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incômodo ou gentil
nem suas boas e más qualidades
vem de uma natural autenticidade
onde ela estaria? nos glóbulos brancos?
os sentimentos não nascem com o bebê
nem o bebê deixa de ser o tempo todo outro
não graças ao tempo
mas ao seu esforço se lhe parecer importante
o amor a compaixão a alegria a equanimidade
não estão à mão em algum recesso do ser
são aprendidos com doçura
com medo com arrependimento
com a decisão de mudar
que nem é tomada tão às claras
muitas vezes se muda depois se percebe quanto
o grande Drummond intitulou um livro
"Amar se aprende amando"
também o ódio mas muito mais importantemente
o amor
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Almoço
o cálido vozear das crianças
retine nas louças
sinos ao meio-dia
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Amigo de Infância
quando reencontramos um amigo
de infância
temos apenas uma memória
edulcorada e falhada
do que foi esse amigo essa infância
e nós mesmos
é necessário travar relação
com uma outra pessoa
ligada à primeira apenas
por vagas referências comuns
e às vezes apenas de um
é antes travar relação
com alguém inteiramente novo
com quem temos cinco minutos
de conversa
depois mais nada exceto
se romanticamente temos o impulso
de resgatar o amigo a infância
nós mesmos
em um esforço difícil e ambíguo
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Amor
o amor é involuntário
pelo menos como uma fantasia
que se acalenta ou se abandona
um momento se ama
outro se esquece
exceto que se prende por laços
concretos e necessários
pode-se amar contra a vontade
amar pode ser um dever
um dever inescapável
amar pode ser por isso pura vontade
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Ano Novo
o Natal chegou embrulhado
em palha como um vinho precioso
que cada um apreciou como pôde
mas o Ano Novo veio envolto
em jornais e expectativas
já não falando
como há uma semana atrás
em esperança
mas especulando com más informações
sobre a grande crise do capital
o prosseguimento do banho de sangue
na faixa de Gaza
e as políticas dos grandes estados
para salvar as fábricas de carros
é claro o presidente deu novas
declarações impensadas
para que confiemos na vida
e abramos novos crediários
o Banco Central mantém os juros
com medo da inflação
e sustenta a elite com verbas públicas
o Ano Novo será segundo parece
como qualquer ano
e os jornais poderiam ser feitos
com uma máquina xerox
e os jornais do Ano Velho
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Antibióticos
vacina anti-catarral Pinheiro
injeção de eucaptine
chumaços de azul de metileno
comprimidos de Piramidon
hoje foram substituídos
nas minhas crônicas dores de garganta
por antibióticos caríssimos
de última geração
a cada três meses
no orçamento
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Apaixonados
nós estamos bem...
às vezes mais apaixonados
às vezes menos
de novo mais apaixonados
e assim vamos...
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Aproximações
não acredito em amor
senão como aproximações sucessivas
e infinitesimais
testando o limite das relações
vistas por ledo engano
como saudáveis e razoáveis
quando são apenas carências
e adoecimentos
lucros e perdas
na vida que já perdemos
não acredito em amor
senão como o tecido
na pétala
do orvalho que a veste
de água e luz
como a uma princesa
passeando nos meus olhos
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Aquisitiva
ela amassava por muito tempo
papéis de bala apanhados no chão
depois os alisava no braço
sentido sua cor sua textura
provava o café concentrada
como se nunca houvesse
tomado café antes
não aquele café naquele bar
ia andando pelo mundo
como que dando-se inteira a ele
era uma pessoa que amava
os materiais do mundo
uma pessoa sensível
aquisitiva
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Argentinos
com seu senso trágico
não há assunto em que os argentinos
não ponham todo seu vigor
seja a política a educação os livros
ou o estado geral das almas
mas intimamente românticos
escolhem para suas deidades
nomes como Evita
Estelita ou Luz Marina
e os acariciam ao som de bandoneons
na luz frágil das ruas noturnas
em acalantos doridos
nos ombros das companheiras
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Assassinato
se eu der muita comida
ao meu peixinho azul
ele vai ficar bem gordinho
e não vai levantar mais
do fundo do aquário
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Aves
as aves se sustentam
na tarde aérea em que Jesus
ata minhas asas
embora eu seja também
um dos seus pobres
meu dharma é instável
e vou como todos morrer
minha inquietude me leva
a penhascos em plena rua
choro baldes de lágrima
que jamais secam
mas a parte irracional
da minha alma me livra do mal
o que sentimos nem sempre
pode ser vivido
mas alivia e embriaga
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Baldios
com o fim dos terrenos baldios
foram-se as peladas de domingo
entre os times dos bairros próximos
os bichos que se aninhavam
na verdura das margens
entre os talos açucarados da erva-doce
e que morriam jogando ao céu
sua carniça para o vôo circular
dos urubus
nas ruas mornas já não se reúnem
os meninos a um passo
da amizade e da zanga
e que enchiam as tardes ocas
com emocionantes partidas de bets
raramente interrompidas
por um automóvel malvisto
essa infância já não existe
ao menos em Campinas
como não existem mais
tantas coisas fundamentais
à boa vida e à vida boa
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Bananas
lamentável a morte lenta
de bananas em uma fruteira
sua carne amolecida
sua casca escura
e manchas de mofo
o paladar se retrai
as drosófilas se assanham
no banquete fúnebre
triste o cheiro enjoado
que enche toda a cozinha
até a morte vegetal
de bananas antes tão convidativas
cria um mal estar
um sentimento de recusa
tão natural em quem vive
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Bilhões
muitas coisas já
não são para mim
não sei para quem são
o reveillon na praia no Rio
feriados de fim de ano
nas estradas cheias
outras nunca foram nem serão
a ajuda financeira a bancos
e empresas automobilísticas
quando ouço falar
em bilhões e trilhões
não sei bem quanto é
de onde sai
mas eu sou uma pessoa
sem a menor importância
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Busca
Ele também fala no silêncio
e no tédio
não se pense que não acha
aquele que busca
muitas vezes a busca demora
a vida toda
e no instante final se acende
o olho do futuro
a vida se transforma
e reacende
pensamos : Ah! então era isso!
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Caliça
aos poucos a casa se destelha
as crianças lambem
a cal das paredes
cobras fazem ninho no forno
e é preciso saber onde pisa
para entrar por uma porta
e sair por outra
o jardim se torna amazônico
e os passantes mudam de calçada
quando vêem a ruína
bem dizia meu pai
a vida é uma luta contra
a entropia
e só se pode adiar a derrota
enquanto se é novo
e tem bons dentes
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Campanários
fúnebres pássaros espiam
pelo olho oco do olvido
o silvo da grama
cresce entre ossos
do que foi para sempre
nada ninguém
mas a paisagem natural
retoma suas revoluções cegas
sinos silenciam
eucaristias emudecem
seus símbolos cedem
ao que não pode ser convenção
espectadores tombam
na manhã de sábado
deitam-se nas plácidas colinas
de pinheiros e campanários
mas amanhã não haverá domingo
de missas e ressurreições
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Campo santo
Para Anna
1
eu gostaria de falar
mas você já não está
está antes em suas viagens
infindas iguais
sem mandar uma carta
gostaria de um cartão postal
da paisagem que você vê
com um bilhete atrás:
estou ótima vi museus
jantei bem tomei um ótimo vinho
quem sabe você um dia
voltasse
2
pessoas do coração
partem para destinos ignorados
nunca mais
os pais amigos de décadas
irmãos amores mestres
nem mais uma palavra
nosso coração é um campo santo
de adeuses ditos e não ditos
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Canções
não é possível viver como as canções
na própria intimidade
as dos outros se espia com prazer
ou paciência
mas a nossa que abismo
é preciso exteriorizar o mundo
torná-lo manejável
nós mais ariscos que um peixe
mas as canções são feitas para os outros
ninguém vive como sua canção
só os desesperados e suicidas em potencial
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Casal
1
em um casal tudo se sabe
assim como em uma casa silenciosa
se ouvem todos os ruídos
2
a vida não é rigorosa
o coração é incerto
temos um murmurar que não cessa
mas nenhum bom motivo de fato
3
em uma alma muitas almas se aninham
como em dona ratazana
muitas crias em suas tetinhas
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Chorinho
o chorinho é uma forma musical
na aparência despretensiosa
mas refina a delicadeza
a sensibilidade sonora
que só é possível entrever
na alma popular
através do som exato e agudo
do bandolim
bem acompanhado
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Choro
os grandes mestres já falaram
sobre a interdependência de todos os seres
e sobre o fluxo circular do tempo
e de todas as coisas em seu interior
de modo que já nunca estamos sozinhos
e um pouco ao acaso dos nossos atos
emoções e pensamentos
somos sempre os outros e os nós
que escolhemos
a nossa liberdade nos leva adiante
para sofrer o que nunca adiamos
na nossa liberdade de ser ou ter o pior
que quisermos ou não evitamos
nestes momentos nos sentimos todavia
sós tão sós
e que em nossa solidão caberia o infinito
e conosco levaríamos todos
os que interrogamos
quando você esteve comigo?
que cruz minha levou
que chagas lavou
e silenciosos subimos a rua de pedras
sós tão sós
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Chuva
silenciosa chuva
apanha-me pelo caminho
devolve-me ao espaço
agora mais denso
das longas frias caminhadas
e dos jogos de futebol
no barro dos campinhos
clausura da meninice
antecipação da clausura
da vida inteira
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Cidade
eu quero viver em uma cidade feliz
é impossível ser feliz sozinho
lutar contra a tristeza cotidiana
com o auxílio de amigos e psicólogos
fazendo deles minha pequena cidade
esta deve ser bem maior e incluir todos
deve ser a República de Platão
onde se aprende o bem o amor e a virtude
não quero menos do que toda a paz
e todo o bem que São Francisco desejava
aos seres todos e até aos pássaros
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Cidade
por mais que chova
não chiam sapos
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Cinza
Para Zizo
vejo você sob a chuvinha
da cinza de um vulcão
eterno sobre a sua cabeça
vejo você com seus insólitos
guarda-chuvas
invenções de quem quer resistir
mas que se entedia
fuma bebe sai para pescar
usa todos os métodos
para conquistar distâncias
mas mantém um discreto humor
idiossincrasias fidelidades
um de nós companheiro
um de nós
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Ciprestes
funéreas cinerárias
chorosas violetas
hipoméias lutuosas
jardins antigos que descem
a ladeira de ciprestes
nos municipais cemitérios
que viram feiras em Finados
enquanto os sinos
tocam seus dobrados
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Ciência
a ciência já foi julgada finita
e toda conhecida
em seus métodos e resultados
já se reuniu fé e razão
razão e experiência
já se duvidou de tudo
e já se encontrou porto para a crença
e para a esperança de saber
também se procurou conhecer
a si mesmo
tarefa vasta e laboriosa
necessariamente inconclusa
pensou-se que o homem fosse uma cidade
depois um continente
nunca uma ilha
o ser humano é o mais elogiado
e o mais vilipendiado
depois de percorrido por filósofos
teólogos psicólogos poetas e tolos
mas o mais crucial é que cansa
procurar por si mesmo
é vaidade e egoísmo
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Clementina de Jesus
aonde estão os olhos de azeviche
que destruíram minha alma
que me roubaram a calma
o meu coração vive a palpitar
se aqueles olhos lindos
não vão me enganar
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Coisas
é verdade que talvez
as coisas não melhorem
mas sempre podem piorar
elas nunca ficam as mesmas
em todos os momentos da vida
é bom fazer um cruz credo
nunca se sabe se vem um saci
ou o velho com o saco
isso dizem todos os sábios
e as avós ralhando com os meninos
olha a arte! chamo o velho!
principalmente quando a gente
acha um jeito de melhorar as coisas
a avó acha que é o Benedito
com sua capa preta
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Compreender
gostaríamos de ser compreendidos
como nos compreendemos
mas é freqüente ouvir dos mais próximos
zombarias as mais mordazes
muitas vezes procuramos o psicólogo
para perceber como o mundo nos percebe
mas logo vemos que entendemos de nós
muito mais que ele
estamos sós com nossa alma
cada um de nós
mas sentir isto é um princípio
de compreensão do outro
de sua solidão
há quem não se sinta só nem triste
mas eu só me sinto triste e só
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Conjunto
a maioria pensa em uma luta
individual pela vida
no máximo por um pequeno círculo
de familiares e amigos
há todavia os que lutam pelo conjunto
dos seres e de tudo que conduz
a uma vida boa
essa é a luta mais difícil
a menos recompensadora a curto prazo
a mais indispensável
o tempo todo
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Contato
houve um ruído metálico
como se um besouro batesse em pleno vôo
em uma lata de Coca-Cola
a paz do livro se quebrou
senti o quarto frio invadido
por forças estranhas
com um sobressalto busquei os cantos
os debaixo dos móveis
os atrás das estantes e dos guarda-roupas
mas só percebi o vento suave
movendo a cortina leve
e a noite estrelada me espiando
pela janela aberta
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Continuidade
o que é mais importante
é a continuidade
graças a ela podemos ter
alguma contemporaneidade
com Sócrates Buda ou Jesus
ao mesmo tempo ver o anacronismo
que invade nossa vida
podemos ter uma herança prática
do amor da amizade da vida comum
criar pontes para o depois
até certo ponto moldá-lo
enviar sondas para as bordas do infinito
e estar nesta sala tranqüila
ouvindo músicas antigas e novas
ao lado dos filhos
ser a um tempo pitagórico
darwinista socialista
e amar a mecânica e a poesia
a continuidade convive
com boas rupturas e as supõe
mas é exigente e seletiva
por isso tenhamos cuidado
cuidado e mais cuidado
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Contrição
os velhos gostam de contrição
de visitar cemitérios
e completar novenas
querem familiarizar-se
com a finitude e com o eterno
que talvez nos espere
na outra margem
querem encantar a vida
torná-la dócil
nesses dias precários
querem se fortalecer e preparar-se
para aquele grande momento
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Conversa
hoje à tarde lendo
reatei uma conversa com meu pai
há muitos anos
não importa o livro ou a conversa
mas o dom da intimidade
como pode prolongar-se
quase infinitamente
ou além de uma morte
tão significativa para mim
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Convite
o iogurte o sorvete o suspiro
são as guloseimas preferidas
das garotas do call center
mas se convidar uma para jantar
peça no mínimo um yakissoba
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Coração
1
uma xícara velha se enche
ainda de chá
sua porcelana encarquilhada
não derrama uma gota
assim o rosto dos velhos
mostra-se como um pergaminho
mas em sua boca há às vezes
um sorriso
outras vezes uma praga
2
como vai seu coração
quem cuida dele enquanto se vê
às voltas com o cuidado dos dias
que se alongam cansativos
a noite parece custar
o sono também foge
suas batidas fazem um tango
e você nem tem um terno e um chapéu
para dançar conforme
a sua música
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Corpo
quisera te colocar dentro do meu corpo
e ir comigo onde tu fosses
e dizer as tuas palavras
quisera me abrigar em tua calma
e lascivamente sentir-te sempre em mim
esquecer para sempre minha solidão
e ver o mundo que se abre em teus olhos
quisera que nossas histórias confluíssem
e te guardar do mal e do perigo
que fosses de mim meio filha meio mãe
meio eu mesmo
porque assim quase já somos todo o tempo
e em ti amo tudo teu e a mim
porque me tens contigo
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Cravo
o lânguido amor
o feroz desejo
a paixão desenfreada
a imaginação exaltada
a fratura exposta
o tormento constante
a certeza dolorosa
são cravos no corpo
dos amorosos
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Crianças
levei a Isabela ao Parque Tupã
para brincar no carrossel
mas ela preferiu a roda-gigante
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Crianças
as crianças têm
como os gatos e as rosas
a eterna presença do instante
de sua vida a tragédia
insiste em fugir
muitas vezes quando para nós
ela é evidente
ninguém se torna um adulto são
se esquece de todo sua criança
ela é a chave da sua iluminação
o passaporte da vida inesgotável
diante de tantas fronteiras
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Criação
estamos nos criando o tempo todo
nesse tempo ambíguo que temos
e que não supõe um sábado de descanso
estamos entre nossas ações
vivendo nossas ilusões e relações
e quando percebemos o vazio
sentimos frio e não a necessidade
de cessar e ser pela primeira vez
pleno de nuvens brancas
de terra e de água
Crise
os governos desembolsam bilhões
para salvar o sistema financeiro
a indústria automobilística
não sei de onde saem tantos bilhões
nem imagino quanto valem
os marxistas já previam a crise
e perguntam: será esta a crise final?
as contradições se agravam
os riscos são imensos
de perder a precária civilização
que erigimos com a ciência
a técnica e o capital
os utópicos pensaram em outra nação
em outros homens
deram suas vidas por este sonho
homens sérios estudiosos
que amaram esta terra
correram todo o mundo
em fuscas e aviões
foram eleitos para academias de letras
são periodicamente enterrados
e recuperados
sem entende-los eu os assumi
como meu lado meus pais
não sei de onde me veio
esta veia jacobina
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Cronos
há o que nos cabe
e o que não nos cabe
a menos que sejamos insensatos
crer em Deus ou nos demônios
era inevitável há duzentos anos
hoje não podemos sequer escolher
é uma sorte de quem nasce
aqui ou ali no mundo
o tempo histórico nos coloca
as crenças e as indagações
dispõe de nossa morte
e do que podemos viver
de modo que a liberdade
é limitada ou quem sabe ilusória
mas sempre há a loucura
dos que dispõem de si
às vezes com sofrimento
mas íntegros
às vezes com espantosa alegria
nós escolhemos do que enlouquecemos?
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Cuidado
Para Selma
a paixão pode ir e vir
mas deve sempre deixar
o cuidado e o carinho
não é preciso estar apaixonado
muitas vezes na vida
a paixão pode ir e vir
mas o carinho e o cuidado
precisam sempre ficar junto
eles nos são indispensáveis
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Curitiba
doces damas-da-noite
o jardim abrigo para beijos
e confidências
ou um cigarro só
o vento leva a nossa poeira
encosta-a aqui e ali
nosso mundo é imenso
como o céu sem nuvens
e nossos passos
às vezes se perdem
Curitiba! Curitiba!
quantas vezes te quis reunir
em meus braços
na noite que nos torna
generosos
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Cálido
o amor é também cálido e acolhedor
veja os pássaros nos ninhos
veja um casal de ginasianos
mas não é só isso
Céus
nunca esquecerei
no céu alto de Campinas
os pontos negros dos urubus
traçando espirais na tarde quente
vigiando a carniça dos bichos
mortos nos terrenos baldios
a amplidão dos céus alargava
minha vida infantil
a cidade tinha entre seus caminhos
imensos planos de terra
e o globo da atmosfera
ali convivíamos todos
os elementos naturais
a flora e a fauna
tudo era de uma crua naturalidade
inclusive a beleza
da minha vida
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Decisões
há tantas decisões que tomamos
sem certeza
angustiados por ter de tomar
alguma decisão
ferindo os sentimentos
dos que teriam outras soluções
mas muitas vezes o tempo é curto
as coisas se precipitam
este é um dos nossos lados
demoníacos
a incerteza e a precipitação
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Dele
Para Tiago
dele me ficou a efígie
um gosto por vinhos
eu que não bebia
por autores distantes
eu leitor dos românticos
ficou uma rebelião
uma soltura
eu tão apegado a meu pai
dele me ficou essa certeza
de que a vida passa
eu que pensei que havia
sempre um jeito dela voltar
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Derrota
o cansaço do não vivido
do que não se pode esperar
a expectativa o preparo
da juventude perdidos
a vida um pouco falhada
mas intimamente sabendo
que não se trata de fracasso
mas de uma derrota
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Desejo
eu pedi
mas ela recusou
pois está no seu direito
aliás é uma moça muito direita
mas é que eu tenho um sentimento
que muitos acham escuso
outros louvável
por isso indeciso me mantenho
refém desse obscuro desejo
e pedirei de novo amanhã
mas hoje rezo para que desapareça
tanta assombração
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Desvantagem
é comum em uma relação amorosa
um dos dois ser mais apaixonado
que o outro
criando-se uma dolorosa e silenciosa
desvantagem em tudo que lhes diz
respeito
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Deusa
os violinos iniciam suaves
a canção
sua voz aveludada e rouca
ainda mais suave
lembra a letra de um velho sucesso
os habitués se debruçam
sob a meia luz
escutando a voz noturna
e glamorosa
tudo que queremos é escutá-la
e assim escutar nossos corações
sentir o que sentimos
repetir-nos o mais possível
ela é para nós uma deusa
e como nós mesmos
repete hoje velhos sucessos
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Dharma
o dharma não é apenas
um conjunto de ensinamentos
que se aprende mas que
se pode viver com alegria
com a alegria que Buda
partilhava com seus amigos
assim também para Platão
a melhor filosofia é a que vive
e deve ser descoberta na conversa
porque os amigos são
o melhor equipamento
para a vida sábia e examinada
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Dia dos professores
neste dia dos professores
gostaria de perguntar por que se continua
a dar aula se isso não funciona mais
nem aqui nem na China
se essa relação com os alunos se perdeu
e nós professores somos só um obstáculo
entre eles e o diploma
se a biblioteca anda às moscas
os interesses são outros
há risos quando se lembram certos autores
e não adianta deixar textos no xerox
os salários sempre foram maus
mas havia respeito comunitário
pelo abnegado professor
que hoje também não é mais abnegado
está fugindo das salas
fazendo bicos em pesquisas e mestrados
fora da escola
buscando um emprego no governo
e adora aparecer nos jornais
mais do que nas aulas
falando pomposamente sobre temas
que poucos compreendem bem
e se você dá aula à noite no segundo grau
corre o risco de agressão
não pode avaliar ninguém
mas também não sabe avaliar o que faz
o que é hoje um professor?
uma profissão em extinção
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Difícil
sou um homem difícil
mas não fechado
sei ser duro
mas também generoso
não sou santo
mas também não busco o mal
minha casa mantenho
com dificuldade
minha paz é um cultivo
tão árduo quanto o de um rosa
tudo resumido
não vale muito a pena
mas se achar que precisa de mim
disponha
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Diga
diga qualquer coisa
que acalme meu coração
diga que estou enganado
que a nossa vida não terminou
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Ditos
a justiça não precisa ser impiedosa
o amor não deve ser cego
a sabedoria não é obrigatoriamente cética
a virtude prescinde a dureza
o ofício não precisa ter ossos
a amizade pode se gratuita
o santo não faz necessariamente milagres
o que não tem explicação pode não ser miraculoso
a filosofia nem sempre consola
a poesia pode ser feita sem palavras
o mais próximo pode estar fazendo falta
a dúvida pode ter tanto método como a loucura
o simples demora a ser elaborado
o cuidado demasiado pode inibir
para os físicos e as crianças o universo é infinito
a única coisa inevitavelmente escassa é o tempo
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Dizer tudo
é sabido que não se pode dizer tudo
as mãos são mais rápidas que o olho
e o interesse mais veloz que a inocência
não que tudo isso seja humano
antes o humano é ainda um projeto
não há dona de casa que não queira
ser rainha ao menos de sua casa
e todos querem ser dono de seu nariz
mesmo que seja uma evidente impossibilidade
todos amam antes o prazer exceto os muito céticos
e antes do prazer o dom de ordenar a vida alheia
o que dá na mesma coisa
o apoio mútuo a grata solidariedade
ocorrem nos grandes sinistros
nunca na vida módica e cotidiana
na qual se vive de muitas outras preocupações
mas também disso não é possível dizer tudo
exceto perceber os vagos limites
a que foi confinada a vida de cada um
com o cinzel do capital se ergueram sonhos
e se ateou um incêndio no mundo
mas os romanos não viveram melhor
ou não teriam existido Adriano ou Marco Aurélio
e a escravidão grega sequer foi bem percebida
pelo maior dos filósofos de seu tempo
os seres não caminham para nenhum caos
estão nele desde que saíram do estado da natureza
por isso se fala às vezes em retorno à natureza
às origens à mítica fonte primordial
e muitos tem a felicidade de empreender
a busca do Santo Graal quase sem sair do bairro
como se o bairro não fosse todo o tempo
violado pelo mundo obscuro
e também pelo nosso lado obscuro
que dividimos com nosso lado claro
ou multiplicamos
mas sempre nos subtraindo
_________________________________________________________________________
Dolores
um dia um amigo me deu
um disco de Nana Caymmi
adivinhou minha tristeza amorosa
ele tão feliz com o amor nos tempos modernos
houve um tempo em que se amava
Dolores Duran
hoje mal se ouve uma canção no rádio
que console o coração abandonado
não por falta de adeus me despedi
dos sonhos das ilusões
hoje não quero mais escutar
as palavras de carinho que ouvi um dia
vou embora sem esconder
os sonhos que morreram
apesar do meu imenso amor
_________________________________________________________________________
Dor
quando me acalmo em minhas dores
quando me abraço a elas
como um velho ao seu casaco
percebo quanto tenho de ser
cuidadoso com elas
tratá-las com paciência
como aceitá-las é uma nobre verdade
a primeira que se deve conhecer
e praticar para alcançar
a hora em que poderei
aos poucos abrir brechas
na espessa e ignorante correnteza
dos dias
e encontrar enfim água e acolhida
não se trata de amar a dor
mas de reconhecê-la
saber seu fundo sua textura
e devagar abrir espaços
com carinho
sentado ou andando
com um pouco crescente de paz
com a consciência do que os seres
são feitos em seus limites
sem ambições sentar como um velho
agarrado com frio ao seu casaco
tomar sol no pátio
rodar com a terra
na tarde que veio como pôde
_________________________________________________________________________
Ele e eu
Ele morreu por todos
e pelo todo
por gente com os estigmas da pobreza
que são nossos e Ele fez seus
morreu pelos cegos pelos fariseus
pelas prostitutas e teólogos
mas Ele não morreu a minha morte
ela e o sentido que tiver
pertencem a mim
mas quando penso n"Ele
a todos e ao todo dou-me como posso
nos limites da minha escassez
e sinto uma enorme responsabilidade
_________________________________________________________________________
Emoções
como já cantou Roberto Carlos
o importante são as emoções vividas
é assim que a nave ensombrecida
da igreja
o rigor do ritual o método do coro
encantam o fiel e o comovem
é assim que a criança
na inocência de sua vida familiar
ama a visita dos avós nas férias
com suas dentaduras
e seus hábitos singulares de outrora
e os ama mais até que aos pais
é assim que é feito o mundo
do homem maduro que preza
seu esclarecimento
e do homem desesperado
que desatina e foge de si
para o consolo precário
do seu descentramento
mas as emoções são induzidas
também pela dura maquinaria
das usinas do mundo
difícil recusá-las
medi-las antes de vivê-las
vive-se e se aprende a ser sábio
ou tolo
mas a sabedoria é a emoção
bem examinada
que torna a vida desejável
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Escolha
da maneira como podem
as pessoas interpretam sua vida
é indispensável que o façam
ou não seriam humanas
mas nem por isso dão o melhor
de si aos outros ou a si mesmas
quem poderá avaliá-las?
ninguém
apesar disso as pessoas escolhem
a sua interpretação
põem-se ou não em questão
as escolhas que precisam fazer
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Espera
esperamos de alguém o que não podemos
nos dar nem sabemos muito bem
o que é
esperamos que nos adivinhem
que sejamos um livro aberto
nós tão obscuros
tão oscilantes
às vezes alegres e radiosos
a vida clara a ser vencida
às vezes com um incômodo de velhos
o mundo cansado
as tristezas inexprimíveis
queremos que nos recolham
em suas retinas em suas mãos
nos devolvam a nós mesmos
na plenitude que não existe
nunca existiu
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Esperar
esperar das pessoas o que elas não podem
não saber se sentir forte ao lado delas
não saber encaminhar a vida por si
por ela
esperar dos sentimentos que sejam
o que nunca são
ou são às vezes
no fundo são mas o medo
no fundo não são
passear no domingo com a alma dilacerada
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Espírito
que o espírito não é mais
ou menos que o corpo
e um belo dia de sol
bem disposto
nos eleva a um êxtase
raro e inesquecível
que esse hedonismo não é
um exagero ou pecado
e se pode estar bem ordenado
com o corpo frágil
porque o corpo não é o que se vê
mas o que se tem na mão
e se dá ou pega
e é tão crucial e mundano
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Esquecimento
nestes dias nos quais me sinto
tão só e frágil
já sem meus pais sem minha mulher
ando com a sensação de que os anjos todos
se afastaram de mim
e minha memória se distende
dos acontecimentos usuais
para o infinito e percebo
que não nos esquecemos de nada e de ninguém
aí está a nossa infinitude
pois nas lembranças talvez se esconda
o futuro
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Estrada
está certo que a estrada
é longa e estreita
e não se sabe bem por onde vai
mas caminhando com cuidado
pode-se vencer as suas curvas abruptas
e seus barrancos
fugir de assaltos repentinos
pode-se caminhar com calma
desde que se aceite que caminhar
em paz e sossegado
pode ser melhor que chegar
a algum lugar
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Estranho
o estranho é o início do desassossego
dessas ruas que não conduzem
desses passos tortos
o estranho é o difícil
noz escondida no dia
o que contém?
fechada exata
à espera de que festa?
ambulâncias passam sem parar
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Eterno Retorno
uma idéia
uma emoção fundamental
tomam uma vida inteira
percebe-se em certos autores
a contínua reelaboração
de uma mesma obra
um poeta que reescreve
sempre o mesmo poema
mesmo que alguém não seja
um autor um poeta
vive muitas vezes
sempre o mesmo dia
a mesma noite
as mesmas venturas e medos
às vezes sem perceber
em um eterno retorno
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Fala
nem sempre é claro
sobre o que se está falando
muitas vezes a conversa
vale pelo contato
e desanda sobre o inesperado
nem sempre a boca fala
do que o coração está cheio
como afirma o autor dos Provérbios
muitas vezes ela fala
porque o coração está
insuportavelmente vazio
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Falta
a falta se impõe no avesso
de um gesto ou de uma frase
solitária ou dita em uma conversa
ela não pode ser pressentida
antes é uma surpresa
percebemos que também ali
ela denuncia o afeto
a antiga relação
que perdida se supõe ou sublimada
a falta nos joga na cara
nossos sinais de menos
os imensos tesouros perdidos
preservados nos desvãos da memória
de seu cinzel
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Faroeste
o importante em um faroeste
é que o roteiro seja parecido com os de todos
o fundamental são as imagens
dos mexicanos em cidades desérticas
vestidos de algodão branco e sombreros
mulheres de saias largas em saloons nostálgicos
jogos de azar que culminam em mortes
índios à vontade e cowboys
que matam a sede com uísque sem gelo
o importante é que na hora de dormir
se corte a conversa pondo o chapéu no rosto
e as raras e felizes cenas em que alguém
consegue tomar um banho
o melhor faroeste é um B
mas aceita-se uma eventual obra-prima
como Sete Homens e Um Destino
ou um filme qualquer de John Ford
o faroeste agrada ao mais fino gosto
até o irascível Bob Dylan já estrelou
Pat Garret e Billy the Kid
o importante é que a justiça prevaleça
e que o mocinho esteja cansado de aventuras
e queira casar e montar um rancho honesto
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Feixes
apanho o feixe dos meus dias
como um camponês o seu feixe
cotidiano de lenha
e sigo curvado sob os meus dias
também poderia dizer:
apanho o meu bacalhau de cada dia
como o pescador no rótulo
da emulsão Scott
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Felicidade
estamos no fundo da caverna
e a sombra da felicidade
bate na parede no fundo
é difícil saber em que consiste
impossível vivê-la senão
como aspiração
como sair da caverna
como alcançar a luz
chegar a ver o sol e o mundo
que ele faz luzir
como pesar o imponderável
como sonhar de olhos abertos
e alcançar o indizível?
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Feras
meu enorme assombro
diante de cobras e lagartos
minha incapacidade de agir
frente a essas feras
que não nascem naturalmente
das selvas nas quais um Peri
um São Francisco
poderia dominá-las
mas do interior das pessoas
do interior inabalável
do seu desejo e ódio
que elas mesmas ignoram
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Festim
a vida essa insidiosa
não é possível viver sem cuidado
tomar Tróia com lança e frágil escudo
bêbado de bom vinho
e do amor dos deuses e dos excelentes
companheiros
antes é preciso olhar para os dois
lados da rua
não sair sem guarda-chuva
guardar o pescoço com cachecol
a vida essa dádiva perigosa
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Filhos
coisas que os filhos pequenos
não percebem nos pais
seu péssimo gosto musical
seu conservadorismo político
seu temor diante da vida
sua casca grossa entretanto
salta logo aos menores olhos
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Fogo
tão profundos somos
tão aéreos em nossos elementos
primordiais
tão profundo é o que comunicamos
que subimos e descemos
nunca os mesmos
como o rio em que nos banhamos
somos e não somos
que mais que a terra ou o ar
a água do mar saudável para os peixes
e salgada demais para nós
o fogo nos convém como origem
e destino
como passagem
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Força
nem sempre as pessoas fortes
têm a excelência a arethé
mas ao fraco custa ser bondoso
muitos fazem da sua vida
o reino dos infernos
e se vingam maltratando
quem é do coração
depois não sabem o que fazem
o que são ou sentem
confusos se perdem cruéis
nas suas lembranças
são mães pais amantes
não são indiferentes
são antes maus sem perceber
espalham seus males
como se fossem nossos
e à bondade chamam fragilidade
e nos julgam frágeis
quando apenas observamos
sua confusão
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Frágil
às vezes sem razão aparente
sinto minha vida frágil
meu peito uma caixa dolorida
os passos errantes
ou excessivamente cuidadosos
mantenho-me à tona da vida
como quem já vai embora
já disse as suas palavras
e agora se encontra com um silêncio
infinito
feito de delicado medo
andando pelas calçadas
com os passos quebrados
a vida museu do cansaço
do dito e do recolhido
e que agora passa
porque nesse dia a força me deixa
sem razão aparente
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Fé
da inteligência extrema de Agostinho
à fé agreste e sebastianista do Conselheiro
todos escolhem o que podem compreender
escolhem seu caminho no mundo estranho
conciliando ou não fé e razão
ou o fazendo com dificuldade
congregando ao redor quem pode
seguir o caminho que abrem
mas que um dia talvez se feche
com um crime como a da Tolerância
e Civilização republicana contra a Humanidade
ou com uma fé anacrônica
e sem alma como a de tantos hoje
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Fé
Deus o Grande Relojoeiro
criou um universo falível
no qual os astros se comportam
com surpresas
e o grande princípio regendo
os elementos e a vida
é o da incerteza
no qual os seres humanos
em seu pequeno planeta
tão favorável
têm permissão para destruir
tudo que é necessário e bom
das grandes florestas a relações humanas
das bolas de gude
à temperatura ideal para a vida
e as crises irrompem
no universo paralelo do dinheiro
com a licença dos tufões
nunca a fé foi tão necessária
nunca esse Deus artesão
precisou de tanta ajuda
de tanta compreensão
aos seus bons propósitos
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Garibaldi
1
eu era um homem do mar
mas face aos enigmas da terra
restava-me o céu
este grande livro no qual me habituara
a ler meu caminho
2
a coragem foi meu nome
e o amor pelos homens
pela liberdade e pela pátria
os amigos reconheci em um olhar
sofro por aqueles que se foram
em um lugar ignoto demais
para que eu coloque como sua cabeceira
uma cruz
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Garrett
o humor a ironia a crítica social
a escrita anti-convencional
digressiva
que amamos em Machado
não se encontra no romantismo pátrio
mas está em cheio em Garrett
do Viagens na Minha Terra
um livro no mínimo magnífico
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Garça
a garça se recolhe toda sobre si
e encolhe uma perna na beira do rio
porque como o sapo da cantiga
também está com frio
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Glosa
esses poemas glosas marginais
às dificuldades de vida
essa que não se inventa
e não pode ser como
um conto em que tudo
é verdadeiro e exato
porque é inventado
a vida que custa tanto
a se fazer e a se explicar
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História
a vida não se explica em um instante
é uma longa história
que se conta devagar
uma conversa puxando outra
como as noites de Sherazade
o mais importante é que as aventuras
se sucedam mesmo sem sentido
e se espante o olvido
se espante a morte anunciada
e apesar dos enganos e das ilusões
se goste desse turbilhão
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Homens
eu gostaria de acolher em mim
os homens e mulheres de todos os tempos
em especial os do futuro que anseio
por ser um desafio para o agora
mas também os da antiga Grécia
e antes do Egito e da Palestina
da Índia e da China sábias
os seus sábios e poetas
seus amantes do divino
mas também e principalmente
o homem rude que orou como soube
e sem saber foi rude mas amou
essa é minha pátria
os homens e mulheres todos
e os demais seres
que na sua natureza alçaram-se
também ao cosmo
e nessa pátria quero orar
aspirando com todos
a outra paria terrena que em nós
de alguma forma conviveu
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Incômodo
quando se vai envelhecendo
crescem os incômodos
era uma delícia tomar chuva
depois um bom chuveiro
hoje o corpo se retrai
à idéia de que possa chover
e a aragem da noitinha
que trazia as damas-da-noite
hoje é sinal seguro de resfriado
sempre se fica à espera de um achaque
se algo não corre como em céu de brigadeiro
o humor deteriorado
a falta de força
ah a chatice da idade!
mas não em todos os que envelhecem
hà os que ficam velhos cantando
crendo em Deus e na vida
cercados de netos
escrevendo livros ou fazendo bolos
talvez se possa decidir
o velho em que nos tornamos
sábios como chefes tribais africanos
ou desolados e sós
mas como decidir?
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Intenso
assim intenso
corda de violino soando
contra o vento
assim intenso
arco teso mirando
o cego firmamento
assim intenso
ânfora mármore alaúde
rompe a crosta
do álacre ataúde
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José Lins do Rego
Para Selma
a cadência repetitiva das situações pessoais
no plano dos conflitos locais
a exaustiva descrição interior dos personagens
pelos ângulos infindos de suas relações
a falta de pressa em observar e dizer
o que a história é
de que história se trata
de que gente de que lugar
a monótona e crescente asfixia
que priva os personagens de soluções
que não as contidas em situações limite
a escrita exata que contém
não obstante os labirintos da trama
o regional universal do amor
da angústia da saída impossível
configurados nos heróis dolorosos
este é o melhor José Lins do Rego
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João e Maria
no tempo em que beber
desmerecia um homem
no tempo em que a bebida
bastava como o elixir
dos tristes dos desesperados e dos alegrinhos
e se punha desfecho em situações
ambíguas com uma pá de cal
no tempo em que jogar era um vício
e não a regra do jogo
e se voltava de madrugada
em plena São Paulo
dedilhando ainda o violão
no tempo em que os bons cowboys
fumavam como se suspirassem
e todos tinham um segredo
guardado a sete chaves
João e Maria viviam uma tragédia
com método e rigor
não com essa descontração toda
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Julgamento
ai de mim se tiver de mostrar-me
um homem bom no dia de meu julgamento
se neste dia tiver de mostrar-me
um homem justo e amante da justiça!
porque na maior parte do tempo
jogamos fora as nossas chances
atiramos fora a nossa condição
de pobres carentes de salvação
mas haverá um julgamento?
ou iremos como alguém
que nem é necessário considerar
sériamente?
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Lagartos
lagartos imóveis na via férrea
teciam uma aura de tardes
de faroeste
muitos anos vivi essa letargia
no lento amanhecer da adolescência
a rigor sem tempo
pura nostalgia muscular
puro corpo pura sensação
que depois redescobri nas aventuras
de Tom Sawyer e Nick Adams
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Legião
plurais e conflituados
nossa alma guarda
um demônio chamado Legião
como o que habitava o endemoninhado
e que a Jesus deu seu estranho
nome coletivo
Legião
porque somos muitos
e quase não cabemos no mundo
nem nosso nem alheio
e rogam por nossa cura
mas não há o que curar
há que viver
que há muito Jesus se foi
com seu incompreensível poder
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Luzes
os antigos veneravam
o sol a lua e as estrelas
porque sem eles o mundo
seria tenebroso
assim a sabedoria era uma luz
que eliminava as trevas da alma
o próprio Eu Sou surgiu a Moisés
na sarça ardente
como fogo
e o nosso logos para os gregos
era o elemento fogo
porque inquiria o cosmos
e o acendia na humana precariedade
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