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Catálogo de Poemas (página 2)

Igor Zanoni Constant Carneiro Leão
Partes: 1, 2, 3

Nossas tantas infelicidades

Tudo trouxemos

Como se tivéssemos trazido tudo

Tudo isso eu digo com palavras

que por assim dizer são suas

Pertencem ao seu modo de entender

O mundo

Mas não deixo de fazer um esforço

No sentido da sinceridade para comigo

Eu quero dizer algo de mim que você não sabe

E é nesse limite em contínua construção

Que se move uma amizade

Talvez seja um poeta

Ou um filósofo

Ou um matemático

Se ele for sincero e profundo

Talvez não seja também encantador

Mas quebre encantos

Um verso uma equação

Um aforismo

Podem conter da mesma maneira

A sinceridade e a profundidade

E falar de quase que para você

É tudo

E também para ele

Ela se aproximou com leveza

E disse estar decepcionada

Este é bom sinal pensei

A certeza não espera sempre desilusão

Espera das pessoas o que lhe convém

Sinceridade relações recíprocas

Ela se aproximou com segurança

A sua decepção lhe deu autoridade

Falou comigo como uma igual

Apesar da tristeza

Como é que o senhor faz isso comigo?

Fiquei muito sentido

Que sorte

Todos os dias você examina

Antes de adormecer

As imagens do dia

Separadas uma a uma e ligadas com uma fita

Para que não as sonhe

Nada mais árduo e vão

Melhor procurar uma ervilha

Sob os colchões de uma princesinha

A busca do silêncio

Tem um evidente aspecto negativo

Quem cala não diz nada

Mas deixa de contar as velhas estórias

Pode também ouvir melhor

E ver mais

Ser humano não é ser o tempo todo

Vaidoso

Nem o tempo todo conta-se

Na forma pretendida

E na medida justa

Pode ser repouso

Como a folha da grama em si

Repousa

Quando o sol bate

E criam juntos a tarde

Difícil é o quedar tranqüilo

Quando não se espera ser isto

Tão necessário

E a raiva esquece o penoso preparo

Para emergências a disposição que se julgava

Tão consumada

De fixar tardes onde só se mova

O sol das persianas sobre escassa ventura

O desejo de que a casa toda seja sem sustos

Seja antes o dicionário vivo de coisas antigas

Poços varandas pêndulos roseiras

Ou antes atemporais ou nunca de fato vividas

Que vivido foi apenas o desejo

De encontrar no mundo

A concha de uma necessidade

Sabemos há muito que é preciso construi-la

Assim nascem os natais

Mas pensávamos que já a havíamos construído

E ei-la em pedaços

Se há tristeza e pesar

Em teu coração

Se em teu rosto um rio corre

Doloroso e vão

Se há tormente em teu peito

Dor e aflição

Deixa a luz do céu entrar

Deixa a luz do céu entrar (bis)

Abre a porta e a janela do teu coração

Peça ajuda a luz do céu

Vai te ajudar

Não tente estar certa

De que sua vida está em ordem

Contando sobre as minhas anedotas velhas

Eu aceito com sincero interesse

Observações pessoais

Sobre ciosas que me escapariam

Mas até essas coisas envelhecem

E embora nem sempre mudam

Eu nunca gostei de rever pessoas

Ansiosas em saber

Que não perderam nada

No tempo que passou

Muitas vezes perdem

Já se disse que viver é perder amigos

Mas esta é uma arte

Que a sabedoria pode evitar

Quem ama e lê poesia

Precisa ir ao dentista

Ao médico fazer exercícios diários

Manter o bom nome na praça

Amar o próximo se for possível

Procurar trabalho se houver

Quem ama e lê poesia

Não compra e vende ilusões

Mas nada mais ilusório dizer

Melhor o bom nome

E a bela aparência

Que amar e ler poesia

Quando o dia parecer escuro

E o caminho longo e mau

Quando você não encontrar um amigo

Que agüente a sua choradeira

Se Canaã estiver longe

Se o dinheiro estiver curtíssimo

Não procure nos classificados

Não procure umas moedas para ir à Igreja

Não tente ser mais forte do que é

Peça arrego

Há sempre alguém sonhando com alguém

Mesmo que seja com você

Do lado esquerdo da porta do quarto

Perto do dossel da cama

Sobre o tapete rosa

Você poderá ver os seus sapatinhos

Azuis e suaves

Mas no qual você não põe

Os pés

Mesmo na mais breve conversa

Percebe-se logo a intransigência

Estou em déficit você em superávit

Vamos acertar as contas

Quando um quer paz a qualquer preço

E o outro se faz de rogado

Deixa as contas de lado

Desiste: com você não tem negócio

Quando as diferenças se apagam

Na abstração do valor

Façam seus jogos

O lance de dados livra quem tem razão

Com um não bebe com outro não fala

Se for poeta outros põe no Inferno

Mas pior é aquele com quem

Você não joga

É claro que a manhã não se faz

Pela rotação antiga de nosso antigo planeta

Mas pelos homens que a preparam

Desde as quatro horas

Escondendo a pequena porção de fermento

Na massa do que será depois pão

E no sono agora mais profundo

Das crianças que nele encontram

Seu ser íntimo e a partir dele são preparadas

Em seu futuro

Mas também no que morre

No que levamos felizes ao cemitério

Porque pode viver e porque já não pode

Mas também nessa pérola

Que é relação e anbigüidade

Em sua concha

Sob a mão de quem acaricia

E como pode detém

O mar

Você não espera nada

E isto não é uma forma de desesperança

Mas uma tentativa de ser

Um vaso apropriado à vida

Uma argila onde sopre um oleiro

Sentado em seu banquinho

Cercado dos seus materiais onde outros

Colocarão azeite ou arroz

Ou flores

Ajustando os óculos

Dosando a força a pressão o suor

Chegando mais para fora do quarto

Quando o sol é mais forte

E é ativa paz e contentamento

Você sempre foi um instável parceiro

Em conversas que entretanto

Longe de ficarem pelo meio

Seguiram no que você é par mim

E no que eu talvez não seja para você

Não ainda

Talvez nunca

Não se muda o curso de um rio

Que corre quando quer

Quando eu me perder de mim

Quando tiver a horrível sensação

De não me localizar na paisagem

E não souber em que bairro

Em que rua

De minha alma esteja

Quando eu perder a confiança

Que dá uma cidade conhecida

Mesmo quando sombria

E as pernas perderem o senso de direção

Os recursos para me manterem em pé

Sem vertigem

Me busque sem que eu peça

Eu não sei pedir

Nem sempre sei se estou perdido

Me guie me telefone

Estou me despedindo

Dando adeus a tudo isso

Que não conheço muito bem

Mas que não está escrito nas estrelas

Talvez um dia tenha saudade

Talvez não

Estou indo embora

Muito de tudo irá comigo

Com certeza

Mas talvez não muito

É preciso aprender a esquecer

Ressignificar os sentidos

Os sentimentos

E mesmo sozinho

Sentir-se ao menos consigo

Alberto

Ele fechou o enorme guarda-chuva negro

Pediu um expresso grande sem leite

Acendeu um cigarro com a mão trêmula

Sorriu como pôde

Fez um comentário inesperado mas apropriado

À conversa

Sobre o eterno retorno e o espaço curvo

Leu o cabeçalho do jornal balançando a cabeça

A uma pergunta minha

Opinou que não havia espaço para a política econômica

E que tudo era lixo

Deixou que eu pagasse o café

E seguiu caminho

Mas sua longa sombra na rua

Ainda me acompanha

Quando a gata descobre

Uma isca de sua comida favorita

Na cozinha

Nem se pergunta de que frango caiu

Esse pedaço de céu em sua boquinha

Você olhava para o mar e sonhava

Vai passar

Eu olhava para a terra e sonhava

Vai passar

Estamos cansados

Há muitos desejos no ar

Estamos no limite

Não quero ser o imperador da terra

Nem você a rainha do mar

Não vamos morrer abraçados

Ser dois não é ser

Uma a um separados

Estou aqui e você vem

Sonhar é bom

Mas nem sempre convém

O amor gosta de conversa fiada

Fica querendo a coalhada com nata

Que não existe mais

De uma confeitaria que fechou

O amor devia ser mais prático

Dar um duro por aí

E no sábado à noite me levar para dançar

Guardar um dinheiro para umas férias

Em Paris

Eu só quero dizer uma coisa

Não pense que é fantasia minha

Nem que são as flores artificiais de uma canção

Embora eu seja um paulista

Movido a rock americano

Falo com este corpo que você toca todo

Com que este nariz que te cheira

Quero dizer que te amo inteiro

E mais meio

Tive de ser inventivo

Plantar violetas em aquários

Fazer de caleidoscópios calendários

E dar todo meu ouro às aranhas

Anotei cuidadoso o itinerário das formigas

Escondendo o doce nos meses certos

E no inverno aproveitei meu nariz escorrendo

Para chorar na cama

Descobri também que a chave do armário

Abre a porta dos fundos

Enfim foi um ano bom

Para quem gosta de ter trabalho

De manhã tudo está mais calmo

Os rouxinóis vão dormir

E Romeu e Julieta se separam

As pessoas põem a cara na janela

Par ver o tempo que está fazendo

Ninguém quer ficar doente

Ninguém espera morrer

O professor mastiga sua aula

Pensando no pãozinho fresco

Molhado no café

O aluno não pensa em nada

Que á passou a época das provas

O atleta com um resto de sono

Sente o corpo forte e relaxado

Se é domingo o padre reza missa

Todos ficam quietos que é dia santo

E a missa caba logo

O burro come sossegado o capim

Que hoje seu dono não sai

Mas se não é domingo

Há pessoas que tomam logo cedo

Um pingado com vodka

E os que acham que conhecem a estória

Embrulham a cara no jornal

Mudos turvos sem esperança

Nas margens dos canteiros dessa praça

Rolava entre garotos as contas de um colar de Shiva

Das quais dependia uma viagem

Antes de realizar o sonho do pai

O pai atento às contra-informações

Plantadas no jardim da casa

Que seu filho construiria

Pai e filho discutiam se a macrobiótica

Prevenia efeitos das radiações nucleares

Que segundo o pai impediram e dissuadem

Uma guerra interminável

Eram tempos em que pais e filhos discutiam

A política externa e interna da casa

No frio dessa praça o filho

Compra hoje um gorro colorido de tricô

De uma senhora talentosa e sem dinheiro

Com quem jamais conversaria sobre viagens

Que Shiva a tenha nos braços enquanto dança

Eu andava desavisado

Andava muito distraído

Eu ia na verdade belo e formoso

Estava pensando que era o máximo

Não prestava atenção

Mamãe dizia mas eu não liguei

Eu juro não estou mentindo

Mas felizmente eu caí das nuvens

Eu poderia dizer que cai de quatro

Mas fico melhor dizer

Que eu caí em mim

Meu pai tinha uma fé inquebrantável

Na vida depois da morte

Minha mãe

Na vida nesta vida

Entre elas vivi pré-socrático

Ora banhando-me no mesmo rio

Ora mudando de rio

Quando eu queria

Quando o chuvisco cinza de maio

Apaga a outra margem do bairro

A casa entra no repouso

Das portas e janelas abafadas

Pelo medo ao vento encanado

E no cheiro sem fim

Das camadas de sopas e frituras

Do café na garrafa térmica

Das roupas que não se pode lavar

O menino instalado em férias imprevistas

Diante de televisão não quer tomar banho

O avô anda sem trabalho por causa do mau tempo

Toda a casa interrompe a fadiga de todos os dias

Só se levantando para certificar-se do que é certo

Que atrás da janela o chuvisco cinza de maio

Deixa a casa suspensa fora do bairro

Livre das imposições de outubro ainda distante

O verão as festas de fim de ano

Os novos cantos o absurdo que se gasta

Na praia

O pior trapaceiro é o que não joga

Com o baralho alheio

Um prédio é alto demais

Quando você não se vê em baixo

Há mais desilusões sentidas

Que certezas não levadas em conta

Quem decide ser feliz

Não precisa de consolo

Ando por minha rua de infância

Tão distantes uma como a outra

Em minha vigília e meu sonho

Inseparáveis

Nesta calçada outonal de Curitiba

Entre seus atores

Que ela é sobretudo palco

Mais ou menos sãos

Mas há momentos sem linguagem

Entre o dormir e o acordar

De sublevação da imagem

Por onde foge

Esta rua este outono

Este são este doente

Este que sonha

Com uma cidade unívoca

Presa entre palavras

As duas mocinhas e a mãe, muito senhoras,

colocaram casaquinhos com gola

e foram passear no Jardim Botânico

por um pouco os narizinhos de fora

repartindo entre si como uma trindade

seu inefável coração sossegado

não olharam ninguém e desdenharam

uma teutônica exposição de plantas raras

preferindo o ar frio e rumoroso

dos domingos curitibanos em todas as épocas do ano

com sabedoria ferina porém se toucaram

com esquisitos sabonetes talcos e perfumas

que os homens mais frios se voltaram

desafiados em pleno outono

por essa augusta primavera que entre nós andava

As palavras de queixa são doces

Falavam de uma menina que você ainda espera

No espelho dentro do armário

Neste calor

Interrogativa você seguia dentro de dores

Suspensa

Mas conseguia dormir entre lágrimas

Que bom poder chorar

Agora ninguém tolera esse comportamento

Segura o choro acerta o relógio

Olha o filho

Que não chorem juntos

Quando a bola veio pelo alto

Matei no peito

Deitei na grama

Lancei o ponta

Mas quando ele jogou na área

O lance já não era

Comigo

Damos as mãos

E cruzamos os dedos

Viver seja sempre recontar

Mas então vivemos o amor

Que antes e depois buscamos despedaçados

Mas basta este raro então

E essa feliz possibilidade de contar

Com a infelicidade de ao mesmo tempo

Limitar o contado

Que a vida são vidas

O que agora contamos

Não seja sempre nossa vida

Para sempre amém

A disciplina militar impõe

Entre seus exercícios

Ó pensar solitário

Sobre a lógica e as incertezas

Da guerra

E nunca deixa que ele se torne

Por completo paisano

Mesmo sob uma árvore entre pássaros

Entre os meninos e os serviçais

A arma sempre ao alcance

O riso preciso que o uísque não altera

Tomando por interlocutor sua sombra

E aquelas de cujas mãos em sangue e placenta

Saiu a pátria

entre as anedotas que conhece

As incertezas que todavia busca

esclarecer

Na biblioteca cuja porta

Só ele conhece

E a lógica que se tornou

O incessante martelar dos tipos de imprensa

Do grilo dos pássaros

E o que menos possa ser revelado

Ou olvidado

A terra já deponho minha lança

Meu passaporte

Meus diplomas

Minhas roupas de cada ocasião

E me faço tranqüilo e completo

Uma pequenina minhoca enrodilhada

Eu um anzolzinho de ouro

Guacira

Entre as pessoas que abrem sua corrente

Às mãos que descem formando lentas

Uma concha

Uma concha surda ao mar

Nele envolta nele viva

Nele respirando aquisitiva

Ela esqueceu as apostilas

O horário de aula

Dobrou o joelho sob o sari

E talvez tenha experimentado

A possibilidade

A doçura

Fechando a mão sobre

O papel da bala

Sem que eu saiba

A razão e os meios

A rosa o firmamento

Permanecer te amando

O verbo de ligação apoiando

Como Atlas a casa em que mais cedo

Guardei meu pai minha mãe meu gato

Procurando você duas quadras ao lado

No seu José fabricante de doce de leite

Você sentada na varanda a cabeça dolorida pendida

Entre as mãos de outro que te amou não menos e melhor

E está como estamos na calma desse quadro imóvel

Querida sinto imensamente meus descuidos

Meu velar doido

Que há a máquina do mundo emperrado

Em meu ombro

E eu não tive a sabedoria e a calma

Não esqueço algo vela por nossa

Insensatez e obriga que nos busquemos

Nessas mãos que não seguram

Nesse avoamento

E é um oculto desejo de integridade

De terra e firmamento

Os ratos não fazem apenas sua crítica roedora

Tão necessárias ao aconchego de suas alcovas

São hábeis também em minuciosos exames

De tudo que lhes cais nas patinhas

À luz de velas do sebo que roubam no açougue

Quando gostam de uma passagem dão prazerosos guinchos

Não tão altos que denunciem ratos na casa

Se não gostam murmuram graves crunch crunchs

E recordam os felizes tempos da Peste Negra

Sob o neón do abajur

Cintila seu olho vermelho

Viajando imóvel na noite

Tentando entender

Descobrir qual é e de quem é

A culpa

Entre o nariz e a boca

A lágrima fendida

Se ergue sobre territórios

Que ninguém percorrerá

Profundezas abismos

Névoas estradas interrompidas

Talvez seja mais simples

Você tem boas pernas

E gosta de conversar polidamente

Deixe passar o incômodo

Com uma água com açúcar

E não se esqueça de uma vez

De que as mães jamais

Têm razão

O jogo

Vi despontarem no campo minado

enfisemas suicidas

Mas me mantive firme com mão vazia

E outra vez pus o nome na lista

Dos que tentam a sorte

Perder é humano

E o dia um catálogo de impossibilidades

Embora tudo se compre venda e financie

Tantas canções de amor não esgotam o seu tempo

Mas elas nem tentam

Mesmo os corações são tão diversos

Cala-se um pouco fala-se um pouco

Mente-se um pouco...

Canta-se

Saí

Fechei atrás de mim aquela porta

E de minhas mãos caídas uma flor morta

Ignorante da primavera que sorria

Na rua

Eu também estou tentando

Entender melhor minhas impressões

Desse espaço inquieto

Dessas janelas quase sempre fechadas

Essa metódica relação

Entre quem é cioso

De sua responsabilidade

À moda da casa

Como o pão caseiro

E a irritação frente ao desejo

De viver das crianças

De quem já quase não vive

Proíbe o pão da padaria

O ar fresco e noturno

A possibilidade de que as crianças

Sejam e se vejam

Numa iluminação

Em uma intransponível

alteridade

Sempre há a incerteza

Mas o coração é sobremodo vulnerável

À esperança

E quando seu amor se gasta

Tão fácil vem como se vai

E descendo bastante fundo

Encontramos amores não sabidos

Mas vividos

Não posso remediar

O que não houve entre nós

Não creio em ti

Não creio em mim

Não posso mentir

Palavras o vento leva

Trazendo a tempestade

Tolice fugir

Abrir guarda-chuvas

Esquecer a verdade

O passado não houve

O futuro não houve

Nosso agora é invenção

Dançamos a sós

Essa canção

1

Rosana se desdobra na rosa dos ventos

Inscrevendo minha direção no mundo

2

Quando eu dormir fora de hora

E acordar sem saber que horas são

Eu te telefonarei

Quando eu não puder conter minhas lágrimas

Perseguido num vale sombrio

Eu te telefonarei

Quando uma canção dos Beatles

Me recordar as doces ilusões da juventude

Eu te telefonarei

Quando peregrino me perder no caminho

Estreito

Eu te telefonarei

Eu não me desesperarei

Eu sempre te telefonarei

Você foi a única pessoa na minha vida

Que percebeu minha loucura e deu o fora

Mas continuou ligando pedindo dinheiro

E em atribuindo todas as culpas de que você padecia

Você foi a única pessoa na minha vida

Que percebeu que eu tinha ao menos minha loucura

E não precisava provar nada a ninguém

Que você ao contrário era uma régua de cálculo

Num mundo incalculável

Uma magnífica desolação

Há noites estranhas

Que não se seguem a um dia

Mas a uma lenta declinação

De verbos dos quais se rouba

O indicativo passado

Mesmo que imperfeito

E um silêncio rumoroso

Se instala na sala

Entre a televisão e a geladeira

Objetos intransitivos impassível

E bebemos de joelhos

Como um prisioneiro

O gol a cervejap

O pensamento que não se interrompe

Tio Moriah

Uma visita basta

O terno de linho 90

O insólito Aero Willys

O que foi dito não mais se sabe

Não há ninguém para lembrar

Mas se somam aqueles sorrisos

A comentários breves

Ressentimentos curiosidade

Um desvio na conversa caseira

A casa de eu menino

Casa de meu pai

Linhas breves de um conto inconcluso

Cujo sentido

E querer saber

É imperioso desejo

Nelas vidas imperiosas

Cujo salto são instantâneos incompreendidos

E que entre as mãos

Faltam fazem falta

Cifrados nos retratos

As dimensões da história natural

Nas quais uma estrela luz e apaga

Sua inconcebível duração

Os séculos e decênios nos quais

Os historiadores se especializam

Entre a vida dos césares

E a vida material no Mediterrâneo

Os ciclos de Kondratieff

Sob a lógica implacável do progresso técnico

A um tempo mito criador e destruidor

São todos impróprios para a definição

De uma só vida

Que antes exige o imperceptível momento

No qual por exemplo

Robinho sente que o zagueiro

Não vai chegar na bola

Domingo

1

Se você perder a aposta

A loteria abrirá de novo amanhã

São José sem braços

Padroeiro das digitadoras

Protegei os que apostam

Sem chance

2

Busco minha margem

Minha varanda de ar

Essa nota específica

Que faz de uma canção um blue

Essa contradição que me induz

Em crescentes mentiras

Nessa aragem da madrugada

Entre caranguejos azuis

E peixes-espada reluzentes

Digo sem poder escolher

As coisas que amo

Na maré vazante

3

Não pode contar bem uma história

Quem está fora dela

4

Não porque mancam são mancos

Podem só ter jogado o futebol de domingo

Não por que se varrem pátios se varram

Doidos varridos

Não porque bebo com você temos o mesmo pileque

Embora às vezes tentemos

Não por que dirijam kombi são monges ou feirantes

Embora ambos vendam seu peixe

Noturnos

1

Sempre que você me telefonar

Vou ter de situar-me conscientemente

Neste crítico século XXI

Na tua dramática existência

E dar toda razão quando dizes

Que não sou santo

2

Duas vezes você já me chamou esta noite

Medi sua febre sarei com chá sua cólica

Mas você precisa me chamar de novo

Me chamar sempre

Entretanto isso o assusta

Precisa de certeza de que eu estarei aqui

Quando você precisa de outro lugar

Diferente do meu

Quando você quer ir embora

Quer dizer adeus

E algo subsiste

Você quer abolir o tempo a história

A esperança a descida a ascensão

Dorme agora

Não me chame outra vez

Ivan

Em Itatiba há a maior concentração de bares

Por habitantes de todo o interior paulista

Reluzindo o velho resplendor dos fins de semana

Entre rollmops e cana com fernet

Engastado como uma jóia

No lustre encalacrado

Nas noites inconclusas

Na sábia ignorância

Dos freqüentadores que não se habituam

E sonham

E bebem

Demian

1

Ao velhos garotões surrados

Nos seus momentos mais íntimos

Não abrem mão de um uráia rip

Mas no dia a dia ouvem sound garden

Enquanto caminham com os tênis mais invejáveis

Por qualquer um com espírito jovial

E pulmões ainda em ordem

Quando falam usam um dialeto irrequieto

Que os mais novos não conhecem

Mas sabem respeitar as ênfases

E os acentos tônicos e a métrica

Nunca foram tão austeros

E jeans lavados toda semana

A camiseta festiva que seu amor deu

Seu nirvana tatuado no peito

Inspirará os bodisátivas de amanhã

2

Os homens turvos e difíceis

Quando dizem maçã

Fazem-no de modo tão completo

Que uns entendem romã

outros urbi et orbi

Os mais sutis agradecem

As possibilidades ensejadas

Por um jogo sério

Desenhado com método e rigor

Por um ser estranho

Como Jonh Coutraine

Talvez porque nada daquilo

Lhe dissesse respeito

Os risos amenos o vinho

A leve música

Ela se retirou para chorar

Como se estivesse pronta

A abandonar o mundo

E seguir um destino há muito pressentido

Mas ainda não descoberto

E suave como um anjo

Deitou-se vestida sem desarrumar a cama

Sem desejar boa noite a ninguém

Sentindo que talvez devesse mesmo pedir desculpa

A alguém

Como se suportasse mal aquele cálice de fel

E devesse suportá-lo com bravura

Como uma menina que não tem

Medo do escuro

Uma menina só

Com uma lágrima surpreendente

E incompreendida

Assustada diante da sua dor

O lume que aquece os nossos corações

Mantém a fênix da esperança

Nos puros do Dr. Josino

Na despensa do Demian

No meu vinho

No teu riso

No nosso insondável chão

Às vezes, pensa Nádia,

É melhor não se explicar

Nem entender mas ficar zen

E pensar nos amigos

Com seus códigos secretos

De honra e de juramentos

Identificar a estação do ano

Por seus cheiros suas frutas

Sua temperatura

Que a conversa dos amigos

É a mesma sobre os somenos

Que o resto está de mais

E evitar ter para com os filhos

O originário fatalismo dos pais

O cigarro não basta

Continua na linha azul

Que dissolve o quarto

E em outros cigarros

Incontáveis no sentido exato

De que cigarros não podem ser contados

De que não se contam os quartos

As noites

E nada basta

O álcool o amor a música

Ás mãos que não dão conta

A estrada liga dois pontos

Partida destino como pode

Segundo a geografia e o orçamento federal

Mas a estrada a geografia o orçamento

Não bastam

Ouço severos juízos

Os erros que cometi

Que cometo

Estão certos mas para mim não bastam

E sigo

O amor é egoísta

O amor se engana

O amor chega cedo

Ou tarde demais

Mas enquanto houver homens

O amor lhes dirá suas palavras

E se houver anjos

Um dia falarão sua língua

Sexta

Noites batidas claras em neve

Açucar agosto setembro sempre

Cerveja nunca o bastante

A companhia que não disse a que veio

A música que não diz tudo

O cigarro o bombom o batom

O beijo prometido que não veio

O beijo que prometi em vão

Curitiba Curitiba ai de ti!

Em volta da rodoviária

Estão os bares dos que não tendo casa

Não têm gala e cômodos estares

Bebida não se escolhe

Mulher antes não tivessem

Meninos vem do cinema

De metais e das mesmas estórias

A vida é um promontório

Do qual se contempla o que o mar

Concedeu aos velhos cascos

E aos já bem novos

Domingo

1

No caminho das palavras

Uma galinha que ciscava

Virou frango assado

Vendeu-se uma geladeira

Uma aliança se quebrou

Mas uma palavra foi mantida

De coração a coração

Entre desgraças familiares

Viagens de alto mar

E recomeço

Entre juras e perjúrios

Partes: 1, 2, 3


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