Á minha mãe,
Ventre que me gerou
Colo sempre presente que me conforta.
É urgente
arranjem-me um deus
não um deus qualquer
que eu sou exigente
um deus nascido de fêmea-mulher.
in Deus de Encomenda
J.M. Restivo Braz
Figura 1
Cerimónia da descida da Imagem de Nossa Senhora de Fátima
na Praça de São Pedro na evocação do 25º aniversário do atentado contra a vida de João Paulo II.
Roma, 13 de Maio de 2006
1. A magnitude do culto mariano
No dia 13 de Maio de 2006, sobre a imponente praça de São Pedro, surgiu um helicóptero. Milhares de fiéis olharam o firmamento. Do alto, por entre raios de sol, imperando sobre a majestade da colunata de Bernini, sobre a cúpula de Miguel Ângelo, sobre cardeais, bispos e padres reunidos com milhares de fiéis, desceu uma imagem da Virgem Maria, rodeada de flores. Pousou no solo e todos os joelhos quiseram tocar aquele chão sagrado que recebia a Mãe de Deus.
Quase à mesma hora, na longínqua localidade da Cova d’Iria, em Portugal, o Cardeal Stasnilau, secretário pessoal do falecido João Paulo II, presidia a uma eucaristia onde estavam mais de 400 mil fiéis. No final da celebração, cada uma dessas pessoas retirou um lenço branco do bolso. A Virgem Maria, em andor solene transportado por cadetes do Exército da República Portuguesa, ia regressar à sua pequena e modesta capela.
E 400 mil vozes, vindas dos quatro cantos de Portugal, mas também de quase todo o mundo, antes de abandonar aquele lugar, trespassadas por uma emoção que só a fé sabe incutir cantavam, em uníssono
" Uma prece final,
Ao deixar-Vos, Mãe de Deus!
Viva sempre em minha alma
Este grito imortal:
- O Fátima, adeus!
- Virgem Mãe, adeus!".
E foram-se os 400 mil, mas muitos mais milhões virão cantar o mesmo hino, seja em Fátima, seja no Vaticano ou em qualquer outro local de culto no mundo.
E estes são pequenos exemplos do que se tornou o culto mariano para a Igreja Católica. Não deve haver uma só Igreja, em todo o mundo que não tenha uma imagem sua, os templos dedicados a essa Nazarena, mulher de um Carpinteiro, são aos milhões, espalhando-se pelos cinco continentes. Na arte, é a figura mais retratada; mais glorificada em poesia; mais cantada na música. Na doutrina da Igreja Católica é considerada Mater Eclesiae, a sua ladainha tem mais de 50 epítetos tão gloriosos como "Torre de David", "Rosa mística", "Rainha dos Anjos", "Rainha dos Apóstolos", "Casa de Ouro", "Rainha de todos os Santos". Três dogmas são-lhe completamente dedicados. Das hireofanias reconhecidas pela Igreja Católica, a esmagadora maioria são atribuídas a Maria. Tem um mês só a ela dedicado (o de Maio, da regeneração, da Primavera em flor). As mais imponentes catedrais, como a de Notre Dame, em Paris, Santa Maria Maior, em Roma, a Catedral de Sevilha são-lhe votadas. São quase incontáveis as aldeias, vilas e cidades por todo o mundo que a incorporam no seu nome.
João Paulo II, o papa que marcou o século XX, dedicou-lhe o seu pontificado, fazendo inscrever o M de Maria nas armas pontifícias, e tomando como lema "Totus tuus". Ao ser baleado na praça de São Pedro, a 13 de Maio de 1981, o Sumo Pontífice Romano atribui a sua salvação à intercepção directa de Maria e, um ano depois, em Fátima, ajoelhava-se perante a imagem coroada da Rainha dos Céus. O seu pontificado acentuou, ainda mais, uma devoção que congrega milhões de fiéis por todo o mundo. Da simplicidade de Nossa Senhora de Lurdes em França, ao exotismo da Senhora da Aparecida no Brasil, passando pela Senhora do Cobre, em Cuba, até à muito eslava Senhora de Kazan, a figura de Maria impera. Se em ciências da religião nos fosse permitido fazer estudos de popularidade ou de audiências e share, não saberíamos quem obteria os melhores resultados, se Maria se o seu filho, esse sim, filho de deus.
2. Fundamentos do paradoxo mariano
Tais factos, constituiriam já, por si e per si, um paradoxo. Mas, quando no âmbito dos estudos neo-testamentários enquadrados na análise de fontes textuais do cristianismo na investigação das Ciências da Religião, esse paradoxo acentua-se a níveis quase inacreditáveis. Ao contrário de outras mulheres referidas na bíblia, nada se sabe de Maria, nada é referido da sua genealogia, não é referido o nome da sua mãe, do seu pai, como conheceu José... Sabemos, por exemplo, as origens de todas as mulheres da Bíblia, tais como de Rebeca, esposa de Isaac, filha Betuel, um arameu. Conhecemos as origens de Séfora, a heróica esposa de Moisés, filha de Reuel, tendo até a listagem dos bens que Moisés herdou casando-se com ela.
Sabemos o passado de Abigail, a primeira mulher de David. Até de Salomão, que constituiu um harém digno de registo, sabemos os nomes de algumas das suas esposas, concubinas e amantes, como a famosa rainha de Sabha. Mas de Maria, nada é referido. Surge como de um limbo, sem passado nem origem. Sabemos que era de Nazaré e que não conhecia homem. Prestou-se a ser o ventre onde encarnaria o Messias e nada mais. Ao longo dos quatro Evangelhos é referida apenas algumas dezenas de vezes, sendo raramente chamada pelo seu nome, preferindo os evangelistas tratá-la por "mãe de Jesus" ou "esposa de José".
O próprio Jesus, nas poucas vezes que a refere (5 vezes em todos os Evangelhos) trata-a por "Mulher". Mateus, o evangelista que mais vezes a refere, dedica-lhe dezassete versículos no conjunto de 1068 que constituem o seu Evangelho. Lucas refere-a vagamente, João quase que a esquece embora, aos pés da cruz, Jesus a confie, Marcos nem se lhe refere. Nos Actos dos Apóstolos, surge apenas duas vezes, mais como viúva desamparada e necessitada de auxílio depois de ter perdido o filho, do que uma figura proeminente. Na literatura epistolar neo-testamentária é completamente esquecida. São Paulo não a refere uma única vez. É curioso que a única descrição que temos de Maria tenha sido escrita por um pagão, um romano, Públio Lêntulo, na sua carta a Tibério César, quando diz "[Jesus] é o mais belo homem que imaginar se pode, muito semelhante a sua mãe, a mais bela figura de mulher que jamais por aqui se viu".
Pode contrapor-se que Maria, nos Evangelhos, surge em momentos chave, como o nascimento de Jesus, a primeira revelação messiânica no episódio da discussão de Jesus-criança com os Sacerdotes do Templo. Jesus inicia a sua "vida pública", nas bodas de Canã a pedido de Maria e é uma das poucas pessoas que assiste ao fim trágico de Jesus. Comparando-a, por exemplo, com personagens como Maria Madalena, Marta e Maria, irmãs de Lázaro, constata-se que Maria de Nazaré é muito esquecida.
Impõe-se, então, uma questão: o que faz com que uma personagem completamente esquecida pelos evangelistas, pelos apóstolos e, também, nos primeiros tempos do cristianismo, se torne um fenómeno religioso capaz de competir, senão "vencer", com Jesus, o próprio Deus feito homem, o Messias prometido?
A questão é demasiado complexa para ser tratada neste espaço. O fenómeno mariano é um tema quase inesgotável no estudo das ciências da religião. Para além de ser muito vasto, é extremamente complexo. Todos os teólogos dos últimos 1700 anos, alguns antropólogos, na modernidade, como Eliade, Duquesme, Messadié, Holm e Bowker, dedicaram alguns estudos ao tema, levantando mais questões do que encontrando respostas.
No entanto, podemos avançar com algumas hipóteses sobre as razões e as origens deste estranho fenómeno a que chamamos "Paradoxo Mariano".
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