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Nossas tantas infelicidades
Tudo trouxemos
Como se tivéssemos trazido tudo
Tudo isso eu digo com palavras
que por assim dizer são suas
Pertencem ao seu modo de entender
O mundo
Mas não deixo de fazer um esforço
No sentido da sinceridade para comigo
Eu quero dizer algo de mim que você não sabe
E é nesse limite em contínua construção
Que se move uma amizade
Talvez seja um poeta
Ou um filósofo
Ou um matemático
Se ele for sincero e profundo
Talvez não seja também encantador
Mas quebre encantos
Um verso uma equação
Um aforismo
Podem conter da mesma maneira
A sinceridade e a profundidade
E falar de quase que para você
É tudo
E também para ele
Ela se aproximou com leveza
E disse estar decepcionada
Este é bom sinal pensei
A certeza não espera sempre desilusão
Espera das pessoas o que lhe convém
Sinceridade relações recíprocas
Ela se aproximou com segurança
A sua decepção lhe deu autoridade
Falou comigo como uma igual
Apesar da tristeza
Como é que o senhor faz isso comigo?
Fiquei muito sentido
Que sorte
Todos os dias você examina
Antes de adormecer
As imagens do dia
Separadas uma a uma e ligadas com uma fita
Para que não as sonhe
Nada mais árduo e vão
Melhor procurar uma ervilha
Sob os colchões de uma princesinha
A busca do silêncio
Tem um evidente aspecto negativo
Quem cala não diz nada
Mas deixa de contar as velhas estórias
Pode também ouvir melhor
E ver mais
Ser humano não é ser o tempo todo
Vaidoso
Nem o tempo todo conta-se
Na forma pretendida
E na medida justa
Pode ser repouso
Como a folha da grama em si
Repousa
Quando o sol bate
E criam juntos a tarde
Difícil é o quedar tranqüilo
Quando não se espera ser isto
Tão necessário
E a raiva esquece o penoso preparo
Para emergências a disposição que se julgava
Tão consumada
De fixar tardes onde só se mova
O sol das persianas sobre escassa ventura
O desejo de que a casa toda seja sem sustos
Seja antes o dicionário vivo de coisas antigas
Poços varandas pêndulos roseiras
Ou antes atemporais ou nunca de fato vividas
Que vivido foi apenas o desejo
De encontrar no mundo
A concha de uma necessidade
Sabemos há muito que é preciso construi-la
Assim nascem os natais
Mas pensávamos que já a havíamos construído
E ei-la em pedaços
Se há tristeza e pesar
Em teu coração
Se em teu rosto um rio corre
Doloroso e vão
Se há tormente em teu peito
Dor e aflição
Deixa a luz do céu entrar
Deixa a luz do céu entrar (bis)
Abre a porta e a janela do teu coração
Peça ajuda a luz do céu
Vai te ajudar
Não tente estar certa
De que sua vida está em ordem
Contando sobre as minhas anedotas velhas
Eu aceito com sincero interesse
Observações pessoais
Sobre ciosas que me escapariam
Mas até essas coisas envelhecem
E embora nem sempre mudam
Eu nunca gostei de rever pessoas
Ansiosas em saber
Que não perderam nada
No tempo que passou
Muitas vezes perdem
Já se disse que viver é perder amigos
Mas esta é uma arte
Que a sabedoria pode evitar
Quem ama e lê poesia
Precisa ir ao dentista
Ao médico fazer exercícios diários
Manter o bom nome na praça
Amar o próximo se for possível
Procurar trabalho se houver
Quem ama e lê poesia
Não compra e vende ilusões
Mas nada mais ilusório dizer
Melhor o bom nome
E a bela aparência
Que amar e ler poesia
Quando o dia parecer escuro
E o caminho longo e mau
Quando você não encontrar um amigo
Que agüente a sua choradeira
Se Canaã estiver longe
Se o dinheiro estiver curtíssimo
Não procure nos classificados
Não procure umas moedas para ir à Igreja
Não tente ser mais forte do que é
Peça arrego
Há sempre alguém sonhando com alguém
Mesmo que seja com você
Do lado esquerdo da porta do quarto
Perto do dossel da cama
Sobre o tapete rosa
Você poderá ver os seus sapatinhos
Azuis e suaves
Mas no qual você não põe
Os pés
Mesmo na mais breve conversa
Percebe-se logo a intransigência
Estou em déficit você em superávit
Vamos acertar as contas
Quando um quer paz a qualquer preço
E o outro se faz de rogado
Deixa as contas de lado
Desiste: com você não tem negócio
Quando as diferenças se apagam
Na abstração do valor
Façam seus jogos
O lance de dados livra quem tem razão
Com um não bebe com outro não fala
Se for poeta outros põe no Inferno
Mas pior é aquele com quem
Você não joga
É claro que a manhã não se faz
Pela rotação antiga de nosso antigo planeta
Mas pelos homens que a preparam
Desde as quatro horas
Escondendo a pequena porção de fermento
Na massa do que será depois pão
E no sono agora mais profundo
Das crianças que nele encontram
Seu ser íntimo e a partir dele são preparadas
Em seu futuro
Mas também no que morre
No que levamos felizes ao cemitério
Porque pode viver e porque já não pode
Mas também nessa pérola
Que é relação e anbigüidade
Em sua concha
Sob a mão de quem acaricia
E como pode detém
O mar
Você não espera nada
E isto não é uma forma de desesperança
Mas uma tentativa de ser
Um vaso apropriado à vida
Uma argila onde sopre um oleiro
Sentado em seu banquinho
Cercado dos seus materiais onde outros
Colocarão azeite ou arroz
Ou flores
Ajustando os óculos
Dosando a força a pressão o suor
Chegando mais para fora do quarto
Quando o sol é mais forte
E é ativa paz e contentamento
Você sempre foi um instável parceiro
Em conversas que entretanto
Longe de ficarem pelo meio
Seguiram no que você é par mim
E no que eu talvez não seja para você
Não ainda
Talvez nunca
Não se muda o curso de um rio
Que corre quando quer
Quando eu me perder de mim
Quando tiver a horrível sensação
De não me localizar na paisagem
E não souber em que bairro
Em que rua
De minha alma esteja
Quando eu perder a confiança
Que dá uma cidade conhecida
Mesmo quando sombria
E as pernas perderem o senso de direção
Os recursos para me manterem em pé
Sem vertigem
Me busque sem que eu peça
Eu não sei pedir
Nem sempre sei se estou perdido
Me guie me telefone
Estou me despedindo
Dando adeus a tudo isso
Que não conheço muito bem
Mas que não está escrito nas estrelas
Talvez um dia tenha saudade
Talvez não
Estou indo embora
Muito de tudo irá comigo
Com certeza
Mas talvez não muito
É preciso aprender a esquecer
Ressignificar os sentidos
Os sentimentos
E mesmo sozinho
Sentir-se ao menos consigo
Alberto
Ele fechou o enorme guarda-chuva negro
Pediu um expresso grande sem leite
Acendeu um cigarro com a mão trêmula
Sorriu como pôde
Fez um comentário inesperado mas apropriado
À conversa
Sobre o eterno retorno e o espaço curvo
Leu o cabeçalho do jornal balançando a cabeça
A uma pergunta minha
Opinou que não havia espaço para a política econômica
E que tudo era lixo
Deixou que eu pagasse o café
E seguiu caminho
Mas sua longa sombra na rua
Ainda me acompanha
Quando a gata descobre
Uma isca de sua comida favorita
Na cozinha
Nem se pergunta de que frango caiu
Esse pedaço de céu em sua boquinha
Você olhava para o mar e sonhava
Vai passar
Eu olhava para a terra e sonhava
Vai passar
Estamos cansados
Há muitos desejos no ar
Estamos no limite
Não quero ser o imperador da terra
Nem você a rainha do mar
Não vamos morrer abraçados
Ser dois não é ser
Uma a um separados
Estou aqui e você vem
Sonhar é bom
Mas nem sempre convém
O amor gosta de conversa fiada
Fica querendo a coalhada com nata
Que não existe mais
De uma confeitaria que fechou
O amor devia ser mais prático
Dar um duro por aí
E no sábado à noite me levar para dançar
Guardar um dinheiro para umas férias
Em Paris
Eu só quero dizer uma coisa
Não pense que é fantasia minha
Nem que são as flores artificiais de uma canção
Embora eu seja um paulista
Movido a rock americano
Falo com este corpo que você toca todo
Com que este nariz que te cheira
Quero dizer que te amo inteiro
E mais meio
Tive de ser inventivo
Plantar violetas em aquários
Fazer de caleidoscópios calendários
E dar todo meu ouro às aranhas
Anotei cuidadoso o itinerário das formigas
Escondendo o doce nos meses certos
E no inverno aproveitei meu nariz escorrendo
Para chorar na cama
Descobri também que a chave do armário
Abre a porta dos fundos
Enfim foi um ano bom
Para quem gosta de ter trabalho
De manhã tudo está mais calmo
Os rouxinóis vão dormir
E Romeu e Julieta se separam
As pessoas põem a cara na janela
Par ver o tempo que está fazendo
Ninguém quer ficar doente
Ninguém espera morrer
O professor mastiga sua aula
Pensando no pãozinho fresco
Molhado no café
O aluno não pensa em nada
Que á passou a época das provas
O atleta com um resto de sono
Sente o corpo forte e relaxado
Se é domingo o padre reza missa
Todos ficam quietos que é dia santo
E a missa caba logo
O burro come sossegado o capim
Que hoje seu dono não sai
Mas se não é domingo
Há pessoas que tomam logo cedo
Um pingado com vodka
E os que acham que conhecem a estória
Embrulham a cara no jornal
Mudos turvos sem esperança
Nas margens dos canteiros dessa praça
Rolava entre garotos as contas de um colar de Shiva
Das quais dependia uma viagem
Antes de realizar o sonho do pai
O pai atento às contra-informações
Plantadas no jardim da casa
Que seu filho construiria
Pai e filho discutiam se a macrobiótica
Prevenia efeitos das radiações nucleares
Que segundo o pai impediram e dissuadem
Uma guerra interminável
Eram tempos em que pais e filhos discutiam
A política externa e interna da casa
No frio dessa praça o filho
Compra hoje um gorro colorido de tricô
De uma senhora talentosa e sem dinheiro
Com quem jamais conversaria sobre viagens
Que Shiva a tenha nos braços enquanto dança
Eu andava desavisado
Andava muito distraído
Eu ia na verdade belo e formoso
Estava pensando que era o máximo
Não prestava atenção
Mamãe dizia mas eu não liguei
Eu juro não estou mentindo
Mas felizmente eu caí das nuvens
Eu poderia dizer que cai de quatro
Mas fico melhor dizer
Que eu caí em mim
Meu pai tinha uma fé inquebrantável
Na vida depois da morte
Minha mãe
Na vida nesta vida
Entre elas vivi pré-socrático
Ora banhando-me no mesmo rio
Ora mudando de rio
Quando eu queria
Quando o chuvisco cinza de maio
Apaga a outra margem do bairro
A casa entra no repouso
Das portas e janelas abafadas
Pelo medo ao vento encanado
E no cheiro sem fim
Das camadas de sopas e frituras
Do café na garrafa térmica
Das roupas que não se pode lavar
O menino instalado em férias imprevistas
Diante de televisão não quer tomar banho
O avô anda sem trabalho por causa do mau tempo
Toda a casa interrompe a fadiga de todos os dias
Só se levantando para certificar-se do que é certo
Que atrás da janela o chuvisco cinza de maio
Deixa a casa suspensa fora do bairro
Livre das imposições de outubro ainda distante
O verão as festas de fim de ano
Os novos cantos o absurdo que se gasta
Na praia
O pior trapaceiro é o que não joga
Com o baralho alheio
Um prédio é alto demais
Quando você não se vê em baixo
Há mais desilusões sentidas
Que certezas não levadas em conta
Quem decide ser feliz
Não precisa de consolo
Ando por minha rua de infância
Tão distantes uma como a outra
Em minha vigília e meu sonho
Inseparáveis
Nesta calçada outonal de Curitiba
Entre seus atores
Que ela é sobretudo palco
Mais ou menos sãos
Mas há momentos sem linguagem
Entre o dormir e o acordar
De sublevação da imagem
Por onde foge
Esta rua este outono
Este são este doente
Este que sonha
Com uma cidade unívoca
Presa entre palavras
As duas mocinhas e a mãe, muito senhoras,
colocaram casaquinhos com gola
e foram passear no Jardim Botânico
por um pouco os narizinhos de fora
repartindo entre si como uma trindade
seu inefável coração sossegado
não olharam ninguém e desdenharam
uma teutônica exposição de plantas raras
preferindo o ar frio e rumoroso
dos domingos curitibanos em todas as épocas do ano
com sabedoria ferina porém se toucaram
com esquisitos sabonetes talcos e perfumas
que os homens mais frios se voltaram
desafiados em pleno outono
por essa augusta primavera que entre nós andava
As palavras de queixa são doces
Falavam de uma menina que você ainda espera
No espelho dentro do armário
Neste calor
Interrogativa você seguia dentro de dores
Suspensa
Mas conseguia dormir entre lágrimas
Que bom poder chorar
Agora ninguém tolera esse comportamento
Segura o choro acerta o relógio
Olha o filho
Que não chorem juntos
Quando a bola veio pelo alto
Matei no peito
Deitei na grama
Lancei o ponta
Mas quando ele jogou na área
O lance já não era
Comigo
Damos as mãos
E cruzamos os dedos
Viver seja sempre recontar
Mas então vivemos o amor
Que antes e depois buscamos despedaçados
Mas basta este raro então
E essa feliz possibilidade de contar
Com a infelicidade de ao mesmo tempo
Limitar o contado
Que a vida são vidas
O que agora contamos
Não seja sempre nossa vida
Para sempre amém
A disciplina militar impõe
Entre seus exercícios
Ó pensar solitário
Sobre a lógica e as incertezas
Da guerra
E nunca deixa que ele se torne
Por completo paisano
Mesmo sob uma árvore entre pássaros
Entre os meninos e os serviçais
A arma sempre ao alcance
O riso preciso que o uísque não altera
Tomando por interlocutor sua sombra
E aquelas de cujas mãos em sangue e placenta
Saiu a pátria
entre as anedotas que conhece
As incertezas que todavia busca
esclarecer
Na biblioteca cuja porta
Só ele conhece
E a lógica que se tornou
O incessante martelar dos tipos de imprensa
Do grilo dos pássaros
E o que menos possa ser revelado
Ou olvidado
A terra já deponho minha lança
Meu passaporte
Meus diplomas
Minhas roupas de cada ocasião
E me faço tranqüilo e completo
Uma pequenina minhoca enrodilhada
Eu um anzolzinho de ouro
Guacira
Entre as pessoas que abrem sua corrente
Às mãos que descem formando lentas
Uma concha
Uma concha surda ao mar
Nele envolta nele viva
Nele respirando aquisitiva
Ela esqueceu as apostilas
O horário de aula
Dobrou o joelho sob o sari
E talvez tenha experimentado
A possibilidade
A doçura
Fechando a mão sobre
O papel da bala
Sem que eu saiba
A razão e os meios
A rosa o firmamento
Permanecer te amando
O verbo de ligação apoiando
Como Atlas a casa em que mais cedo
Guardei meu pai minha mãe meu gato
Procurando você duas quadras ao lado
No seu José fabricante de doce de leite
Você sentada na varanda a cabeça dolorida pendida
Entre as mãos de outro que te amou não menos e melhor
E está como estamos na calma desse quadro imóvel
Querida sinto imensamente meus descuidos
Meu velar doido
Que há a máquina do mundo emperrado
Em meu ombro
E eu não tive a sabedoria e a calma
Não esqueço algo vela por nossa
Insensatez e obriga que nos busquemos
Nessas mãos que não seguram
Nesse avoamento
E é um oculto desejo de integridade
De terra e firmamento
Os ratos não fazem apenas sua crítica roedora
Tão necessárias ao aconchego de suas alcovas
São hábeis também em minuciosos exames
De tudo que lhes cais nas patinhas
À luz de velas do sebo que roubam no açougue
Quando gostam de uma passagem dão prazerosos guinchos
Não tão altos que denunciem ratos na casa
Se não gostam murmuram graves crunch crunchs
E recordam os felizes tempos da Peste Negra
Sob o neón do abajur
Cintila seu olho vermelho
Viajando imóvel na noite
Tentando entender
Descobrir qual é e de quem é
A culpa
Entre o nariz e a boca
A lágrima fendida
Se ergue sobre territórios
Que ninguém percorrerá
Profundezas abismos
Névoas estradas interrompidas
Talvez seja mais simples
Você tem boas pernas
E gosta de conversar polidamente
Deixe passar o incômodo
Com uma água com açúcar
E não se esqueça de uma vez
De que as mães jamais
Têm razão
O jogo
Vi despontarem no campo minado
enfisemas suicidas
Mas me mantive firme com mão vazia
E outra vez pus o nome na lista
Dos que tentam a sorte
Perder é humano
E o dia um catálogo de impossibilidades
Embora tudo se compre venda e financie
Tantas canções de amor não esgotam o seu tempo
Mas elas nem tentam
Mesmo os corações são tão diversos
Cala-se um pouco fala-se um pouco
Mente-se um pouco...
Canta-se
Saí
Fechei atrás de mim aquela porta
E de minhas mãos caídas uma flor morta
Ignorante da primavera que sorria
Na rua
Eu também estou tentando
Entender melhor minhas impressões
Desse espaço inquieto
Dessas janelas quase sempre fechadas
Essa metódica relação
Entre quem é cioso
De sua responsabilidade
À moda da casa
Como o pão caseiro
E a irritação frente ao desejo
De viver das crianças
De quem já quase não vive
Proíbe o pão da padaria
O ar fresco e noturno
A possibilidade de que as crianças
Sejam e se vejam
Numa iluminação
Em uma intransponível
alteridade
Sempre há a incerteza
Mas o coração é sobremodo vulnerável
À esperança
E quando seu amor se gasta
Tão fácil vem como se vai
E descendo bastante fundo
Encontramos amores não sabidos
Mas vividos
Não posso remediar
O que não houve entre nós
Não creio em ti
Não creio em mim
Não posso mentir
Palavras o vento leva
Trazendo a tempestade
Tolice fugir
Abrir guarda-chuvas
Esquecer a verdade
O passado não houve
O futuro não houve
Nosso agora é invenção
Dançamos a sós
Essa canção
1
Rosana se desdobra na rosa dos ventos
Inscrevendo minha direção no mundo
2
Quando eu dormir fora de hora
E acordar sem saber que horas são
Eu te telefonarei
Quando eu não puder conter minhas lágrimas
Perseguido num vale sombrio
Eu te telefonarei
Quando uma canção dos Beatles
Me recordar as doces ilusões da juventude
Eu te telefonarei
Quando peregrino me perder no caminho
Estreito
Eu te telefonarei
Eu não me desesperarei
Eu sempre te telefonarei
Você foi a única pessoa na minha vida
Que percebeu minha loucura e deu o fora
Mas continuou ligando pedindo dinheiro
E em atribuindo todas as culpas de que você padecia
Você foi a única pessoa na minha vida
Que percebeu que eu tinha ao menos minha loucura
E não precisava provar nada a ninguém
Que você ao contrário era uma régua de cálculo
Num mundo incalculável
Uma magnífica desolação
Há noites estranhas
Que não se seguem a um dia
Mas a uma lenta declinação
De verbos dos quais se rouba
O indicativo passado
Mesmo que imperfeito
E um silêncio rumoroso
Se instala na sala
Entre a televisão e a geladeira
Objetos intransitivos impassível
E bebemos de joelhos
Como um prisioneiro
O gol a cervejap
O pensamento que não se interrompe
Tio Moriah
Uma visita basta
O terno de linho 90
O insólito Aero Willys
O que foi dito não mais se sabe
Não há ninguém para lembrar
Mas se somam aqueles sorrisos
A comentários breves
Ressentimentos curiosidade
Um desvio na conversa caseira
A casa de eu menino
Casa de meu pai
Linhas breves de um conto inconcluso
Cujo sentido
E querer saber
É imperioso desejo
Nelas vidas imperiosas
Cujo salto são instantâneos incompreendidos
E que entre as mãos
Faltam fazem falta
Cifrados nos retratos
As dimensões da história natural
Nas quais uma estrela luz e apaga
Sua inconcebível duração
Os séculos e decênios nos quais
Os historiadores se especializam
Entre a vida dos césares
E a vida material no Mediterrâneo
Os ciclos de Kondratieff
Sob a lógica implacável do progresso técnico
A um tempo mito criador e destruidor
São todos impróprios para a definição
De uma só vida
Que antes exige o imperceptível momento
No qual por exemplo
Robinho sente que o zagueiro
Não vai chegar na bola
Domingo
1
Se você perder a aposta
A loteria abrirá de novo amanhã
São José sem braços
Padroeiro das digitadoras
Protegei os que apostam
Sem chance
2
Busco minha margem
Minha varanda de ar
Essa nota específica
Que faz de uma canção um blue
Essa contradição que me induz
Em crescentes mentiras
Nessa aragem da madrugada
Entre caranguejos azuis
E peixes-espada reluzentes
Digo sem poder escolher
As coisas que amo
Na maré vazante
3
Não pode contar bem uma história
Quem está fora dela
4
Não porque mancam são mancos
Podem só ter jogado o futebol de domingo
Não por que se varrem pátios se varram
Doidos varridos
Não porque bebo com você temos o mesmo pileque
Embora às vezes tentemos
Não por que dirijam kombi são monges ou feirantes
Embora ambos vendam seu peixe
Noturnos
1
Sempre que você me telefonar
Vou ter de situar-me conscientemente
Neste crítico século XXI
Na tua dramática existência
E dar toda razão quando dizes
Que não sou santo
2
Duas vezes você já me chamou esta noite
Medi sua febre sarei com chá sua cólica
Mas você precisa me chamar de novo
Me chamar sempre
Entretanto isso o assusta
Precisa de certeza de que eu estarei aqui
Quando você precisa de outro lugar
Diferente do meu
Quando você quer ir embora
Quer dizer adeus
E algo subsiste
Você quer abolir o tempo a história
A esperança a descida a ascensão
Dorme agora
Não me chame outra vez
Ivan
Em Itatiba há a maior concentração de bares
Por habitantes de todo o interior paulista
Reluzindo o velho resplendor dos fins de semana
Entre rollmops e cana com fernet
Engastado como uma jóia
No lustre encalacrado
Nas noites inconclusas
Na sábia ignorância
Dos freqüentadores que não se habituam
E sonham
E bebem
Demian
1
Ao velhos garotões surrados
Nos seus momentos mais íntimos
Não abrem mão de um uráia rip
Mas no dia a dia ouvem sound garden
Enquanto caminham com os tênis mais invejáveis
Por qualquer um com espírito jovial
E pulmões ainda em ordem
Quando falam usam um dialeto irrequieto
Que os mais novos não conhecem
Mas sabem respeitar as ênfases
E os acentos tônicos e a métrica
Nunca foram tão austeros
E jeans lavados toda semana
A camiseta festiva que seu amor deu
Seu nirvana tatuado no peito
Inspirará os bodisátivas de amanhã
2
Os homens turvos e difíceis
Quando dizem maçã
Fazem-no de modo tão completo
Que uns entendem romã
outros urbi et orbi
Os mais sutis agradecem
As possibilidades ensejadas
Por um jogo sério
Desenhado com método e rigor
Por um ser estranho
Como Jonh Coutraine
Talvez porque nada daquilo
Lhe dissesse respeito
Os risos amenos o vinho
A leve música
Ela se retirou para chorar
Como se estivesse pronta
A abandonar o mundo
E seguir um destino há muito pressentido
Mas ainda não descoberto
E suave como um anjo
Deitou-se vestida sem desarrumar a cama
Sem desejar boa noite a ninguém
Sentindo que talvez devesse mesmo pedir desculpa
A alguém
Como se suportasse mal aquele cálice de fel
E devesse suportá-lo com bravura
Como uma menina que não tem
Medo do escuro
Uma menina só
Com uma lágrima surpreendente
E incompreendida
Assustada diante da sua dor
O lume que aquece os nossos corações
Mantém a fênix da esperança
Nos puros do Dr. Josino
Na despensa do Demian
No meu vinho
No teu riso
No nosso insondável chão
Às vezes, pensa Nádia,
É melhor não se explicar
Nem entender mas ficar zen
E pensar nos amigos
Com seus códigos secretos
De honra e de juramentos
Identificar a estação do ano
Por seus cheiros suas frutas
Sua temperatura
Que a conversa dos amigos
É a mesma sobre os somenos
Que o resto está de mais
E evitar ter para com os filhos
O originário fatalismo dos pais
O cigarro não basta
Continua na linha azul
Que dissolve o quarto
E em outros cigarros
Incontáveis no sentido exato
De que cigarros não podem ser contados
De que não se contam os quartos
As noites
E nada basta
O álcool o amor a música
Ás mãos que não dão conta
A estrada liga dois pontos
Partida destino como pode
Segundo a geografia e o orçamento federal
Mas a estrada a geografia o orçamento
Não bastam
Ouço severos juízos
Os erros que cometi
Que cometo
Estão certos mas para mim não bastam
E sigo
O amor é egoísta
O amor se engana
O amor chega cedo
Ou tarde demais
Mas enquanto houver homens
O amor lhes dirá suas palavras
E se houver anjos
Um dia falarão sua língua
Sexta
Noites batidas claras em neve
Açucar agosto setembro sempre
Cerveja nunca o bastante
A companhia que não disse a que veio
A música que não diz tudo
O cigarro o bombom o batom
O beijo prometido que não veio
O beijo que prometi em vão
Curitiba Curitiba ai de ti!
Em volta da rodoviária
Estão os bares dos que não tendo casa
Não têm gala e cômodos estares
Bebida não se escolhe
Mulher antes não tivessem
Meninos vem do cinema
De metais e das mesmas estórias
A vida é um promontório
Do qual se contempla o que o mar
Concedeu aos velhos cascos
E aos já bem novos
Domingo
1
No caminho das palavras
Uma galinha que ciscava
Virou frango assado
Vendeu-se uma geladeira
Uma aliança se quebrou
Mas uma palavra foi mantida
De coração a coração
Entre desgraças familiares
Viagens de alto mar
E recomeço
Entre juras e perjúrios
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