possibilidade ou probabilidade de sua causação e a consciência do consentimento.
Posiciona-se também desta forma o consagrado doutrinador Aníbal Bruno35:
A representação do resultado como possível e a anuência a que ele ocorra são dados íntimos da psicologia do sujeito, que não podem ser apreendidos diretamente, mas só deduzidos das circunstâncias do fato. Da observação destas é que pode resultar a convicção da existência daqueles elementos necessária ao julgamento da situação psíquica do agente em relação ao fato como dolo eventual. Se elas não conduzem seguramente a esta conclusão, e a dúvida se mantém, deve-se admitir a solução menos severa, que é a da culpa consciente.
É importante frisar que o julgamento sobre a existência ou não do dolo deverá se amparar apenas nas circunstâncias em torno do fato. Não deverá ser feito juízo de valor sobre o caráter do agente, pois este não será alvo de apreciação, o fato típico é que deverá ser reprimido na medida da culpabilidade do agente.
De forma antagônica posiciona-se Oliveira36 em sua obra, ao afirmar que:
(…) para ocorrência do dolo indireto eventual (…) é necessário certo grau de vontade e esta se manifesta na esfera do subjetivo, no foro íntimo do agente, logo, não é algo que possa ser percebido diretamente, porém, é possível extrair do caráter e de todo o conjunto circunstancial que cercou o agir do indivíduo.
Dada a impossibilidade material em se desvendar a verdadeira intenção do agente no decorrer do iter criminis, Damásio de E. Jesus37 em um parecer confeccionado por ocasião da morte do índio pataxó Galdino, sugere um roteiro, baseado em quatro critérios objetivos a serem seguidos, para que se deslinde a verdade contida sob os fatos:
1º - risco de perigo para o bem jurídico implícito na conduta; 2º - poder de evitação de eventual resultado pela abstenção da ação; 3º - meios de execução empregados; e 4º - desconsideração, falta de respeito ou indiferença para com o bem jurídico.
Apesar do prestígio reconhecido ao consagrado doutrinador, a redução da questão da capitulação do dolo eventual ao seguimento de uma série de normas pré-ordenadas ou “esquemas” é contestada por grande parte dos magistrados e da doutrina.
O professor Rosa38 sugere a análise de três critérios subjetivos para que seja identificada a incidência do dolo eventual ou culpa consciente, que devido à sua pertinência, devem ser aqui serem explorados.
Primeiramente, é sugerido que seja analisada a “valorização do resultado”. Rosa descreve este critério como sendo o valor que é atribuído pelo agente ao resultado que se pretende obter. Explica que, na hipótese de dolo eventual, o valor dado ao resultado almejado é tão elevado, que a possibilidade de incorrer em crime para atingi-lo torna-se aceitável. Se outro lado, o valor atribuído ao resultado seja pequeno, fica mais propenso a se caracterizar a culpa consciente, eis que não seria razoável admitir que pessoa em sã consciência admitisse incorrer em crime para atingir pífio resultado.
Nas próprias palavras do autor39,
A diferença, então, entre as duas modalidades de culpa “lato sensu” está em que no dolo eventual, o sujeito valoriza mais o resultado ilícito do que o lícito; logicamente, o contrário ocorre na culpa consciente. Por isso se diz que no dolo indireto o indivíduo assume o risco, anui (teoria do assentimento), isto é, sua vontade se dirige diretamente a um propósito normal, permitido; acontece que para atingir esse fim poderá ferir um bem penalmente protegido. Todavia, maior valor é dado à atitude lícita pretendida. Se soubesse com certeza que o dano adviria, mesmo assim não deixaria de agir (fórmula de Franck).
Em seguida deve ser analisada a “credibilidade do evento criminoso”. Trata-se da necessidade de que a representação do ilícito exista na esfera da probabilidade, e não da possibilidade, ou seja, que seja possível ao agente perceber que agindo de determinada forma, incorrerá em um risco real, próximo, de que um crime seja cometido como conseqüência desta conduta. Quanto maior a previsibilidade da ocorrência do crime, mais se aproximará o agente do dolo eventual e, consequentemente, mais se afastará da culpa consciente.
De acordo com Rosa40,
Quanto mais tenho certeza de que o dano ocorrerá, mais obrigação terei de me privar da conduta que a isso pode produzir. Isso posto, o dolo eventual existirá desde que o desate criminoso da ação ilícita seja encarado como algo provável; se for meramente possível, teremos a culpa consciente. (...) É que a representação está ligada à vontade. Se acredito de forma mais intensa acarretar o dano e não renuncio à atitude, demonstro maior resistência à norma jurídica, o que leva a crer que assumo o risco do resultado.
Por fim, deve ser analisada a “seriedade do dano”, que vem a ser valoração da possível conseqüência criminosa pelo agente. Quanto mais censurável for esta, mais se aproxima o agente do dolo eventual, pois, quanto mais sério for o dano possível, maior será o dever de abstenção deste e maior também será a repressão estatal através de penas mais severas.
Todavia, indiferentemente a quais critérios serão utilizados para que se decida por esta ou aquela qualificação, faz-se importante frisar que a análise deverá ser feita caso a caso, examinando-se minuciosamente as peculiaridades e provas de cada processo particularmente, conforme indicou o ilustre desembargador Torres Marques41 no Tribunal de Justiça de SC:
Nada obstante as tentativas reiteradas da doutrina em reduzir a solução do problema a uma série de esquemas racionais que pretendem ter aplicabilidade geral, a verdade é que todos se demonstram insuficientes para o fim a que se destinam, seja porque é impossível se verificar intimamente o que se passa pela cabeça do autor do fato no momento da ação típica (o que no caso de um delito culposo ou com dolo eventual é ainda mais difícil, visto que a conduta, em regra, permanece impune quando o resultado não ocorre), seja porque é simplesmente impossível reduzir algo tão rico, complexo e variado, como as formas de comportamento humano a uma limitada série de esquemas racionais teóricos. (...) A solução que vem sendo dada pela jurisprudência dos Tribunais, a nosso ver de maneira adequada, é tratar particularmente cada caso, levando em consideração o que há de comprovado nos autos e cotejar tais elementos de acordo com as regras de experiência e com a observação do que ordinariamente acontece, retirando de tais dados objetivos da lide a natureza do elemento subjetivo do agente. (...) Dessas digressões, duas conclusões são obrigatórias em se tratando do elemento subjetivo nos delitos de trânsito: 1) não há uma resposta prévia ou fórmula geral aplicável ao caso: alguns acidentes com resultado antijurídico (morte ou lesões) não serão punidos (...); a maior parte deles será punida a título de culpa inconsciente; alguns podem ser punidos a título de culpa consciente; outros ainda a título de dolo eventual (...); e, por fim, alguns delitos cometidos na direção de veículo automotor podem ser punidos a título de dolo direto; 2) a resposta para a questão de qual elemento subjetivo animou a conduta do agente não será retirada do seu íntimo, mas deve obrigatoriamente ser extraída dos dados objetivos coletados nos autos.
Outra questão importante e um pouco controversa a ser depurada é a aplicabilidade do princípio do in dubio pro reo ou do in dubio pro societate, quando existir dúvida sobre a capitulação do fato à modalidade culposa (culpa consciente) ou dolosa (dolo eventual).
2.2.2.1 – In dubio pro reo
O princípio do in dubio pro reo é um dos preceitos fundamentais do direito penal, e consubstancia-se na presunção de que, pairando qualquer espécie de dúvida no decorrer do processo, esta deve ser decidida de forma mais favorável ao réu.
Neste sentido posicionou-se o consagrado doutrinador Nelson Hungria42:
No caso de irredutível dúvida entre o espírito e as palavras da lei, é força acolher, em direito penal, irrestritamente, o princípio do in dubio pro reo (isto é, o mesmo critério de solução nos casos de prova dúbia no processo penal). Desde que não seja possível descobrir-se a voluntas legis, deve guiar-se o intérprete pela conhecida máxima: favorablia sunt amplianda, odiosa restringenda. O que vale dizer: a lei penal deve ser interpretada restritivamente quando prejudicial ao réu, e extensivamente no caso contrário.
2.2.2.2 – In dubio pro societate
O princípio do in dubio pro societate teria sua aplicação na esfera penal limitada ao momento da decisão de pronúncia, a ser aplicado exclusivamente nos crimes que sigam o rito especial do Tribunal do Júri (nada mais é do que um mero juízo de admissibilidade da acusação, nos termos em que foi proposta a denúncia).
O Código de Processo Penal em seu artigo 408 especifica que, nos crimes contra a vida, para que o juiz decida pela pronúncia do réu, bastará mero indício de autoria e materialidade do fato, sendo enviado em seguida ao plenário do Tribunal do Júri, aonde os jurados de forma soberana decidirão o mérito da ação penal.
Trata-se de princípio antagônico ao anterior, pois neste, em caso de dúvida, o magistrado deverá optar pela medida mais grave para o réu, buscando com isto a proteção do corpo social. Mirabete43 explica que
Como juízo de admissibilidade, não é necessário à pronúncia que exista a certeza sobre a autoria que se exige para a condenação. Daí que não vige o princípio do in dubio pro reo, mas se resolvem em favor da sociedade as eventuais incertezas propiciadas pela prova (in dubio pro societate). O juiz, porém, está obrigado a dar os motivos de seu convencimento, apreciando a prova existente nos autos, embora não deva valorá-los subjetivamente. Cumpre-lhe limitar-se única e tão-somente, em termos sóbrios e comedidos, a apontar a prova do crime e os indícios da autoria, para não exercer influência no ânimo dos jurados, que serão os competentes para o exame aprofundado da matéria. Isso não o dispensa, porém, de enfrentar e apreciar as teses apresentadas pela defesa, sob pena de nulidade.
O ilustre promotor Paulo Rangel44 explica a corrente majoritária quando afirma que “(...) na dúvida, diante do material probatório que lhe é apresentado, deve o juiz decidir sempre a favor da sociedade, pronunciando o réu e o mandando a júri, para que o conselho de sentença manifeste-se sobre a imputação feita no libelo”, todavia, logo em seguida assume posição contrária, defendendo a interpretação a favor do réu no caso de dúvida, pois,
(...) se há dúvida, é porque o Ministério Público não logrou êxito na acusação que formulou em sua denúncia, sob o aspecto da autoria e materialidade, não sendo admissível que sua falência funcional seja resolvida em desfavor do acusado, mandando-o a júri, onde o sistema que impera, lamentavelmente, é o da íntima convicção.
2.2.3 – Decisão de Pronúncia ou Desclassificação?
Sendo a denúncia oferecida com base no homicídio doloso (interessa-nos particularmente aquela amparada no dolo eventual), a primeira oportunidade que o magistrado terá para se manifestar sobre a denúncia será justamente no momento da decisão de pronúncia, quando então terá a oportunidade de aceitá-la nos moldes em que foi formulada ou desclassificá-la para a modalidade culposa, remetendo o processo para o juízo monocrático.
A desclassificação tem por base o disposto no artigo 410 do Código de Processo Penal e consiste basicamente na retirada da infração de uma classificação inicial para outra (homicídio culposo, lesão corporal seguida de morte). Neste aspecto, a incidência de um ou outro princípio trará conseqüências distintas.
Numa situação hipotética de dúvida sobre o animus dolandi do agente, havendo o entendimento pela aplicação do princípio do in dubio pro societate, a acusação será mantida nos moldes em que foi proposta (na modalidade de crime contra a vida), o que ocasionará a remessa do processo ao plenário do Tribunal do Júri, o que fatalmente implicará na absorção de custos maiores pelo réu (uma vez que uma boa defesa no Tribunal do Júri requer advogados mais capacitados), além é claro, da expectativa de condenação a uma pena muito superior a aquela devida aos crimes culposos.
Já na hipótese da aplicação do princípio do in dubio pro reo, o magistrado deverá decidir pela desclassificação do crime para a modalidade culposa, com sua conseqüente remessa para o juízo monocrático, passando então a seguir o rito ordinário.
Da mesma forma, se a denúncia for feita com base no homicídio culposo e, ao analisar o fato, o magistrado entender que na realidade trata-se de crime doloso, poderá reconhecer sua incompetência de ofício e remetê-lo ao Tribunal do Júri para que lá tenha prosseguimento.
Extensa jurisprudência corrobora a aplicação do princípio do in dubio pro societate na decisão de pronúncia:
Demonstrados a materialidade do delito e os indícios de autoria, a regra é a pronúncia. Nessa fase processual, há de ser observado o brocardo ´in dubio pro societate´, razão pela qual só se opera a desclassificação do crime, de doloso para culposo, se a acusação por crime doloso for manifestamente inadmissível. Admitida a acusação, ela, com todos os eventuais questionamentos, deve ser submetida ao Tribunal do Júri, que, em nosso sistema, é o Juiz natural de tais causas. (...) Em delito de trânsito, impossível a generalização de se excluir, sempre, o dolo. Havendo indícios da ocorrência do dolo eventual, não se permite, na pronúncia, a desclassificação para o delito culposo" (TJ/MG, 2ª Câmara Criminal, relator Desembargador Luiz Carlos Biasutti, RSE n. 308.821-8/00/Belo Horizonte, julgado em 5.12.2002).
MATERIALIDADE COMPROVADA - INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA - DOLO EVENTUAL EM TESE CONFIGURADO - PRETENDIDA DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMÍCIDIO CULPOSO - DÚVIDA QUE SE RESOLVE EM FAVOR DA SOCIEDADE - NECESSIDADE DE APRECIAÇÃO DAS TESES DEFENSIVAS PELO TRIBUNAL DO JÚRI - RECURSO DESPROVIDO Na sentença de pronúncia exige-se apenas prova da existência do crime e indícios da autoria, invertendo assim a regra do in dubio pro reo para o in dubio pro societate (TJ/SC, Recurso Criminal no 2006.000048-6, julg. em 21/02/06, rel. des. Solon d´Eça Neves).
Segundo precedentes, "o juízo de pronúncia é, no fundo, um juízo de fundada suspeita e não um juízo de certeza. Admissível a acusação, ela, com todos os eventuais questionamentos, deve ser submetida ao juiz natural da causa, em nosso sistema, o Tribunal do Júri". (STJ, REsp 225.438/CE, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca)
Bitencourt45 defende em sua obra que em caso de dúvida, deve prevalecer a exegese mais benéfica para o réu, pois a “distinção entre dolo eventual e culpa consciente resume-se à aceitação ou rejeição da possibilidade de produção do resultado. Persistindo a dúvida entre um e outra, dever-se-á concluir pela solução menos grave: pela culpa consciente”.
A leitura desatenta do texto narrado acima pode levar a uma interpretação enganada. Embora o ilustre doutrinador defenda abertamente a aplicação do princípio do in dubio pro reo em caso de dúvida entre a capitulação do dolo eventual ou culpa consciente, na realidade ele refere-se ao momento do julgamento do mérito da ação penal, e não ao momento da formulação do juízo de admissibilidade desta pelo magistrado, quando deverá haver incidência do princípio do in dubio pro societate.
Paulo Rangel, como visto anteriormente, defende a aplicação do princípio do in dubio pro reo até mesmo no momento da decisão de pronúncia, sendo seguido por Shecaira46 que também defende a desclassificação do crime doloso para culposo quando houver dúvida sobre a incidência do dolo eventual ou culpa consciente, justificando que a análise destes dispositivos seria por demais técnica para ser apreciada por juízes leigos, devendo ser adotada a medida menos grave ao réu.
Esta posição também foi defendida pelo ex-ministro do STJ, Francisco de Assis Toledo47:
(...) transferir para o Júri a decisão sobre se a hipótese dos autos é de dolo eventual ou culpa consciente, em relação ao evento da morte, será (isto sim ´no mínimo´) uma temeridade, ante as dificuldades óbvias de compreensão desses conceitos por parte de pessoas leigas. A matéria comporta-se, perfeitamente, no âmbito da sentença de impronúncia ou de desclassificação, nos expressos termos do art. 410 do CPP, seja por inexistir dúvida razoável a respeito, seja por estar diretamente relacionada com a competência do juízo que deverá julgar o mérito da causa (...)
Todavia, a despeito da fundamentação aqui exposta, a corrente de maior aceitação no meio doutrinário ainda é a que adota o princípio do in dubio pro reo apenas no momento da resolução do mérito da ação, posicionando-se pela aplicação do in dubio pro societate no momento da decisão de pronúncia (optando assim por dar continuidade ao rito próprio ao Tribunal do Júri), conforme explica Moreira48:
O procedimento dos crimes dolosos contra a vida é escalonado. Numa primeira fase, vige o princípio do in dubio pro societate, findando-se com a sentença de pronúncia. Havendo qualquer dúvida sobre a materialidade e autoria delitivas deve o réu ser pronunciado e levado a julgamento perante o Tribunal Popular. Na Segunda fase, um dos princípios basilares do nosso sistema penal — in dubio pro reo — retornaria, em tese. Assim, havendo dúvida sobre materialidade e autoria do réu, impõe-se a absolvição.
Neste mesmo sentido também se manifestou majoritariamente a jurisprudência pesquisada, encontrando-se o respaldo de decisões até do Superior Tribunal de Justiça.
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