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Manhã
os ônibus passando
estremecem o solo do bairro
sob o sol os passarinhos
cantam e ciscam risonhos
a louça na pia grita
em tins de vidro e alumínio
tudo soa tudo quer viver
e nós também
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Mar
eu descerei o rio
que passa na minha aldeia
até o grande porto que dá saída
para o imenso mar
com os instrumentos que testarei
e que eu mesmo fabriquei
imaginando o mar
vendo correr o rio de minha aldeia
hei de ver o mundo como puder
como suponho
mas deixarei olhos para a maravilha
o inesperado que exalta
e pode enlouquecer quando se vê
uma imagem em algo
subitamente novo
e mesmo que eu torne um dia
à minha aldeia
sei que na verdade o retorno
é impossível
e que serei bem outro
e já sem berço em minha aldeia
terei todo o mundo para pouso
e os meus sonhos serão a imagem
dos sonhos desse grande mundo
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Margarida
você não decide
se bem me quer ou mal me quer
na dúvida se desnuda
restando apenas um coração
amarelo à mostra
espalhada pelo chão
o vento leva você onde bem quer
mas a empregada que quer
a varanda limpa
empunha a vassoura
como um insano quixote
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Materiais do mundo
a massa de pão fermentando
e o cimento fresco
têm em comum serem materiais
de construção do homem e do mundo
limpos como mãos de médico
cheirosos como bebês no banho
perfeitos como o ovo e a laranja
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Maturidade
na idade madura quase sempre
pensamos saber como agiremos
nas contingências da vida
quando essa ilusão se dissipa
pela violência das emoções
e não podemos ter o contrapeso
da juventude
culpamo-nos amargos ou deliciados
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Mendigo
o belo tem de ser recolhido
com as mãos postas
entre os restos recicláveis de lixo
desde há muito acumulamos
civilização demais
ela é estranha dá medo
a nossa tragédia se cumpriu
o bom e o racional morreram
de excessos
agora é preciso refazer os votos
com a vida
erguer as mãos recolhendo
os restos de beleza e de bem
perdidos na fala e nos gestos
de cada dia
enquanto é dia
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Minas
o pior são as saudades de Minas
a Minas de Pedro Nava
da formação mineira
de onde se lança para o Brasil
e para o mundo
com um conhecimento prévio
de seu núcleo mineiro
a vontade de novamente
ouvir os poetas e músicos lá
e de madrugada mijar tranqüilo
nos muros
com a sensação de que já realizou
metade de sua tarefa na vida
quem conhece o seu coração
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Mingau
você é doce
quente e macia como mingau
de maizena
adoro você antes de dormir
ou quando estou neurótico
zanzando pela casa
sem porto
você me conforta
preenche meu vazio existencial
eu me acostumei
a ver você como indispensável
à minha felicidade
como as mães e as avós
só não posso viver de mingau
não é bom para a saúde
e um dia eu tenho de crescer
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Monge
não há quem mais se vote
à vitória que o humilde monge
andando no mundo
pelas mãos dos seus pobres
para eles é o reino de Deus
mesmo que tudo falhe
o Senhor chora com eles
o seu próprio morrer
é o princípio de uma vida
mais alta e infinita
mas também conhecem
a felicidade banal
dos homens simples porque
para eles é também a vida
deste mundo
seu pão e seu vinho
feitos de agora e de amanhã
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Motivação
no jogo do brasileirão o papo no intervalo
quer motivar os jogadores a virar o jogo
na luta contra o crime o bope
avisa seus soldados que o erro
se paga com a vida
na igreja católica ou evangélica
a conversa é motivação
para ganhar saúde e arranjar emprego
todos cantam rezam juntos
dão tiros para cima
falam na língua dos anjos
falou mano
antes se chamava isso voluntarismo
esse jogo vai dar empate
como devem dar os jogos
do campeonato baiano
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Muitos
todos os seres participam
da vida uns dos outros
de modo que todos são muitos
todos são todos
e querem seu lugar em cada um
quando à noite pensamos na noite
pensamos também no dia
e em sua bagagem
pensamos nas miríades de insignificâncias
que nos compõem
todas querendo seu lugar
querendo ser a primeira
pensamos também no que é grave
e importante
e no que é alegre e faz sempre falta
e tudo está em tudo
que cada um é o mundo
e o mundo é essa dispersão
sorrateira e constante
essa água no córrego
essa batida de moinho
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Mulher
o primeiro traço
a distinguir uma mulher
é a sua inteligência
mesmo as feias ficam lindas
com dez minutos de conversa
se são inteligentes
da mulher guardamos na memória
observações interessantes
o humor da fala bem medida
e bem endereçada
desde que não seja também
muito conservadora
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Mãos
o mundo oscila
seguremos nossas mãos
nada deve ser mais seguro
que nossas mãos
com os corpos próximos
respiremos tranqüilos
o incerto ar
nada é mais precioso
que os nossos corpos
enlaçados não esperemos
andemos no chão que treme
firmes serenos
façamos nosso caminho
nesse meio
façamos de nós nosso fim
e nosso meio
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Noite do meu bem
viva uma vez na vida
a noite do seu bem
mesmo que ele demore a chegar
traga-o com o olhar
e a ternura toda que tem para dar
invente esse bem
invente toda a beleza do mundo
em uma noite profunda
na qual coloque toda a exatidão
da rosa rosa rosa
muitos passam sem esse bem a vida
equívoca e sublimada
para essa rosa viva uma vez
a vida vida vida
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Noite
noite inquieta
o olho vara a imprecisa
fantasmagoria dos dias
lacuna forçada que se quer recusar
pois se deseja sonhar
mas é preciso vigiar
como o farol inútil
num rochedo perto do qual
nenhum navio passa
vigia-se em vão
atormentado com os naufrágios
que não se sabe se virão
talvez não talvez não
gemem as ondas quebrando
nas rochas
quem sabe quem sabe
o olho o suor o medo
é sempre a fantasia de que é preciso
conjurar perigos
de que é possível
ronda a cabeça o giro torpe
dos que querem se salvar
num mundo onde salvação e perdição
não têm mais sentido
e se quer salvar não se sabe bem
o quê
já não se sabe mais fazer
o inventário dos males
a conta certa
o telefonema salvador
e não se pode esperar
nem deixar a esperança
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Nomes
na maior parte do tempo
conhecemos os nomes e as palavras
mas não sabemos do que se trata
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Nordestinos
quem é nordestino não precisa
explicar nada
tem toda a enorme vida do Nordeste
a matriz brasileira política e cultural
por detrás de si
quem é paulista precisa ser modernista
buscar o mundo
mas quem é nordestino está em casa
até os seus jeitos moderno ou conservador
mesclam-se e cantam de um jeito parecido
com gula de doce e de forró
e não precisa explicar nada
porque um nordestino nota-se logo
na rua e em qualquer sala
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Novela
alguém de muitas letras
tem vários porões
para os quais escapa
quando não quer ser percebido
em suas deficiências
alguém de poucas luzes
pensa sempre que sua vida
daria um romance
quando apenas é falsificada
nas novelas da tevê
ou em tom mais sórdido
é apresentada nos jornais
em qualquer sala
mas sempre oculta
ou obscurecida
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O Fundo do Ser
onde está o fundo de ser
começa nestas mãos
que escrevem este poema
continuam no poema
no que a mente pôde fazer
por ele
espalha-se na sala
nas frutas sobre a mesa
no gato que circula
esperando a noite
no fundo do ser há um mundo
um para todos nós
um para cada um de nós
um para cada dia
um que dura toda a vida
é estranho esquecermos tanto
o passado
ele é o depósito de todos nós
de nossos seres profundos
perdidos com as salas
que esquecemos
com as frutas comidas
com outros gatos de casa
mas o verdadeiro fundo do ser
vem vindo
um dia virá
que venha logo!
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Oração
e não nos deixeis cair em tentação
que apresenta o mal como o bem
mais útil e necessário
mas livrai-nos do mal
porque esta foi a busca
dos melhores dentre nós
mesmo dos que suspeitavam dele
com a candidez socrática
de que a virtude é inerente
à razão e à sabedoria
e imaginavam o mundo
como a Atenas da amizade
e dos banquetes sobre o amor
e a virtude
e não como a exaustão
de tanto quanto foi belo
e inocente e bom
neste mundo absurdo
por sua insensatez tão imprópria
ao sentido da vida
e do cosmo
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Padrão
1
da Vinci não foi um gênio
mas antes um padrão pelo qual
medem-se os gênios
há no ar que nos envolve
pessoas extraordinárias
muito acima de nós
mas de repente nos agarram
pelos cabelos
e nos tornamos por um momento
um pouco como elas
assim o pintor humilde
faz a primorosa aquarela
e o homem mau e sovina
cansa-se de repente
e torna-se humilde apenas
alguém que vem
2
há canções tão belas!
é duro ouvi-las
melhor deixar no invólucro
dos seus discos
olhá-las saber que estão lá
mas ouvi-las
não se pode muito
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Pai
meu pai usava palavras
do seu ofício
jaleco amálgama cafua
e tinha gestos duros
como o de dar cascudos
nos filhos
fazia como aprendia
eu penso nos meus gestos
e nas minhas palavras
no que eu aprendo e faço
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Paisagem
paisagem instável
as rosas florescem fora de lugar
e aves se calam no nascer do dia
o rio bóia sua lenta eterna descida
para o mar cada dia mais pobre
da vida que nos pariu
paisagem flutuante
da janela a cidade me cerca
entra na minha casa
pelo preço módico dos incômodos
e das inconveniências
minha vida é uma pista
pedestres cruzam carros atravessam
as preferenciais que criam
telefones cobram atrasos
dizem que tudo vai bem
que está melhor
os bois estão gordos
o feijão caro
e as faculdades particulares
ensinando mal em elevadas prestações
paisagem inútil
o amor tomou o elevador de serviço
eu humilde tomo meu balde
e meus panos de chão
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Palavras
o que me surpreende palavras
é não terem despido minha alma
não terem dito à última gota
em vãs tentativas de fazê-las florir
tolher atravancar dispor propor
isto que nunca saberemos
pois só somos meio falantes
meio poetas meio demônios
provincianos
meio piratas venusianos
o resto a ninguém pertence
eternamente falta
esse sinal obstinado de menos
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Parabelo
parabelo
litania punk de Tom Zé
porém nordestemente dançável
como um choro para vivos e mortos
os messias os bandidos do semi-árido
o povo apegado a rezas
corpo fechado enfrentando o status-quo
feiras de cego violeiro
de padres pais de família
tudo canta o mesmo som
o sangue que não adormece
de tão quente e precisado
nostalgia de quê?
do futuro
Canudos Pedra Bonita
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Passagem
da passagem de alguém
por nossa vida pode restar
um breve traço
um gesto de mão um modo de rir
um livro que se empresta
uma casa diferente onde se almoça
um dia conversando temas adolescentes
são passagens para a vida
fímbrias de horizontes
que não se esgotam apesar de tão exíguas
são traços da sensibilidade
que se forma tão cedo
graças a esses espectros inolvidáveis
um nome um jogo um brinquedo
uma doença uma morte prematura
e a amizade que ainda
não se perdeu
entre a obscuridade do passado
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Passos
assim como um violonista
distingue a nota de cada corda
em casa se aprende a distinguir
o som de cada porta que se abre
os passos de cada um que entra
o barulho que cada um faz ao comer
ou ao mover-se descuidado
o sentimento e o sentido por trás
de cada fala
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Pecados
pelos pecados que cometi
íntegro e de boa mente
perdoai-me três vezes
três vezes Senhor
amém
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Perda
quem se perde dos outros
se perde do mundo
se perde de si
e não encontra na vida
um caminho
a vida se torna uma imitação
dos dias circulares
de desejos paralelos
que ídolos cruéis impõem
ainda vivemos em dias
nos quais temos de abrir
caminhos
e obrigam a cuidados solícitos
a tecer direções
a despir as figuras de anjos
que preservam um mundo
que já não é bom
e pede homens amorosos
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Perdas
a vida se perde no que é
à primeira vista sem importância
no imponderável
o que a alma não tolera
a princípio parece tolo considerar
mas decide a vida
se vamos ou ficamos
somos por natureza sem muita grandeza
às vezes até mesquinhos
mas o que nos faz viver
isso amamos e não há leveza
maior que o pó que cobre a vida
e somos pó apenas isso
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Perder
viver é perder
ninguém se assombre
o cãozinho com que o menino brinca
há muito terá partido
quando este for um adolescente
o horror pelo verde
dará lugar ao prazer por saladas
as pessoas passam por nossa vida
quase sem deixar marcas
exceto as que ficam em nós
os amores vão e vem
nada é estável nem dura
se a única certeza é um dia morrer
vivamos o que vem
deixemos que a vida nos leve
sem grandes sustos e medo
antes com o possível prazer
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Perdido
eu andei meio perdido
distante dos amigos
dos hábitos que tecem
dia a dia a esperança
fui infiel talvez pensem
estive confuso
andei flertando com a solidão
e não foi bom
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Pinga
a pinga sempre foi considerada
um excelente digestivo e depurativo
do sangue
meu sogro tomva meio copo
com um melhoral
para sarar das gripes e resfriados
em caso de intoxicação
a pinga também é muito útil
devendo-se guardar entretanto repouso
após bebê-la
qualquer restaurante que se preze
serve um aperitivo com os mais
exóticos temperos
abre o apetite
faz a vida sorrir
padroeira do Nordeste
as melhores são as excelentes de Minas
mas o mais importante é o seu valor
medicinal
Poemas amorosos
quantos poemas feitos
sobre o amor
entretanto não poderiam
esgotá-lo
a respeito de pouca coisa
se pode dizer tudo
e sempre em um dado momento
em um dado momento
também se pode dizer
tudo sobre o amor
quando se quer esquecê-lo
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Poeta
o maior erro de um poeta
é dar a ler aos outros os seus poemas
mesmo Fernando Pessoa
morreu jovem, pobre, sem amigos
melhor guardar os versos na gaveta
melhor esquecê-los
Almeida Garrett notou a infelicidade
dos poetas em tempo de prosa
melhor ser sóbrio e só
e nunca enlouquecer fazendo versos
a quem não sabe nem pode lê-los
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Primavera
cigarras
grilos
marulhar de rãs
meu coração apenas escuta
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Primavera
em frente à escola
os ipês amarelos trazem a primavera
na cozinha voltam as formigas
meu gato já apanhou um ratinho
e umas baratas
por toda parte volta
a luta pela vida
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Promessas
enquanto eu voltava com o Higienópolis
para o Bairro Alto
o ônibus cheio dos uniformes azuis
dos meninos do Colégio Estadual
e das mocinhas que saem do emprego
e pegam o período da noite na Unibrasil
as calças justas a blusa curta
apesar do frio desta cidade inóspita
o sol desceu
e eu cheguei no terminal de ônibus
cálido de beijos e cigarros
vendedores de dvd pão de queijo
churrasquinho de carne e de frango
gente se amassando voluntária
e involuntáriamente
a noite é sempre uma promessa
embora perigosa
mas vive-se de promessas
e de dívidas
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Pupila
nós somos pessoas complexas
por isso conheço a pupila
do seu olho
sei as paisagens que ali se abrem
porque são as minhas
sei o que você não vê
porque são meus esses pontos cegos
quando você ri sei bem
o que o incomoda
quando eu rio você sabe
o que eu tenho de perigoso
mas não me deixa sozinho
porque precisamos um do outro
para ver o mundo
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Pátio
pátio molhado da chuva
onde estão os sapos de antigamente?
os que chiavam como crianças chorando
entristecendo minhas noites de estudo
eu sou um homem pobre
preciso de companhia
os reflexos dos postes iluminam
os namorados que se arriscam
na noite fria
um leva sua bicicleta na subida
outros estão nos muros dos pontos
de ônibus
é bom ter um amor
onde estão os meus amores?
os meus poucos amores
de pessoa tímida e recolhida
vou mandar esse poema para o Japão
e conquistar uma japonesa
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Quisera
Para Rosana, com amor
eu quisera destruir esta paisagem
que não me acolhe
que não acolhe os pobres os tristes
os sem juízo os amorosos
com um poder ultraeletromagnético
eu quisera dissipar essa penumbra
que põe mágoa nos olhos
a lágrima contida
e fazer nascer um arrebol
com tudo que eu tenho ainda de criança
meu medo de perder minha vó
de passear só em Paris
bem sei que Deus fez o sabiá
que não há cores como as das flores
todo dia me perco em meu jardim
e não alcanço o ônibus na rua
para onde irão? o ônibus a rua
quanto a mim buscarei minha eterna origem
esse mito dos desenganados
mas já não morrerei de tuberculose
que essa maldição já tem cura
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Relações
difícil começar
ou interromper relações
ambíguo cheio de perguntas
melhor o correr dos dias
a esperança de não ficar só
de que alguém ficará ao lado
e as ilusões e desilusões
cederão a uma conhecida amizade
mas isso não vem sozinho
exige uma base mínima de paz
e o dom de recomeçar
sempre que preciso
os homens e mulheres
confiam em sua esperança
esse é um dos requisitos
para a sua humanidade
para contar o tempo
medir distâncias
lembrar o que deve ser lembrado
e sempre que possível
deixar de lado ou perdoar
o resto
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Retrato
meus retratos tristes me seguem
pelas estantes da casa
pelos documentos de identificação
nos quais me posto sempre submarino
como um inexato peixe
vagando em copos de cerveja
translúcido como meus olhos
olhando adiante atrás
para os três tempos
nunca me perdendo
sempre igual a mim mesmo
siderado
mas nunca aqui e agora
porque sempre estou atrás ou adiante
e nunca estou comigo
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Rosa
amo o azul do céu
o verde da relva
mas da rosa amo a rosa
no céu amo o arco-íris
as nuvens a chuva os balões
quando é São João
mas na rosa amo a rosa
na relva amo os besouros
a espécie mais numerosa da terra
a mais amada por Deus
amo as flores várias
e as crianças soltando pipa
mas na rosa amo apenas a rosa
a rosa completa a rosa transitiva
ponte para todo ser
mas que entre todas as flores
sabe ser rosa
a rosa em si e a rosa em tudo
princípio e rastro do mundo
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Saudades
tenho muita saudade das moças
de vestidos leves o rosto incisivo
de quem lê romances franceses
e acompanha as mudanças no mundo
tenho saudade das Áureas
das Yolandas das Noêmias
mas sobretudo muita saudade
das Adalgisas
meu paletó de linho
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Saúde
o amor nasce sozinho
em quem tem saúde
não são necessárias cruzes
no caminho para que ele
nasça
as pessoas sãs amam a si
e aos outros
amam o dia a respiração
o corpo a vida boa
e os desejam como bens
de todos
as cruzes são sinais de falta
assinalam uma carência
o quanto distamos do amor
mostram nossa fraqueza
nosso desamor
nossa pobreza
a fome a enfermidade
assinalam distâncias
separações
daí sua advertência
do quanto há em nós
um ainda não
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Senhor
não encontrei o Senhor
entre os meus cálculos
minha razão não pôde anuncia-lo
mas sim as palavras tão simples
de velhas histórias da infância
que ficaram indeléveis comigo
e me impediram de ficar só
abandonado
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Sentir
saber o que se sente
não é dom gratuito
exige sabedoria
e esta método e vagar
não à toa os antigos
conversavam entre si
sobre o amor e a amizade
porque não são óbvios
nem se descobre por intuição
exige a mediação do outro
paciência e rigor
para serem definidos
e assim apuravam
as qualidades da alma
que aqui erra
desejando uma origem
clara e eterna
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Ser
ser é mais vasto que dizer
embora seja repleto de signos
estes têm uma gramática inconclusa
assim os surrealistas se aproximaram do ser
derretendo relógios ou colocando
na cena uma inusitada máquina de costura
por ser nem tanto inconclusa quanto plena
em demasia para o que vemos
quase sempre do ser
dizem que o ser é uno luminoso vazio
repleto de tudo
como pensar isso? calando
ou dizendo superlativos
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Sertão
que o sertão também é o mar
embora este negro
e o primeiro mais índio ou mameluco
e com seus próprios deuses
e rainhas
como sertão é o pampa
e pampa é a floresta
e o pantanal
mas a cidade grande não é nada
aqui não é vida
não há a santa misericórdia
e a esperança
e o abençoado anúncio do fim
princípio das coisas do alto
_________________________________________________________________________
Shantideva
um relâmpago na tempestade
mostra o caminho
_________________________________________________________________________
Silêncio
para onde foi o que se foi
para onde foi o esquecido
a infância perdida
a juventude perdida
tumulto de amigos
que não pudemos conter
tumulto do nosso incontido
a vida sob tantos gestos
tantas conversas que teceram
nosso precário momento
o que conversamos?
hoje silêncio silêncio...
_________________________________________________________________________
Sinais
antes quando fazia um calorão
as pessoas sabiam dizer:
à tardinha vai chover
ou quando o poente era rubro
diziam: amanhã fará bom tempo
mas hoje ninguém diz nada
com propriedade
esta geração não sabe distinguir
os sinais dos tempos
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Sonho
a vigília não é exata
como o sonho
nem tão terrível
a verdade não mora nas ruas
durante o dia
ela é dom noturno
presente de um deus
ambíguo
mas que a ninguém
esquece
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Sonhos
o surpreendente e o coloquial
entrelaçam-se nos sonhos
para os quais tudo é eterno
infindo significativo
como um céu platônico
quando não nos dana demais
os sonhos são claros
quando não passam em segredo
uma chave que teremos
de procurar mais tarde
até nos sobressalta acorda
como se fosse demais
vivermos conosco
para o dia perdemos os olhos
porque está muito distante
à noite despertamos
para o mais íntimo e real
prazeroso ou tirânico
_________________________________________________________________________
Sábios
eu não te amo obsessivo
te amo calmo quando posso
um pouco tenso às vezes
mas sem cálculo
e sem grandes pretensões
eu não te torno um seguro
contra as agruras
porto contra o tufão
te amo dando a mão
para caminhar mais gostosamente
tudo o que sinto
me faz companheiro
para como São Francisco
mudar o que pode ser mudado
ter paciência com o que não pode
e ser sábio para distinguir entre ambos
solidários andamos
há muito perdemos a chance
de sermos sós e sem carinho
_________________________________________________________________________
Só
estou só e é impossível
te mandar um telegrama
sem perceber tornei-me distante
não cabe mandar pelo Morse um s.o.s.
a tua falta é um problema analisável
por este ser meu tão racional
pior para mim que não sei
distinguir o eterno no que passa
que não sei te ver baliza rastro
em minha vida que coloco
em instâncias subliminares
do olvido e do pó
pior para você que tem um amigo
tão no seu canto
que um abraço é possível
assim como ver o cometa Halley
e que no entanto ama
amar esse verbo sempre intransitivo
que te percebe tão bela
adornada por todo o humano
e torna-se pequena para que o filho cresça
para que não pereça o encanto
do incondicional entregar-se
e navegar na vida
que quase todos ignoram
por pequenez e inconstância
e que eu procuro errando sempre
o endereço
_________________________________________________________________________
Tarde de crianças
a tarde no verão enche a rua
de crianças jogando bola
ou descendo as ladeiras
em carrinhos de rolimã
que elas mesmas constroem
em mutirão trocando
peças entre si e muito esforço
também se anda muito
de bicicleta se faz papagaios
a maioria das brincadeiras
custa barato só é preciso
o tempo que as férias dão
as meninas brincam separadas
há grupos de meninos
e de meninas mas às vezes
se misturam em geral
nos domingos que reúnem
os pais e avós e os primos
trocam cd"s de videogame
a tarde se abre com suas velas
para um puro prazer
de gastar energia e amar amigos
indiferentes aos fatos graves
que preocupam os adultos
as crianças são soldados
da Ilíada
incessantes plenas vitais
_________________________________________________________________________
Tarde
eram duas senhorinhas
muito frescas para o calor da tarde
trocavam entre si as pequenas
maldades da vida
varrendo a calçada e regando o jardim
nenhum vizinho escapava
aos seus olhos
sabiam de tudo da rua e do bairro
mas eram muito bravas
exigiam os seus direitos
que ninguém cantasse alto à noite
que ninguém chegasse muito alegre
nem fizesse algo pior
eram o próprio tribunal do santo ofício
prontas a queimar em fogo lento
a menor falha
se eram mesmo falhas
as contingências em que se vê
quase sem querer de vez em quando
_________________________________________________________________________
Teatro
Marta sucinta medida apolínea
disse na única vez que falamos
que fazia teatro se eu sabia
a importância do teatro
naquela nossa atualidade
eu amava futebol
timidez doentia apesar
dos níveis de testosterona
não respondi olhei
Marta descer balançando
a rua
_________________________________________________________________________
Tecer
esta senhora tão postada
na paisagem da tarde em sua sala
com as agulhas na mão tece
seus pensamentos nos quais flutua
com rápida nitidez
o mundo seu se une em uma abóbada
sob o qual se recolhe
como a virgem em seu díptico
mas as suas mãos não sabem nada
apenas seguem
como o sol
segundo a sua destra natureza
_________________________________________________________________________
Tempestade
1
a tempestade vai passar
como nuvem rósea ou sol claro
como dia perfeito para um piquenique
ou destruindo antes tudo no caminho
a tempestade vai passar
deixando dias claros até outra tempestade
2
as coisas ficam sempre onde as deixamos
mesmo que não lembremos onde
os mecanismos funcionam
pelo menos até faltar energia ou quebrarem
são feitos para durar sem liberdade
para fazerem outros programas
mas o mundo crucial não é assim
ele surpreende muda
como a tempestade que antes de passar
varre o Caribe de beleza intensa
_________________________________________________________________________
Tempo
no íntimo você não se preocupa
com o dia de hoje
mas com um tempo de seu coração
para onde confluem
passado presente futuro
as imagens se trocam
evocando as imagens arquetípicas
daqueles que formaram
seu ser seu meu
para esse tempo você sempre volta
nos sonhos e a custa o oculta
no dia pois é pesaroso
mas oblíquo te espera
nas tuas fraquezas
e sempre te diz mal você saiba
_________________________________________________________________________
Tenda
essa minha humana condição
tão frágil
foi a de Jesus e de Buda
contam-nos as histórias
dentro da matéria do mundo
somos com eles matéria
e queremos ser com eles sentido
do mundo e de sua matéria
sua força criativa e sua revelação
assim queremos
em nossa fragilidade
contam as histórias que um dia
o sentido do universo e do homem
se fez material humano carne
e armou entre nós sua tenda
andou com seu bastão
e sua tigela
tudo em nós paciente se faça
se cumpra
imitação dos grandes seres
que cumpriram seu sentido
humildes imitemos
como quem se descobre
e toma sobre si sua vida
e a dos outros
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Tentativas
amassei várias vezes a brasa do cigarro
entre os restos no cinzeiro
um olho fechado para evitar a fumaça
o pensamento fixo que torna o tempo
incoerente e imóvel
inúteis as tentativas para não ter de conviver
com todo o absurdo que cerca a vida
mesmo de um cara simples como eu
inútil tentar livrar a cara
vou tentar manter a leveza possível
dizer bom dia aos que passam
abotoar a braguilha quando for ao banheiro
e escovar o dente da manhã
quem sabe iniciativas como essa
dêem a leve impressão
de que a vida é convidativa
de que essas são questões de somenos
de que ainda não é preciso apelar
como Philip Marlowe quando está exausto
para dois uísques duplos
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Tom Jobim
Tom Jobim morreu sem aviso
ele era ainda novo e bonito
cheio de alegria e de certa inconseqüência
que os amantes da vida têm sempre
por exemplo em suas letras
entretanto era um príncipe entre os poetas
o melhor dos maestros
morreu como quem vai à esquina
comprar cigarros
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Trevas
a noite é negra
mas mais negro é meu coração
triste destino o do talento
buscar consolo em versos ralos
cingir seu crânio de louros divinos
e depender de charutos e clorofórmio
amar as grandes amantes
e contentar-se com as moças simples
que o amam mas não atingem
chorar lágrimas acerbas
sem um sentido preciso
exceto o que se respira
na noite negra do estro desperdiçado
na cidade que dele prescinde
na burguesa mediocridade dos contentes
ergo minha taça de louvores
ao amanhã que dessas correntes
irá me libertar
e a todos os byrons perdidos
nos subúrbios
a cabeça rolando
sobre espumas flutuantes!
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Universo
ao contrário do que muitos pensam
o universo não anda como um relógio
antes são os relógios que
devem ser acertados pelo tempo
do sol e dos planetas
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Utopia
1
Furtado já nos falava
desta aldeia chamada Babilônia
2
também nos falava que as utopias
devem nascer da sociedade civil
3
ao Estado cabe ser uma arena
para a construção da utopia e do futuro
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Vacuidade
tudo que existe está repleto
do que existe em torno
do que existiu um dia
e se projeta para o futuro
como o seu legado
tudo o que é
é unido a todos os seres
e lhes dá existência
perceber isso elimina o abandono
mas lembra a responsabilidade
universal pela paz
nossa e alheia
pois nada é dual e tudo fala
por uma só voz
a isto se chama estar vazio
de todas as pretensões
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Ver
não acredite em tudo
que você vê
melhor: não acredite
nem na metade
sossegue: para pior ou melhor
o mundo é sempre
bem diferente
do que pensamos
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Versos
gostaria de fazer versos
como John Donne como John Keats
gostaria de fazer versos
como Manuel Bandeira
mas sou um homem modesto
faço versos com a minha cara
fragmentos de pensamento
do fogo elementar
que me cozinha lento
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Viagem
em nós nada começa ou finda
não há um ponto morto
a partir do qual engatar a viagem
consultar mais uma vez os mapas
a viagem não cessa
embora sem propósito
sem destino
não há um eixo silencioso
a partir do qual ordenar
o que parece fora de lugar
há silêncios mas são breves lacunas
onde se reata o marulhar infinito
do sangue do pensamento
nós não esquecemos
tudo nos pertence
queremos tudo que é nosso
o mendigo mais humilde
é o rei de sua cabeça
e em torno dela tece
guirlandas de pretensões
e de sua vida desapercebida
mas sempre vida
tão extenuante e veloz
quanto qualquer outra
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Vida
quando perdemos um amigo
dizemos é a vida
quando nos sentimos doentes
dizemos também
se nos passam a perna
dizemos é a vida
quando nossas forças não bastam
é sempre a vida
de modo que a vida entre nós
não tem bom conceito
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Vingança
eu guardo minhas mágoas
em papel de bala
para derreter na boca
à noite na cama
que é lugar quentinho
para se chorar
com gosto apuro
minha vingança
que é ao contrário
um prato que se come
gelado
doce como sorvete
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Virgens
oh virgens
oh vestais divinas
aos vossos pés de vento derramo
minhas lágrimas de purpurina
oh divas salientes
oh metafísica
lanço aos quatro pontos cardeais
minhas decepções sentimentais
oh carnavais
que acenais com o ás
oculto nas mangas
oh incansável eu que vos persigo
vestido de catavento
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Yma Sumac
hoje parece estranho
mas naquele tempo
a orquestra usava todos os recursos
para acompanhar a voz altiva
de Yma Sumac em The Virgin of Sun God
e os mambos se sucediam
na voz ora aguda ora muito grave
bamboleando pela tela da televisão
nesse momento mamãe aproveitava
para ir ao banheiro
eu esperava a próxima atração
hoje já lamento não ter apreciado
tudo como deveria
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Zen
vez ou outra lúcido
vez ou outra sóbrio
vez ou outra sólido
vez ou outra zen
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Às vezes
às vezes sem graça
às vezes sem sal
às vezes sem ar
às vezes sem chão
às vezes só sem dinheiro
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Água
aguaceiro
faróis tremeluzem
caos no transporte metropolitano
desejo de casa e sono
sob as marquises do mercadorama
taxistas e sem teto disputam espaço
a telefonista compra pão de queijo
e um potinho de iogurte
os motoboys entregam pizzas
porque há quem coma pizza em casa
quando chove
os estudantes se agarram às mochilas
o ar abafado enche
o pulmão comum da cidade
antes considerada do primeiro mundo
hoje em eleições anódinas
nas quais os mesmos vereadores
manterão as mesmas clientelas
a chuva não lava nenhuma sujeira
e acumula papel molhado
nas bocas de lobo
a cidade não precisa de chuva
a tarde anacrônica
é uma sopa indesejada
que não mata a fome de ninguém
Autor:
Igor Zanoni Constant Carneiro Leão
igorzaleao[arroba]yahoo.com.br
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