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O consumo do luxo: o espaço social da louça inglesa na sociedade maranhense oitocentista (página 2)


Partes: 1, 2, 3, 4

Graças ao estudo da cultura material privada e cotidiana, reencontramos as relações sociais e os modos de produção que não podemos perceber com outras abordagens. Partindo daí, podemos investigar a vida das classes trabalhadoras, o dia – a – dia das famílias de classe média, as circunstâncias próprias à vida das mulheres, entre outros temas (PRIORE, 1997, p. 267).

A história da vida privada e cotidiana deixa de ser pensada como um espaço de reprodução, para assumir um espaço produtor – transformador da história. E sem dúvida, "o século XIX, assim, esboçaria uma idade do ouro do privado, onde as palavras e as coisas se precisam e as noções se refinam. Entre a sociedade civil, o privado, o íntimo e o individual traçam – se círculos idealmente concêntricos e efetivamente entrecruzados" (PERROT. In. PERROT, 2006, p. 10).

Desse modo, a cultura material foi um elemento de importância fundamental na reprodução das diferenças sociais e culturais, legitimado pelas pesquisas arqueológicas que resgatam os artefatos em um contexto específico, no interior de estruturas de habitação oitocentista em São Luís, revelando procedimentos do cotidiano em relação ao uso das louças, em especial inglesas, bem como suas estratégias de revelação e ocultação (SYMANSKY, 2007; LIMA, 1995).

Logo, a cultura material é entendida como "tudo aquilo feito, transformado ou apropriado pelo homem" (NAJAR. Apud. BANDEIRA, 2009, p. 10). Ou seja, "uma edificação, seja ela qual for- uma casa, uma igreja, uma praça, etc.- uma vez que é construída pelo homem, também deve ser considerado elemento da cultura material". Assim também como os objetos portáteis inseridos nas estruturas, vestígios dos mais variados objetos de uso apropriado pelos moradores do local estudado.

Como lembra o historiador José D" Assunção Barros (2004, p. 15), não existem fatos que sejam exclusivamente econômicos, políticos ou culturais. "Todas as dimensões da realidade social interagem, ou rigorosamente sequer existem como dimensões separadas", porém, se faz necessário, ou por um cunho arbitrário, ou mesmo, pela necessidade de um entendimento, optar pelos compartimentos da história, ou "lotes". Sendo assim, este trabalho se concentrará na área da História Cultural, tendo como campo de investigação a história do cotidiano e da vida privada.

O período estudado neste trabalho será a primeira metade do século XIX, com a análise das louças encontradas no sítio Histórico de São Luís que abarcam em grande parte este período descrito.

Privilegia-se para a pesquisa a análise dos fragmentos de louças em seu contexto, levando em consideração a questão quantitativa durante a sua coleta nos sítios arqueológicos, em uma perspectiva histórica do período, bem como investigar seus usos, costumes e relações tecidas a partir deles, utilizando fonte bibliográfica e materiais/arqueológicos, a cultura material pensada como fonte histórica, pois "fragmentos podem não ser meramente sobras, podem sim, tornar-se totalidades, plausíveis" (TEDESCO, 2002, p. 38).

O antropólogo Carlos Tedesco (2002, p. 37) analisa e retrata a possibilidade de o tempo e a história serem pesquisados não só através dos grandes acontecimentos, das modificações institucionais e das descobertas técnicas – científicas, mas também das coisas mínimas, dos resíduos. "Porém, deve ser tomado com a devida consideração. As pequenas coisas podem ser indícios, traços, sinais, ritmo, mentalidades, imaginários, sentimentos coletivos de atividades práticas e pensamentos".

(...) juntamos, dia após dia, (...) e imediatamente após esquecermos o trabalho de construção empreendido, nada desejamos modificar, nem colocar em discussão, como se tudo fosse simples e evidente. (...). Esquecemo-nos, também, de que esta sequência de gestos que compõem o cotidiano tem, por sua vez, uma história no seio da ciência histórica (PRIORE, 1997, p. 250).

A própria ciência histórica na contemporaneidade foi se reformulando, a ideia primeira que povoou o sentido de história atribuindo valores ao inédito, exótico, "irrepetível e único deveria ser substituída pela atenção ás regularidades histórica" (FUNARI, 2001, p. 90).

Os grandes personagens, reis, imperadores, papas não eram mais compreensíveis sem os seus colegas da elite e mesmo sem as grandes massas de trabalhadores que permitiam que eles governassem ou guerreassem.

(...) levou a uma ampliação considerável das fontes históricas, pois passaram a interessar as séries, as permanências, às trivialidades, o cotidiano das pessoas comuns. A arqueologia passava a fornecer uma grande quantidade de informações precisamente sobre tais aspectos do passado, já que a maioria do que se encontra, em uma pesquisa arqueológica, são artefatos banais, em série, de uso cotidiano (FUNARI, 2001, p. 90).

Neste sentido, há uma valoração pelo informal, largueando a atuação do historiador. O que "parece relativamente assente no momento é o fortalecimento da História Cultural, tributária, em grau bastante variável, da Antropologia e ancorado nos estudo das práticas e representações sociais" (LUCA, 2006, p. 114).

E se "a vida material são homens e coisas, coisas e homens (...) "as coisas – os alimentos, as habitações, o vestuário, o luxo, os utensílios, os instrumentos monetários, a definição de aldeia ou cidade -, em suma, tudo aquilo de que o homem se serve" (BRAUDEL, 1995, P. 19). Porém, já advertia Braudel, as coisas não são única maneira de avaliar a existência cotidiana. "Também o número dos que partilham as riquezas da terra faz sentido". Então, "o certo é que é das pessoas que temos de partir". Só depois poderemos falar das coisas" (BRAUDEL, 1995, p.20).

Os fragmentos de louça resgatados ao longo das pesquisas no âmbito doméstico de São Luís instigam uma análise mais profunda quanto a sua incorporação na sociedade que tanto a consumiu, uma sociedade do início do século XIX, com traços ainda rurais como defendido por Gilberto Freire (1977), mas, que já havia absolvido valores como a fetichização do consumo e a ascensão social, sentidos já burgueses.

Para tanto "é preciso, primeiro, entrar nesses domicílios e buscar fragmentos da intimidade dos indivíduos e da vida doméstica propriamente dita, muitas vezes impressa em resquícios da vida material e dos costumes domésticos". Afinal, "a casa é o palco permanente das atividades condicionadas à cultura de seus usuários" (ALGRANTI, 2002, p. 90).

Entretanto, a louça como elemento isolado não constitui necessariamente uma unidade cultural de comportamento, encontrando-se indissociável dos demais aspectos não material da cultura. Sendo assim, articulando as duas esferas - escrita e cerâmica - podem ser discutidas aspectos políticos, sociais, econômicos, ideológicos, entre tantos outros, que circunscrevem uma comunidade (MORALES, 2010, P. 47).

Por isso serão utilizadas na produção desse trabalho monográfico fontes arqueológicas, periódicos, relatos de viajantes, obras de contemporâneos (moradores), códigos de condutas. Quanto às fontes arqueológicas faremos uso da coleção de louças obtida durante o Monitoramento da antiga Fábrica Santa Amélia, vestígios decorrentes da primeira ocupação do local, que servira de casa de morada oitocentista.

A análise das fontes arqueológicas foi acrescida de informações obtidas a partir dos periódicos, mais especificamente anúncios de jornais das cinco primeiras décadas do século XIX, como o Jornal de Annuncios, de 1831, folha publicada junto ao Farol Maranhense, por não ser possível a vinculação de anúncios no mesmo; o Correio D" Annuncios e Semanário Commercial da Província do Maranhão, de 1845. Estes tiveram o seu nome modificado em 1851 para Folha Commercial da Província do Maranhão[4]As edições do ano de 1831 do jornal O Publicador Maranhense. Jornal Scientifico e Literario. Da Associação Litteraria Maranhense. O volume 1, nº1 do O Progresso. Jornal Político. Litterario e Commercial em circulação no ano de 1847 e o jornal O Globo, as edições de 1850 a 1852.

Nos escritos de viajantes e de moradores de São Luís da época, procuramos registros relacionados ao cotidiano. Toda essa documentação foi amparada nos estudos de historiadores e arqueólogos, para "recuperar os laços entre o social e o individual, o social e o histórico" (PRIORE, 1995, p. 19).

O trabalho está organizado em duas partes, contendo seis capítulos. Na primeira parte, intitulada As Coisas e os Homens, apresenta-se o objeto de estudo desta pesquisa, assim como as fontes arqueológicas constituídas pela coleção de louças adquiridas no monitoramento arqueológico da antiga Fábrica Santa Amélia. Aborda-se o processo de reconstituição de um sítio urbano a partir da análise dos fragmentos de louças encontrados na antiga fábrica, dando conta dos seus padrões e variedades decorativas, possibilitando definir termos de datação e origem produtiva. Aborda-se o gosto pelas louças, como objetos do desejo, tratando das origens das louças inglesas, as técnicas produtivas, juntamente com aspectos que influenciaram o acesso a todo esse consumo.

A segunda parte, denominada Os Homens e as Coisas, destaca-se aspectos sociais que influenciaram a aceitação das louças inglesas pelas elites locais, discutindo o processo civilizador com as influências da sociedade de corte na configuração cultural do Brasil na primeira metade do século XIX; em seguida trata-se da relação entre crescimento econômico de São Luís, com a modificação de certos aspectos da vida, da cultura e da própria paisagem urbana, perceptíveis nos novos hábitos adquiridos pelas elites locais especialmente no consumo do luxo. Os capítulos finais abordam os atores sociais nesse processo de absorção do modo de vida europeu e no uso de bens de distinção social, onde estão inseridas as louças inglesas no âmbito doméstico em São Luís, com sua representatividade como marca de posse e poder, estabelecendo um vínculo de troca e interação social.

PRIMEIRA PARTE:

AS COISAS E OS HOMENS

1. ASPECTOS DA RECONSTITUIÇAO DE UM SÍTIO URBANO EM SAO LUÍS OITOCENTISTA A PARTIR DA CULTURA MATERIAL

O estudo da cultura material pelo historiador pretende analisar "os objetos materiais em sua interação com os aspectos mais concretos da vida humana, desdobrando-se por domínios históricos que vão do estudo dos utensílios ao estudo da alimentação, do vestuário, da moradia e das condições materiais do trabalho humano (BARROS, 2004, p. 30). Assim, a preocupação se volta não para o objeto material em si, mas para os seus usos, apropriações sociais, importância econômica e sociocultural. Nesse tipo de estudo com objetos da cultura material, é muito freqüente o diálogo com a Arqueologia, como procuramos fazer neste trabalho.

Ao interpretar os vestígios arqueológicos "é necessário buscar ferramentas interpretativas, como em qualquer pesquisa histórica" (FUNARI, 2006, p.94).

A evidência não constitui conhecimento histórico disponível e pronto, que pode ser simplesmente engolido e digerido pelo historiador, (...) as fontes que surgem integram – se ao que já e conhecido sobre a sociedade estudada e sobre as sociedades humanas, em geral, e em particular sobre aquelas semelhantes ou comparáveis àquela que nos interessa (FUNARI, 2006, p.96).

 

Por isso, quando possível, é preciso buscar analogias entre a produção escrita e os vestígios arqueológicos, pensando a arqueologia como uma ciência social, não mero instrumento complementar da história, mas no sentido de troca entre os dois campos de conhecimento.

Desta forma, a arqueologia estuda as sociedades, tanto as antigas quanto as mais recentes, a partir dos vestígios da existência humana enquanto materialidade e imaterialidade, no sentido das representações, simbolismos e estruturas. Logo, o arqueólogo recolhe dados e materiais referentes a essas sociedades, carregadas de informações do passado e do cotidiano, a chamada cultura material, que para Najar (Apud. BANDEIRA, 2009, p.10) "é tudo aquilo feito, transformado ou apropriado pelo homem".

Por meio do estudo da cultura material em seu contexto nos é permitido avaliar de forma mais ampla como se deu e quem foram os agentes da ocupação de um dado território, buscando detalhamentos, muitas vezes esquecidos e omitidos pela documentação oficial. Para este trabalho monográfico, foram analisadas como fontes arqueológicas as coleções de louças obtidas no Projeto da Fábrica Santa Amélia (2011).

1.1 - A pesquisa empírica: Fábrica Santa Amélia

No início de 2011 foram iniciadas as obras de Restauro e Requalificação do Conjunto Edificado da antiga Fábrica Santa Amélia[5](1902-1964) para instalação dos cursos de Hotelaria e Turismo da Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Por trata-se de um bem centenário, tombado devido ao seu valor arqueológico, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN[6]tornou-se necessário o acompanhamento arqueológico paralelo as obras de intervenções no imóvel, para o resgate do patrimônio material constituído ao longo do tempo.

De acordo com o Manual de Normas e Gerenciamento do Patrimônio Arqueológico do IPHAN (2005, p.35), configuram-se como patrimônio arqueológico todos os vestígios da existência humana, interessando todos os lugares onde há indícios de atividade humana, não importando quais sejam elas, estruturas e vestígios abandonados de todo tipo, na superfície, no subsolo ou sob as águas, assim como o material a eles associados.

Desta forma, a coordenação do projeto arqueológico de restauro da Fábrica Santa Amélia optou pelo monitoramento arqueológico para o registro de todas as etapas de campo – da coleta sistemática, devidamente documentada quanto ao seu contexto e o acondicionamento do material arqueológico encontrada.

O monitoramento é entendido pelo IPHAN como um acompanhamento constante na fase de implantação do projeto. Do acompanhamento das obras realizadas, esperava-se encontrar testemunhos maiores da presença e funcionalidade fabril, no entanto, os achados arqueológicos, em sua maioria, reportam ao uso doméstico, anterior à data de funcionamento da fábrica.

No Diagnóstico Arqueológico Preliminar Não Interventivo do Complexo Fabril Santa Amélia (2009), de autoria do Arqueólogo Arkley Marques Bandeira, coordenador de Campo no Projeto Arqueológico, consta que fundadores e diretores da primeira fábrica que funcionou no local, a Companhia de Lanifícios Maranhense (1892 -1896), anterior a Fábrica Santa Amélia, escolheram para o empreendimento uma quinta, adquirida de Franklim da Costa, na Rua Madre de Deus. O terreno com cerca de 3.000 metros quadrados de área, era delimitado pelas ruas da Inveja, Mocambo, e com fundos para a Fonte das Pedras na Rua São João. Tinha, ainda, o privilégio de se situar nas proximidades do Rio Bacanga.

A residência adquirida para uso fabril era um sobrado erguido em pedra, cal e tijolo de dois pavimentos, que contava também com um mirante. A antiga residência de estilo português, originária do século XIX, era revestida de azulejos portugueses, em azul e branco, possuindo toda a cobertura de telha de barro, estrutura que permanece aparente na atualidade em sua fachada, embora internamente tenha sido adaptada para novos usos.

Figura 01 - Fachada do Casarão incorporado pela Fábrica Santa Amélia.

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Fonte: Foto de 2009 da fachada Fábrica Santa Amélia. In. Diagnóstico Arqueológico Preliminar Não Interventivo do Complexo Fabril Santa Amélia (2009).

A partir da análise estratigráfica[7](em anexo) e da localização dos achados em campo, levando em consideração a cronologia do sítio, da análise quantitativa e qualitativa dos artefatos recolhidos, para este pesquisa privilegiou o estudo da área Norte, devido o seu contexto, de estar relacionado a antiga ocupação histórica residencial, representativa de uma área externa (o quintal).

Nos quintais das residências era prática comum o descarte de refugo, aonde localizavam-se as "cozinhas suja", criavam-se os animais e (con) viviam os escravos da casa. E de fato, dentre os objetos encontrados no sítio podemos citar:

- Cerâmica (simples e vitrificada);

- Louça (faiança; faiança fina; ironstone; porcelana).

- Grés;

- Vidro;

- Lítico (machadinha e polidores);

- Metal (material construtivo: tranca prego, cravo de ferro forjado, chapa; instrumentos: alça, enxada, ferradura de cavalo);

- Material malacológico (concha, ostras);

- Material faunístico (ossos, articulações e dentes);

- Telhas de capa e canal;

- Tijoleiras (adobe, dois furos e lajota).

Na seleção de análise dos materiais foram excluídos restos alimentares, malacológios, fragmentos de telhas, tijolos e lítico, devido a sua quantidade excessiva. Destes materiais, fora coletado apenas para amostragem, dando preferência aos que apresentaram marcas de manuseio, com a evidência quantitativa e qualitativa de materiais, principalmente das cerâmicas e louças, privilegiando-se a análise básica das mesmas, totalizando 1710 fragmentos.

Tabela 01 – Classificação de Cerâmicas e Louças

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Fonte: Primeiro e Segundo relatório de acompanhamento arqueológico no pátio interno do Bem 01 – Unidade de Ensino (2011).

A classificação para cerâmica, de acordo com Tocchetto (2001) é bem genérica, abrange todos os produtos de uma composição de argila e outras substâncias minerais, existindo diferentes categorias de cerâmica, distintas com relação à pasta como louças de barro, faiança, faiança fina, louça vitrificada, grés e porcelana.

Para a análise, cerâmica foi classificada como "produtos porosos, absorventes tais como a louça de barro, terracota" (TOCCHETTO, 2001, p.21). Quanto ao termo louça, seria uma designação genérica para artefatos de uma cerâmica mais refinada (porcelana, faiança e faiança fina), usados indistintamente no meio doméstico (BRANCANTE, 1981).

Observando a tabela acima, é perceptível que a quantidade de cerâmica, em geral, relacionada ao processamento de alimentos é numericamente inferior as louças de origem europeia. Quanto aos fragmentos de louças encontrados em campo, destacam-se as fabricadas em faiança fina, gerando uma problemática quanto ao seu consumo, uso e descarte.

Dentre as diversas categorias de material arqueológico histórico, a cerâmica industrializada de origem europeia destaca – se pelo seu potencial informativo. Sendo artefatos padronizados, com períodos de produção específicos, e sobre os quais se dispõe de farta documentação histórica, fornecem elementos para uma datação relativamente precisa podendo, portanto, atuar como fortes indicadores cronológicos da ocupação de um sítio (TOCCHETTO, 2001, p.23).

 

As louças fabricadas em faianças finas substituíram às faianças, produzidas principalmente por Portugal, no gosto dos brasileiros no século XIX. Na Europa, a faiança fina viera como uma alternativa mais barata com relação à porcelana (consumida pela nobreza e a alta burguesia) amplamente aceita pelas camadas médias da sociedade. No Brasil, a faiança fina de início fora amplamente consumida pelos setores enriquecidos da sociedade, que não deixaram de importar porcelanas, mas em menor número.

A faiança fina era conhecida, também, por louça inglesa, devido o pioneirismo inglês na produção dessa louça, assim como seu domínio no mercado exportador. Nas pesquisas de campo no perímetro histórico de São Luís tem aparecido uma ampla variedade de faianças finas, com alguns padrões constantes, o que nos possibilita levantar alguns aspectos sobre os antigos ocupantes do local e a cronologia do sítio histórico. Os modelos mais comuns são:

- Elementos impressos com motivos orientais que imitavam a porcelana chinesa ming (o padrão Willow).

Figura 02- Faiança Fina com elementos orientais impresso

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Fonte: Estilo Chinoiserie (fabricado entre 1780 a 1850). In. Segundo relatório de acompanhamento arqueológico no pátio interno do Bem 01 – Unidade de Ensino

- A Shell Edge (conhecida popularmente como crina de cavalo) uma das mais difundidas devido a seu baixo valor e não exigir grandes habilidades do artesão. O louceiro Brancante (1981, p.501) descreve este padrão como "elegantes e bem acabados aparelhos populares, [...] produzidos pelos ingleses, totalmente em branco, com a decoração em relevo, em geral com espigas de milho e outros com motivos florais".

Figura 03- Faiança Fina Pearlware, pintada, com padrão Shell Edged

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Fonte: Fabricada entre 1780 a 1850, foram coletadas no monitoramento da Fábrica Santa Amélia. Foto: Michelle Ribeiro Silveira (2011)

- As florais e geométricas. Segundo Brancante (1981, p.489), no "início do século XIX surge, então peças monocromas e policromadas de vistoso efeito".

Figura 04 – Faiança Fina Pearlware com estilo Peasant, pintada com cor policrômica e tons brilhantes.

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Fonte: Fabricadas entre 1830 a 1850. Foto: Michelle Ribeiro Silveira

- O exótico, motivado pelo culto ao Oriente, inspirado na África e Oriente Médio, com paisagens de mesquitas, animais exóticos, montanhas.

Figura 05 – Faiança Fina Pearlware, impressa com cena exótica (período de fabricação entre 1828 a 1868).

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Fonte: Quarto relatório de acompanhamento arqueológico no pátio interno do Bem 01 – Unidade de Ensino

- E o romântico marcado por figuras passeando, pescando, fonte de águas, pequenas torres, edifícios ao fundo.

Figura 06- Faiança Fina impressa com cena romântica (período de fabricação entre 1793 a 1870).

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Fonte: Sexto relatório de acompanhamento arqueológico no pátio interno do Bem 01 – Unidade de Ensino

Quanto aos Fabricantes das louças, os fragmentos, em sua maioria, não apresentam nem uma indicação.

Mas há peças que tanto pode ser um algarismo (indicativo do modelo ou da encomenda executada) como o nome do protótipo, ou a marca da fábrica ou ainda o tipo de louça (ser Irostone, Opaque China, Cream Ware, etc), ou ainda a localidade ou as palavras "England" ou "Made in England" ou ainda um losango conhecido por "Diamond Mark", que contém um código. Há peças também, que contém um código. Há peças também, que contêm duas ou três dessas indicações na faiança fina inglesa não é costume vir indicando o nome do artista (BRANCANTE, 1981, p. 504).

Figura 07 e 08 – Faianças Finas com a marca do fabricante

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Fonte: À esquerda: impresso a localização, Inglaterra. À direita, a descrição da Marca DAVENPORT, originária Staffordshire, Englad (período de fabricação entre 1800-1860). In. Segundo e Quarto relatório de acompanhamento arqueológico no pátio interno do Bem 01 – Unidade de Ensino

E por fim, os borrões azuis (também conhecidos como faiança azul ou louça azul, eram as mais caras). O louceiro Brancante (1981, p.504) confirma essa preferência ao dizer que "na decoração da faiança fina do século XVIII até final do século XIX, prevaleceu na Inglaterra decoração do azul e branco".

Figura 09 e 10- Faianças Fina com a técnica decorativa borrão e carimbado

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Fonte: Período de fabricação entre 1845 ao início do século vinte. À esquerda: Faiança Fina com a técnica decorativa impressa e borrão azul, estilo chinoiserie (período de fabricação entre 1834 a 1887). In. Segundo e Quarto relatório de acompanhamento arqueológico no pátio interno do Bem 01 – Unidade de Ensino

Desta forma, consideramos a primeira metade do século XIX como data média para os vestígios encontrados, a partir da caracterização de ocupação do sítio arqueológico da antiga fábrica Santa Amélia, com base na análise e na freqüência dos tipos de louça presentes na escavação, uma vez que a ordem de superposição das camadas tem demonstrado que as louças mais antigas estão depositadas em camadas mais abaixo e as louças mais novas encontram-se aflorando nas camadas superiores e no entulho (princípio estratigráfico da arqueologia). Portanto, a datação relativa da área Norte, que diz respeito à ocupação doméstica, se concentra nas primeiras cinco décadas do século XIX, e seus antigos moradores, pessoas de posses, já haviam adquirido a preocupação com o expor a mesa as suas louças. Esse marco cronológico será a referência para esse trabalho monográfico.

Em pesquisas feitas com inventários[8]levantados das três primeiras décadas do século XIX em São Luís, observa-se o cuidado em discriminar as peças de louças, seu tamanho, material de composição ou ainda sua origem. Assim, as louças aparecem com denominações do tipo: grande, pequena, de pó de pedra, azul[9]de fábrica da Índia (Companhia das Índias), ou de Macau (porcelanas chinesas).

Os termos Índia e Macau se referem às louças provenientes do oriente, trazidas pela Companhia das Índias, sendo um objeto distintivo dentro da casa, com preço mais elevadas do que as demais louças, quase sempre são encontradas fazendo um conjunto, a exemplo dos aparelhos de chá. Mas, havia louças de qualidade inferior, grosseiras, denominadas de "macaus de carregação". Esta louça era baratíssima.

(...) vinha como lastro no fundo dos navios e se julgava indigna de aparecer nas mesas da aristocracia e da burguesia opulenta, sendo relegada ao uso dos criados e dos dependentes de baixa condição social. Graças a um decreto de D. João VI, em 1810, isentando de imposto todas as mercadoarias provenientes de Goa e Macau, elas continuaram penetrando no país ainda por um bom tempo, paralelamente à produção inglesa (LIMA, 1995, p.168).

Acredita-se que o termo azul seja usado inicialmente para designar as primeiras porcelanas que chegaram no Brasil (LIMA, 1995) e, posteriormente, passa a se referir (também) ao padrão decorativo "borrão azul", uma vez que este padrão foi introduzido somente na década de 1830 (TOCCHETTO, 2001).

Nos inventários é comum encontrar referências a bules, doceiras, pratos, pires, saladeiras, terrinas, tigelas e xícaras que, já na primeira década do período oitocentista, aparecem em profusão nos inventários, e minguam por volta dos anos de 1830, quando passam a ser mais registrados nos inventários de comerciantes e pessoas de posses.

A influência inglesa nas louças da primeira metade do século foi tão grande que tornou-se comum utilizar esse termo para designar as louças, a exemplo da discriminação feita em inventários sobre aparelho inglês para chá, café e chocolate, por exemplo.

2. OBJETOS DE DESEJO: o gosto pelas louças

O gosto é socialmente reconhecido, como a capacidade de determinar termos de distinção (BOURDIEU, 2001, p.35).

O pesquisador Adrian Forty (2007), na introdução da obra Objetos de Desejo: desing e sociedade desde 1750, destaca o crescente interesse pelo estudo do consumo, expandindo as pesquisas pelo o que poderíamos chamar de "vida dos objetos", ou seja, saber mais sobre o que acontece depois que eles adentram a sociedade e começam a circular, tornando-se o objeto um vínculo de troca e interação social.

Partindo desse pressuposto, torna-se importante, em uma análise mais profunda, entender a incorporação das louças, particularmente as faianças finas (louça inglesa), na sociedade maranhense que tanto a consumiu, buscando as suas origens no tocante a produção, difusão e por fim aceitação ao mercado consumidor.

Nossos olhares se voltam inicialmente para a Inglaterra e as transformações na sua produtividade, necessitando cada vez mais de mercados consumidores para o escoamento da sua produção de bens manufaturados. Nesse contexto é pensado como o objeto relaciona-se com as circunstâncias históricas que o tornaram comercializável, ou seja, que ideias juntamente com os meios produtivos disponíveis possibilitaram a ampla comercialização das louças em faiança fina pela sociedade.

Sabemos que a demanda por artigos de cerâmica aumentou constantemente durante o século XVIII, mas não apenas devido ao crescimento da população. A nova popularidade do chá requeria taças de cerâmica (uma vez que não é possível beber líquidos quentes com conforto num recipiente de metal) ao mesmo tempo em que a expansão colonial criava mercado além. Esse desdobramento beneficiou a indústria como toda e a maioria dos fabricantes aumentaram seu comércio (FORTY, 2007, p. 38).

Desta forma, além dos serviços de jantar - pratos, terrinas, travessas e outros - fora incorporado pela sociedade o serviço de chá - malgas, bules, pires, xícaras e outros -, objetos utilizados na china, adotados durante a dinastia Ming, e amplamente incorporados pela Europa a partir do contato com o oriente (LIMA, 2005). No primeiro momento, a porcelana chinesa substituiu o estanho na Europa, no segundo momento, entre os séculos XVIII e XIX, foi ultrapassada pela tecnologia européia, principalmente inglesa.

A intensificação do processo de industrialização e a consequente massificação no fabrico de bens de diversas naturezas jogaram no mercado uma ampla variedade de novos produtos. Artigos de luxo, até então exclusivos das classes superiores, ganharam simulacros produzidos a custo muito inferior, o que permitiu uma extraordinária difusão desses bens entre os segmentos menos privilegiados, ansiosos por adquiri-los, provocando uma verdadeira explosão de consumo (LIMA, 1995, p.32).

Mas a categoria de objetos mais representativa deste processo foi a louça de mesa, que acabou se transformando em um dos principais setores da indústria europeia.

No século XVIII, a fascinação da realeza europeia com as porcelanas fez com que fossem implantadas diversas manufaturas, a serviço das principais casas reais. Trabalhando a todo vapor para atender às excentricidades da nobreza, às encomendas de milhares de peças destinada a saciar a paixão de reis e príncipes pelas porcelanas, essas manufaturas já estavam solidamente estabelecidas em meados do século. O fascínio que as porcelanas despertavam nas classes altas e médias gerava um desejo ardente de possuí-las, provocando uma efetiva epidemia, classificada na literatura como china mania, ou seja, uma verdadeira obsessão por louças (LIMA, 1995, p165).

Quanto ao termo louça, seria uma designação genérica para artefatos de uma cerâmica mais refinada (porcelana, faiança e faiança fina) usada indistintamente no meio doméstico. "A faiança é um tipo de pasta muito porosa e pouco resistente, de fácil identificação em contextos arqueológicos devido ao seu esmalte que se destaca da base como se fosse uma pele" (MORALES, 2010, p.28). Segundo Bracante (1981, p. 504), "(...) dominou o mercado cerâmico nos séculos XVII e XVIII na Europa, pode se dizer que Portugal foi um dos países mais fiéis à tradição da Faiança".

Figura 11: Fragmentos de Faianças Portuguesas pintadas com motivos geométricos e frisos.

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Fonte: Primeiro relatório de acompanhamento arqueológico no pátio interno do Bem 01 – Unidade de Ensino.

A porcelana, "quando fabricada pelos orientais, é chamada pela literatura especializada de porcelana dura" (MORALES, 2010, p.28), compondo-se de uma "pasta de argila branca contendo caulim, quartzo e feldspato ou minerais de composição análoga, cozida a alta temperatura; estrutura sólida branca; vitrificada e vidrada, translúcida e sonora". Quando produzidas pelos europeus é conhecida como porcelana mole.

Foto 12: Aparelho de jantar de porcelana inglesa.

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Fonte: http://www.esquinadotempo.com/ec/lindo-lote-porcelana-inglesa-royal-adams-ivory-titian-p-1012.html&docid, 09/02/2012.

A faiança fina veio como uma opção maia barata para saciar a demanda de um setor médio da sociedade européia desejoso por adquirir louças, e como a porcelana era cara, a faiança fina, também chamada de semi - porcelana, pó de pedra ou louça inglesa – devido ao pioneirismo inglês - foi a grande opção. Era constituída de "uma pasta alva, esbranquiçada ou creme, de cor uniforme, o que dispensa a aplicação do esmalte opaco estanífero para encobrir a terracota e receber a decoração" (BRANCANTE, 1981, p.504).

No Brasil, as fábricas inglesas que mais se destacaram no fornecimento de louça foram Wedgwood e Sponde. Os estabelecimentos de Josiah Sponde foram fundados em 1770, um dos primeiros da região de Staffordshire. Mas, dentre os ceramistas destaca-se a figura de Josiah Wedgwood (pai da louça inglesa), responsável por revoluções na fabricação de louças inglesas, trazendo grande destaque a região de Staffordshire. O louceiro português Brancante (1981) enfatiza que a motivação para o sucesso incomum desse louceiro inglês está na racionalização dos métodos de produção em sua fábrica e particularmente a sua atenção ao produto, dando grande importância a aparência de seus artigos.

A região de Staffordshire (abrangendo Hanley, Burslem, Tunstall, Longport, Fenton, Cobridge, LaneEnde e Stoke) possuía diversas olarias, trabalhando intensamente, mas o abastecimento era limitado ao âmbito interno. Na segunda metade do século XVIII, a principal louça produzida em toda região de Staffordshire era uma louça branca, feita de argila branca, vidrada a sal em altas temperaturas (BRANCANTE, 1981; FORTY, 2007).

Em seu livro, o próprio Wedgwood (Apud. FORTY, 2007, p.29) descreve o ciclo e os problemas apresentados por esses produtos.

A cerâmica branca de alta temperatura os preços estavam agora tão baixos que os ceramistas não podiam gastar muito com ela, ou fazê-la tão boa em todos os aspectos quanto os artigos que tinham feito até então; e, em relação á elegância da forma, essa era um tema que recebia pouca atenção.

O próximo artigo de louça em importância seria uma imitação de casco de tartaruga, como Wedgwood (Apud. FORTY, 2007, p.29) descreve,

como não houvera nenhum aperfeiçoamento nesse ramo durante vários anos, o consumidor estava cansado dele; e, embora o preço estivesse baixado de tempos em tempos para aumentar as vendas, o expediente não adiantou e era preciso alguma coisa nova para dar um pouco de alento ao negócio .

 

Segundo o louceiro Wedgwood, a pasta não possuía uma uniformidade, pois parte das cores do vidrado, que variavam de acordo com as condições de queima, ficava com a espessura desigual e rachava a superfície.

O mesmo louceiro tentara, ainda, uma imitação de ágata, que a princípio fora bem aceita pelo mercado de louça, mas pouco tempo depois as vendas voltaram a cair. "As pessoas estavam fartas dessas várias cores. Essas reflexões me induziram a tentar algum aperfeiçoamento mais sólido, tanto nos biscoitos como nos vidrados, nas cores e nas formas dos artigos de nossa manufatura" (WEDGWOOD. Apud. FORTY, 2007, p.29).

E de fato, por volta de 1766, Wedgwood na busca de uma padronização na consistência da louça, desenvolveu uma cerâmica creme (faiança fina creware), substituindo o estanho até então dominante nos utensílios de mesa, e por volta da mesma época iniciou a produção em larga escala, decoradas de forma manual ou impressos. A decoração do esmalte aplicado sobre decalques impressos (transfer-priting) representou um marco na produção em massa das louças, possibilitando mais agilidade e que as peças mantivessem o mesmo padrão decorativo – o que manualmente não era possível- tornando a produção e a mão- de-obra mais barata. A técnica foi desenvolvida por Sandler e Green, firma de Liverpool com quem Wedgwood mantinha negócios (BRANCANTE, 1981; LIMA, 1993; FORTY, 2007).

As louças creme ganharam uma imensa popularidade nacionalmente como internacionalmente, principalmente depois que a rainha inglesa Charlotte encomendou um serviço dessa louça, levando Wedgwood a batizá-las de Queensware. "Ela preencheu a lacuna entra a qualidade muito pobre da louça comum, feita em outros países, e os produtos de alta qualidade muito caros, das fábricas de porcelana real. Seu sucesso deveu- se muito também às qualidades essencialmente neoclássicas de pureza e simplicidade de forma" (FORTY, 2007, p.31).

Do contato com Thomas Bentley, negociante de Liverpool que exportava suas louças para as colônias americanas e as Índias, ciente das mudanças culturais na Europa devido às expansões coloniais e comerciais, Wedgwood começou a produzir também "artigos ornamentais", diferenciando da louça cotidiana, conhecida como "louça útil". Os dois louceiros tornaram-se sócios. Desta forma, Bentley levou seus conhecimentos de arte para os desing dos artigos ornamentais – vasos, urnas, estatuetas, camafeus e placas de cerâmica, todos com motivos neoclássicos. E, posteriormente, Wedgood acabou incorporando o padrão neoclássico para as louças úteis (FORTY, 2007).

Quando entrou no mercado europeu a cerâmica inglesa ainda possuía características barrocas e pesadas. Os produtos da fabrica de Wedgood por muito mantiveram o estilo, com vários ornamentos e dourados na superfície.

O neoclássico entre muitos outros efeitos sobre a arquitetura doméstica, introduziu a prática da decoração de interiores num estilo unificado, de tal modo que todos os detalhes frisos, móveis e acessórios de uma sala transmitissem um conjunto coerente de referências á Antiguidade. A adesão ao neoclassicismo transformou Wedgwood de ceramista comum, embora bem-sucedido, e líder do gosto de vanguarda (FORTY, 2007, p.32).

Wedgwood e Bentley obtiveram seu conhecimento de desing clássico em parte de seus contatos com a aristocracia, que lhes mostrava e, às vezes, emprestava peças de cerâmica e esculturas antigas para estudar. Eles possuíam uma grande coleção de livros sobre arqueologia clássica publicados no século XVIII e Wedgwood fez amplo uso deles, treinando os seus artesões para que produzissem cópias exatas, ou então reinterpretassem os originais clássicos.

Boa parte do interesse de Wedgwood em cerâmica estava nas descobertas e nas inovações técnicas; para tornar lucrativos os sócios precisavam encontra – lhes aplicações comerciais e, nesse sentido, o neoclassicismo foi valioso. O estilo não era essencial em sua produção, pois podiam e faziam artigos em estilos diferentes. Eles usavam as antiguidades com finalidade decorativa e estavam, na verdade, perpetuando o gosto rococó por decoração sob fantasia antiga (FORTY, 2007, p.37).

O interesse maior de Wedgwood era em adotar novos desenhos para as suas louças, e encontrar uma maneira de criar variedade, com qualidade e sem aumentar os custos de produção. "Os seus clientes esperavam opções de desing e, com efeito, clamavam constantemente por novos modelos" (FORTY, 2007, p.55).

Dessa forma, reduzi- se o número de modelos, as formas, mas oferecia- se uma variedade de decorações sob o esmalte, "(...) tornando a decoração mais simples, mais barata e tão fiel quanto a artesanal, nas apresentações de detalhes e de efeitos cromáticos" (BRANCANTE, 1981, p.500), satisfazendo a demanda da clientela por mais variedades.

Wedgwood soube satisfazer as exigências tanto do mercado, como do consumo. "Não teria sido suficiente que os desenhos simplesmente apelassem para o gosto da classe média ou alta, ou que se pudesse confiar nos artesões para repeti-los com coerência" (FORTY, 2007, p58). E, há que ressaltar, com relação a variedades de motivos decorativos, nas palavras de Brancante (1981, p.456), "que os ingleses, mesmo antes dos franceses e dos alemães se esforçaram em produzir artigos do agrado ou do gosto da clientela, concorrendo por todas as formas e meios na conquista dos mercados, imitando mesmo e concorrendo com os artigos locais".

Mas, a maior invenção de Wedgwood, sem dúvida, foi a faiança fina pearlware (pérola) que superou a faiança fina creamware. "Em 1815 a creamware já havia praticamente desaparecido do mercado. No entanto, sua produção foi mantida, embora limitada a formas relacionadas à higiene pessoal, tais como bacias e urinóis" (TOCCHETTO, 2001, p.23).

Adquirindo a aprovação de artistas, arquitetos e connoisseurs, conseguiu monopolizar os segmentos mais altos da sociedade. Seus produtos estavam em todas as casas reais da Europa. Comprados por reis, tornavam-se alvo da cobiça da aristocracia, da pequena nobreza e assim por diante, descendo progressivamente na escala social até chegar às camadas médias (LIMA, 1993, p. 165).

 

As louças de faiança fina desenvolveram padrões e modelos decorativos os mais variados possíveis e, posteriormente, imitados pelos demais, não somente na Inglaterra, mais no mundo todo. Na cronologia de fabricação das louças inglesas, de acordo com a arqueóloga Tânia Andrade Lima (1993, p.168), nas últimas décadas do século XVIII foi fabricada em grande quantidade a faiança fina com decalques em azul.

Essa decoração, que tomava todo o campo visual do prato, deixava em segundo plano o que a rigor deveria ser a essência da refeição, ou seja, os alimentos servidos. De início, entre 1780 e 1800, inspiraram-se na porcelana chinesa de exportação (chinoiserie), sem dúvida alguma para conseguir penetração em um mercado até então dominado por ela.

Foto 13: Travessa de faiança fina decalcada, padrão Willow.

Monografias.com

Fonte: http://www.esquinadotempo.com/ec/lindo-lote-porcelana-inglesa-royal-adams-ivory-titian-p-1012.html&docid=YDqaibJSWnUTlM&imgurl, 09/02/2012.

Em 1815 o gosto romântico passa a dominar a época, tendo como inspiração livros com visitas a Itália, Ásia Menor e Índia, bem como livros de botânica, de cujas estampas extraíam modelos para composições em florais, paisagens, castelos e abadias famosas, cenas campestres, multiplicavam-se na superfície dos pratos, bem ao gosto romântico da época (LIMA, 2003).

Entre 1815 e 1835, a instalação do culto ao pitoresco fez com que os louceiros recorressem a livros de viagens. Motivos reservados no interior de medalhões, associados a formas geométricas e vegetais, eram aplicados à bordas de pratos, travessas, sopeiras, etc., compondo séries que funcionavam como uma espécie de marca registrada do fabricante. Nos dez anos que se seguiram, o azul perdeu a exclusividade e outros tons passaram a ser utilizados no processo de decalque: preto, marrom, verde, rosa, sépia, azul claro, púrpura. A técnica do borrão tornou-se extremamente popular, sobretudo para exportação. O nome do padrão decorativo aparecia em geral no verso, no interior de cartuchos com folhas e flores (LIMA, pág.168).

Foto 14: Faiança Fina com cena romântica.

Monografias.com

Fonte: http://coimbracity.olx.pt/prato-de-louca-inglesa-15-00-iid-13685298, 05/01/2012.

 

Todo esse avanço decorativo se deve principalmente a criação de uma técnica que simplificou e tornou mais barato a ornamentação da louça, conhecida por litografia ou decalcomania, desenvolvida em 1830 na Inglaterra. Possibilitou que até o início do século XX as faianças finas estivessem em circulação no mercado consumidor.

Na cerâmica, criaram eles também uma série importante, de alto interesse iconográfico, com vistas de cidades, paisagens, monumentos, batalhas, retratos de personagens, etc, abrangendo a história de várias nações do continente, seja da América do Sul, como do Brasil, Argentina, Chile, como da América do Norte, Estados Unidos e Canadá (BRANCANTE, 1981, p.502).

No Brasil, "diversos países europeus exportavam para a faiança fina de diferentes variedades e as mais disparadas designações e marcas. Sobressaem entre eles Portugal, França, Alemanha, Holanda, Inglaterra, Bélgica e Luxemburgo" (BRANCANTE, 1981, p.503).

Mas, durante o primeiro quartel do século XIX os ingleses foram absolutos nas faianças finas, porque os maiores produtores e exportadores de louças, de acordo com Brancante (1981, p.505), ainda não exportavam e mesmo produziam esse tipo de pasta. A França, por exemplo, "somente pelo último quartel do século XIX e começo do século XX, (...) é que as faianças finas francesas são encontradas entre nós". Então a exportação francesa durante a primeira metade do século XIX para o Brasil era maciçamente de louças em porcelanas.

Quanto a Portugal "não foi encontrada peças que possam ser atribuídas com segurança à manufatura portuguesa nesse primeiro quartel do século XIX" (BRANCANTE, 1981, p.505).

O arqueólogo Miller (Apud. LIMA, 1993; SYMANSKI, 2002) criou uma tabela de classificação para os valores no Brasil das faianças finas fabricadas na região Staffordshire no período entre 1795 e 1855. Primeiro ou mais baixo nível: as louças sem decoração. Aí se incluem as creamwares e os variados tipos de pastas que surgiram ao longo do século.

Segundo nível: louças decoradas de forma simples, que exigia pouca perícia do artesão; há sempre diferença entre as peças e uma nunca é exatamente igual à outra, tais como os padrões Shell Edged, Spongewaree, Banded, Dipped, Mocha, Spatter, Lined. Dentre as louças decoradas eram as mais baratas.

Terceiro nível: louças pintadas a mão com motivos como flores, folhas, paisagens chinesas estilizadas e padrões geométricos. Exigia do artesão habilidade suficiente para que, em um mesmo serviço as peças ficassem razoavelmente semelhantes entre si. Seus preços estavam em um patamar intermediário entre a segunda e a última categoria.

Quarto nível: compreende as louças, cuja técnica permitiu a fabricação de peças exatamente iguais, com decoração bastante complexa, decalcadas na técnica do transferprinting. Dentre eles o padrão Willow que era mais barato, enquanto os borrados eram mais caros.

Estas louças inglesas, abarcando um sem número de motivos, apresentam uma extensa gama utilitária, de preço acessível e boa apresentação, haviam realmente de concorrer com boa margem de sucesso com as porcelanas europeias, chinesas ou japonesas. Assim invadiram elas não só o interior da Províncias ou do Estado, como as suas capitais e a corte, onde os Paços Bragantinos exibiam não só serviços comuns como encomenda com as armas imperiais. Também a sociedade brasileira de então fez largo emprego daquelas louças, seja na utilização do diário, como em serviços elaborados portando as vezes siglas, coronéis, brasões, legendas ou nomes por extenso (BRANCANTE,1981, p.498).

SEGUNDA PARTE:

OS HOMENS E AS COISAS

3. O PROCESSO CIVILIZADOR: a sociedade de corte no Brasil na primeira metade do século XIX

O historiador Fernando Braudel (1995, p. 17) em Civilização material, economia e capitalismo define por cultura material a "vida material", que seriam "homens e coisas, coisas e homens", identificada de forma poética por "poeira da história" o "rés-do-chão da vida econômica".

Os objetos, as relações físicas ou humanas que eles criam não podem se reduzir a uma simples materialidade, nem a simples instrumentos de comunicação ou de distinção social. Eles não pertencem apenas ao porão ou a sótão, ou então simultaneamente aos dois, [...] devemos recolocá-los em redes de abstração e sensibilidade essenciais à compreensão dos fatos sociais (ROCHE. Apud. SOUSA, 2011, p.20).

Sendo assim, ao tratar das louças inglesas se faz necessário buscar aspectos que possibilitam a sua incorporação à sociedade, de forma que parecesse natural, criando signos de distinção no possuir, expondo aos de fora, não somente o poderio econômico dos seus donos, mas o refino culturalmente absorvido do modelo europeu. E sem dúvida a vinda da família real ao Brasil trouxera um intricado código de boas posturas que influenciou as elites locais, ávidas por absorverem o que havia de mais nobre, desejos dos títulos nobiliárquicos, para assim, tornarem-se verdadeiros homens da corte.

E se "a vida material são homens e coisas, coisas e homens", agora falaremos dos homens.

Quando condições econômicas, sociais e políticas propiciaram a uma parcela cada vez maior de senhores rurais sair do isolamento de seus engenhos e fazendas e projetar-se no cenário econômico das cidades e no ambiente político da corte e dos governos provinciais. Esse grupo tendeu a adotar um estilo de vida urbano, seguindo padrões cosmopolitas, aceitando, assim, "... formas de organização da personalidade, das ações ou das relações sociais e das instituições econômicas, jurídicas e políticas que eram mal vistas e proscritas no passado" (SYMANSKI, 2002, p.32).

A vinda da Família Real, em 1808, ao Brasil promoveu o aceleramento das transformações estruturais da Colônia, tanto no espaço urbano como no comportamento dos habitantes do Rio de Janeiro, incluindo as práticas de consumo, a sociabilidade e os padrões de vestimenta.

Mesmo estando em parte nas mãos da elite local, que ajudou a financiar boa parte dos gastos da corte, esta soube lidar com os diferentes interesses dos adventícios e das elites locais. "Contavam as elites com dois problemas fundamentais: manter a unidade política, de um lado, garantir a ordem social, de outra. É nesse sentido que o poder simbólico de um rei, acima das divergências de ordem particular, acaba se impondo como saída" (SCHWARCZ, 1998, p.36).

Nesta troca de "favores", a monarquia criou raízes no Brasil, atualizou a tradição, a fez dialogar com as representações locais, sem hostilizar rasgadamente o rural e territorial (FREYRE, 1977).

A família real trouxera consigo tradições já caducas que cada vez mais perdiam espaço para as conquistas materiais, mas outras encontraram espaço em terras brasileiras, consolidando – se, a exemplo, "o processo de titulação que ora se iniciava, seguiria o modelo lusitano tradicional, com a inovação do transplante: o rei de armas, que trazia no seu nome "de Portugal e Algarve", acrescentava agora "América, Ásia e África" (SCHWARCZ, 1998, p.159). A nobreza no Brasil ganhou um caráter um tanto peculiar, "os nobres nascem e ficam jovens", conceito utilizado por Schwarcz (1998), que compara os títulos concedidos a nobreza europeia pelos bons serviços prestados ao monarca, sinônimo de vitalícios e hereditários, enquanto no Brasil somente o beneficiado se valia do titulo, não havia perpetuação do mesmo para os demais familiares.

 

Entre os titulares, outras hierarquias vingavam: enquanto todos eram nobres, apenas alguns eram "grandes do império". Tal privilégio, basicamente honorífico, era inerente aos títulos dos duques, marqueses e esse pequeno grupo da elite que segundo o AlmananakLaemmert, iam à frente nos cortejos reais, ou acompanhava de perto Suas Altezas Imperiais e recebiam o tratamento de "Excelência" (SCHWARCZ, 1998, p.161).

Desta forma, é reinventada uma nobreza, de uma condição colocada à realeza de Bragança.

É por isso que se pode dizer que no Brasil não existiu uma nobreza no seu sentido mais tradicional. Na verdade, vingou uma titularidade meritória e honorífica que se afastava dos privilégios da hereditariedade ou dos vínculos de terra. Sua singularidade talvez nos fale de uma situação particular de afirmação da individualidade em lugar de uma ancestralidade. Em um contexto de aburguesamento, em que a virtude e a ascensão pessoal eram qualidades fundamentais, surge uma nobreza que se afirma por seus feitos particulares, inscritos nos brasões, nos títulos e grandezas. Enquanto na antiga Europa é nobre quem é, ou seja, quem nasce como tal, no Brasil a nobreza é um estado passageiro afirmado por uma situação política, econômica ou intelectual privilegiada (SCHWARCZ, 1998, p.192).

Ao considerar as propriedades de posição, Bourdieu (2001) observa que é preciso ter cuidado ao transferir indevidamente esquemas descritivos e explicativos de uma sociedade á outra, ou, a uma outra época da mesma sociedade.

Se for verdade que duas classes (ou duas sociedades), definidas por condições de existência e práticas profissionais idênticas ou semelhantes, podem apresentar propriedades diferentes quando, inseridas em estruturas sociais diferentes, ocupam posições estruturalmente diferentes. Assim também as estruturas sociais de duas sociedades diferentes podem apresentar propriedades estruturalmente equivalentes, a despeito das diferenças profundas ao nível das características objetivas (e em particular, as econômicas) das classes que as constituem (BOURDIEU, 2001, p.6).

Logo, "as forças explicativas das proposições de tipo estrutural variam consideravelmente de acordo com a posição das classes sociais às quais são aplicadas, e conforme o grau em que as propriedades de posição são irredutíveis às propriedades de situação" (BOURDIEU, 2001, p.7).

No Brasil, onde a nobreza não era de berço e nem hereditária, fez-se necessário encontrar outros mecanismos diferenciadores que transmitissem "distinções significantes".

As marcas de distinção como duplicação simbólica dos valores de posição vinculados a cada posição na estrutura social (a cada nível) dependem das atitudes que os agentes desenvolvem para se apropriar dos modelos da transmutação da diferença em distinções, transmutação esta que depende principalmente da educação dos agentes e, portanto, de sua condição e de sua posição estrutural (BOURDIEU, 2001, p.14).

Para Bourdieu (2001, p. 15) o poder econômico simplesmente não garantia o status social, haveriam grupos de status formados por classes sociais de uma determinada sociedade - duas unidades reais que se opõem, mas por vezes se confundem, "mas que são sempre o resultado da opção de acentuar o aspecto econômico ou o aspecto simbólico, aspectos que sempre coexistem na realidade". Lembrando que para o autor as distinções simbólicas são secundárias com relação ao econômico, mas o simbólico representa e transfigura-o, no sentido que grupo de status pertence a uma ordem simbólica.

Nesse sentido, vistas de formas separadas, Bourdieu (2001, p. 15) define classes sociais "enquanto um grupo de indivíduos que, por partilharem a mesma situação de classe, isto é, as mesmas situações de mercado possuem as mesmas chances típicas no mercado de bens e de trabalho, as mesmas condições de existência e experiência pessoais" Acrescenta que sendo a posse e não posse as categorias fundamentais da situação de classe, estão relacionados com a produção e aquisição de bens.

Enquanto grupo de status é visto como "conjunto de homens definidos por uma certa posição na hierarquia da honra e do prestígio",relacionados "segundo os princípios de seu consumo de bens, consumo que se cristaliza em tipos específicos de estilo de vida" (BOURDIEU, 2001, p.17). .

Bourdieu (2001, p. 16) acrescenta "que a exemplo das sociedades tradicionais, os grupos de status imponham ao que neles desejam participar, além de modelos de comportamento, modelos de modalidade dos comportamentos, ou seja, regras convencionais que definem a maneira justa de executar o modelo".

A historiadora Lilia Schwarcz (1998, p. 195) retrata que no século XVIII foi adotada pelas elites europeias regras e conduta de boas maneiras no que refere – se ao portar em público. "É certo que tais regras não têm origem nesse momento e apenas na corte francesa, mas é lá que em nome da "etiqueta" e da "civilidade", começou – se a normatizar dos grandes aos pequenos detalhes da vida cotidiana". Essas mudanças ocorreram tanto no campo social como moral, no intuito de inibir comportamentos inadequados para um homem civilizado.

Anteriormente, por exemplo, era prática comum na corte, e mais natural ainda entre as pessoas simples, o uso de espaços comunais para evacuarem. A duquesa de Orléans em suas correspondências no período de transição do século XVII para o XVIII falava "do cheiro detestável de Paris, onde a multidão se servia livremente nas ruas" (LIMA, 1996, p.10). Não por acaso, a cidade foi acometida de pestes (como a bubônica) pela ausência de saneamento básico e condições dignas de moradia.

Nas refeições mantinha-se o mesmo "estado de natural" na hora de se servir, as tigelas e cálices eram partilhados, já que eram raros os utensílios de mesa, as colheres e garfos somente usados para destrinchar o alimento, e as mãos literalmente levavam os alimentos à boca. "A comida, à época, ficava permanentemente disponível na unidade doméstica: um caldeirão suspenso sobre o fogo da casa, ao longo do dia. Não havia, portanto, um momento determinado para a comida ficar pronta, ela estava sempre pronta" (LIMA, 1995, p.139).

Os manuais de etiquetas surgiram como regulador das condutas de diferenciação entre os nobres das demais classes. Desde a sociedade medieval os nobres tentam distanciar- se dos camponeses considerados rudes, e sem dúvida impulsionada pela ascensão burguesa, que dispondo de bens, já que o poder não era mais conferido somente pela propriedade da terra e determinada pelo nascimento, os burgueses aproximavam – se e\ou ultrapassava os nobres no "ter", esse processo ganhou um caráter próprio, embasado em uma hierarquia mais rígida e temente ao seu poder.

Como afirma Catherine Hall (In. PERROT. 2006, p.306), com a redução da distância social que separava a nobreza da Alta burguesia, a nobreza revirara a sua imagem para torná-la mais aceitável para a moral burguesa. Tornaram-se com sinceridade ou apenas na aparência – mais sérias, mais religiosas, mais preocupadas com sua vida familiares, mais responsáveis. E a burguesia por sua vez,

num primeiro momento de afirmação repudiaram a nobreza com todas suas forças, tonaram – na em seguida o seu grande modelo, buscando a legitimação através de seus símbolos. Daí o apreço da burguesia pelos rigorosos padrões de moralidade e probidade, pela vida familiar, pela honradez e respeitabilidade, a preocupação com a aparência e com os símbolos de distinção, na medida em que esses valores contribuíam para a fixação de nomes de família, de marcas, potencialmente capazes de substituir os antigos títulos de nobreza (LIMA,1995, p.131).

Ao tratar de habitus, Bourdieu (2005) define como a constituição cultural transformadora da herança coletiva em inconsciente individual e comum. Como anteriormente falado, nas sociedades tradicionais os grupos de status impunham regras para execução do modelo a serem adotados "na óptica popular, as maneiras acabam tendo uma utilidade substancial por si mesma por haverem adquirido um caráter sacramental" (BOURDIEU, 2001, p.11).

Na tentativa de imitar a nobreza as demais classes buscam assimilar aquilo que não são indo contra o seu habitus, no que diz respeito a sua condição e posição de classe na busca do status, nessas trocas para "satisfazer à demanda atual ou antecipada das pessoas de posição inferior, ao mesmo tempo autoriza e exige a busca de diferenças sutis sobre um fundo de semelhanças grosseiras" (BOURDIEU, 2001, p.17).

Os manuais de civilidade do século XVIII declaravam que não era de "bom tom" babar a mesa, escarrar, oferecer ao outro o que já havia sido mastigado, limpar os dentes com a faca ou com a toalha, instruções para que não procedessem como rústicos que se aliviariam sem vergonha ou reserva (LIMA, 2006). Mas a mudanças não procederam somente na mesa ou em aparições públicas, a fala do homem da "corte" também foi alterada.

 

Em nome da "cortesia" alterava- se, ainda, comportamentos sociais. Falar em tom moderado, não interromper ninguém, não se impor à conversação eram mais do que conselhos generosos: constituíam normas úteis e reveladoras de bons ou de maus comportamentos. A fala da corte foi sendo modelada e regulada, na medida em que nesse espaço não havia lugar para a livre manifestação dos sentimentos e intenções (SCHWARCZ, 1998, p.197).

Os manuais foram amplamente divulgados e consumidos por aqueles que não possuíam berço, não aprenderam na infância, a ser portar com classe e cortesia. Ensinados de forma didática, "para que ele se interiorize e pareça natural, explicar como agir nas mais diferentes situações de convívio social são os objetivos do guia" (SCHWARCZ, 1998, p.199). E por meio desses manuais perpetuava - se a influência europeia.

Essa arte de esconder correu o mundo e desembarcou nas paragens até então afastadas do convívio iluminado da "civilização". Em Portugal, mas também no Brasil, a voga dos manuais de civilização se iniciou em meados do século XIX. Diante de uma realeza isolada, em meio às demais repúblicas americanas, de um império escravocrata que dissimula as marcas dessa instituição e de uma nobreza titulada recém – criada, tais guias foram recebidos com o entusiasmo daqueles que tentam apagar as pistas de seu caráter recente e bastante improvisado (SCHWARCZ, 1998, p.202).

No Brasil, uma vez criada a sua nobreza, era preciso educá-los. Os manuais de maior aceitação em terras nacionais para os setores médios da sociedade foram os portugueses, influenciados pelo processo colonizador e o idioma, enquanto as classes dominantes na sua exteriorização consumiam o modelo franco – inglês, mas interiormente, na rotina diária mantinha o jeitinho a "la brasileira" (LIMA, 1995).

A arqueóloga Tânia Lima (1995) descreve que os manuais de etiqueta português do século XIX,

apesar de calcados nos códigos ingleses e franceses, foram resultantes de adaptações das normas aí contidas aos hábitos lusitanos. É inequívoca a inserção de recomendações quanto a determinados procedimentos que há muito haviam sido banido daqueles dois países (tanto que não existe qualquer alusão a elas nos manuais lá produzidos à mesma época), mas que, enquanto reminiscências de antigos modelos, ainda persistiam em Portugal (LIMA, 1995, p.191).

O uso do guardanapo como babador, por exemplo, ainda utilizado nos manuais portugueses, era prática impensável já em meados do século XIX na França e Inglaterra. "Outra prática singular consistia em pôr um cartão sobre os punhos para que estes não se amarrotassem com o movimento dos braços ao comer". Além disso, era permitido palitar os dentes, e o brinde, "assinalava que já hoje vai se desterrando o costume de fazer saúde" (LIMA, 1995, p.150).

Quanto aos lugares a mesa, a senhora da casa, deveriam ocupar "onde lhe parece, mas nunca os melhores" (LIMA, 1995, p. 150). O tratamento diferenciado dado às mulheres não era uma particularidade dos manuais portugueses, de acordo com Schwarcz (1998) boa parte dos códigos destacam a peculiaridade no comportamento de cada um dos sexos, uma nova forma de distinção.

Aos homens polidez e urbanidade e às mulheres um falar suave e um ar reservado. Se a atitude dos homens deve ser cerceada, o controle sobre as mulheres é ainda mais rigoroso. "se se calarem, cala - te também. Se te divertires, não mostres senão uma alegria moderada; se estiveres aborrecida dissimula e não dês a conhecer. Nunca por tua vontade prolongue a conversação. Aceita e come o que te oferecem e quando desejes outra coisa não diga. Não ostente em público tuas prendas (SCHWARCZ, 1998, p. 201).

As regras sociais, descritas nos manuais de civilidade, funcionaram como reguladores dos sentimentos e impulsos pessoais nos mais diferentes locais, nas igrejas, nos batizados, casamentos e enterros, no cotidiano com amigos e familiares. "Há uma etiqueta para cada local" (SCHWARCZ, 1998, p.201). Desta forma, ver-se paulatinamente a privatização das manifestações públicas em um modelo de vida cada vez mais reservado, na tentativa de alcançar status conferido a nobreza, a classe burguesa, agora dona dos "dotes" transfere valores e preceitos legitimadores da sua ascendência como futuro grupo de status.

E dentre os deveres sociais, o se portar a mesa passou a ser o mais importante, "regido por centenas de pequenas e quase imperceptíveis regras, que compunham um rígido protocolo" (LIMA, 1995, p.138), acrescido pelo seu caráter ordenado (começo, meio e fim) e rotineiro.

O cotidiano, por essência banal, assume um valor positivo se as ninharias que o compõem são convertidas em ritos dotados de uma significação sentimental. Ela rege o ritmo do tempo privado, imprime uma regularidade e preside a sua execução. No espaço burguês, a repetição não é rotina. Ela ritualiza, e o ritual dilata o momento: antes, ele é aguardado e fazem os preparativos; depois ele é comentários e reflexão. O prazer está na espera dos momentos que pontuam o dia (FUGIER. In. PERROT, 1991, p.194).

Com isso, foram criadas estruturas de refeições, preocupações com os menus, serviços de mesa, talheres, louças e uma infinidade de objetos que permeiam esse universo. Indicadores de posições sociais, no sentido, que houvera a criação de um espaço no âmbito residencial para exteriorização das posses, e a escolha de um horário propicio para o desempenho de todos os preparativos, à hora do jantar.

E mais uma vez, os manuais de etiquetas foram amplamente utilizados para o melhor desempenhar todas as normas que regiam este intricado ritual, como descrito passo a passo por Schwarcz (1998, p.208) para "fazer bonito" em um jantar. Inicia-se com um guardanapo, que deve ser colocado sobre os joelhos, continua com a sopa (que precisa ser saboreada com uma colher e não com o garfo), com ovo (cujas cascas restam sob o prato) depois a ave (cujo nome – frango, galinha, capão ou peru – não deve ser mencionado), isso para não falarmos do pão (que se parte com as mãos e não com os dentes ou com faca).

Juntamente com a família real foram transportados ao Brasil todos esses hábitos praticados nas cortes portuguesas, que possuíam como espelho o modelo Inglês e Francês de civilidade, incidindo direto ou indiretamente na configuração dessa nova corte,

que de tão recente mal tiveram tempo de criar uma civilização particular. Assim como na Europa também não era tão progredida, como gostava de se fazer representar – afinal os hábitos também lá precisavam ser regulamentados -, no caso do Brasil a "falta" encontra-se potencializada. Aqui tudo se deu ao contrário, primeiro surgiu a forma depois tratou -se de preenchê-la com conteúdo ao mesmo tempo comum e particular. A corte brasileira se constituiu quando os hábitos já estavam havia muito regrado (SCHWARCZ, 1998, p.204).

Ainda no tempo de D. João VI, descreve Schwarcz (1998) baseada na iconografia de Rugendas, somente os homens usavam faca; mulher e crianças se servem dos dedos. As escravas comem ao mesmo tempo, em pontos diversos da sala, sendo que por vezes suas senhoras lhes dão um bocado com as próprias mãos. Garfos, completa Algranti (2001), que em igual período já eram raros na Europa, na Colônia quase não existia. Porcelanas da Índia chegavam com certa frequência desde o início da colonização, contrastando com a cerâmica vermelha e cuias locais.

Com a abertura dos portos, somado a tentativa da elite brasileira de incorporar os habitus da corte, houvera a incorporação, não somente de valores da nobreza europeia, mas também, de forma até mais intensa, valores burgueses trazidos pelo contato com os comerciantes e produtos estrangeiros (principalmente franceses e ingleses), da vinda de profissionais liberais do exterior, das pequenas colônias inglesas instaladas no Brasil, do furô provocado pelos avanços tecnológicos da revolução industrial e da própria influência inglesa em Portugal.

Somado a "tropicalização" de costumes, a mesa, foi sem dúvida um local de maiores influências, aonde as finas maneiras conviviam paralelamente com temperos e utensílios domésticos de influências indígenas e africanas.

Cabaças e cuias são usados na cozinha da nobreza brasileira, assim como farinheiras de madeira, de pilão, isso sem falar da arte de enfeites de papel, nos dias de festa, emprestado dos tabuleiros das baianas. Além desses utensílios, as panelas de barro ganham lugar especial ao lado da porcelana da Companhia das Índias, ou da prataria da família imperial (SCHWARCZ, 1998, p.210).

E de fato, a família real ditou moda e costumes, mas também sofreu influências da corte recém-formada.

4. SAO LUÍS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX – crescimento econômico e consumo do luxo.

Neste capítulo tratou-se da economia de São Luís na primeira metade do século XIX, dos meios que possibilitaram o acesso ao consumo burguês, e as influências inglesas determinantes nesse processo de transformação.

Como afirmou Braudel (2009, p.12) a economia "não só dá o ritmo do tempo material do mundo: todas as outras realidades sociais, cúmplice ou hostis, intervêm incessantemente no seu funcionamento e são, por sua vez, influenciadas".

Desta forma, seria interessante esclarecer acerca da expressão economia-mundo[10]no século XIX, no qual o Brasil ocupava uma posição periférica, definida pelo historiador Fernand Braudel como uma economia que envolve apenas um fragmento do universo.

(...) Deduzimos que uma economia-mundo é uma soma de espaços individualizados, econômicos e não econômicos agrupados por ela; que a economia-mundo representa uma enorme superfície (em princípio, é a mais vasta zona de coerência, em determinada época, em uma região determinada do globo); que, habitualmente, ela transcende os limites dos outros grupos maciços da história (BRAUDEL, 2009, p.14).

O historiador também se refere às cidades-mundo, a existência de uma cidade no centro das relações econômicas – um pólo urbano. "As informações, as mercadorias, os capitais, os créditos, os homens, as encomendas, as cartas comerciais chegam a ela e dela voltam a sair. Nela, quem dita às leis, são grandes comerciantes, por vezes excessivamente ricos" (BRAUDEL, 2009, p.20).

As zonas de uma economia-mundo estão voltadas para o centro polarizado, que reúne o que tem de mais avançado e diversificado. Logo abaixo, encontram-se as cidades-etapa que mesmo participando das vantagens, abarcam só parte dela, as também chamadas zonas dos brilhantes secundários.

A relação observada entre Portugal e a Inglaterra é nesse sentido. Enquanto Portugal era fornecedor de produtos primários, a Inglaterra fornecia produtos industrializados, e nesta troca desigual, Portugal que fora um país próspero "evoluiu no sentido inverso ou foi obrigado a isso" (BRAUDEL, 2009, p.21).

Afinal, dadas relações "de força entre nações derivam de estados de coisas por vezes muito antigos. Para uma economia, uma sociedade, civilização, ou mesmo um conjunto político, um passado de dependência, uma vez vivido, revela-se difícil de ser rompido" (BRAUDEL, 2009, p.30). Logo, as relações Portugal e Inglaterra, são unidas por laços comuns de interesses e por forças difíceis de intervir, incidido nas relações com o Brasil, que antes e pós - independência está inserida em uma relação "colonial" com a Inglaterra.

E quanto ao Brasil, no início do século XIX, estava inserido numa categoria de periferia, marcado "com seus povoamentos pouco densos, é o arcaísmo, o atraso, a exploração fácil por parte dos outros, (...) onde o estatuto social dominante é muitas vezes a escravidão ou mesmo a escravatura, são regiões em que a divisão do trabalho mal começou" (BRAUDEL, 2009, p.31 e 32).

Participando dessa estrutura na condição de zona periférica, o Brasil tornou-se um mercado consumidor de toda a sorte de gêneros importados, uma vez que só fornecia gêneros primários, ressaltando o seu estado colonial até 1822, mantendo-se sempre dependente de outros centros-mundo.

Quanto ao Maranhão, a inserção no comércio-mundo se deu com a Companhia de Comércio Grão Pará Maranhão- fundada pelo alvará de 7 de agosto de 1755 pelo Marquês de Pombal - uma empresa privada que recebe concessão do Estado Português para navegar, transportar e comercializar produtos na região (FEITOSA, 1998). Sua organização na metrópole portuguesa estava a cargo do capitalista José Francisco da Cruz, e no Maranhão foi dirigida pelo capitão José Vieira da Silva (MEIRELES, 2001) [11]A Companhia de Comércio,

 

gozou de especiais privilégios, tanto fiscais quanto militares e judiciais, quais fossem o de dispor de dois navios da Armada Real para escolta, o de seus oficiais serem considerados a serviço do rei, o de extrair das matas reais a madeira de que necessitava para construção de suas embarcações (MEIRELES, 2001, p. 169).

A companhia tinha prioridade no transporte das mercadorias, no despacho da alfândega e preço reduzido na tributação. Meireles (2009) ainda destaca que ocupavam por empréstimo edifícios públicos, possuíam foro especial para suas causas e era dispensada ascendência nobre a seus acionistas para a admissão nas ordens militares. A Companhia teve seu tempo fixado em 20 anos e os lucros auferidos sobre as transações era de 45%.

Partes: 1, 2, 3, 4


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