Adriana Calcanhoto pergunta em uma bela canção para quê servem as canções. Utilitáriamente nada, talvez. Servem ,como as crianças, para nosso deleite. Poderia perguntar também para quê servem os poemas. Para nada, também, de um ponto de vista prático. Podem até ser nocivos, diria um cultor de Platão .Mas eu penso que escrever poemas pode ser um exercício diário de compreensão do dia e da vida, e mesmo um exercício de transformação, da vida e de quem escreve.
Escrever poemas é uma pequena magia, com truques,regras, uma tradição respeitável , embora esteja longe atualmente do centro do palco das artes. Ocupa um lugar limítrofe em relação à música e ao romance ou o cinema. Mas um lugar de poder. Desde que aprendi a manusear um microcomputador o hábito que me vem da adolescência de escrever mudou-se num diálogo cotidiano com uma lista de amigos que às vezes comentam o que escrevo por correio eletrônico ou nos encontros na cidade.
Para mim é uma arte de conviver com amigos diletos e com a inferência que faço a partir deles do que são as pessoas do mundo, ou do que podem ser.Também é uma arte de autocura de minhas dificuldades. Hoje tenho cinqüenta e seis anos, lendo desde os cinco e escrevendo em jornal de colégio desde os sete. Não à toa me tornei professor e passo muito tempo lendo sem maior propósito claro que fazer só isso mesmo,ler. E de vez em quando sento e escrevo.
Meus poemas mudam com minhas leituras, amizades, dificuldades, descobertas, com tudo que é meu. É um apossamento do meu e um reconhecimento. Não sou vaidoso nem aumento meu talento.Meus versos são sobretudo versos de circunstâncias, que têm o curioso hábito de repetir-se e tornar-se uma pedra no caminho ao mesmo tempo banal e metafísica, para lembrar o poema de Carlos Drummond de Andrade. Os versos que neste e-book seguem foram escritos em 2008, durante o segundo semestre aproximadamente. Publicando-os dou-me a mais gente do que faço em meu cotidiano, e já não sem tempo.
Curitiba, janeiro de 2009
Acertos
conversando com meu filho
ou cuidando do que vem
coleciono meus acertos
na vã esperança de não mais errar
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Agostinho
1
a vontade faz com que a história
seja a um tempo memória
e nostalgia do futuro
2
até o final levarei em mim
meu joio e meu trigo
então serei peneirado
que eu alcance graça
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Alambique
as pernas sempre nos rios
peneirando ouro
nos serros frios das minas
os escravos não tinham para aquecê-los
nada além da cálida aguardente
por muito tempo a civilização nacional
esteve amparada na mandioca
esse "pão da terra"
e no alambique
sem esquecer o generoso fumo
para os quais ainda hoje
há poucos substitutos disponíveis
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Alegria
as pessoas estão cansadas de seus pecados
de ser consideradas pecadoras
mas é difícil não praticar tantos erros
não vê-los como erros
temos liberdade de agir de uma ou outra forma
mas falta compreensão sobre cada ação
por isso a luminosidade de cada ser existe
dentro de um arco de tolices
é preciso desmontar o arco
ser feliz
mas isso exige muito nesses tempos
em que ser livre paga sempre seu preço
ser feliz é uma conquista
não é intrínseco a cada um
ver sua íntima felicidade
possível
como ela está sempre aí
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Alma
a alma não é um congênito
apêndice do corpo
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