Pesquisa descritiva-exploratória sobre as relações existentes no processo alimentar. Baseia-se na temática cultura para indagar como o desenvolvimento poderia ser fator de influência sócio-histórico-cultural do município de Areia Branca, no estado do Rio Grande do Norte. As leituras sobre a temática, os depoimentos dos cidadãos, as respostas dos questionários e os fenômenos do cotidiano possibilitaram a penetração no objeto investigado, cujos resultados denotam que: a formação dos preços dos produtos agro-alimentários - onde o destaque é dado à relação mercadológica criada em torno do produto e a produção de alimentos e desenvolvimento, cuja atenção é dada à reflexão sobre a importância da produção de alimentos para a consecução do desenvolvimento, inclusive, o desenvolvimento sustentável.
Há também uma contextualização histórica e sócio–cultural, quando se trabalha as relações de classe e as formas de apropriação dos códigos culturais contidos na alimentação, isto é, o quê come o rico e o quê come o pobre e o significado da diferenciação de classes quando existe um alimento que lhes é comum.
Destacam-se as contribuições culturais dadas pelas civilizações africanas, européias, americanas e brasileiras na formação de um cardápio nacional. Há pois, a junção dos vários hábitos alimentares, de modo que juntos formem os costumes alimentares pátrios. O delineamento dessa configuração histórica do município em estudo, mencionando as presenças holandesa e portuguesa na região, seu processo de colonização e os aspectos políticos e econômicos que fizeram parte da formação do município, contribuem para o esclarecimento da sustentabilidade das práticas alimentares locais. Finalmente, os dados colhidos apontam para a insustentabilidade dos hábitos alimentares areia-branquenses relativos à escolha e uso dos mesmos em relação com a sua produção, o que denota a necessidade da realização de investigações sobre o monitoramento dos produtos alimentares em consumo naquele município.
Palavras-chaves: Processo alimentar; contextualização histórico-cultural; códigos culturais; sustentabilidade.
ABSTRACT
Descriptive-exploratory researches about the existent relationships in the alimentary process. It is based on the thematic culture to investigate as the development could be factor of social-historical-cultural influence of the municipal district of Areia Branca, in the state of Rio Grande do Norte. The readings about the thematic, the citizens' depositions, the answers of the questionnaires and the phenomena of the daily made possible the penetration in the investigated object, whose results denote that: the formation of the prices of the agro alimentary products -- where the prominence is given to the relationship of market created around the product and the production of food and development, whose attention is given to the reflection about the importance of the production of food for the attainment of the development, besides, the maintainable development.
There are also a historical and social–cultural context, when it works the class relationships and the forms of appropriation of the cultural codes contained in the feeding, that is, that the rich eats and that the poor eats and the meaning of the differentiation of classes when there is a food that is them. The cultural contributions given by the African, European, American and Brazilian civilizations stand out in the formation of a national menu. There is then, the junction of the several alimentary habits, so that together they form the native alimentary habits. The delineation of that historical configuration of the municipal district in study, mentioning the Dutch and Portuguese presences in the area, its colonization process and the political and economical aspects that were part of the formation of the municipal district, contribute to the explanation of the sustenance of the local alimentary practices. Finally, the picked data point out for the non-sustenance of the alimentary habits of the citizens of Areia Branca with regard to the choice and use of the same ones regarding its production, what denotes the need of the accomplishment of investigations about the attendance and evaluation of the alimentary products in consumption in that municipal district.
Word-keys: Alimentary process; historical-cultural context; cultural codes; sustenance.
A alimentação é condição essencial à sobrevivência dos seres vivos. No que tange aos seres humanos, em especial, além de estar ligada ao fator biológico – representado um elemento primordial para a continuidade da espécie -, a alimentação liga-se intrinsecamente à cultura, de forma que cada país, região, numa palavra, grupos sociais apresentavam consumos alimentares distintos uns dos outros. É isto que os particulariza.
Atrelada à necessidade biológica da alimentação estão elementos culturais como a cor, sabor, nutrição, preocupação com a saúde, motivos religiosos e o gostar ou não do alimento preparado. O homem além de ser um animal biológico é um animal social, que, a rigor, expressa simbolismo na maioria de suas ações, ou seja, há um significado para cada ato realizado.
Considerando o que foi mencionado é mister que se veja os passos da presente pesquisa:
O problema – como o desenvolvimento influencia em termos sócio-histórico-culturais, as práticas alimentares?
Como toda sociedade tem seus hábitos alimentares com Areia Branca-RN, não podia ser diferente. A presente pesquisa objetiva estudar os hábitos alimentares locais e sua relação com a sustentabilidade. Baseados na temática cultural construímos a problemática indagando como o desenvolvimento poderia ser fator de influencia sócio-histórico-cultural do município de Areia Branca em relação com a sustentabilidade de suas práticas alimentares. Ou seja, questionamos essencialmente a existência da sustentabilidade da alimentação areiabranquense.
Para justificar a referida pesquisa, mencionamos a ausência de estudos sobre o processo alimentar numa perspectiva histórica, fato que nos motivou a investigar o caráter simbólico da alimentação dos areiabranquenses e sua relação com a sustentabilidade. Enfocamos a importância do uso e escolha dos alimentos do ponto de vista sócio-histórico-cultural e econômico, de modo que o estudo contribui tanto para a história – visto que liga-se intimamente à perspectiva da História dos Annales, que valoriza as ações do cotidiano, do imaginário social – como para a Antropologia Social (Etnografia), corroborando a importância científica deste estudo. A relevância social deste trabalho traduz-se na contribuição proporcionada ao universo pesquisado, quando oferece condições de análise do fenômeno alimentar do ponto de vista simbólico, estético despertando na população uma maior criticidade sobre a importância dos alimentos, tanto sob a ótica nutricional como sócio-cultural.
O estudo teve como objetivo geral, investigar a relação entre a sustentabilidade e o caráter simbólico da alimentação cotidiana da população de Areia Branca.
Tendo em vista a abrangência do objeto, os objetivos específicos trabalhados foram o fenômeno sócio-cultural dos areiabranquenses; a relação existente entre os hábitos alimentares locais e a sustentabilidade; a análise da influencia cultural das três raças (o branco, o negro e o índio) no desenvolvimento do processo alimentar, de maneira a enfocar as relações de classes inseridas no referido processo. E, finalmente, o enfoque dado à importância do fator econômico no uso e escolha dos alimentos.
Neste sentido, evidencia-se as seguintes categorias de análise: 1) fenômeno sócio-cultural da população; 2) hábitos alimentares; 3) influencia étnica na alimentação; 4) influência do poder aquisitivo na opção alimentar.
Hipótese – os hábitos alimentares dos areiabranquenses não estão de acordo com os parâmetros da sustentabilidade em decorrência de valores culturais, sociais e econômicos.
Tendo em vista a abrangência do objeto, os objetivos específicos trabalhados foram o fenômeno sócio-cultural dos areiabranquenses; a relação existente entre os hábitos alimentares locais com a sustentabilidade; a análise da influência cultural das três raças (o branco, o negro e o índio) no desenvolvimento do processo alimentar, de maneira a enfocar as relações de classes inseridas no referido processo, e, finalmente o enforque dado à importância do fator econômico no uso e escolha dos alimentos.
As hipóteses que nortearam o nosso trabalho foram as seguintes: a sustentabilidade da produção agropecuária é inexistente devido às modificações ambientais provocadas pelas salinas e pela expansão urbana de modo a reduzir os produtos agropecuários produzidos localmente; existe sustentabilidade na produção pesqueira de Areia Branca, embora questione-se até que ponto a produção de peixes nobres e crustáceos seja comum a todos os estratos sociais locais; e também enfatizamos que os hábitos alimentares dos areiabranquenses não estão de acordo com os parâmetros do Desenvolvimento Sustentável.
A título de conclusão é imprescindível que vejamos a estrutura dos capítulos: o Capítulo I trata, inicialmente, da relação entre alimentação e cultura, constituindo-se, a rigor, no fulcro deste capítulo. A seguir, versa sobre a questão dos tabus alimentares, enfocando a dimensão simbólica do processo alimentar; no capítulo II o enfoque está nas relações de classe e nas formas de se apropriar dos códigos culturais contidos na alimentação. Em tese, se acoplará a teoria Bourdiediana do habitus às relações simbólicas da alimentação. Finalmente, o capítulo III versa sobre o epicentro da investigação. É enfocada a abordagem dos aspectos sócio-histórico-culturais, trata-se também da importância sócio-econômica do município, dando-se especial destaque aos meios de produção locais. Finalizando, destaca-se também a relação existente entre a cultura alimentária areiabranquense e a sustentabilidade dos alimentos.
CAPÍTULO I - CULTURA ALIMENTÁRIA
1.1 – Alimentação e cultura
A alimentação é essencial à vida humana e à perpetuação da espécie, mas, mesmo assim, quase não se indaga sobre o processo de consecução dos alimentos, sua importância nutricional, sua relação com o desenvolvimento sócio-econômico, e, ainda por cima, a diferenciação de classes sociais, ou seja, o que come o rico e o pobre e o porquê dessa diferença. Explorando um pouco mais o campo das relações de classes, é mister dizer que:
Levar a sério a noção de estrutura social supõe que cada classe social, pelo fato de ocupar uma posição numa estrutura social historicamente definida e por ser afetada pelas relações que a unem às outras partes constitutivas da estrutura, possui propriedades de posição relativamente independentes de propriedades intrínsecas como por exemplo um certo tipo de prática profissional ou de condições materiais de existência. Sem dúvida, as propriedades de produção e as de situação só podem ser dissociadas por uma operação do espírito - pelo simples fato de que a situação de classe pode também ser definida como posição no sistema de relações de produção e, sobretudo porque a situação de classe define a margem de variação, (...), deixada às propriedades de posição. (BOURDIEU, 1992, p. 3/4).
É preciso dizer que há uma distinção de classe causada essencialmente pelo exercício profissional, como também pelas condições materiais de existência, gerando, a rigor, uma situação de classe. Novamente, é Pierre Bourdieu quem vai clarificar os fatos, ou seja, para justificar as diferenças de classes se criou a estilização de vida, uma tentativa de diferenciação de classe, exemplificando: as classes abastadas adquirem objetos que só elas podem comprar, então, às vezes, esses objetos passam da categoria luxo à necessidade, e, quando isso acontece, aquilo que era visto como distinção de classe se populariza (a televisão e a geladeira são exemplos disso), mas, há casos em que a estilização de vida permanece, por exemplo, os ricos podem degustar caviar e escargot, dentre outros pratos exóticos e muito caros, coisa que os pobres jamais poderão fazer, dada a sua inferior posição na pirâmide social.
A cultura alimentária (ou história da alimentação) é o estudo do processo alimentar que envolve as particularidades das comidas, seus sistemas de produção e conseqüentes modelos de consumo. É parte significativa do caminhar da humanidade e dos seus múltiplos aspectos, quais sejam econômicos, sociais, políticos, culturais... Além de representar a satisfação de uma das necessidades básicas (sobrevivência através da alimentação), a comida é também, instrumento de prazer, por exemplo, quando se gosta de um determinado prato é comum que se prepare um clima especial para a sua degustação e também que se cometa o "pecado da gula". Pode-se dizer que necessidade e prazer caminham em paralelo e que entre esses dois pólos se desenvolve uma história difícil e complexa, condicionada pelas relações de poder e pelas condições sociais. Grosso modo, uma história de fome e abundância, na qual o imaginário cultural desempenha um papel decisivo, é essencial no estudo da cultura alimentária. (Cf. MONTANARI, 1993, p. 11).
A alimentação não é apenas um ato mecânico de simples satisfação das necessidades básicas. Ao seu lado, travam-se relações e situações que a traduzem como sendo possuidora de grande dinâmica social, como nos confirma a citação a seguir:
Comer serve não só para manter a máquina biológica do nosso corpo, mas também para concretizar um dos modos de relação entre as pessoas e o mundo, desenhando assim uma de suas referências fundamentais no espaço-tempo. Isso se pode perceber muito bem entre os velhinhos internados no asilo que reclamam obstinadamente pelo respeito aos seus antigos hábitos alimentares. (GIARD, 1998, p. 250).
Como se percebe, a dimensão simbólica e a noção de pertencimento estão bastante presentes, ou seja, ao reclamarem o respeito por seus antigos costumes alimentares, os velhinhos querem fazer valer os seus direitos de cidadãos, de um lado, e de outro, aspiram que as suas tradições, os seus antigos modus vivendi, não se extingam por completo, fazendo-lhes sentir sem identidade. Evidencia-se, portanto, um embate passado versus presente, onde este último tem grandes chances de sair vencedor.
Quando se fala da cultura alimentária é imperioso mencionar também, a importância da fome no seu desenvolvimento. A Europa, entre os séculos III a VI, enfrentou grandes crises alimentícias tendo grande parte de sua população dizimada por suas conseqüências, mas, são também esses períodos agudos de inanição que forçam as pessoas a procurarem alimentos alternativos para continuarem a subsistir. Este fato nos é elencado pelo fragmento a seguir:
La crisis emprezó, tal como hemos dicho, en el siglo III. Se agudizó en el IV y el V, y en algunas regiones, como Italia, Ilegó a sua ápice en el VI. Los hombres, por lo menos uma decena de geraciones, tubieron que acostumbrarse a ella, y puede que ni siqueira imaginaram que se pudiera vivir de outra forma. Poco a poco fueron elaborando técnicas de supervivencia adaptadas a los << tiempos dificiles >>.
Sin duda, no faltaban los dramas, como cuando una inundácion, una helada o una sequia destruiam las cosechas; cuando partidas de hombres armados recorríam los campos e se queaban; (...) Entonces la escasez de alimentos hacia que se buscaran soluciones de urgencia, como hierbas y raíces desacostumbradas, panes estraños y carnes e todo tipo, algo que también se há visto en época muy reciente durante los años terribles de guerra. (MONTARANI, 1993, p. 13-14).
A rigor, a situação européia nos mencionados séculos, era realmente catastrófica. Porém, convém elucidar, que pelo menos, teoricamente, não faltavam recursos; o que faltava era organização dos sobreviventes para o seu melhor aproveitamento: existiam grandes extensões de bosques, pradarias naturais e pântanos, espaços não cultivados, que, a partir do século III, passaram a ser melhor aproveitados através de cultivos (Montanari, 1993, p. 16). In lato sensu, foi preciso que houvesse grandes catástrofes para que aquelas pessoas pudessem perceber o potencial e as possibilidades de exploração que existiam ao seu redor, e criassem meios práticos material e cultural. Infere-se com isso, que às vezes, até as hecatombes são necessárias para que uma sociedade, ou melhor, civilização burle os seus mecanismos de sobrevivência a partir dos elementos que lhe são apresentados de imediato. Ou seja, é o que hoje é denominado por desenvolvimento local.
Como foi mencionado, houveram grandes crises alimentares que se estenderam por séculos; e na tentativa de vencê-las as pessoas passaram a comer raízes, ervas dentre outras cultivares que jamais pensariam. Se por um lado, isso tornou-se positivo, pela descoberta de novas possibilidades de alimentação dantes "adormecidas", por outro lado, trouxe, a rigor, seqüelas de proporções gigantescas à sociedade européia, especialmente, à sociedade espanhola, que ora nos referimos:
Hace unos años nuestro sistema alimentario se encontró en una situación de grave crisis, causada por las intoxicaciones producidas por el aceite de colza adulterado. Era estala crisis más peligrosa que le pudiera sobrevivir a un sistema alimentario: la desconfianza generada en los consumidores por más de medio millar de muertes por intoxicación alimenticia. Las consecuencias de esta crisis de confianza pudieron ser gravísimas para nuestro país em los aspectos seguientes: 1o) provocar la ruina de la mayoria de las empresas pequeñas e medianas; 2o) arrojar al paro a varios miles de trabajadores; 3o) reforzar la hegemonia de las grandes empresas, ligadas a las multinacionales; 4o) encarecer los precios de los alimentos por la concentración monopolista de la oferta alimentária... (TERRON, s.d., p. 33).
Pode-se dizer, que houve uma desarticulação total no modo de se perceber o processo alimentar: o pânico, a desconfiança e o medo da morte imperavam causando grande insegurança e prejuízo ao desenvolvimento, pois com a redução de braços para trabalhar nas indústrias, os capitalistas acharam por bem aumentar o preço dos alimentos agudizando mais a crise: ora, se a própria comida estava sendo motivo de mortes e recessão econômica, o aumento dos preços só veio a ratificar tudo isto.
Referimo-nos antes, a grandes números de mortes causadas pela inserção de novos alimentos, que contrariamente, poderiam representar uma nova forma de se sustentar a vida que minguava cada vez mais através de fomes, guerras, pestes. É necessário dizer, que estas inserções de novos alimentos, se por um lado levaram muitos à sepultura, por outro, trouxeram novos alimentos e novas maneiras de se alimentar à sociedade corroborando sua dinâmica em livrar-se de situações adversas.
Sendo assim, é mister afirmar que a cultura alimentária tem por instrumento de análise o desenvolvimento sócio-cultural, estando intimamente ligada às mudanças totais ou parciais no modo de se alimentar, tendo em conta que a alimentação é um fenômeno cultural que varia de acordo com as situações impostas. A rigor, sendo o homem produtor e consumidor de cultura, a alimentação para ele, não é apenas um ato mecânico, mas um ritual, uma cerimônia prazerosa, fato que nos confirma a citação a seguir:
O homem é o único ser vivo que não se alimenta somente por razões fisiológicas, ou seja, para proporcionar-se energia e satisfazer suas necessidades nutritivas e metabólicas. Seu comportamento alimentar rege-se, também, por motivos hedonistas (prazer afetivo ou emocional, proporcionado pelo consumo dos alimentos escolhidos). Responde, igualmente, à preocupação de preservar a boa saúde ou ao medo de comer alimentos tóxicos ou que tenha efeitos negativos sobre à saúde, à necessidade de respeitar mandamentos religiosos, rituais ou tradições sócio-culturais e ao desejo de melhorar a qualidade de vida ou a economia doméstica pelo preço dos alimentos. (SASSON, 1993, p. 41).
Ou seja, no modo de se alimentar do homem, há toda uma dinâmica, a expressão de seu modus vivendi que é ratificada pela maneira como ele escolhe os alimentos que lhe causam prazer, que são mais rápidos de se fazer ou ainda que apresentem um preço acessível sendo de boa qualidade. É uma gama de fatores que se une e faz o ser humano optar por este ou aquele alimento, valendo lembrar que a maioria desses fatores estão ao nível do inconsciente, do simbólico.
Grosso modo, pode-se dizer, que a alimentação é um fenômeno plural, onde se juntam sabor, odor, forma de cozimento e propensão do indivíduo a comer formando uma cadeia de significados em torno do processo alimentar.
Estudos antropológicos nos remetem à dimensões mais profundas do processo alimentar, quais sejam, as formas de aquisição e distribuição dos alimentos num contexto, onde, implicitamente, se valorizam as relações econômicas e sociais através de rituais que têm um significado extremamente diferente na interpretação dos atores envolvidos no processo. Exemplifiquemos:
A guerra começa quando um membro de um grupo local (como tsembagas) ofende um membro de outro grupo local de forma bastante grave, a ponto de se exigir vingança homicida. Essa ofensa é, normalmente, um homicídio sofrido, mas não vingado, numa guerra anterior. (p. 269). Os ciclos rituais também limitam a guerra a uma freqüência que não ameaça a sobrevivência da população regional, mas permite uma redistribuição das pessoas pela terra e da terra pelas pessoas, tendendo talvez, desta forma, a corrigir as discrepâncias entre as densidades populacionais dos diferentes grupos locais(p. 267). (RAPPAPORT, 1982, p. 267/269).
Infere-se que as épocas de realização das guerras, eram climaticamente difíceis, nas quais, nada ou quase nada era produzido tornando muito difícil a sobrevivência; então, como forma de conter a população e de garantir a vida realizavam-se antigos rituais de guerra determinada pelos espíritos e cheias de nuanças interpretativas do ponto de vista antropológico. Há dois grupos de espíritos: os Espíritos Vermelhos e os Espíritos da Podridão; os primeiros representam os espíritos daqueles que morrem na guerra, eles são quentes e secos, características que exprimem força, firmeza e virtudes de guerreiros. Ao seu lado existe uma entidade que nunca foi ser humano e que é responsável pelo contato entre os homens e as entidades espirituais: é a Mulher Fumaça.
Segundo esses povos, o segundo grupo de espírito, os da podridão, representam aqueles que não morreram guerreando, mas de outras formas. De acordo com sua concepção, tais entidades definem a duração da guerra pelo tamanho da falha cometida entre os povos, mas há de se observar que o pressuposto central das guerras por eles realizadas, é a contenção da população, para que os alimentos possam ser suficientes à sobrevivência do grupo (guerras necessárias). Note-se que há um ciclo de rituais, em que ficam claras as noções de preservação, fome e fartura.
Por exemplo, existe uma dinâmica na época de plantio de determinadas culturas, como também, no tratamento da terra, na coleta de frutas, enfim, tudo isso obedece a um ciclo que é pré-estabelecido, pelos espíritos, logo, a vida desses povos é toda em função dessa relação mágico-religiosa, visto que mesmo quando os conflitos acabam há as oferendas que são ofertadas aos espíritos, na forma de sacrifícios, contenções, para quando se atingir a fartura fazer-lhe festa para oferecer o que lhe foi pedido pelos mencionadas entidades.
A rigor, é mister dizer, que as formas de apropriação ou consecução dos alimentos varia de cultura para cultura, pois cada um tem seus valores, seus símbolos, seus modos de organização social, cada uma tem seus cabedais de conhecimento, seus modus vivendi etc., numa palavra, cada povo tem comportamentos culturais distintos uns dos outros.
Essa diversidade de comportamentos culturais ligam-se intrinsecamente ao modo como cada povo se alimenta: seus costumes, valores, o trato dos alimentos, tudo isso exerce uma importante influência na maneira de se alimentar de cada grupo humano. Isto tudo relaciona-se de forma íntima ao estudo da alimentação enquanto processo cultural (cultura alimentária).
Saindo da esfera da Etnografia, ou seja, da análise dos sistemas tribais, atentemos para o valor simbólico de alguns alimentos e/ou bebidas. De acordo com Montanari (1993, p. 26-30), pão e vinho são partes constitutivas do imaginário religioso cristão, onde o pão significa o corpo de Cristo, fermentado na carne, amassado na paixão e cozido no forno do sepulcro e condimentado nas igrejas, onde cada dia se reparte entre os fiéis o alimento celestial; o vinho representa o sangue do cordeiro imolado, além de simbolizar alegria nas comemorações (o costume de tomar vinho nas festas e comemorações é bastante acentuado entre os romanos).
Para Mayol (1998, p. 133-4), o pão significa garantia de bem-estar, estabilidade. Veja-se a citação a seguir:
O pão é o símbolo das durações da vida e do trabalho é a memória de um maior bem-estar duramente conquistado no decorrer das gerações anteriores... Ele não é tanto um alimento básico mas sobretudo um "símbolo cultural" de base, um monumento sem cessar restaurado pra conjurar o sofrimento e a fome... O pão suscita o respeito mais arcaico, é quase sagrado. Jogá-lo ao chão, pisá-lo é visto como sacrilégio. O espetáculo de um pedaço de pão na lata de lixo desperta a indignação. O pão é um bloco só com a condição operária: não é tanto o pão que foi para a lata de lixo, mas a pobreza. O pão é um memorial. (MAYOL, 1998, p. 133)
Como se evidencia, os significados do pão para Mayol e Montanari são diferentes; embora, haja um ponto de intersecção entre ambos, qual seja, a importância do pão enquanto memorial, tanto do imaginário social quanto do religioso.
Torna-se necessário analisarmos neste momento, a importância do vinho para a vida social:
(...) O vinho é a condição sine qua non de toda celebração, é aquilo pelo qual se pode gastar mais para honrar alguém (um convidado) ou alguma coisa (um acontecimento, uma festa). Isto quer dizer que o vinho contém, pelas virtudes próprias que lhe são atribuídas, por um consenso cultural, um dinamismo social... (MAYOL, 1998, p. 138)
A rigor, o vinho, como a maioria das bebidas, é ingerido em momentos considerados especiais, e, também, é compartilhado com pessoas que têm uma significativa importância para quem convida. Logo, o ato de beber significa "contagiar" de alegria todos os convivas.
A carne, para os povos germânicos, simbolizava integração, força, poder, especialmente nas esferas política e social, era sinal de status, além de ser um alimento que lhes preservava a saúde. Sobre as vantagens da carne nos elucida o fragmento seguinte:
En la cultura de la clase dominante este valor primario de la carne se afianza con fuerza. Aparece a sus ojos como un símbolo de poder, un instrumento para proporcionar energia física, vigor, capacidad de lucha, unas cualidades que constituyen la primera legitimación auténtica del poder. En cambio, abstenerse de carne es señal de humillación, de marginación (mas o menos volutaria, más o menos ocasional) de la sociedad de los fuertes. (MONTANARI, 1993, p. 25)
Os germanos sempre foram, de acordo com os relatos, grandes apreciadores de carnes, porcina, ovina ou mesmo de caças diversas; o que importava era que na sua alimentação não faltasse o precioso nutriente. Comiam-na de todo jeito: crua, assada, cozida etc. Pode-se dizer que os germanos (também chamados de "bárbaros" por gregos e romanos por não se adequarem aos seus modos de vida, ou seja, a sua cultura) deram grande contribuição aos sistemas alimentares do ocidente pelo seu modo de vida, isto é, os bárbaros vivam de saquear e acabar com as soberanias das nações, de forma, que ao se estabelecerem em algumas delas, acontecia um processo recíproco de endoculturação. Além disso, desbravavam florestas, bosques e pântanos, tirando deles o que pudesse ser comestível; a rigor, além de fornecer os seus hábitos alimentares, ainda contribuíram ao ensinar as técnicas de consecução do alimento.
Esta breve análise sobre a importância e significado(s) de alguns alimentos, mostra, de um lado, a necessidade humana de se alimentar, e, de logo escolher um alimento para sua degustação quotidiana, e de outro, o caráter cultural, simbólico de suas escolhas, de modo que se trava um impasse entre natureza e cultura, ou seja, cria-se uma situação ambivalente entre necessidade alimentar biológica e fatores sócio-culturais (e histórico-antropológicos) do processo alimentar, como nos confirma o fragmento a seguir:
A satisfação das necessidades alimentares é condição indispensável para a sobrevivência dos seres vivos. O homem parece ter resolvido esse problema de maneira diferente da observada pelos animais. Ele deve à sua fisiologia de onívoro e a seu caráter de animal social dotado de cultura, de função simbólica e de capacidade de recriar um microambiente que lhe seja favorável...
A alimentação constitui precisamente um campo em que existe certa descontinuidade entre biologia e cultura. Os mecanismos internos de regulação da alimentação que visam a manter certos equilíbrios no organismo humano são muitas vezes imperfeitos. (GARINE, 1987, p. 4)
De acordo com Geertz (1989, p. 15) "... o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu (...)". Estas teias são as peças constitutivas da cultura, já que ela é semiótica, ou seja, encontra-se estritamente ligada ao caráter simbólico dos acontecimentos. Assim torna-se necessário dizer que, as maneiras de agir, de falar, de expressar seus sentimentos, os gostos musicais e também as escolhas alimentares são culturais e, portanto, semióticas.
A rigor, o que se pretende deixar claro é que o processo alimentar não liga-se apenas ao campo da necessidade biológica (fome), mas também aos aspectos consuetudinários, isto é, dos costumes e tradições. Exemplificando: o povo indiano não come carne de vaca (por sinal, este animal é bastante respeitado na Índia); nós, ocidentais (e cristãos), não nos alimentamos de qualquer tipo de carne vermelha, em respeito ao sofrimento e morte de Jesus Cristo, na sexta-feira santa, enquanto há outros povos que ignoram tal tradição. Como, novamente, diz Clifford Geertz: (1989, p. 22): "A cultura é pública porque o significado o é". Dito de outro modo, cada povo tem um modo, um código cultural que o singulariza.
Muito se tem falado sobre os termos "cultura" e "símbolo", mas afinal, o que é cultura? Segundo às novas perspectivas da Antropologia Cultural e da Sociologia da Cultura, a saber, o simbolismo, respectivamente, antropológico e sociológico, cultura são os princípios que regem o comportamento humano, que, a rigor, para que possa ser comum a um grupo ou sociedade deve conter símbolos (códigos) conhecidos por todos. É essa a essência do conceito de cultura defendido por Pierre Bourdieu, Clifford Geertz dentre outros estudiosos da corrente simbólica. (Cf. VELHO e CASTRO – s.d.; GEERTZ – 1989 e ORTIZ – 1994).
A alimentação é um elo distintivo na posição social ocupada pelas classes; a partir dela forjam-se os dois principais estilos de vida, o rico e o pobre, pondo em evidência a diferença que ocorre entre as classes, de cunho econômico, como corrobora a citação a seguir:
Ao comer o homem se exterioriza, exerce de certo modo uma posição numa sociedade particular. Por isso a busca de prestígio e distinção como escreve Pierre Bourdieu, é um elemento permanente da dinâmica das escolhas alimentícias. Esta dinâmica é exercida entre os indivíduos e os grupos de uma sociedade e entre as sociedades tradicionais, que hoje se confrontam com a avassaladora influência da civilização industrial urbana. Sem dúvida a renda pecuniária se transforma na principal variável que explica o consumo alimentar, mas a dinâmica da seleção de alimentos está longe de ser dominada. A compreensão mínima do processo exige um conhecimento profundo da problemática local em toda a complexidade de sua história particular. (GARINE, 1978, p. 5)
A rigor, embora a condição econômica tenha capital peso nas escolhas alimentares, é o quotidiano de cada indivíduo (ou grupo) que determina o que se deve comer. Com isto, não pretende minimizar o papel do fator econômico, visto que, ele realmente causa uma estilização de vida que aumenta bastante as diferenças de classe; no que tange à alimentação se acentuam da seguinte maneira: para se tornar diferente a classe abastada usa de artifícios, tais como: ao consumir um prato refinado como a lagosta, os ricos se sentem bem distintos dos pobres; porém, quando o preço da lagosta oscila para baixo, por qualquer motivo que seja, os ricos tratam de mudar a forma de consumo, ou seja, tanto eles podem utilizar uma receita nova, envolvendo o citado crustáceo, como podem passar a consumir outros tipos de alimentos. O objetivo central nisto tudo é manter, como diz Bourdieu, uma "distância respeitosa".
O gosto e as escolhas alimentares são produtos da cultura e também do habitus, "princípio unificador e gerador de todos as práticas" (BOURDIEU, 1994, p. 83). Grosso modo, é o gosto, o responsável pela percepção dos estilos de vida, como nos confirma o fragmento seguinte:
O gosto, propensão e aptidão à apropriação (material e/ou simbólica) de uma determinada categoria de objetos ou práticas classificadas e classificadoras, é a fórmula generalizada que está no princípio do estilo de vida. O estilo de vida é um conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos...(BOURDIEU, 1994, p. 83).
O estilo de vida está ligado à condição econômica do indivíduo ou grupo, e esta por seu turno, produz o gosto ou propensão a consumir vestimentas, móveis, obras de arte (os seus derivados), inclusive, a alimentação.
1.2 – Alimentação e tabus alimentares
Mesmo estando entre as prioridades básicas e imprescindíveis do ser humano, a alimentação também representa os seus contrapontos, que, a rigor, podem ser descritos como os tabus alimentares. Porém, esta terminologia não se apresenta de maneira única, estanque e estereotipada. Vejamos:
Mc Donald define tabus alimentares como sendo "uma regra proibindo o consumo de parte de animal, de todo o animal ou de uma série deles, ou de qualquer outro alimento. Os tabus alimentares, podem aplicar-se a toda a população. Entretanto, a maior parte deles sobre segmentos da população". (RIBEIRO, 1991, p. 87)
Passemos ao outro conceito:
A reima é um sistema classificatório de restrições e proibições alimentares aplicadas a pessoas em estados físicos e sociais de liminaridade(...). Dentre as principais situações consideradas de liminaridade estão as enfermidades, a menstruação e pós-parto. A reima é caracterizada por oposições binárias entre alimentos perigosos (reimosos) ou não perigosos (não-reimosos). (...), o alimento reimoso é aquele que "faz mal" ou que "traz o mal", principalmente, de doenças que estejam "presas"ou "incubadas"dentro do organismo, de dentro para fora do corpo. (MURRIETA, 1998, p. 121)
Ambos os conceitos, embora definidos com outras palavras, têm sentidos bastante semelhantes. Sejam tabus alimentares ou reima, grosso modo, o que se evidencia em ambos são as proibições e restrições alimentares, seja individual ou grupal e pelos mais variados motivos: tabus ligados à mistura e a hora em que os alimentos são ingeridos, tabus ligados à idade, à doenças, etc.
De acordo com Lobato (1969), há diversos tipos de tabus alimentares divididos por categorias variadas. Confiramos alguns deles:
Tabus alimentares ligados a idades – atingem diretamente as crianças e os idosos, que passam a não poder comer certos tipos de alimentos (algumas frutas, crustáceos, etc.) porque a sua pouca idade ainda não permite, no caso das crianças, ou porque a sua avançada idade já não permite, no caso dos velhos;
Tabus alimentares ligados à doença – era comum dizer-se que determinados frutos e as verduras cruas, por serem frias, deviam ser proibidas aos gripados e febris, e também, alimentos como ovo, o leite e a laranja eram prejudiciais ao fígado;
Tabus ligados ao sexo – o consumo de alguns alimentos como o amendoim e a pimenta (e também o gengibre) dão maior potência sexual, ao contrário, a ingestão de chás de algumas raízes e plantas1, provocam a impotência sexual, embora se desconheça qualquer documento de cunho científico que prove esta afirmativa;
Tabus ligados à mistura e a hora em que os alimentos são ingeridos – é bastante comum a proibição de certas frutas com leite, como também, a mistura delas entre si. Existe um rol de combinações, que segundo o imaginário popular, não podem serem feitas, tais como, leite com manga, leite com abacaxi, leite com banana, leite com melancia, manga com abacaxi, ou quaisquer misturas entre frutas. Outro ponto culminante dos tabus alimentares, liga-se a hora e ao tipo de alimento ingerido, como nos corrobora a quadrinha a seguir:
Fruta de manhã é ouro
De tarde é prata
De noite mata2
Além de frutas, estes tabus, também proíbem o consumo de alimentos como: ovos, feijão, carnes gordas, pimentões, dentre outros, à noite.
Pode-se dizer, in lato sensu, que a maioria destes tabus remetem-se à época da escravidão, quando os senhores de escravos, querendo que fosse consumido apenas um ou outro produto, inventavam que a mistura entre leite e determinadas frutas e delas entre si, causavam males diversos à saúde.
Corroborando com o pensamento de Lobato, é preciso dizer que, os tabus alimentares trazem grande prejuízo alimentar (subnutrição) para as populações mais carentes, devido a essas construções sociais negativas, que, em respeito ou medo das conseqüências previstas pela tradição, deixam de se alimentar como deviam, além de ir passando de geração a geração estes mesmos medos e proibições.
Em pesquisa feita na região amazônica, o antropólogo Ruy Murrieta, encontrou informantes que tinham reima (o equivalente a tabus alimentares) a determinados tipos de peixes, especialmente em estados de enfermidades, menstruação ou pós-parto. Os peixes lisos ou de pele como surubim, piaba, filhote, mapará, pirara etc. e alguns de escamas – pescada, curimatã, tucunaré amarelo, jatauarana e acari dentre outros; alguns tipos de caça como: peixe-boi, capivara, jacaré, tracajá, tartaruga etc. e também, alguns tipos de frutas ácidas (laranja, limão, cupuaçu e taperobá) são reimosos, ou seja, podem "trazer ou fazer mal".
Claro está, que esta noção de reima defendida pela população amazônica, faz parte das representações sociais, do imaginário social daquele povo. Também, em nossa realidade, podemos dizer que existe a reima a determinados alimentos nas mesmas condições acima descritas (enfermidades, menstruação e pós-parto). Peixes como cavala, serra, bonito, dourado e voador dentre outros; aves como pato, peru e guiné; e todos os tipos de crustáceos, além de caças: peba, tatu, preá, mocó são vistos como "verdadeiros venenos" como diz a expressão popular, para quem se encontra inserto num dos mencionados estados.
Entre os indígenas, os tabus alimentares, geralmente, têm significados mágico-religiosos ligados ao totemismo3. Segundo Lévi-Strauss (1989, p. 93-4), quando uma mulher indígena que se encontra grávida sonha ou imagina que uma fruta, planta ou animal tem relação com a sua gravidez, ela se priva de comer a fruta ou animal e ter maiores contatos com a planta, sob pena de cometer auto-canibalismo, visto que, a criança quando nascer se parecerá ou será um desses elementos. Logo, estas interdições totêmicas evocam os tabus alimentares, como nos torna evidente, o presente fragmento:
Isso é particularmente evidente nos casos das proibições alimentares, que formam um conjunto vasto e complexo cujas interdições ditas totêmicas (isto é, resultantes de uma afinidade coletiva com uma espécie natural ou uma classe de fenômenos ou de objetos) ilustram apenas um caso particular. O feiticeiro ndembu, que é sobretudo um vidente não deve consumir a carne do cefalófio, pois o couro desse animal é manchado irregularmente, senão, sua presciência estaria arriscada a extraviar-se a torto e a direito ao invés de concentrar-se em questões importantes. O mesmo raciocínio proíbe-lhe também a zebra, os animais de pelagem escura (que obscureceriam sua clarividência), uma espécie de peixe de espinhas aceradas (que ameaçariam picar-lhe o fígado, órgão da adivinhação) e várias espécies de espinafres de folhas "escorregadias", a fim de que seu poder não escape para fora. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 114)
Essas práticas proibitivas totêmicas, nem sempre ocorreram a todos os membros da aldeia, mas sim, a alguns elementos e em determinadas épocas, por exemplo. Às grávidas e aos iniciados as proibições são por um tempo determinado, porém, para o feiticeiro, em geral, elas são muito duradouras. Grosso modo, essas proibições totêmicas têm significados mágico-religiosos ou xamâmicos, eivados de sentido simbólico que obedecem a uma lógica interna própria. Ou seja,
Proibir determinadas espécies não é mais que um meio entre outros de afirmá-las como significativas, e a regra prática aparece assim como operador a serviço do sentido, dentro de uma lógica que, sendo qualitativa, pode trabalhar com o auxílio tanto de comportamentos quanto de imagens. Desse ponto de vista, certas observações antigas poderão parecer mais dignas de atenção do que se tem geralmente acreditado... (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 119)
A título de conclusão, é pertinente mencionar que, a rigor, os tabus alimentares ou dietéticos, entre os indígenas, podem representar em grande medida um sentimento de preservação ou conservação quando eles preferem consumir animais de pequeno porte que tenham alto teor de prolificidade, ou seja, que se reproduzam rápido e de preferência que vivam em bandos, sendo portanto, fáceis de serem caçados. Pode residir aí a explicação porque em determinados períodos não se ingerem alguns tipos de alimentos. O que fica claro é que ao deixar de consumir certos alimentos se perdem glicídios, lipídios, proteínas, minerais e carboidratos, ficando-se conseqüentemente, com a saúde mais fragilizada. (Cf. Ribeiro, 1991, p. 85-86)
1.3 – Alimentação e saúde
A alimentação é condição sine qua non para que todos os seres vivos continuem a viver e a gozar saúde. Logo, para que estes seres vivos, especialmente os humanos, possam estar com saúde, é necessário também que estejam nutridos.
De acordo com Lobato (1969, p. 9), a nutrição é universal, não havendo, assim ser vivo que dela não dependa para conservar sua forma e exercer suas atividades diárias. Os seres vivos são nutridos por elementos, que, a rigor, são chamados nutrimentos e que são retirados do meio ambiente formando assim os seguintes elos ou cadeia interativa: ser vivo – nutrição - meio ambiente.
Partindo-se desse pressuposto, processo nutricional humano/meio ambiente, pode-se dizer que o que se come pode exercer certas influências no comportamento humano, fato que nos corrobora o fragmento a seguir:
Mesmo que a relação entre alimentação e saúde física seja claramente identificada todas as sociedades concedem de certo modo uma eficácia mágico-medicinal aos alimentos. O princípio geral é de que se devem proporcionar ao corpo (e ao espírito) os alimentos mais adequados do ponto de vista material e, também, simbólico. No mundo ocidental tendemos a nos referir à medicina galênica segundo a qual os alimentos ingeridos se transformam em humores de cujo equilíbrio depende a saúde dos indivíduos. (GARINE, 1987, p. 5)
Realmente, é bastante comum, na nossa sociedade, atribuir-se propriedades curativas a determinados alimentos em determinadas situações (e em alguns casos sempre se tem êxito). É uma mistura de medicina, magia e intuição que se conjugam ao imaginário popular em busca de se obter a saúde.
É comum nas representações sociais, na sabedoria popular, a idéia de que "comer muito é comer bem", é nutrir-se através da ingestão de grande volume de alimentos, o que na maioria das vezes, não é verdadeiro, como nos elucida a presente citação.
A preferência por alguns alimentos e por determinados pratos nos diferentes grupos humanos não supõe de modo algum que possuam valor nutritivo efetivo: de alguma maneira este valor se dá por acréscimo. O que mais se procura é um alimento que proporcione uma sensação de saciedade. Tal ocorre, por exemplo, com o caldo espesso dos (sic) massas (Camarões) ele é obtido a partir de uma farinha grossa onde subsiste notável quantidade de carboidratos indigestos que dão justamente essa sensação de saciedade, mas que dificultam a assimilação de outros componentes da dieta. (GARINE, 1987, p. 5)
Essa sensação de saciedade (ou "barriga cheia", no adágio popular) na maioria das vezes não é positiva, podendo acarretar problemas de saúde de diversas ordens (especialmente no estômago, fígado e intestinos) por causa da maneira errada (porém que muitos consideram certa) de se alimentar.
As doenças causadas pela alimentação (ou pelo seu mau uso) tanto podem serem provocadas pela carência alimentar ou nutricional quanto pelo excesso do tipo errado de comida. Torna-se essencial que vejamos, esquematicamente, as doenças da alimentação, sem sairmos do fio condutor que norteia este trabalho, qual seja, a dimensão simbólica (semiótica) do processo alimentar.
Desnutrição – caracteriza-se pela insuficiência alimentar, ou seja, pela ingestão em quantidades inferiores às necessidades orgânicas, de modo que o organismo passa a consumir suas reservas de calorias. A desnutrição causa detenção do crescimento, atrofia muscular, perda de peso e, conseqüentemente, a morte.
Obesidade – a obesidade refere-se tanto ao volume como ao peso e à inchação do tecido adiposo que caracteriza esse estado. Ela pode ocorrer tanto na idade adulta como na infância; geralmente, ela acontece com maior incidência nos países industrializados4.
Além das mencionadas afecções, uma alimentação desregulada pode causar colesterol, doenças cardiovasculares, intestinais e anemia dentre outras.
Na maioria dos casos, essas doenças afloram com maior rapidez e em maiores proporções devido á origem dos alimentos. Sasson (1993), nos mostra que a produção de alimentos é uma resposta ás necessidades e aos desejos humanos, ao mesmo tempo que nos diz, que a avidez exacerbada por lucros, dos produtores, os fazem passarem dos limites usando substâncias tóxicas como pesticidas e agrotóxicos, isto no caso dos vegetais. Chiavenato (1991) corrobora com estas afirmações5, além de mencionar que elas não só ocorrem nos países subdesenvolvidos, mas em países como Estados Unidos, e França. O mesmo autor alude-nos para o fato de que casos semelhantes acontecem com as aves (especialmente frangos e galinhas) e com os bovinos: eles são alimentados com alimentos como alto teor de toxidade e/ou são medicados com substâncias dessa natureza, passando assim, aos seus consumidores grandes possibilidades de contraírem graves doenças, como o câncer.
Preocupada com a ação nefasta dos agro-químicos sobre o meio ambiente, de forma mais abrangente, a CMMAD se pronuncia dizendo que:
O emprego de produtos químicos para controlar insetos, pragas, ervas daninhas e fungos aumenta a produtividade, porém o emprego abusivo ameaça a saúde dos seres humanos e a vida de outras espécies. A exposição contínua e prolongada a pesticidas e resíduos químicos presentes na água, nos alimentos e até no ar é perigosa, especialmente para as crianças. Segundo estimativas de um estudo de 1983, aproximadamente 10 mil pessoas morrem por ano nos países em desenvolvimento devido a envenenamento por pesticidas e cerca de 400 mil são gravemente afetadas por eles. E os efeitos não se restringem às áreas onde os pesticidas são usados, mas atingem toda a cadeia alimentar. (CMMAD, 1991, p. 138)
Grosso modo, a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD), faz uma análise global da influência dos produtos químicos sobre o meio ambiente, mostrando quão nefasta ela é para o ar, a água, a cadeia alimentar; numa palavra, é essencial dizer que o mau uso (ou uso indiscriminado) destes produtos podem acarretar doenças que comprometam a existência da peça central do meio ambiente: o homem.
Com esta proposição a Comissão não deseja que se pare de aumentar a produtividade dos alimentos; ao contrário, ela almeja o seu aumento, porém, que sejam usadas nutrientes orgânicos, bem como, que se faça um controle de pragas de modo natural, com métodos igualmente naturais, proporcionando cabais melhorias para o ar, o solo, a água, a cadeia alimentar, e, conseqüentemente, trazendo mais vida e saúde para o homem. (ver. p. 149)
Finalmente, pode-se dizer que a escolha dos alimentos por mais que evoque uma condição necessária de saudáveis, está eivada de significados simbólicos, já que, por mais que o alimento seja saudável, se não estiver em consonância com as preferências alimentares de uma dada sociedade ela não o consumirá, já que o fator semiótico (simbólico) da alimentação caminha em paralelo com o fator orgânico (necessidade de se alimentar).
1.4 – Formação dos preços dos produtos agroalimentários
É comum ao se comprar alguma fruta da estação ou qualquer outro alimento, levar-se em conta o prazer da degustação da comida, seu valor nutritivo ou até mesmo o modismo que se cria em certas épocas em torno de determinados produtos alimentícios. No entanto, quase nunca se reflete sobre o preço dos alimentos, apenas compra-se e consome-se, até porque, na visão do senso comum, a ciência econômica, os preços são categorias abstratas e indiscutíveis, que não devem ser por nós pensadas a fundo: elas estão acima e ditam o movimento do mercado. Para se ter uma noção melhor elaborada do que seja preço, é necessário se ater ao seguinte fragmento:
Em sentido amplo, o conceito expressa a relação de troca de um bem por outro. Em sentido mais usual e restrito, representa a proporção de dinheiro que se dá em troca de determinada mercadoria, constituindo, portanto, a expressão monetária do valor de um bem ou serviço.
No sistema econômico da livre-empresa, os preços têm função de aglutinar as decisões e milhões de indivíduos de interesses muitas vezes competitivos, assegurando concorrência à economia como um todo. (SANDRONI, 1994, p. 280 –1)
Pode-se dizer, que essa relação de troca de um bem por outro, que é um dos elos definidores do preço não é nova. A formação dos preços é uma categoria antiga que tem suas raízes na economia primitiva, ou seja, o escambo que era a simples permuta de mercadoria por mercadoria, mas, que em si, com o passar dos tempos, passa a sofrer modificações. Dito de outro modo, se o cereal "a" era mais difícil de se conseguir que o cereal "b", logo, ele valeria mais, e, consequentemente, seria necessário uma quantidade maior do produto "b", para se obter determinada quantidade do "a".
O que houve foi um aprimoramento conceitual, um arcabouço teórico da noção de escambo. Adam Smith e Karl Marx, dentre outros grandes economistas a tratar da questão do preço, elaboraram teorias que exprimem o contexto histórico e a ideologia econômica de suas épocas, assim também, o escambo, representava a dinamicidade de sua de época, sem, necessariamente, ter sido teorizado. O valor dos produtos era discutido homem a homem na hora da troca.
Na contemporaneidade, o aperfeiçoamento dos produtos agroalimentários, passa por nuances bem sui generis, quais sejam, o custo da produção que inclui uso de sementes melhoradas, defensivos agrícolas etc., o transporte e a distância percorrida para cada lugar, a aceitação do mercado, dentre outros motivos implícitos, que justificam à fixação (formação) dos preços. Grosso modo, há toda uma dinâmica utilizada nesta operação, para que haja uma otimização dos lucros.
Quando há queda no consumo, os produtores diminuem o estoque plantado, não produzem em grande escala (quando produzem). Mas, quando se prevê um período de instabilidade climática ou de inserção ou aceitação de um determinado cereal, verifica-se um grande movimento entre os agricultores para dispensar mais hectares ao plantio das cultivares, fato que nos comprova o fragmento seguinte:
De fato, como em 1974, as previsões de uma forte queda na produção mundial de cereais em 1988 provocaram tensões nos mercados internacionais. Em setembro de 1988, no mercado de Chicago, um alqueire de trigo (27,216 kg) era cotado a 4,16 dólares, ou seja, a cerca de 152 dólares por tonelada, em contraste com 113 dólares no começo do mesmo ano; no dia 10 de fevereiro de 1989, o preço de um alqueire de trigo mantinha-se acima de 4 dólares (4,25). Esta situação obrigou os granjeiros norte-americanos a reduzir em 5-10%, desde 1986, as áreas dedicadas ao barbecho, a fim de aumentar a produção de cereais e beneficiar-se dos favoráveis preços do mercado. (SASSON, 1993, p. 115)
Esse tipo de relação é conhecida por flutuação de mercado, ou seja, cortes na produção de uma dada cultura para que outra mais aceita no mercado, portanto, economicamente viável, tome o seu lugar. São as regras do mercado ditando o movimento e a dinâmica do capital, e, consequentemente, o crescimento de um setor em detrimento de outro (ou de outros).
É mister dizer, que no atual estado de degradação que se encontra a natureza, torna-se condição sine qua non, a inserção da variável ambiental na formação dos preços como forma de envolver o setor político, mais ativamente, nas preocupações ecológicas, primando pela qualidade de vida das populações e criando uma maneira menos economicista de fixar os preços. Uma visão mais acurada a este respeito nos é elencada por Cavalcanti:
Um princípio importante de formulação de política para a sustentabilidade é se dispor de um sistema consistente de informação para medir-se o desempenho econômico de um país ou região. Numa sociedade sustentável, o progresso deve ser apreendido pela qualidade de vida, e não pelo e puro consumo material. Renda nacional e PIB por pessoa referem-se a progresso material. Mas é à base de seus valores que políticas de desenvolvimento são geralmente concebidas e avaliadas. (1997, p. 28-29)
In lato sensu, a política de formação de preços, não deve ser algo estereotipado, estanque ou baseado em categorias muito abstratas (renda nacional e PIB) que não expressam a realidade, mas, a configuração de dados estatísticos. Saúde, educação, longevidade, um meio ambiente limpo, numa palavra, qualidade de vida, não são levados em consideração na tomada das decisões políticas de grande impacto. Mas, na economia ecológica, esse fator (qualidade de vida) é bastante levado em consideração ao se dar valor aos produtos alimentares.
1.5 – Produção de alimentos e desenvolvimento
O desenvolvimento de um país está estreitamente ligado a sua forma de se alimentar, visto que, é o que se come e em que quantidades, que vão demonstrar se a população está alcançando os níveis desejados de qualidade de vida, pois, quando um povo se alimenta, adequadamente, comprova-se o desenvolvimento, de certo modo, social e econômico, até porque:
O desenvolvimento também afeta o alimento de outras maneiras. À medida que uma nação se desenvolve, mudanças importantes começam a ocorrer em sua agricultura. Primeiro observamos como o desenvolvimento afeta a quantidade de alimento produzido e como ele é produzido, e em seguida a maneira pela qual o desenvolvimento afeta o tipo de alimento que as pessoas consomem. (SEITZ, 1991, p. 59)
Claro está que havendo desenvolvimento social, é porque as pessoas estão trabalhando, comprando os gêneros de primeira necessidade, e, conseqüentemente, fazendo circular significativa quantia de dinheiro-capital (que é o que gera desenvolvimento econômico). E, quando isso acontece, verifica-se o surgimento do progresso.
Segundo Sasson (1993, p. 111), o aumento da demanda de alimentos nos países em desenvolvimento, deve-se, sobretudo, ao aumento da renda por habitante "afetando a quantidade e qualidade dos produtos consumidos". Os mais desfavorecidos gastam de 60% a 80% na sua renda com alimentação, provocando assim, um grande aumento na demanda de produtos alimentares. Alguns desses países são exportadores de petróleo, e, sendo assim, dependem sobremaneira de maciça importação de alimentos, por não se preocuparem muito com sua produção.
Apesar de se evidenciar expressivo aumento na produção de grãos e de alimento em geral, a fome continua crescendo de modo aterrador em algumas regiões subdesenvolvidas do globo, como nos corrobora o fragmento seguinte:
Hoje a produção mundial de alimentos por habitante é a maior verificada em toda a história da humanidade. Em 1985 foram produzidos quase 500 kg por habitante de cereais e tubérculos, as fontes básicas de alimentação. Mas em meio a essa abundância, mais de 730 milhões de pessoas não consomem o suficiente para levar uma vida plenamente produtiva. Há lugares onde quase nada é cultivado; e há lugares onde grande número de pessoas ganham o suficiente para comprar alimentos. (CMMAD, 1991, p. 129)
In strictu sensu, embora se produza em quantidades suficientes, o que se percebe é que o próprio caráter excludente do capitalismo frustra toda tentativa de uma distribuição mais igualitária, de uma forma de comércio mais humana, de modo, que todas as pessoas possam ter acesso à alimentação, pois, não se concebe que um sistema econômico que se diga tão dinâmico e providencial, de certa maneira, patrocine a inanição ou tenha suas bases de sustentação comprometidas por ela.
1.6 – O processo alimentar na França entre os séculos XVII e XIX
Como nos mostra Aron (1995, p. 164) a história da alimentação na França do final do século XVIII e de meados do XIX, está condicionada à revoluções ou movimentos históricos de grande suporte (Revolução Francesa e Revolução Industrial) e que só com uma profunda análise percebe-se esse entrelaçamento entre elas. Dito de outro modo: a dinâmica desses movimentos fez surgir novos modos de vida. A Revolução Francesa mudou o cenário político da época, e, conseqüentemente, atrelado a ele vem a mudança dos outros aspectos. Diante desse quadro, urge dizer que faltou carne e pão e que essa deficiência foi se agudizando, também, por não ter para quem produzir, pois, aqueles que podiam comprar foram destituídos do poder, e mesmo assim os saques, as grandes mortandades de animais e de pessoas, o arrasamento dos campos, enfim, uma total revolta tomava conta do povo francês.
Todavia, contrariamente, as sublevações de 1789, o processo de Revolução Industrial francesa, vem pregando o signo do progresso (restava saber a quem), também vai fazer a França atravessar uma séria crise alimentar, e são, novamente, o pão e a carne, os produtos mais afetados pela inserção da indústria naquele país, visto que, sendo sua população essencialmente rural, logo, produtora de bens primários e considerando a emergência por mão-de-obra da indústria, verifica-se o total abandono do campo pelas atividades fabris. Além disso, a instalação das indústrias era feita fora dos limites citadinos de Paris, logo, na área rural, então, com isso, foram diminuindo as terras para o plantio e para a criação de animais (especialmente bovinos).
A rigor, diante dessa dificuldade alimentar, os franceses, especialmente, os de Paris, passam a contrabalançar mais a sua dieta, havendo assim uma mudança nos hábitos alimentares locais.
O estudo da evolução alimentar através da história, não se traduz apenas na reprodução pura e simples de receitas, é necessário considerar o caráter processual em que está envolto o ato de se alimentar e suas implicações e nuanças diversas:
Objeto que deve ser abordado sobre uma nova ótica, se é verdade que nos foi entregue fisicamente em seu próprio enunciado, que não nos promete senão o que nos dá, que o saber que aprendemos dele, envolve, numa síntese única, sua evidência e suas sombras. Tal como esses nomes de regiões que pontuam a memória do Narrador de Proust e cativam-nos sem referência aos modelos que reproduzem –...– , palavras-objetos que desabrocham por autarcia no tecido da obra, o objeto-documento da história culinária não aparece nem formalizado, material inerte e vazio de sua substância, nem poeirento sob a vestimenta erudita dos documentos históricos. Ele é vivo e no crescimento de sua vida própria é uma história total que se desenrola. (ARON, 1995, p. 161)
O estudo da cultura alimentária é bastante complexo e envolve a análise do processo histórico como um todo e não análises superficiais e fragmentárias. Estudar o homem e sua evolução alimentar, significa considerá-lo em sua teia de relações (sociais, econômicas, políticas, culturais, religiosas...) analisando-se também, sua capacidade de produção e aquisição de alimentos, que, a rigor, já encampa, e muito, o fator econômico.
Depois de analisarmos, de modo processual, os hábitos alimentares, suas formas de produção e/ou aquisição, de maneira genérica, torna-se condição sine qua non mencionarmos a importância deste estudo, ou seja, tratar da cultura Alimentária de Areia Branca-RN envolvendo-a com a questão da sustentabilidade/insustentabilidade das práticas alimentares dos sujeitos ativos deste processo, significa trabalhar a interdisciplinaridade e/ou a transdisciplinaridade, visto que, entrelaçam-se nesta pesquisa história, antropologia, como também meio ambiente e desenvolvimento.
A falta de maiores estudos sobre o processo alimentar numa perspectiva histórica, nos motiva a investigar a alimentação e seu caráter simbólico, em Areia Branca-RN, visto que alimentar-se não é apenas um ato mecânico isolado, mas sim, um ritual, uma cerimônia prazerosa, eivada de significados sócio-histórico-culturais.
No que tange à pesquisa em si, a questão norteadora é a seguinte: como o desenvolvimento pode ser fator de influência sócio-histórico-cultural de Areia Branca-RN, levando-se em conta, também, a relação de sustentabilidade (ou insustentabilidade) do processo alimentar local?
Enfim, é mister dizer, que analisar a história da alimentação é ver o alimento a partir do seu contexto e dos efeitos que ele pode produzir no indivíduo de acordo com sua escolha, pois, "para delimitar a sensibilidade alimentar, é necessário procurá-la num repertório aberto às escolhas e predileções" (Idem, p. 169), já que sabor, odor, cor e a própria disposição de gostar ou não influi no processo alimentar.
1.7 – História e memória: amplos horizontes e novas perspectivas
A palavra história é de origem grega e significa investigação, procura, informação. O seu surgimento se deu por volta do século VI a.C., quando Heródoto, aproveitando a investida de Hecateu6, resolve investigar e registrar os fatos.
É através de Heródoto (e a da criação da História) que os gregos irão ver como mais clareza e movimento, as transformações porque passam (e também porque passaram) as suas cidades-estados, visto que, como ele mesmo diz, o seu objetivo é "... impedir que as ações realizadas pelos homens se apaguem com o tempo". Os historiadores sentir-se-ão na obrigação de narrar o fato e explicar a sua origem, não mais numa perspectiva meramente mitológica sem qualquer comparação de verdade, mas procurando com os poucos recursos disponíveis serem o mais exatos possíveis.
De acordo com Jacques Le Goff (1996, p. 83) diz que a Antiguidade Ocidental (greco-romana) não desenvolveu verdadeiramente o sentido da palavra história, existindo apenas pequenos avanços na natureza humana. A história ficou relegada o mais um gênero literário, com funções precípuas de distração e utilidade moral. Porém, foi a partir de Tucídides que a História passou a ser vista como uma "prática científica". Polibio primava pela investigação das causas. E já Cícero (como muitos outros) defendia a procura e o respeito pela verdade na história.
A História, enquanto ciência, dará um salto qualitativo a partir da investidade Ibn Kaldun8, que por considerar a História uma atividade reflexiva e acima de tudo científica, numa época onde discussões desse tipo não vinham à baila, foi considerado um homem avançado em relação à sua época. Fato que comprova o fragmento seguinte:
... A história é uma ciência nobre. Apresenta muitos aspectos úteis. Propõe-se atingir um fim nobre. Faz-nos conhecer as condições específicas das nações antigas que se traduzem no seu caráter nacional. Transmite-nos a biografia dos profetas, a crônica dos reis, suas dinastias e política. Assim, quem quiser obter bons resultados, pela imitação dos modelos históricos, religiosos e profanos.
Para escrever obras históricas é preciso dispor de numerosas fontes e variados conhecimentos. É também preciso um espírito reflexivo e profundo para permitir ao investigador atingir a verdade e defender-se do erro9. (IBN KALDUN In: LE GOFF, 1996, p. 81)
O autor em questão trata da importância da História, do seu objetivo e ainda aponta caminhos, conselhos ao investigador, quais sejam: para fazer um trabalho histórico sério, de referência é preciso dispor de boas fontes de pesquisa, ter muitos conhecimentos e, acima de tudo, estar aberto a uma profunda reflexão. A rigor, tal modo de se posicionar mostra que Kaldun era um homem do passado com o pensamento moderno.
Desde Heródoto, Tucídides, Políbio e Kaldun, dentre outros, o conceito de História foi-se ampliando e tomando dimensões novas; numa palavra, se modernizando e estando cada vez mais relacionado ao tempo, ao espaço e aos atores sociais e aos acontecimentos vividos em cada época. Isto prova o seu grande dinamismo, a sua capacidade de renovar-se ao longo do tempo.
Baseado no que foi mencionado acima vejamos um dos mais atuais conceitos da História:
A história é a história do homem, visto como um ser social, vivendo em sociedade. É a história das transformações humanas, desde o seu aparecimento na terra até os dias em que estamos vivendo. Desde o início, portanto, pode-se tirar uma conclusão fundamental: quer saibamos ou não, quer aceitamos ou não, somos parte da história, e todos desempenhamos nela um papel.
São os homens que fazem a história; mas evidentemente, dentro das condições reais que encontramos já estabelecidas, e não dentro das condições ideais que sonhamos (BORGES, 2000, p. 48).
Grosso modo, os modernos conceitos de História vêem o homem como o pivô do processo histórico. É ele que tem por missão, junto com os seus iguais, transformar a sociedade em que vive. Não esquecendo, é claro, que todo processo histórico firma-se em condições objetivas, reais; desprezando-se as condições ideais e utópicas, visto que, na construção da história não admite-se o condicional se, mas trabalha-se com fatos que envolvem atores sociais, que por si só exigem uma análise que envolva as condições materiais de existência.
Esta forma de ver a história contrapõe-se a maneiras conservadoras de ver o mundo, tais como e positivismo que além de não considerar a história uma ciência no strictu sensu da palavra, dá mais importância aos fatos, às relações causais, que mesmo aos sujeitos neles envolvidos. Os positivistas consideravam à história como uma mera colecionadora de fatos. Fatos estes que cabiam à sociologia à sua interpretação. Diga-se de passagem, os pensadores positivistas tinha um visão repleta de estereótipos quanto a história; logo a história escrita à luz do positivismo, era estanque com uma cadeia de fatos isolados, sem quaisquer explicações plausíveis.
O papel da História sempre foi procurar a auto-superação na forma de explicar os fenômenos sociais, fato que nos corrobora a presente citação:
A função da história, desde seu início, foi a de fornecer à sociedade uma explicação sobre ela mesma. A história se coloca hoje em dia cada vez mais próximo às outras áreas do conhecimento que estudam o homem (a sociologia, a antropologia, a demografia, [sic] etc.), procurando explicar a dimensão que o homem teve e tem em sociedade. Cada uma dessas áreas tem seu enfoque específico. Uma visão mais ampla e mais completa, entretanto, exige a cooperação entre as diversas áreas (BORGES, 2000, p. 49/50).
A História ergue-se como uma ciência que procura mostrar ao homem a importância da vida em sociedade; para tal faz um "passeio interdisciplinar" pelas demais ciências que ligam-se diretamente a ele.
Esta interdisciplinaridade entre a História e as demais ciências sociais é perfeitamente explicado pelo fato de a Ciência História fazer parte de uma corrente de pensamento chamada Nova História ou Escola dos Anais – corrente de pensamento iniciada em 1929 pelos historiadores franceses Marc Bloch e Lucien Febvre a partir da revista Anais de História Econômica e Social. Essa corrente criticava a tendência positivista do séc. XIX e apresentava novas e férteis modalidades de como se trabalhar a história (história social, econômico, cotidiano, mentalidades, memória...) de forma mais dinâmica, rompendo assim com as velhas crenças positivistas (métodos ultrapassados que faziam da História uma mera expositora de fatos isolados) – iniciada na França, inicialmente como crítica aos rumos que a história francesa estava tomando; depois de movimento, tomou características de corrente de pensamento e expandiu-se mundo a fora10.
Atrelada ao materialismo histórico a Escola dos Annales ergueu-se e ganhou sustentação e respaldo científico como o mais novo eixo paradigmático. A Nova História trabalha com uma metodologia baseada na análise e interpretação dos fatos que envolvam categorias como mentalidades, cotidiano, memória, dentre outras; a História hoje tem um vasto campo no que tange a pesquisa e a análise das estruturas.
1.7.1 – Memória
Quando se fala de memória, é comum associarmos aquela parte do cérebro que tem por função armazenar informações, guardar imagens, numa palavra pensa-se logo na memória cerebral.
A memória como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, (...).
Deste ponto de vista, o estudo da memória abarca a psicologia, a psicofisiologia, a neurofisiologia, a biologia e,..., a psiquiatria (LE GOFF, 1996, p. 423).
Este fragmento esclarece com precisão o significado da palavra em seu sentido lato.
Em História, tal vocábulo toma outra conotação, qual seja:
O estudo da memória social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história, relativamente aos quais a memória está ora em retraimento, ora em transbordamento.
No estudo histórico da memória histórica é necessário dar uma importância especial às diferenças entre sociedades de memória essencialmente escrita como também às fases de transição da oralidade a escrita...(LE GOFF, 1996, p. 426)