A memória histórica liga-se stricto sensu à reconstituição do passado – de forma oral ou escrita – com pouca ou nenhuma metodologia do ponto de vista do informante. Cabe ao historiador a difícil tarefa de filtragem dos fatos (informações), análise acurada dos mesmos e de seus informantes, para finalmente poder dar credibilidade ao que foi informado.
No que tange à oralidade enquanto um dos elementos constitutivos da memória, é preciso dizer que, por ser ela instrumento usado em grande medida por sociedades sem escrita ou pessoas ou grupos não alfabetizados, é digna de maior cuidado por parte do historiador.
A transmissão de grande quantidades e formas especiais de dados orais, de geração para geração, requer tempo e um esforço mental considerável; por isso deve ter algum propósito (p. 173). O reconhecimento da vulnerabilidade dos historiadores orientados por documentos a tais malogros suscita algumas apreensões quanto ao mau dos dados orais na busca da cronologia serial. Em ambos os casos, a solução é (...) o uso de fontes múltiplas, convergentes e independentes (p. 186) (PRINS in BURKE, 1992).
A rigor, se o historiador deve ter cuidado com as outras fontes, com as orais ele deve dispensar mais atenção e zelo ainda pois nelas estão imbuídas uma gama de juízos conscientes e/ou inconscientes que cabe a ele interpretar.
As fontes escritas, embora pareçam menos difíceis ao historiador, também requerem grande capacidade interpretativa. Ao analisar um documento escrito que faça parte da memória, o historiador além de se preocupar com o documento irá preocupar-se também com os motivos pelos quais o informante escreveu, a que classe social ele pertencia etc.
Logo conclui-se que, a memória histórica, apesar de ser alvo de constantes críticas por historiadores que não a admitem enquanto forma de se reconstituir a história, é uma metodologia de interpretação e análise que pode e deve servir como crítica importantes à historiografia oficial, que por seu termo conta os fatos na perspectiva da classe dominante; enquanto a memória expõe os fatos na perspectiva dos atores sociais que constroem a história, sem se preocupar com este ou aquele herói, mas valorizar o processo histórico, visto que a memória é parte integrante da Nova História ou Escola dos Annales.
CAPÍTULO II - RELAÇÕES SOCIAIS NA ALIMENTAÇÃO
2.1. O habitus no processo alimenta
A alimentação humana está imbuída de significados que singularizam o caminhar do homem na terra, à medida que o faz refletir sobre sua posição na sociedade e seu papel frente ao processo de formação das classes sociais. A rigor, o homem encontra-se inserido numa teia de relações de significados múltiplos e públicos, ou seja, tudo o que ele faz evoca significados variados, tanto para ele, como para os seus observadores, que, a partir daí, poderão emitir uma opinião (ou opiniões) sobre o que foi; é aí que reside o caráter público: todos podem prestar uma opinião.
O processo alimentar também é cercado por categorias, tais como, gosto, cheiro, disposição estética etc. Atrelado a tudo isto encontra-se, grosso modo, o pertencimento, as relações sociais (ou de classe) envolvidas num sistema maior, que define o papel da divisão de classes nas relações de consumo, a saber, o habitus. Como nos diz o fragmento a seguir:
As estruturas constitutivas de um tipo particular de meio (as condições materiais de existência características de uma condição de classe), que podem ser apreendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio socialmente estruturado, produzem habitus, sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, um princípio gerador e estruturador das práticas e das representações... (BOURDIEU, 1994, p. 60/1)
Ou seja, mesmo sendo elemento definidor no pertencimento de classes, o habitus não é uma categoria estética, isto é, ele está ao nível de uma "estrutura estruturada para uma estrutura estruturante", ele é responsável pela criação e interpretação de práticas e representações sociais. A título de esclarecimento, é o próprio Pierre Bourdieu (1998:61) quem afirma: "o habitus, (...), é um conhecimento adquirido (...), um capital [que] indica a disposição incorporada, quase postural -, (...) [ele é] um agente em ação." Numa palavra, o habitus está ao nível do simbólico, do imaginário social das pessoas, ou seja, aquilo que elas têm como valores imprescindíveis e incorruptíveis. Dito de outro modo, pode-se dizer que:
... os processos sociais – entre os quais podemos incluir escolhas alimentares – são o resultado dialético da interação entre a estrutura social, o sistema de disposições, ou habitus, e as condições materiais das práticas cotidianas. Em outras palavras, os processos de escolha de alimento são resultado de necessidades biológicas, sistemas simbólicos, estrutura social e forças político-econômicas, combinadas ou justapostas pelos atores sociais através das práticas e condições contextuais do cotidiano. A vantagem desta abordagem teórica é a possibilidade de incluir um abrangente conjunto de variáveis na análise do processo investigado, e de compreender o último a partir de uma perspectiva dinâmica e interativa das suas práticas. (MURRIETA, 1998, p. 98)
A rigor, o processo de alimentação não condiciona-se apenas ao ato de satisfação das necessidades biológicas, mas está ligado a uma série de outros fatores de cunho simbólico, alguns até já mencionados: o odor, o sabor, a disposição estética dos alimentos, ou seja, sua arrumação na mesa, as formas de cozimento etc., vão dar um significado especial às preferências alimentares, que, grosso modo, são construídas no convívio social e não, apenas, no aspecto biológico do ser humano, o que prova que o ato de alimentar-se é um processo sócio-cultural, em que estão envolvidos os diversos fatores da vida (político, econômico, cultural, religioso...).
É mister também não esquecer a relação de sustentabilidade no que tange a produção e distribuição de alimentos, isto é, deve-se primar pelo envolvimento da relação de sustentabilidade no processo produtivo e de aquisição dos alimentos. Deve-se indagar até que ponto eles estão sendo motivo de desenvolvimento, ou ainda, se existem barreiras para que o desenvolvimento possa ocorrer e o que pode ser feito para que elas possam ser amenizadas ou destruídas por completo. Num momento em que o paradigma do desenvolvimento sustentável é plenamente discutido, com vistas a ser implementado nos vários setores da vida, como condição sine que non de um desenvolvimento com equidade e necessário ao equilíbrio global, é imperioso também, tentar aplicar este paradigma na relação homem-alimentação.
De acordo com Murrieta (1988, p. 100/1), o interesse pelo estudo dos hábitos alimentares, aflora a partir das publicações de Richards (1939) e Mead (1943) com uma abordagem que privilegiava os aspectos estruturais da sociedade, a saber, o social, o econômico e o cognitivo, e as suas implicações biológicas para a evolução humana. A seguir, com Lévi-Strauss, Mary Douglas e Marvin Harris, respectivamente, nas décadas de 60 e 70, a visão sobre a cultura alimentária vai mudar: Lévi-Strauss vai usar o estudo da alimentação para melhor analisar os mitos dos índios sul-americanos; Mary Douglas diz que os hábitos alimentares estão intrinsecamente ligados ao processo de transformação social, o homem não come apenas para satisfazer suas necessidades básicas, mas, atrelado ao seu modo de se apropriar, socialmente da alimentação, estão associados uma gama de esferas, quais sejam, econômica, política, religiosa, cultural ..., e ainda, passa a fazer parte das suas preocupações a questão do desenvolvimento, a ruptura com a "velha ordem", e, conseqüentemente, quando se passa a mudar, de modo positivo, os hábitos alimentares, logo evidencia-se um igual desenvolvimento; já com Marvin Harris, as preocupações centrais são infra-estrutura econômica e ambiental do processo de uso e escolha da alimentação. (Cf. Murrieta, 1998, pp. 98, 100 e 101)
As abordagens defendidas por Douglas e Harris juntas, aproximam-se da noção de desenvolvimento sustentável, visto que interligam-se as infra-estruturas econômicas e ambiental à idéia de transformação social, proporcionada por atores sociais, que, a rigor, implica diretamente na questão do desenvolvimento, logo, ao juntarem-se, assemelham-se ao desenvolvimento sustentável. Esses conceitos de usos e escolhas da alimentação acoplados ao de habitus que pode funcionar como "estruturas estruturadas" e logo em seguida como "estruturas estruturantes", ou seja, um hábito alimentar pode ser criado por uma determinada população e mais tarde ser incrementado, vindo a causar uma certa mudança, provando-se, grosso modo, o caráter dinâmico do habitus. E essa dinamicidade atrelada a concepção sócio-cultural do processo alimentar, só vem corroborar mais ainda que a cultura alimentária é vinculada ao simbólico, ao imaginário social, não sendo apenas vinculadas às necessidades essenciais. A presente citação nos leva a refletir sobre as nuanças que tomam a alimentação ao longo do processo histórico:
O alimento – ou melhor dizendo, a comida – é um exemplo ilustrativo da dificuldade para se lidar com necessidades simultaneamente permanentes e transitórias, não necessariamente transgeracionais. Quem diria que o tão "americano" hot-dog já foi alemão e que o dendê tão "baiano" hoje, veio do seu ontem africano? Os empresários japoneses de hoje ainda adoram o fugu, prato preparado com um dos mais venenosos peixes, (...) Vitaminas e sais minerais são necessidades perenes, sim, mas o que dizer das especiarias, que mobilizaram frotas, fizeram-nos enfrentar calmarias, definiram rotas e terminaram por ditar regras de partilhas que culminaram em Tordesilhas? (...) Como planejar o uso alimentar quando o que se come serve para distinguir castas e classes? Quando os carboidratos fluem é através de autênticas cadeias tráfico-culturais? (MARQUES, 1999, p. 44-45)
Grosso modo, como se vê, a alimentação é cercada por uma grande complexidade, que lhe confere um caráter processual, em que se observa uma importação de costumes alimentares que ao passar do tempo passam a pertencer ao lugar onde então se encontram, ou seja, assim como habitus, o processo alimentar ergue-se, ao mesmo tempo, como estruturas estruturadas e estruturantes, é um princípio gerador de costumes, e, por outro lado, precisa se adaptar às novas situações, ou seja, a alimentação é um acontecimento plural que leva, em conta os aspectos econômicos, sociais, políticos, culturais etc. no processo de mudança. A rigor, um desses aspectos ou alguns deles conjugados fazem com que haja transformação na estrutura social, que impliquem também, no surgimento ou aperfeiçoamento de novos hábitos alimentares.
O próprio Marques (1999, p. 45) nos faz rápidas alusões às relações de classe quando lembra que o bacalhau era comida de negro, depois passou a ser de pobre e hoje é comida de rico, e que com a fruta-pão aconteceu algo similar, ou seja, ela foi introduzida no Brasil para servir de alimento para os escravos, sendo eles não a apreciaram.
O que tudo isto nos mostra é que os processos sociais não são estáticos, estanques; eles são lentos, senão não seriam processos, estão muitas vezes ao nível do consciente e do inconsciente, já que:
... os processos de uso e escolha de alimentos não são apenas determinados por algum sistema cognitivo ou social unificado, ou relações unidecionais (resistência/assimilação) entre sistemas locais e pressões sócio-políticas e ambientais, mas, também por uma seleção intricada e combinada de repertórios, tanto consciente como inconsciente e que segue a lógica do momento social, suas condições e pressões cotidianas. (MURRIETA, 1998, p. 103)
A rigor, as mudanças dos hábitos alimentares relacionam-se estreitamente tanto com as dimensões conscientes como inconscientes, ou seja, pode-se adquirir novos costumes alimentares – ou adaptar-se alguns já existentes – em função da fome, que faz com que se criem hábitos alimentares dantes inexistentes, das guerras, das conquistas, enfim, de fatores inerentes direta e/ou indiretamente à dinâmica da sociedade na qual encontra-se inserida a história da alimentação.
No que tange as mudanças alimentares causadas por invasões e/ou conquistas, é primordial que se fale das invasões germânicas (século V) e conseqüente conquista, ao Império Romano e do choque causado pelas transformações ocorridas no cardápio após tal acontecimento. De acordo com Montanari (1993, p. 16/17), sendo os romanos um povo refinado, o ideal de civilização da época, eles faziam questão de distanciar-se da "natureza bruta", preferindo a moradia nas cidades, onde viviam com conforto. Podia-se indagar de onde eles tiravam sua sobrevivência, já que por aqueles tempos o setor primário erigia-se como a base de tudo, no que se refere à sobrevivência, e se teria a seguinte resposta: mesmo tirando seu sustento de fontes primárias, os romanos não penetravam florestas, bosques ou pântanos para fazê-lo: eles penetravam vastos campos ao redor das cidades, pois, para um povo com grande teor de civilidade, não era de bom grado entrar em contato direto com la naturaleza virgen. Para eles isto era tarefa de seres inferiores. Dentre as suas práticas alimentícias as principais eram a agricultura e a arboricultura, tendo no trigo, na uva e na oliva, os três principais produtos agrícolas. Grosso modo, essa posição dos mencionados produtos, devem-se a identidade religiosa cristã dos romanos; ou seja, o trigo representa o pão, a uva o vinho e a oliva os óleos sagrados, que são símbolos essenciais do cristianismo.
Atrelados à agricultura e a arboricultura, encontram-se a horticultura e a criação de ovinos como complemento alimentar, além disso, com menor grau de importância, verificam-se a presença da pesca, mas apenas em regiões costeiras, visto que, o pescado não era parte essencial do cardápio romano (cf. Montanari, 1993, p. 17/18). Analisando com mais clareza, pode-se ver o entrelaçamento da cultura alimentária com a vida sócio-econômica e política dos romanos, ou seja, ao preocupar-se, respectivamente, com a plantação de cultivares, a coleta de frutos e raízes e a criação de ovinos, tendo ou não noção disso, o povo romano envolvia-se na vida sócio-econômica, e ao analisar a quem realmente isto tudo enriquecia, dava poder, toca-se, grosso modo, na esfera política. É mister dizer, que esta separação do sócio-econômico com o político, só pode ser feita didaticamente, pois, estas categorias são elementos constitutivos de um processo histórico, que, a rigor, jamais pode ser fragmentado, mas, deve ser visto pelo seu todo.
Destarte, o sistema alimentar daqueles que representam o ideal de civilização resumia-se no que diz o fragmento a seguir:
Sobre estas realidades se levantaba un sistema de alimentación (que podíamos llamar mediterráneo) con una fuerte caracterización vegetal, basado en las gachas y el pan, el vino, el aceite y las verduras, todo ello completado con un poco de carne y sobre todo con queso (las ovejas y cabras se utilizaban sobre todo como ganado vivo, para leche e lana. (MONTANARI, 1993, p. 18)
Os povos germânicos tinham um modo de vida bem distinto dos romanos: eram acostumados desde muitos séculos a recorrer aos grandes bosques do centro e norte da Europa, eram exímios exploradores de naturaleza virgen e dos espaços não-cultivados. A caça, a pesca, a coleta de frutos silvestres, a criação, nos campos e nos bosques, sobretudo, de porcos, mas também, de cavalos e gado bovino, eram as principais atividades desenvolvidas pelos bárbaros.
Diferentemente dos romanos, os bárbaros não consumiam o pão feito de trigo (especialmente por não o conhecerem) nem as graxas, visto que, o prato principal do seu cardápio era a carne. Não bebiam vinho, por não o conhecerem, porém, eram apreciadores do <<leite de burra>> e os líquidos ácidos feitos a partir dele, bebiam também a sidra (que era feita à base de frutos silvestres fermentados) e a cerveja. No que tange ao processo de cozimento dos alimentos, eles usavam o toucinho e a manteiga, em detrimento do azeite. Dentre os cereais consumidos pelos germânicos, tem-se em registro, a cevada e a aveia (deste cereal eles faziam papa, nos dando autoridade para afirmar que os nossos tão aprazíveis mingaus e papas de aveia são uma herança germânica). Corroborando com o fragmento a seguir:
Pero lo importante no es verificar presencias y ausencias, pues resultaria que todos comian más o menos de la misma forma, sino valorar el papel específico de los productos en el regimen alimentario, el lugar y el peso de cada uno en un sistema que se organiza como unidad coherente cada vez de una forma distinta. Entonces saltan a la vista sobre todo las contraposiciones que los proprios contemporáneos utilizan como indicadores de su identidad cultural y de la diversidad de los otros. (MONTANARI, 1993, p. 18)
A rigor, o mais importante é analisar em que contextos acontecem os processos alimentários e sua relação com o processo histórico geral, pois, indivíduos pertencentes a uma mesma classe social, muitas vezes, diferem na maneira de se alimentar, visto que, a alimentação está inserida no fator cultural, e, a grosso modo, a cultura é pública, ou seja, todos nós somos parte e parcela do seu raio de ação.
Além de caracterizar-se como alimento oriundo dos bárbaros, o mingau também era bastante conhecido dos indígenas brasileiros; é claro que os ingredientes e a forma de fazer, com certeza tinham suas diferenças, visto que, ambos habitavam regiões geográficas distintas e épocas diferentes. Vejamos o que fala a citação a seguir sobre o mingau dos indígenas:
Comiam-na pura, carimã e água fervente, ou misturando-a com pimenta,..., ervas, lagostins, peixe ou carne cozida. Dizia-se então Minguipitingor. Quando empregavam goma de mandioca (tapioca) e não carimã (polvilho) o nome era de Mingaupomanga. Jean de Lery anotara no Rio de Janeiro: "... essas farinhas prestam-se para papas a que os selvagens dão o nome de mingau (...). (CASCUDO, 1983, p. 116-7)
Feito à base de farinha de mandioca, milho, arroz, dentre outras, o mingau é bastante utilizado como alimento para as crianças em seus primeiros anos de vida, como também em casos de convalescença. Caracteriza-se por ser um alimento saboroso e de fácil degustação e por fazer parte do paladar de muitas pessoas.
Enquanto os romanos tinham um estilo de vida comedido, refinado, de acordo com o seu cabedal de conhecimentos e civilização e refletiam tudo isso nos seus costumes alimentares, se alimentando, essencialmente, de cereais, frutas e raízes, verduras e legumes, e, em menor quantidade de carnes, tudo isto de maneira balanceada; já os bárbaros, embora que por vias contrárias, também deixavam que o seu comportamento rude, invasor, sem qualquer refinamento, influísse na escolha de seu cardápio: eles comiam, basicamente, caças diversas, pescado, frutos silvestres, porcos e vacas. Contrariamente aos romanos, os germanos consumiam as carnes cruas, vai ser o contato com um povo mais desenvolvido, que fará com que eles realizem uma troca cultural. De acordo com Montanari (1993), a carne, além de ser um alimento palatável, representava força, soberania:
La carne si convistió em el valor alimentario por excelencia. Si un médico latino como Cornelio Celso no tenia dudas al considerar que el pan es la mejor comida, ya que <<contiene más sustancia nutritiva que ningún outro alimento>>, los manuales de dietética posteriores al siglo V prestan una atención mucho mayor a la carne (p. 24). En la cultura de la classe dominante este valor primario de la carne se afianza com fuerza. Aparece a sus ojos como un símbolo de poder, un instrumento para proporcionar energia física, vigor, capacidade de lucha, unas cualidades que constytuen la primera legitimación auténtica del poder. En cambio, abstenerse de carne es señal de humillación, de marginación (más o menos ocasional) de la sociedad de los fuertes (p. 25).
A rigor, presume-se que essa força quase mágica exercida pela carne na alimentação bárbara; pode estar ligada ao caráter violento, conquistador, tão primado pelos povos germânicos, tanto que ela passou a ser objeto de poder, dominação. É a alimentação influindo na esfera política, o que justifica o pensamento de que não nos alimentamos apenas por necessidades fisiológicas, mas que, ao lado das necessidades biológicas estão associadas uma gama de fatores que fazem da cultura alimentária um complexo processo, um ciclo onde não se sabe o seu início e o seu fim.
2.2. Notas sobre o conceito de classe e sua relação com a cultura alimentária
Classe constitui-se em um dos termos mais discutidos tanto pela sociologia, desde a sociologia clássica, especialmente com Comte, Durkheim e Marx, como pela história. Tanto Comte como Durkheim, representantes do positivismo, viam no conceito de classe a separação, a diferenciação, a classificação. Numa palavra, assim como na natureza os reinos animal e vegetal obedeciam à ordens e classificações, assim também, o "tecido social" deveria está vinculado a estas mesmas ordenações e classificações. Já para Marx, a idéia de classe difere, e muito, do ideário positivista.
Segundo Eric Hobsbawm (1987, p. 35/36), Marx usou de modo ambíguo o termo classe em O Capital. Para ele é no Manifesto Comunista e em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, que o referido conceito é melhor definido: no primeiro, classe significa um agrupamento de pessoas reunidas sob uma classificação segundo um critério objetivo, a saber, os meios e as relações de produção, o que separa exploradores de explorados. Já no segundo, há subjetividade, ou seja, o conceito de classe é consciência de classe. Grosso modo, pode-se dizer, que a junção dos dois conceitos – classe e consciência de classe – conjugam-se numa fórmula ideal, visto que, um grupo para se considerar classe (ou parte dela) deve saber o que representa sua definição, seus direitos e deveres, enfim, consciência de classe.
A noção de classe, enquanto grupo de pessoas reunidas sob uma mesma condição social, liga-se intrinsecamente à cultura alimentária, visto que, o cardápio alimentar de cada classe vai depender, dentre outros fatores, do fator econômico, que, a rigor, ergue-se como elo definidor da condição de classe.
Uma das provas que o econômico interfere bastante nas escolhas alimentares é o pão, uma comida hoje tão comum, era motivo de distinção, como nos comprova a presente citação:
La contraposición entre ambos productos, claramente marcada en el aspecto social, se resume en un dato de carácter cromático: el pan de trigo es blanco, mientras que el de centeno (o de otros cereales) es negro. El primeiro está destinado a los señores y aparece claramente como un producto de lujo. El pan negro es proprio de campesinos y siervos. Puede ser de centeno, espelta o mixtura. (MONTANARI, 1993, p. 39)
Essa prática reflete a ideologia dos séculos VI a X, na Europa, onde as plantações de trigo não eram tantas, o que fazia desse produto uma peça chave na diferenciação social. As cores – o branco e o negro – dos pães era uma forma de separar as classes sociais. O pão branco de trigo, dada a dificuldade de se conseguir o trigo, bem como pelo seu alto preço, era reservado à nobreza; já o pão negro, por ser feito de centeio ou da mistura de outros cereais menos nobres, ficava a cargo dos servos (e também dos vilãos), a maioria da população.
A rigor, essa diferença na cor dos Paes e na relação de consumo, reflete um código cultural público, donde cada parte interessada sabe o seu papel, como diz Clifford Geertz (1989): "A cultura é pública porque o significado o é. (p. 22)... a cultura consiste em estruturas de significado socialmente estabelecidos... (p. 23)"
Implícito nesta diferenciação através das cores dos pães, encontra-se a noção de força e poder, numa época em que a Europa sempre passara por crises alimentárias, provocando nas pessoas um sentimento ilusionista de mudanças rápidas e sem razão de ser:
El antídoto más eficaz contra el hombre es el sueño. El sueño de la tranquilidad y el bienestar alimentario, o más bien de la abundancia, del atracón. El sueño de un país de jauja en el que la comida sea inagotable y esté al alcance de la mano, donde gigantescas ollas de macarrones en se vuelcan sobre montañas de queso rallado, donde atan los perros con longaniza y los trigales se cercan con asados de carne. La jauja imaginaria, una especie de versión popular de las <<cultas>> mitologías del Edén, cobra fuerza entre los siglos XII e XIV. (MONTANARI, 1993, p. 96)
O sonho por uma vida melhor com mais eqüidade e justiça, fazia as classes populares, dos mencionados séculos, terem ilusões de eternas farturas, inclusive de consumirem alimentos que, pela sua condição sócio-econômica, eram impedidos de comerem (tais como macarrão, queijo e carne bovina).
A difícil vida levada pela população campesina da Idade Média fê-la projetar uma situação que fugia da realidade, ou seja, fazia parte do imaginário social de um povo caleijado pelo sofrimento e que aspirava a uma vida melhor para poder ter alimentos em abundância, e, grosso modo, diferentes daqueles que eles estavam acostumados a comer, fato confirmado pelo fragmento a seguir:
Na versão mais conhecida, um fabliau de meados do século XIII, o País da Abundância é uma cidade, ainda com sabor a campo, mas ruidosa de ofícios, onde comerciantes e artesãos dão tudo em troca de nada e onde, sem qualquer esforço, reina a abundância: "No canto o que se chama a atenção é o excesso alimentar: a abadia de colunas e claustros de açúcar cristalizado; os riachos, de leite e mel, os gansos assados que voam até a boca dos consumidores (...)." (LE GOFF, 1996, p. 313)
Esse tipo de pensamento, na realidade, expressa uma prática totalmente contrária, uma situação de miséria patente que faz aquele povo sonhar com dias melhores, com uma realidade menos dura. De fato, o que os campesinos dos séculos XII a XIV (como de toda a Idade Média) querem é ter as suas dignidade e cidadania respeitadas, mesmo atentando-se para a realidade de que tais conceitos sequer fossem discutidos.
Atrelado a este desejo de "comer bem", também encontra-se uma extrema vontade de libertação das garras do poder de seus senhores, que cada vez mais iam limitando os espaços dos campesinos:
Lo que se produjo en esa época fue más bien una restricción en los derechos de uso. A medida que el crecimiento demográfico y la reducción de terrenos incultos hacíon que aumentara la competencia por la explotación de estas últimos, las tenciones sociales iban en aumento, y con ellas la definición de los privilegios vinculados con el ejercicio del poder. (MONTANARI,1993, p. 50-51)
Existia entre os senhores uma grande necessidade de afirmar o seu poder, a sua força perante aos campesinos, que já viviam numa condição mesquinha, como nos comprova a inferência a seguir:
Un frenesi de poder, una especie de <<hambre>>, paralela a la de los compesionos, recorre el mundo nobiliario. Una inquietud, un malestar que nace de la necesidad de desprenderse de porciones de poder y riquezas, pues también entre los nobles se hace sentir el crecimiento demográfico. (Op. Cit., p. 51)
Na vontade cada vez maior de mostrar o poder, esses senhores ou nobres, que eram os senhores feudais, temiam que com o crescimento demográfico houvesse alguma revolta que os derrubasse por completo, visto que, naquela época (séculos XII a XIV) o seu poder já encontrava-se ruindo devido à ação dos burgueses (pequenos comerciantes que ficavam ao redor dos feudos, e, que, com o tempo, foram se organizando e crescendo economicamente), que depois de conseguirem riquezas, conseguiram também prestígio social da realeza. Esta última, por sua vez, já não vira com boa vontade o fato dos senhores feudais não lhes prestarem quaisquer informações fiscais, nem tão pouco lhes pagavam impostos, coisa que os burgueses faziam com regularidade.
Na verdade, o que os senhores feudais tinham era medo de perder o poder, que já se encontrava ameaçado, por completo.
O desejo de se libertar totalmente era tanto, que, no imaginário social, se criavam estratégias para fugir da opressão que ora se encontravam. Os camponeses da Inglaterra daquela época, criaram a lenda de Robin Hood, um imaginário desordeiro que roubava dos ricos para dar aos pobres. (cf. Montanari, 1993, p. 52)
Devido a esses períodos de opressão e, especialmente, de fome criou-se no pensamento desse povo faminto a ilusão da volta a um tempo onde tudo era farto e bom e não havia opressão: esse tempo ou ciclos são as chamadas idades míticas, em especial, a idade do ouro, onde tudo é perfeito. (cf. Le Goff, 1996, p. 283 e ss)
Os períodos de fome eram tantos e tão freqüentes, que tal qual Ovídio em Metamorfoses, as pessoas imaginavam situações, no mínimo, esdrúxulas.
A terra era virgem, sem precisar de enxadas ou charruas / nem ser sulcada pelo orado, produzia tudo em liberdade: / alegres, com os alimentos que ela dava, sem trabalho / colhiam os frutos das árvores, os morangos dos bosques, os mirtilos / as amoras pendentes das noites espinhosas / e as landes caídas da grande árvore de Júpiter. / A Primavera era eterna, e os doces zéfiros acariciavam / com seus tépidos sopros, as flores aparecidas sem prévia sementeira. / Embora por orar, a terra abundava de cereais e o campo / não desbravado ondulava de pesadas espigas: / rios de leite e néctar corriam e o loiro mel escorria do verde carvalho. (OVÍDIO in LE GOFF, 1996, p. 295/6)
Ou seja, sonhava-se com uma época pretérita, muito pretérita, que talvez, de fato, nunca tenha existido.
Isto é perfeitamente compreensível, se ao seu lado, agregarmos o fator cultural, visto que, como forma de disfarçar a sua vida sofrida, imaginavam coisas metafísicas e criavam mitos, para através deles não perderem a esperança e nem a força para continuar lutando pela vida.
Como mencionamos acima, o fator econômico exerce cabal influência no processo alimentar, porém, é igualmente importante a presença do fator cultural na escolha dos alimentos a serem consumidas, pois não se consome apenas os alimentos que se encontram mais acessíveis economicamente, mas por eles estarem vinculados às escolhas, aos gostos de quem os consome. Grosso modo, é a cultura enquanto código que é o guia principal do processo alimentar.
2.3. Aspectos históricos da cultura alimentária: os formadores da cultura alimentária brasileira – África, América, Europa, Brasil
Como já foi dito a história da alimentação está intrinsecamente ligada à cultura. A forma como cada civilização se alimenta, bem como, os elementos constituintes da sua dieta alimentar formam códigos que as particularizam.
Porém, a particularização dessa história alimentar, não quer dizer que os hábitos alimentares de cada uma dessas civilizações não possam ser transmitidos a outras de modo recíproco.
Um dos fatores que se ergue como principal é a migração, visto que, através dele a cultura de vários povos pode ser difundida. Mesmo assim isto não acontece tão rápido, mas sim, de modo processual.
Seguindo este raciocínio da importância da migração como difusora de cultura, é mister dizer que, a cultura alimentária brasileira, recebeu fortes influências africanas, européias e também americanas no que tange ao seu processo de formação.
2.3.1. África
A África da cabal contribuição no processo de formação da cultura alimentária brasileira, visto que, embora que forçosamente, foi testemunha da migração de seus filhos e filhas, aos milhões, para serem escravos no Brasil e ali poder expandir, de modo lento, a sua dieta alimentar.
De acordo com Cascudo (1983), os hábitos alimentares dos africanos, em sua terra natal, eram a caça, de animais silvestres, tais como: elefantes, búfalos, gazelas, antílopes, hipopótamos, crocodilos... "A caça era ofício, divertimento, orgulho, dignidade. Congo quer dizer ‘caçador’" (op. cit, p. 186). Até o cachorro fazia parte da culinária africana; além da caça usavam também a pesca como fonte de alimentação, porém em menor quantidade, como nos confirma a citação a seguir:
Não havia abundância de pescado e mesmo as tribos pescadoras matavam o indispensável e a proximidade do mar e dos rios não atraía tanto como no Novo Mundo. O número de armadilhas e vasilhas captadoras manuais é inferior n’ África pescadora. Pescavam de flecha, arpão, rede, represando correntes piscosas. (CASCUDO, op. cit.: 187)
Embora o pescado não existisse em abundância na África, como afirma Cascudo, foi ele o responsável pelo hábito de se comer pirão. Inicialmente o pirão era feito com farinha de sorgo ao invés de farinha de mandioca.
Ao contrário do que acontecia com a África, na Europa havia (e há ainda) uma grande produção de pescado, tanto em número quanto em diversificação (dentre os pescados existentes na Europa tem-se: atum, arenque, sardinha, ostra, truta, lula, polvo, anchavos...). Essa quantidade era tanta que dava para suprir os quarenta dias da Quaresma, exclusivamente com pescado, como nos corrobora a citação em epígrafe:
Não estando tão bem dividida, a Europa tem múltiplos abastecimentos, a curta e a longa distância. O peixe é tanto mais importante quanto as prescrições religiosas multiplicam os dias de jejum (166 dias por ano, incluindo a Quaresma, de extremo rigor até o reinado de Luís XIV). Durante os quarenta dias da Quaresma, não se pode vender carne, ovos ou galináceos a não ser aos doentes e com duplo certificado do médio e do padre para facilitar o controle, em Paris só o "carniceiro da Quaresma" está autorizado a vender os alimentos proibidos e no recinto do Hotel-Dieu. Daí a enorme necessidade de peixe fresco, defumado ou salgado. (BRAUDEL, 1997, p. 190)
A tradição da Quaresma na Europa era deveras respeitada, daí a necessidade de se ter uma quantidade tão grande de pescado: na Europa, no período da Quaresma, não se podia comer carne, exceto os doentes se tivessem autorização do médico e do padre. Nesta época, a imposição aos hábitos alimentares, no que tange a realidade francesa, era patente. Destarte, o descumprimento a esta regra social, era motivo de ser considerado um grande pescador.
Os inhames, da região do Benin e do Congo, assados, cozidos ou feitos farinhas acompanhando peixe ou carne, eram muito apreciados pelos africanos. Ao seu lado, o arroz, também alcançou grande expressão, visto que, ele, além de servir para a degustação, servia para pagar impostos ao Rei, bem como para comprar mulheres, tanto para os serviços domésticos quanto para servir de companheira (cf. Cascudo, 188). Além disso, ele ainda deu origem a um prato muito conhecido nosso, fato que nos elucida a citação a seguir:
Com o arroz veio a fórmula do kuz-kuz, ainda uma permanente nas zonas islâmicas d’África Setentrional e Atlântica. Era com arroz, sorgo ou trigo que o kuz-kuz começou, sozinho, até que o milho americano, Zea mayz, apareceu, como sócio comanditário e presidente ciumento (CASCUDO, 1983, p. 188)
Vejamos agora, algumas particularidades do cuscuz, dando especial ênfase, ao de milho:
Cuscuz é a massa de milho, pilada, temperada com sal, cozido no vapor d’água e depois umedecida com leite de coco. Com ou sem açúcar. Era, outrora, de feitura caseira e presentemente industrializada, vendida pelo Brasil inteiro, pela manha e a tarde. Fazem-no também de mandioca, arroz, macaxeira (aipim), inhame, mas o milho é consumido numa proporção de 95%, cotidianamente1. Com manteiga, figura no café matinal ou na ceia frugal ao anoitecer. Dissolvem-no no leite de vaca, cuscuz com leite, sopinha gostosa e fácil. (CASCUDO, 1983, p. 207)
O cuscuz foi uma das comidas oriundas da África, que mais se popularizou no Brasil. Notadamente o cuscuz de milho, que é conhecido de Norte a Sul do país, embora haja uma pequena diferença, de cunho regional, entre o cuscuz feito em nossa região e aquele feito no Sudeste do país (especialmente o mineiro e o paulista): a eles são acrescentados peixe desfiado, crustáceos e molho de tomates.
É o processo de migração dando conta da difusão dos hábitos alimentares africanos na Terra Brasilis e da sua conseqüente modificação regional, fazendo assim com que a população local passasse a obter mais opções alimentares no cardápio nacional.
Os africanos também eram apreciadores de vinhos, particularmente, aqueles feitos à base de mel, de milho, bem como, os de palmeira.
2.3.2. Europa
Apesar de ter sofrido grandes crises alimentares entre os séculos III e VI, a Europa será exemplo para o mundo como uma das regiões mais requintadas, no que se refere à alimentação.
A carne (especialmente a bovina) passa a ser a marca básica da alimentação européia. Herança germânica, a carne significa força e poder, elementos distintivos entre pobres e ricos. A quantidade ostentatória ganha à qualidade de (...). Os festins de carne – destinados a durar muito tempo na mesa dos ricos – são a característica marcante (BRAUDEL, 1997, p. 167). Embora durante muito tempo, a carne fosse basicamente dos ricos, essa situação começa a mudar entre os séculos XV e XVI, fato comprovado pelo fragmento seguinte:
Este consumo de carne não parece, nos séculos XV e XVI, um luxo exclusivamente reservado às pessoas muito ricas.
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(...) Na Alemanha, segundo um decreto dos duques da Saxônia, em 1482, "que todos saibam que os artesãos devem receber na sua refeição do meio-dia e da noite quatro pratos ao todo: se for dia de carne: uma sopa, duas carnes, um legume; se for sexta-feira ou dia sem carne: uma sopa, um peixe fresco ou salgado, dois legumes" (BRAUDEL, 1997, p. 168)
Além da carne é imperioso mostrar outros tipos de alimentos degustados pelos europeus como:
Pão. Havia quatro variedades de pão destinadas as classes abastadas – o pão mole sem sal, o pão mole com sal, o pão de sufleur e o pão reboulet. Todos estes tipos de pães eram feitos do puro e melhor trigo. Mas havia também o pão feito de centeio e espelta destinada aos pobres, como nos comprova a citação a seguir:
La contraposición entre ambos productos, claramente marcada en el aspecto social, se resume en un dato de carácter cromático: el pan de trigo es blanco, mientras que el de centeno (o de otros cereales) es negro. El primeiro está destinado a los señores y aparece claramente como un producto de lujo. El pan negro es propio de campesiones y siervos. Puede ser de centeno, espelta o mixtura. La calidad del producto se relacionaba con la del consumidor, ya se tratara de resaltar una posición, ya se tratara de resaltar una posición social (de dependencia o de mando), ya de una voluntad moral de penitencia y humilación (MONTANARI, 1993, p. 39/40)
O cereal de que era feito e a cor do pão eram os elos definidores, distintos da condição de classe.
Enquanto as variedades mencionadas de pão branco era a alimentação para ricos, as papas constituíam a alimentação (um dos tipos) dos pobres. Conforme Braudel (1997, p. 118), há alguns tipos de papas que eram de gosto popular, tais como: a puls, originária dos etruscos e dos antigos romanos, era feita à base de milhete; a alica, era feita à base de fécula e de pão; a alica púnica, considerada de luxo, era feita com queijo, mel e ovos; já a polenta, antes de ser de milho, tinha por ingredientes grãos de cevada torrados e moídos misturados com milhete; e, finalmente, a aveia era o ingrediente com o qual se fazia o grumel, que era uma papa muito apreciada pelas populações rurais.
Alimentos cotidianos. São classificados como tal o sal, os laticínios, as gorduras, os ovos e o que vem do mar. O sal, indispensável iguaria tanto para os europeus como para o resto do mundo, sempre teve muito valor comercial e também culinário. No que dizer de Braudel (1997, p. 185) o sal é: um bem indispensável aos homens, aos animais, à salgar das carnes e dos peixes, tão importante que os governos se interessam por ele. Dito de outro modo, o sal sempre teve reconhecida importância como conservante, sendo, a rigor, indispensável à vida humana e animal; o queijo foi um dos laticínios que custou a fazer parte da sofisticada cozinha européia, por ser considerado um alimento popular e de proteínas baratas. Só bem depois é que os queijos roquefort e parmezão conquistou o seu espaço como alimentos finos, porém o queijo de cabra continua sendo desprezado e inferiorizado em relação aos queijos de ovelha e vaca; enquanto o queijo sofreu uma certa aversão por parte dos europeus, o leite e a manteiga, ao contrário, eram largamente consumidos.
As gorduras como o toucinho e o azeite, como também, os ovos, são amplamente divulgados na culinária européia.
Além do que já foi enumerado, os europeus também apreciavam peixes tais como: arenque, bacalhau, atum, truta, salmão, lula e polvos dentre outros, como também, moluscos como a ostra.
As principais bebidas que faziam (fazem) parte dos hábitos europeus eram (são) o vinho, a sidra e a cerveja (sendo estas últimas heranças dos bárbaros). Ao lado destas, é mister mencionar, tinham o café, o chá e o chocolate, bebidas que foram trazidas de outros lugares e que logo se adaptaram ao paladar europeu (o café foi trazido da Etiópia, o chá, da China e o café, do México).
2.3.3. América
A América ou Novo Mundo, mesmo tendo sido "descoberta" (por que não dizer invadida?) no final do século XV, também irá fornecer dois importantes produtos ao processo alimentar mundial, quais sejam, o milho e a batata.
O milho era tão importante para as primeiras civilizações americanas, que a ele foi atribuída a origem do homem, fato que nos corrobora o fragmento a seguir:
... O milho representa, além de valor prático (nutritivo), um referente cultural fundamental: segundo a mitologia maia, o homem foi criado pelos deuses a partir da massa de milho. Outros materiais, como argila e madeira, se revelaram inúteis: os homens de barro e madeira sucumbiram, e só aquele feito de milho sobreviveu para venerar a planta que, ao mesmo tempo, lhe deu origem e assegurou o alimento cotidiano (PETRICH, 1987, p. 10).
Saindo da esfera da mitologia, é mister dizer, segundo Braudel (1987), que as origens do milho enquanto cereal americano foram questionadas por eruditos do século XVII que chegaram a pensar no milho como oriundo do Extremo Oriente, e ao mesmo tempo, da América. Tal fato só ficou claro a partir de pesquisas arqueológicas que revelaram ser o milho autenticamente americano.
Do milho podia-se fazer um tipo de bolacha e bolo, além de bebidas como a cerveja, que, a rigor variava de acordo com a região onde era feita: a cerveja produzida a partir do milho germinado, também conhecida como chicha que era encontrada nas Antilhas e a cerveja forte do Peru, conhecida como sora.
Assim como o milho, a batata, tubérculo autóctone da América andina, também terá o seu consumo difundido pela Europa e por todo o Novo Mundo, embora que de modo mais lento que o consumo do milho, visto que, países com Japão, China, Índia e os países muçulmanos não a acolheram como alimento.
Enquanto serviu como elemento de ojeriza (aversão) para Japão, China e demais países mencionados, a batata teve um outro significado para a Europa, visto que:
Seu advento liberou as populações européias de períodos de fomes seculares. Permitiu a constituição de uma classe operária sólida e sadia. Ao liberar um número crescente de camponeses do trabalho agrícola, tornou-os disponíveis para o trabalho nas fábricas.
Por sua vez as fábricas deram origem a uma classe operária poderosa, que democratizou a Europa, e a uma tecnologia que assegurou a supremacia da cultura ocidental no mundo moderno (JOAQUIN, 1987, p. 14)
De fato, a batata teve sua importância para a Europa por ser um tubérculo forte, nutritivo e, a rigor, aplacador das fomes que durante séculos atormentaram os europeus. Isto posto, pode-se dizer, que depois de livres dos grandes períodos de fome (tendo a batata como um dos aliados para tal) os europeus passaram a ter mais disposição para o trabalho, principalmente o fabril, o que daí fez nascer uma classe operária realmente forte.
Assim, apesar de ter tido sua propagação pela Europa mais lenta que a do milho, a batata também exerceu grande influência sobre aquele povo, tanto quanto sobre os seus compatriotas sul-americanos.
2.3.4. Brasil
O Brasil ao ser colonizado, recebeu influência e contribuições dos fluxos migratórios advindos dos citados continentes, o que o tornou no âmbito alimentar, um país de variados e distintos hábitos alimentares. Torna-se necessário dizer que a vinda de portugueses e africanos, inicialmente, e logo a seguir de espanhóis, holandeses ... deu ao Brasil um caráter policultural ao nascente país.
Por ser de elevada extensão territorial, o Brasil convive com variados hábitos alimentares regionais, diferentes formas de preparação de um mesmo prato são evidenciadas de uma região para outra, como também é freqüente o costume de se associar determinado tipo de alimento a uma determinada região ou estado, fato que é endossado pelo presente fragmento:
... o ato de comer cristaliza estados emocionais e identidades sociais. Fora do país, posso tornar uma comida regional emblemática da identidade nacional, mas dentro do Brasil, identifica muitas regiões e até famílias pelo modo com que preparam e servem certos alimentos. Um verdadeiro sistema de "comidas totêmicas" permite exprimir identidades sociais. Todos sabem que queijo é comida de rato, do mesmo modo que farinha é comida de nordestinos, tutu com lingüiça comida de mineiros, churrasco comida de gaúcho, etc (DAMATTA, 1987, p. 22/3)
A rigor, o processo alimentar passa por nuanças que só são perfeitamente compreensíveis por aqueles que se encontram envolvidos no mesmo, ou seja, as particularidades da alimentação brasileira são entendidas como teias de significados culturais e simbólicos que exercem forte influência sobre os atores sociais que se encontram envoltos no processo alimentar brasileiro.
O processo alimentar é fisiológico e cultural. Fisiológico porque quando nos alimentamos estamos proporcionando energia ao corpo ao passo que satisfazemos nossas necessidades e/ou quando nos preocupamos com a qualidade dos alimentos ingeridos, para que não possam causar problemas de saúde. Cultural, porque implica nos usos e escolhas, no gosto por este ou aquele alimento, na regionalização e nas relações de classes, dentre outras, como nos destaca a citação a seguir:
As figuras emblemáticas regionais podem, assim ser vistas como marcas exteriores de distinção, condensadoras e sintetizadoras de idéias, imagens e representações sociais. Nesta perspectiva, procurar os temas recorrentes a elas relacionadas, os elementos culturais constitutivos e associados (traços, manifestações e práticas culturais – que agem como indicadores marcando e demarcando grupos e envolvendo pertencimentos), não implica em reduzi-los a uma listagem de itens cuja ocorrência delimitaria fronteiras circunscrevendo uma dada identidade social/cultural geograficamente ocorrente, rígida e descontextatualizada, com vida independente do grupo. (MACIEL, 1995, p. 34)
Grosso modo, a regionalização do processo alimentar, está imbuída de práticas socialmente distintivas e classificatórias (muitas vezes até excludentes). É comum se associar o churrasco ao gaúcho, dizer-se que paçoca é, essencialmente, comida de nordestino e feijoada está associada aos negros.
No que tange à alimentação como integradora dos aspectos fisiológico e sócio-cultural, diz Roberto Da Matta:
De fato, pode-se argumentar que na lógica do "comer" e da "comensalidade’ brasileiras há um notável esforço de conjugação dos aspectos universais da alimentação (o seu valor nutritivo, a sua capacidade de gerar energia e sustentar o corpo, o seu teor protéico etc.) com suas definições simbólicas, posto que "nem só de pão vive o homem" e o ato de comer tem uma enorme importância social (DAMATTA, 1987, p. 22)
Como nos foi apresentado no fragmento acima, o brasileiro escolhe a sua alimentação procurando unir o valor nutritivo do alimento ao seu caráter simbólico e cultural. Por isto é perfeitamente compreensível essa regionalização alimentar existente no Brasil; grosso modo, torna-se imperioso mencionar que ela existe e é explicada não apenas pela extensão territorial brasileira, como também pelas diferenças culturais existentes, inclusive, dentro de uma mesma região.
O Brasil se caracteriza por possuir uma grande variedade de alimentos, tais como, gado (bovino, suíno, caprino e ovino); caça de variados tipos; cereais (feijão, milho, arroz, trigo, soja, etc.); verduras e legumes dentre outros. Além da comida é necessário mencionar aqui, alguns tipos de bebidas típicas do Brasil, especialmente em algumas ocasiões (comemorações, reuniões aos finais de semana etc.): licor, vinho, cerveja e a tradicional cachaça1 (aguardente).
A região Nordeste, em particular, o sertão do Rio Grande do Norte, apresenta os seguintes alimentos: a tradicional carne de gado (fresca e seca), caças2 diversas – preá (Galea spixii spixii), mocó (Kerodon rupestris), tejo (Tupinnambis teguixim) e avoante (Zenaida auriculata noronha) dentre outros –, os suínos, caprinos, ovinos, farinha, rapadura, leite, manteiga do sertão (ou da terra), batata-doce, jerimum (abóbora), feijão (especialmente o macássar ou, popularmente feijão de corda) e uma pouca quantidade de peixes de água doce.
Em Areia Branca-RN, local da pesquisa em questão, por ser uma cidade litorânea, evidencia-se a presença de uma variado número de peixes (sardinha, tainha, carapeba, parum, serra, arraia, cavala, dourado, bonito, etc) além de crustáceos (camarão, lagosta, lagostim, siri, caranguejo) e moluscos (búzios e sururu).
Além dos já citados alimentos marinhos, era (e ainda é) fácil encontrar alguns produtos típicos do sertão em Areia Branca, tais como a rapadura, a farinha e alguns tipos de caça (em especial o preá e o avoante ou avoete, como é mais conhecida). Isto nos mostra, de um lado, a evolução econômica, e de outro, a importância do fator cultural (hábitos alimentares) para a vida humana, fato que nos corrobora o presente fragmento:
As plantas de cultivo não param de viajar e de alterar a vida dos homens. Mas os seus movimentos fazem-se naturalmente, levem séculos, por vezes milênios.
Após a descoberta da América, porém, estes movimentos multiplicaram-se, aceleram-se.
As plantas do Velho Mundo chegam ao Novo; inversamente aos do Novo Mundo chegam ao Velho: de um lado, o arroz, o trigo, a cana-de-açúcar, o cafezeiro...; de outro, o milho, a batata, o feijão, a tomate, a mandioca, o tabaco... (BRAUDEL, 1997, p. 144).
Porém, estas trocas não só ocorreram entre produtos vegetais, como também o tempo de adaptação a estas trocas alimentares não vão chegar a ser de milênios, embora tenha levado algum tempo para se concretizar. (Cf. CASCUDO, 1983).
CAPÍTULO III - ANÁLISE DOS RESULTADOS
3.1 Configuração sócio-histórico-cultural do município de Areia Branca-RN
Antes de adentrar-se nos resultados da pesquisa é imperioso que se faça uma caminhada pelos trilhos da memória, no sentido de mostrar as nuanças vividas pela população local desde a sua fundação até a atualidade. É importante traçar um elo de ligação entre o passado e o presente de Areia Branca para que o estudo dos seus hábitos alimentares não se resumam apenas ao momento atual, mas que sejam analisados num contexto mais amplo que priorize a relação sócio-histórico-cultural dos atores sociais envolvidos neste processo.
3.1.1 Aspectos históricos-culturais
311.1 Generalidades acerca das origens de Areia Branca-RN
Falar sobre Areia Branca-RN é, antes de tudo, fazer um resgate da memória histórica que em nossa realidade encontra-se muito debilitada por falta de interesse e incentivo à pesquisa histórica. Não se nega a importância de algumas produções que visam relatar o passado da referida cidade, mas estas ainda são insuficientes, tradicionais e, de uma forma ou de outra, ligadas ao poder.
Os primeiros registros sobre Areia Branca-RN datam do século XVII, especialmente de 1641, no curto período em que o Nordeste esteve sob o domínio holandês1 (1637-1644). Tais registros foram feitos por Gedeon Morris de Jonge (ou Gedeão Morritz) chefe da guarnição do Ceará, que fazendo um reconhecimento do terreno, especialmente, à procura de sal, admirou-se por encontrar nesta região uma imensa quantidade do referido produto e de salinas naturais. Corroborando tal afirmação dizem Rosado e Rosado citando Souza:
Nela tratei do que se passou e de minha resolução de ir observar a situação das salinas do rio Ivipanim e de outros lugares. Isto fiz com toda a diligência e Deus seja louvado por as ter achado tais que admira-me já não se houvesse feito maior diligência, para examinar-las (sic) portanto é de V. Excia e Vv. Ss. bem conhecida a importância da navegação do sal, negócio este que suponho interesse a Pátria e a Companhia... (ROSADO e ROSADO, 1987, p. 16).
O sal era trazido da Companhia das Índias Ocidentais Holandesas e da França para abastecer os batavos que se encontravam no Nordeste do Brasil; a descoberta de sal, em quantidade mais que suficiente, por Gedeon Morris de Jonge iria poupar (ou acabar) as viagens dos navios que saíam de Pernambuco em direção à Companhia das Índias Ocidentais e à França. Eis o motivo da admiração e alegria de Jonge.
O sal é um produto de grande valia e utilidade tanto para o consumo humano, como para a pecuária, alguns ramos industriais, salga a conservação de alimentos, dentre outras funções. Foi por ele ter tanta importância que Gedeon Morris se alegrou bastante ao encontrá-lo em abundância às margens do rio Iwipanim (ou Ivipanim), por sinal bastante mencionado por ele:
O rio Iwipanim demora cerca de 50 léguas a leste do Ceará e cerca de 60 a oeste do Rio Grande. A salina fica no braço ocidental do rio, coisa, (sic) de 3 léguas de margem, de sorte que os barcos e os botes que vierem tomar sal poderão aproximar-se até três quartos de légua da salina.
Aquele belo espetáculo satisfez os meus sentidos, mas não, (sic) completamente porque o sal, fica muito longe do rio (...). Pensei então se não aprovaria a Deus que eu descobrisse (...) uma salina melhor situada (...). Segui para aí e encontrei uma ótima salina com a extensão de quase uma légua, ..., e tendo de largura seguramente a oitava parte de uma légua (SOUZA in ROSADO e ROSADO, 1987, p. 16/17).
Em sua caminhada exploratória, Morris encontrou sal, mas ele estava localizado muito adiante das margens do rio Ivipanim, fato que provocou sentimento ambíguo no mencionado explorador: se por um lado ele estava feliz por encontrar o referido produto, por outro via um ponto negativo, qual seja, a distância do rio para o local onde encontrava-se o sal.
A título de maiores esclarecimentos sobre o rio e as salinas temos os seguintes fragmentos:
O rio Iwipanim de tão suficiente citação de Gedeon Morris é o mesmo Apodi, (sic) ou Upanema era por assim dizer o mesmo Iwipanim crismado por Gedeon Morris em 1641. Duas barras formavam o seu curso na desembocadura do mar, sendo que a do Upanema o tinha no sítio da Entrada, no lugar chamado Coqueirinho ou Barra do Morro Branco. A mesma desapareceu no fim XVIII, obstruída pelas areias.
As salinas percorridas por Gedeon Morris, pela sua descrição teriam sido... as que demoram à margem esquerda do rio Apodi e que de há tempos são conhecidos pelos nomes de Grossos, Boi Morto, Baixa Grande, Ilha do Vieira, Góis (sic), Jurema e Ilha do Algodão (SOUZA, 1995, p. 270)
De acordo com o que nos indica Medeiros (1978, p. 13), o rio e as salinas percorridos pelo comande Holandês, localizam, respectivamente, em terras dos atuais municípios de Areia Branca, Grossos e Mossoró. Tal feito mostra que Morris de Jonge, veio realmente com o afã de encontrar a maior quantidade de sal possível, em local que ficasse fácil para o seu transporte; no que se conclui que ele era, de fato, uma pessoa com forte tino para exploração, e porque não dizer para o comércio.
Embora alguns historiadores considerem, ter sido os holandeses, os primeiros a explorar o território onde localiza-se Areia Branca, Grossos e Mossoró, todavia, há fortes indícios que a citada região tenha sido explorada primeiro por portugueses, como nos afirma a presente citação:
Entretanto, os drs., Tavares de Lira e Vicente Lemos corrigem este engano do nosso primeiro historiador2 e afirmam que as salinas foram descobertas e exploradas "desde o começo do século XVII pelos portugueses colonizadores." Vejamos: "Em 1604 consoante narra Frei Vicente do Salvador em sua História do Brasil de 1627,..., o desventurado Capitão-Mor Pero Coelho teve as suas forças desbaratadas na luta que empreendera contra os franceses aliados dos selvagens, na serra Ibiapaba (Ceará) e recuando pelo litoral em longa retirada "depois de transpor o Jaguaribe em cuja margem esquerda o abandonara Diogo Botelho, vencidas algumas jornadas atravessou as salinas". E descreve que "o sal é branco como a neve e faz que aquelas paragens sejam vistosas e povoadas" acrescenta-se que nos aludidas marinhas "naturalmente se coalha sal em tanta quantidade que poderia carregar grandes embarcações" (MEDEIROS, 1978, p. 11).
É bem provável que realmente tenham sido os portugueses os primeiros a explorar as terras onde situam-se os municípios supracitados – Areia Branca, Grossos e Mossoró -, visto que, foram eles, conforme nos faz crer a historiografia oficial, que descobriram e colonizaram o Brasil.
Quando chegaram ao Brasil em abril de 1500, os portugueses aportaram em terras nordestinas, especificamente onde hoje localiza-se o estado da Bahia. Seguindo este raciocínio podem ter sido os portugueses os primeiros a fazer incursões pelas salinas naturais do atual estado do Rio Grande do Norte (especialmente as que localizavam na região de Areia Branca, Grossos e Mossoró), visto que, naquele período a Europa vivia a efervescência da expansão ultramarina. Logo, a expansão ultramarina européia, implicava no aumento progressivo de mercadorias que pudessem impulsionar o comércio no Velho Mundo, grosso modo, seria bastante lógico para Portugal ao descobrir estas terras, tivesse a idéia de explora-la com o fito de encontrar algum produto que pudesse ser comercializado na Europa.
Descobriu-se o pau-brasil, importante mercadoria na Europa, por fornecer matéria-prima para a feitura de tintas para tecidos. Ora, se o mencionado produto era valioso e abundante, por que não procurar outros que expressassem as mesmas características? De certo, outros foram procurados, todavia, o valor econômico do pau-brasil não fora suplantado
Foi só em 1627, como nos informou Medeiros (1978), que o Capitão-Mor português Pero Coelho, tentando escapar das investidas dos piratas franceses3, no Ceará, chegou a estas terras onde encontrou salinas naturais extensas, cujo sal era alvo assemelhando-se à neve. A partir desta informação de Medeiros (1978) conclui-se que o sal passou a ser mais um produto comercial, visto que:
Em suma e no essencial, todos os grandes acontecimentos desta era, que se convencionou com razão chamar "dos descobrimentos", articulam-se num conjunto que não é senão um capítulo da história do comércio europeu. Tudo que se passa são incidentes da imensa empresa comercial a que se dedicam os países da Europa a partir do séc. XV, e que lhes alargará o horizonte pelo Oceano afora. Não tem outro caráter a exploração da costa africana e o descobrimento e colonização das Ilhas pelos portugueses, o roteiro das Índias, o descobrimento da América (...). É sempre como traficantes que os vários povos da Europa abordarão cada uma daquelas empresas lhes proporcionarão sua iniciativa, seus esforços, o acaso e as circunstâncias do momento em que se achavam (PRADO JÚNIOR, 2000, p. 22/23).
Na era dos descobrimentos vivia-se no mercantilismo, cujo objetivo precípuo são as trocas mercantis entre países, logo, era mister que os países tivessem mercadorias que pudessem interessar aos outros países, para que assim, o comércio fosse contínuo.
De certo, o sal passou a ser essa "nova" mercadoria a ser negociada no comércio europeu, dada a sua grande importância, pois o mencionado produto tem muitas utilidades; fato que nos corrobora a presente citação:
O sal servirá para nos chamar à ordem pois este bem tão vulgar representa um comércio universal, obrigatório; é um bem indispensável aos homens, aos animais, à salga das carnes e dos peixes, tão importante que os governos se interessam por ele. É uma grande fonte de riquezas para os estados e para os mercadores, tanto na Europa como na China;
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Essencial, insubstituível, o sal é um alimento sagrado ("no hebraico antigo como na língua malgaxe atual, alimento com sal é sinônimo de alimento sagrado"). Na Europa dos comedores de insípidas papas farináceas, origina um grande consumo (BRAUDEL, 1997, p. 185/6).
Como se vê o sal tem notável importância. E era por ter todo este valor que ele passou a fazer parte dos produtos de exportação da Coroa Portuguesa, visto que, sendo ele indispensável à vida humana (e também animal) ia ter sempre o seu lugar de destaque no comércio mundial. Fato semelhante ocorria com outros produtos que demandassem um considerável valor comercial e de troca. Naquela época, vivia-se sob a égide do mercantilismo, cuja característica principal era a expansão colonial em busca de mercados consumidores e de produtos que tivessem algum valor pecuniário. Isto foi o que aconteceu com o Brasil: transformou-se numa colônia de exploração portuguesa:
A História do Brasil, nos três primeiros séculos, está intimamente ligada à da expansão comercial e colonial européia na época moderna. Parte integrante do império ultramarino português, o Brasil-colônia refletiu, em todo o largo período de sua formação colonial, os problemas e os mecanismos de conjunto que agitaram a política imperial lusitana. Por outro lado, a história da expansão ultramarina e da exploração colonial se desenrola no amplo quadro da competição entre as várias potências, em busca do equilíbrio europeu, desta forma, é na história do sistema geral da colonização européia moderna que devemos procurar o esquema de determinações dentro do qual se processou a organização da vida econômica e social do Brasil na primeira fase de sua história. (NOVAIS in MOTA, 1988, p. 47)
O Brasil, enquanto colônia de exploração, cabia oferecer à sua metrópole, Portugal ,as condições necessárias para a sua exploração, qual seja, proporcionar ao colonizador português todo e qualquer produto que pudesse ser motivo de lucro. Com a região de Areia Branca, não foi diferente, aqui também foi encontrado algo que pudesse ser objeto de lucro – o sal -, fato que nos elucida a presente inferência:
A exploração e exportação dessas nossas marinhas de salinização natural datam de 1630, conforme ficou esclarecido na correspondência... de Adriano Werdonck, datada de 20 de maio daquele ano, dirigida ao Conselho Político do Brasil e na qual, referindo-se as atividades no Forte dos Reis Magos,..., assinala que "quando ali havia falta de sal, o Capitão-Mor do Rio Grande mandava um ou duas barcas de 45 a 50 toneladas a um lugar distante 60 milhas para o Norte onde existiam grandes e extensas salinas que a natureza criou por se e onde podiam carregar mais de mil navios com sal que era mais forte que o espanhol e alvo como a neve" (SOUZA apud MEDEIROS, 1978, p. 11)
De acordo com Medeiros (1978, p. 11), a descoberta das salinas de Areia Branca, pelo Capitão-Mor Pero Coelho, ocorreu quando este, depois de ter sua tropa desbaratada pelos invasores franceses, que por sinal eram aliados dos índios empreendeu fuga pelo litoral, até que, depois e longa retirada deparou-se com enormes salinas naturais que podiam carregar embarcações de 45 a 50 toneladas. E eis que, por acaso, Areia Branca houvera sido encontrada (descoberta).
Com o fito de clarificar os acontecimentos, é mister dizer que, naquele momento os franceses invadiam as terras brasileiras, em busca de pau-brasil e/ou de qualquer outro produto que pudesse ter valor na Europa, visto que, quando foi assinado o Tratado de Tordesilhas (1494), o rei Francisco I da França não o reconheceu como legítimo e passou a praticar pirataria no Novo Mundo, especialmente no Brasil. Não só a França, como também, Inglaterra, Holanda e até a Espanha, beneficiada com o referido tratado, aproveitavam-se das técnicas de navegação portuguesas, para explorar a colônia portuguesa no Atlântico, como nos corrobora o presente fragmento:
Aqui ainda, Portugal foi um pioneiro. Seus primeiros passos, neste terreno, são nas ilhas do Atlântico, postos avançados, pela identidade de condições para os fins visados, do continente americano, e isto ainda no séc. XV. Era preciso povoar e organizar a produção: Portugal realizou esses objetivos brilhantemente. (...), os portugueses sempre aparecem como pioneiros. Elaboram todas as soluções até seus menores detalhes. Espanhóis, depois ingleses, franceses e os demais não fizeram outra coisa, durante muito tempo, que navegar em suas águas; mas navegaram tão bem, que acabaram suplantando os iniciadores e arrebatando-lhes a maior parte, se não praticamente todas as realizações e empresas ultramarinas (PRADO JÚNIOR, 2000, p. 24).
No dizer de Caio Prado Júnior, os portugueses enfrentaram todas as dificuldades e se lançaram ao mar inaugurando uma grande e lucrativa empresa ultramarina, enquanto os demais se achavam no direito, depois de seguir a rota traçada pelos portugueses, de se apropriar das terras e de tudo que nelas existisse. Mesmo não conseguindo se apropriar totalmente da colônia portuguesa, todavia, os mencionados países conseguiram ter mais êxito econômico que Portugal.
Depois destes esclarecimentos, é mister lembrar que o fulcro de nossa análise, neste momento é a chegada do Capitão-Mor Pero Coelho a estas terras, consolidando a visão de Francisco Fausto de Souza apud Medeiros (1978), de que foram realmente os portugueses os primeiros a fazer incursões por estes lados; quanto a isto há bastante lógica, por terem sido os portugueses os descobridores do Brasil ou, dito de outro modo, os primeiros a se apossar destas terras com intenções mercantilistas4.
Há que se fazer alguns questionamentos acerca do abandono dos portugueses a este lugar: primeiro, por que abandonar tão cedo (especialmente onze anos), um negócio que poderia ter rendido muitas divisas?; segundo, o que teria feito acontecer tal abandono?; a distância do Forte dos Reis Magos para este lugar ou a falta de lucratividade no negócio?
As perguntas se multiplicariam, todavia, iriam sempre encontrar-se sem respostas, pois, um ou mais de um, quem sabe, uma conjugação de fatores, tenham feito os portugueses deixarem de explorar o sal da costa areiabranquense, fatores estes, que possam estar fora das nossas cogitações.
Logo, tendo sido os portugueses ou os holandeses os primeiros a pisar este território com intenções exploratórias, o que se evidencia é que ambos tiveram um só objetivo: a exploração do sal marinho. Todavia, ambos não puderam permanecer em tal atividade por muito tempo: em relação aos primeiros não há registros que demarquem o tempo exato da exploração; já os holandeses, no dizer de Cascudo apud Medeiros (1978, p. 11), tiveram um curto período de exploração, qual seja, de 1641 a 1643, portanto, dois anos de exploração.
Depois da "descoberta" holandesa quase não há registros que tratem especificamente de Areia Branca, mas há alguns que versam sobre o povoamento dos povoados de Grossos e Barra: "A vila de Grossos e o povoado da Barra (sic) então pertencentes ao município de Areia Branca e situados à margem esquerda do rio Mossoró, foram os primeiros lugares habitados na ribeira de Mossoró." (MEDEIROS, 1978, p. 15)
Os povoados de Areia Branca, foram habitados primeiro do que sua região central. A exemplo de Grossos5 e Barra, Entrada, Ponta do Mel, Freire e Redonda também foram habitados muito tempo antes deste local ser habitado. Até mesmo Chiqueiro das Cobras – hoje praia de Upanema -, distante pouco mais de um quilômetro teve sua habitação em período anterior a de Areia Branca, como nos comprova o seguinte fragmento:
Grossos, Barra, Tibau localizados à margem esquerda do rio "Mossoró" e Upanema, Freire, Entrada, Redonda e Ponta do Mel à margem direita já eram núcleos populacionais de crescente densidade quando ainda se encontrava inteiramente desabitada esta ilha que seria, muitos anos depois, a sede administrativa do Município de Areia Branca (id, 1978, p. 18).
A área onde hoje situa-se a cidade de Areia Branca-RN, custou muito para começar a ser habitada justo porque em 1697, Bernardo Vieira de Melo6 concedeu sesmarias a moradores de Recife, os quais passaram a habitar "das casinhas de Ponta do Mel pela costa para as bandas do rio upanema e três léguas um quadro que estavam devolutas" (ROSADO apud MEDEIROS, 1978, p. 18). Grosso modo, a partir daí passaram a ser habitados Freire, Amaro e Entrada, povoados que mais tarde integrariam o município de Areia Branca. Logo, conclui-se que a zona rural funcionou como impulsionadora para o surgimento da zona urbana, visto que, a medida que o crescimento demográfico ia aumentando, embora que de forma lenta, aumentava também a necessidade de se habitar novas terras.