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3. Explicações da "Ausência Mariana"
Existem, de facto, algumas razões que podem explicar a ausência de Maria nos Evangelhos. Em primeiro lugar, a própria natureza da cultura judaica e como esta se estruturava no século I d.C. . No tempo da vida de Jesus, a população judaica dividia-se em quatro grupos predominantes, cada um deles com uma visão muito particular relativamente aos princípios básicos do judaísmo. Conhecemos tanto dos textos bíblicos como de outros documentos (como os de Flávio Josefus), a existência dos Saduceus, dos Fariseus, dos Essênios e dos Zelotas.
Os Saduceus eram, segundo a tradição, a classe sacerdotal predominante, descendentes do Sacerdote Sadoc. No século I estavam profundamente helenizados, pertencendo à corrente interpretativa de Fílon de Alexandria. A sua coexistência com a ocupação romana era até bastante pacífica. Tanto Caifás como Anás, figuras preponderantes na decisão da morte de Jesus, pertenciam a esta estirpe que recusava qualquer tradição oral rabínica, não acreditava na vida para além da morte e achavam-se os defensores incontestados do Templo de Jerusalém e da Tradição.
Já os Fariseus eram o grupo antagonista dos Saduceus. Embora a tradição atribua a este grupo "a culpa" da condenação de Cristo, podemos dizer, com alguma segurança, que os fariseus foram os primeiros a apoiar Jesus, aqueles que o defenderam perante o Sinédrio e mesmo aqueles que, depois da morte de Jesus, engrossaram as fileiras dos primeiros cristãos. A ainda hoje a enigmática figura de José de Arimateia, por exemplo, assim como quase todos os apóstolos, embora não de um modo formal e declarado, pertenciam, notoriamente a este grupo. Acreditavam na tradição oral, esperavam a vida depois da morte, aguardavam a vinda do Messias anunciado e oponham-se fortemente à ocupação romana da Judeia, embora não tomassem posições "demasiado" radicais contra ela, ao contrário dos Zelotas.
Este grupo, os Zelotas, não tinha uma filosofia propriamente definida quanto a matérias de fé. A sua principal característica era ser contra a ocupação romana. Eram mais um grupo de rebeldes, de terroristas (como dizemos nós, actualmente) que, recorrendo à acção armada, atacavam sistematicamente as guarnições romanas, recorrendo tanto a métodos de guerrilha como de guerra aberta. Judas Iscariote, muito provavelmente, pertencia a este grupo, que apoiava, sem dúvida alguma, Jesus e a sua mensagem, mas esperando que ele fosse o rei libertador do jugo romano. Os Zelotas tiveram, aliás, o seu próprio Messias anunciado, chamado Simão Bar Cochba. Este homem enquadrava-se muito mais no perfil sonhado e imaginado de Messias do que Jesus de Nazaré. Em vez de distribuir pão, distribuiu espadas, em vez de organizar grupos de seguidores medidativos, organizou grupos de guerrilha que conseguiram infligir algumas derrotas pesadas ao invencível exército imperial romano. Mesmo depois da sua morte, no ano 135 d.C., nas muralhas de Bethar, o seu culto espalhou-se por todo o império. No século V, um Édito de Joviano, que restauraria o cristianismo como religião oficial do império romano, depois do reinado de Juliano, proíbe o culto a Bar Cochba por este ainda estar bastante divulgado pelo império, especialmente entre os opositores de Roma.
Por último, os Essênios eram um grupo ascético, esotérico e místico. Durante o período de Heródes, o Grande (século I a.C.), retiraram-se para o deserto por acharem que a vida em Jerusalém era demasiado libertina e profana. São, quase de certeza, os autores dos famosos Manuscritos do Mar Morto. Apregoavam o desprendimento completo dos prazeres da carne e da vida terrena, apelavam ao recolhimento, à pobreza, à castidade, mesmo dentro matrimónio. A influência da sua doutrina, nos alvores do Cristianismo, é enorme e declarada. Alguns académicos levantam a hipótese de Jesus Cristo ter pertencido a uma comunidade essênia, recebendo aí grande parte dos ensinamentos que viria a pregar na sua "vida pública". Exemplo disso é o episódio que nos narra o evangelista Lucas, quando uma mulher diz a Jesus "Felizes as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram!" e ele lhe retorquiu "Felizes, antes, os que escutam a Palavra de Deus e a põem em prática".
Ora o papel que a mulher desempenhava em cada um destes grupos e a influência que cada uma das facções tinha sobre as primeiras comunidades cristãs influenciaria determinantemente este ostracismo de Maria. Os primeiros cristãos, os próprios apóstolos e mesmo Jesus eram, ou fariseus ou essênios, ou mesmo uma mistura das duas tendências. Para os fariseus, a mulher tinha a sua importância, sem dúvida, mas como "apoiante", como aquela que acompanha o seu marido, lhe dá força, sustento, conforto, para que este desempenhe as suas tarefas, nunca como protagonista, nunca actuando, ficando sempre na sombra. É nesta postura que encontramos as mulheres que os serviam com os seus bens.
Os Essênios, por seu lado, eram completamente antagonistas ao feminino, mais, eram contra qualquer relação que existisse entre os sexos, mesmo em ambiente familiar. Eram adeptos do despojamento total, da entrega completa, do alheamento total dos aspectos "terrenos" do mundo. Para se atingir a salvação, afirmava este grupo, tudo se devia esquecer, tudo se devia abandonar e seguir somente a palavra de deus.
Em muitos episódios dos quatro evangelhos vemos Jesus a afirmar o mesmo. Desta forma, o facto de Maria ser ou não ser mãe de Jesus pouco importava. Cristo, o Messias, como todos os Essênios, tinha abandonado a sua casa, a sua família, os seus pertences, a sua mãe e seguido a palavra de Deus. Tudo o que tinha ficado não importava, era votado ao esquecimento. Os evangelhos denunciam uma forte influência essênia. Note-se que nas quatro descrições canónicas que temos da vida de Jesus, excluindo o nascimento e alguns poucos pormenores da infância, só nos é descrito um ano da sua vida, o ano em que divulgou a sua mensagem. O que fez até então, qual foi a sua vida, como e onde adquiriu os seus conhecimentos, a sua filosofia, a sua doutrina, onde passou 32 anos da sua vida, nada se sabe. Só João alarga o período de testemunho para 3 anos, mas mesmo aí, cinge-se completamente à actividade pública de Jesus. Tudo o resto não importava, devia ser esquecido. Esta posição tomada pelos evangelistas canónicos, a influência essênia, não deixa grande espaço para Maria, antes pelo contrário. O Messias devia estar livre de qualquer relação terrena, familiar, sentimental, devia ser puro, desprendido de tudo e de todos. Alguns teóricos afirmam que os Essênios só não tentaram defender a geração espontânea de Jesus para não ir contra as escrituras que afirmavam que o Messias devia nascer de uma mulher. Para os Essênios, Maria era a "mancha" carnal no divino do Messias, "mancha" que devia ser ocultada o mais possível e assim o fizeram, quase a omitindo dos Evangelhos.
Figura 2
A deusa Egípcia Ísis segurando no seu colo o seu filho Hórus.
Note-se a similitude desta imagem com as primitivas representações de Maria
especialmente as executadas no Oriente.
Há outro pormenor interessante em três dos Evangelhos (Mateus, Marcos e Lucas): Quando Jesus estava rodeado da multidão, disseram-lhe que estavam ali a mãe e os irmãos para lhe falarem, tendo ele respondido: "Quem são minha mãe e meus irmãos?....Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe".
Outro aspecto predominante para este "esquecimento" de Maria por parte das primeiras comunidades cristãs, foi, sem dúvida, o contexto religioso em que estavam inseridos. Especialmente quando o cristianismo inicia a sua expansão por regiões exteriores à Judeia, como pelo Império Romano, o Egipto, a Grécia, tiveram de enfrentar culturas fortemente politeístas, com mitologias de milénios, fortemente enraizadas nas mentalidades dos povos. Nessas mitologias as entidades femininas desempenhavam um papel fundamental. Embora as divindades supremas fossem masculinas, como Júpiter e Zeus em Roma e na Grécia respectivamente, ou Hórus no Egipto, as divindades femininas nunca perderam o seu poder.
Atenas, por exemplo, era dedicada à deusa Atena, Roma à deusa Vesta e, no Egipto, Ísis era uma deusa com poderes quase comparáveis a Rá. O império Romano, por exemplo, era dominado pelos Césares, da gens Júlia, que obtinha a sua legitimidade política e religiosa por descender da deusa Vénus. Embora os deuses fundamentais fossem masculinos, os politeísmos dependiam fortemente das suas divindades femininas.
Ora, uma das grandes missões do cristianismo era defender um monoteísmo exclusivamente masculino, sem margem para divindades secundárias ou de qualquer outra espécie. Cristo era deus, a encarnação da divindade primordial das antigas tradições e alianças e para além dele nada mais havia. Era único e uno. Ora, quando os apóstolos começaram a sua missão de evangelização pelo império romano, especialmente Pedro na região de Roma e Paulo na zona do Peloponeso, tiveram que literalmente ocultar Maria dos seus ensinamentos se pretendiam promover um monoteísmo masculino.
Se fizessem menção a Maria, como sendo a mãe de Jesus, que tinha sido "fertilizada" pelo próprio deus, que tinha dado à luz sem deixar de ser virgem, qualquer romano, grego ou egípcio, declararia, de imediato e segundo a lógica dos politeísmos, que Maria era, ela própria, deusa. Casos como estes tinham os politeísmos de sobra. Afinal Rómulo e Remo, os fundadores de Roma, nasceram da mesma forma, quando Júpiter desce em forma de chuva de ouro sobre Rea Sílvia, assim como Hércules tinha nascido da mesma forma da união de Zeus e Alqmena. Para um politeísta, a estrutura da história do cristianismo era conhecida e bem definida: um deus tinha fecundado uma mortal e dessa união tinha nascido um herói, um semi-deus, tal como Hércules, Ulisses, Aquiles ou qualquer um dos Césares. Na mitologia egípcia o caso tornava-se mais grave devido às gritantes semelhanças entre a história de Cristo e a lenda de Osíris.
Também Osíris foi morto, sacrificado para a salvação dos homens, e ressuscitou tomando o controlo do mundo ao lado de seu pai, Rá, deus do Sol. A mãe de Osíris era Ísis, que o tinha tido num acto virginal. Nos primeiros tempos do cristianismo, as imagens de Ísis a amamentar Órus fórum muito confundidas como imagens da Maria.
Alguns teóricos avançam com a tese que as origens da construção imagética referencial de Maria provêm dessa mesma figura de Ísis. Na Pérsia, Mitra foi concebido de uma virgem… Se os primeiros cristãos contassem a história de Cristo, assim, simplesmente, Jesus, sem dúvida, seria incluído e sem qualquer problema, no panteão romano, sempre receptivo a novos deuses e a divindades cada vez mais exóticas. Por certo, pode imaginar-se, os romanos achariam muita piada a um deus vindo da distante Judeia e que tinha sido carpinteiro. O novo deus teria os seus seguidores, teria os seus templos na cidade de Roma e sem que isso causasse o menor tipo de problema ou alteração.
Mas não era isso o pretendido. Os primeiros disseminadores da religião cristã tinham, em primeiro lugar, de se demarcar, completamente, de toda a "lógica" e tradição politeísta. O cristianismo não se destacava das restantes religiões pela forma, pela história, mas sim pelo conteúdo, pela mensagem, pela "Boa Nova". E foi isso que os Apóstolos fizeram. Esqueceram, esconderam mesmo a "forma" do cristianismo, o nascimento de Jesus, a figura de Maria, a concepção e o parto virginal, demasiado semelhante a outras lendas, para dar predominância à mensagem, ao conteúdo da mensagem de Cristo, essa sim, completamente diversa de qualquer religião instituída. Maria é assim "escondida deliberadamente", para que não haja nenhum tipo de miscigenação entre as lendas politeístas e o cristianismo.
Outro aspecto relevante para o esquecimento de Maria, na aurora do cristianismo, prende-se com Saulo de Tarso, ou São Paulo, como é mais conhecido. Este fariseu, depois de ter desencadeado uma acérrima perseguição aos cristãos de Jerusalém, converte-se ao cristianismo no designado "Milagre de Damasco". Paulo, convertido, torna-se, então o principal disseminador da nova religião, fazendo várias viagens apostólicas passando por Roma, Éfeso, Corinto, Tessalônica, isto é, percorrendo as principais cidades do mundo antigo.
Paulo é considerado o grande "doutrinador" e "legislador" do Cristianismo. Não é por acaso que é o mais prolífero dos autores bíblicos, autor de mais de 14 textos num total de 27 que constituem o novo testamento. É quase unanimemente considerado pelos académicos como aquele que transformou uma simples corrente filosófica numa religião instituída, promovendo o primeiro concílio, decretando os primeiros dogmas, instituindo as primeiras leis, regulamentando, até ao mais ínfimo pormenor, a vida das comunidades que ia fundando nas suas viagens.
Paulo, advogava uma visão completamente essênia da mulher, como prova na sua famosa carta aos romanos quando afirma «Por esse motivo [o afastamento do deus único] deus os entregou [aos pagãos] a paixões degradantes, pois suas mulheres mudaram o uso natural em outro uso que é contra a natureza" ou ainda na 1º carta aos coríntios quando afirma categoricamente «Penso ser bom que o homem se abstenha da mulher». Paulo, nas suas epístolas, por várias vezes, remete a mulher para um papel de subserviência e de obediência, nada benéfica para a glorificação de Maria.
O último aspecto a ser posto na "descriminação" de Maria nos primeiros tempos de cristianismo passou-se mais tarde, por volta do século IV. Não obstante os esforços dos fundadores da Igreja para criarem uma ortodoxia de cariz eminentemente essênio e indissociável do judaísmo, ocorreram, ao longo de três séculos, vários "desvios" a esse esforço. O facto de o cristianismo ser uma religião minoritária, clandestina e mesmo perseguida contribuiu para que tal acontecesse. Manter uma ortodoxia, uma doutrina coerente e uma ritualista unificada num grupo que se estende por uma grande área geográfica e que tem de manter a sua clandestinidade, era um esforço demasiado grande para ser possível empreendê-lo nos primeiros séculos da nossa era. Desta forma, foram surgindo vários grupos cristãos em diversas regiões do império romano, divergindo em alguns pontos do que seriam as directrizes dos fundadores.
Especialmente no designado "Império do Oriente", começou a dar-se uma miscigenação entre o cristianismo e outros cultos fortemente implementados nessas regiões, tais como o culto de Ísis, de Demêter, de Afrodite, de Osíris ou Dionísio. Embora declaradamente cristãos e monoteístas, esses grupos começaram a introduzir no simples corpus doutrino-ritualista cristão, outros elementos provenientes das antigas religiões e tradições. Essas influências faziam-se sentir em termos de doutrina, da filosofia, dos rituais, enfim, no modo em como se entendia o cristianismo como um todo. Por exemplo, a confluência do cristianismo com o platonismo gerou um dos fenómenos mais interessantes das igrejas primitivas: o gnosticismo. Este grupo defendia a descoberta de deus e a comunicação com o divino através do conhecimento, da pesquisa, da busca. Rejeitavam os dogmas, as hierarquias, assumiam o cristianismo como uma experiência pessoal e íntima.
O culto de Ísis também influenciou algumas comunidades, tornando-as profundamente matriarcais, voltadas para o culto do feminino, do elemento gerador. No século III, Atanásio, bispo de Alexandria, queixava-se que as mulheres de algumas comunidades presidiam ao culto, baptizavam e até consagravam. Um desses grupos de cristãos, viria a dar origem ao primeiro sisma da Igreja Cristã. Os arianos (chamados assim por seguirem a filosofia de Ário) acreditavam em Cristo mas negavam a sua divindade. Proclamavam que era Messias por influência divina e não por nascimento, recusando assim a Jesus o estatuto de filho de deus. Afirmavam que Jesus seria filho natural de José e de Maria, e só posteriormente "ungido" por deus como o seu Messias. Esta questão, resolvida no Concílio de Nicéia, em 325, com a promulgação do célebre Credo de Nicéia que incluía a tão disputada expressão do filiusque (Filho de Deus), deu a vitória aos partidários de Atanásio, condenando Ário como herege. Atanásio, então, com o intuito de extinguir completamente a heresia ariana tomou duas medidas que influenciariam, em muito, a visão de Maria: a unificação do rito e a implementação de uma hierarquia da Igreja exclusivamente masculina, vedando às mulheres qualquer tipo de prática ministerial ou sacramental, além de decretar o cânone textual do cristianismo. Assim como a Igreja não tinha conseguido controlar a proliferação de ritos e doutrinas dissidentes à ortodoxia, assim também não tinham conseguido controlar a produção de textos que pretendiam divulgar tanto a vida como a mensagem de Jesus. Alguns destes "Evangelhos", de facto, tomaram outro rumo que aqueles seguidos pelos quatro Evangelhos Canónicos de tendência eminentemente essênia.
Desta forma encontramos os Evangelhos de Filipe, de Maria Madalena, o Livro da Filha de Pedro e o Evangelho Secreto de João. Nestes Evangelhos e em muitos outros, conhecidos desde a descoberta da biblioteca de Nag Hammadi, a figura de Maria assume outras formas, é descrita a infância de Jesus e o papel que sua mãe teve efectivamente na sua educação. Em muitos dos evangelhos apócrifos, Maria tem um lugar de destaque, assim como o elemento feminino. Para Atanásio, desta forma, a existência de livros que não seguiam as directrizes impostas para o ataque aos heréticos, eram uma ameaça séria.
Figura 3
Mosaico representando o Imperador Constantino e sua Mãe, Santa Helena.
Note-se que se encontram ao mesmo nível e apresentam, exactamente, as mesmas proporções.
A alteração de posições e de dimensões era utilizada neste período para demonstrar à ascendência de umas figuras relativamente a outras, o que não acontece neste caso.
Desta forma, expressa-se a similitude de importância de Constantino e Helena.
Até o Evangelho que era considerado e tido como o mais antigo de todos, o de Tiago, foi rejeitado, precisamente por ser um livro que atribui a Maria um papel fundamental na missão salvífica de Jesus. Desta forma, Atanásio emite uma carta a todos os mosteiros sob a jurisdição da diocese de Alexandria, impondo que só era permitida a leitura de 27 livros para além dos da Bíblia Judaica. Esses 27 livros compreendem os 4 evangelhos canónicos, os Actos dos Apóstolos segundo Lucas, 14 cartas de Paulo, uma carta de Tiago, 2 de Pedro, 3 de João e uma de Judas, mais o Apocalipse de João.
Todos estes textos foram escolhidos criteriosamente por Atanásio para defender a sua cruzada contra o arianismo. O culto centrava-se unicamente em Cristo, como filho de deus encarnado, da descendência de David, repudiava-se qualquer influência feminina e impunha-se, especialmente a partir das Epístolas de Paulo e de Pedro, um conjunto de directrizes que deveriam constituir um código de conduta das comunidades cristãs por todo o Império do Oriente. Atanásio desenvolvia um esforço hercúleo para devolver ao cristianismo aquilo que achava ser os princípios definidos pelos Apóstolos, isto é, profundamente monoteístas, patriarcais e essênios. Curiosamente estes actos de Atanásio de Alexandria foram os últimos que tiveram como intento alhear Maria da história do Cristianismo. No Império do Ocidente outra revolução estava a acontecer e esta necessitava, urgentemente, de uma figura que só Maria podia assumir.
Figura 4
Desde o Édito de Milão, a Igreja passou a ser a Religião Oficial do Império Romano. Este período de transição obrigou a grandes transformações no seio de toda a estrutura do Cristianismo.
De seita oculta e perseguida, a Igreja viu-se dotada de grande poder, sendo entregue ao Sumo Pontífice o Poder Temporal, Espiritual e Doutrinal sobre todo o Império e sobre todos os crentes, como simbolizam as três coroas da Tiara Pontifícia usada pela última vez por Paulo VI e que só saiu das armas pontifícias com Bento XVI
4. Da clandestinidade ao poder: o processo de transição
Quando Constantino I se apoderou do trono imperial romano, poucos poderiam imaginar o rumo que os acontecimentos tomariam durante o seu reinado. Filho de Constâncio Cloro e de Helena, filha de um simples estalageiro da Alta Dácia (actual Roménia), foi proclamado Imperador e Augusto pelas legiões romanas, em 306. Seria mais um imperador romano, numa já longa lista que se estendia deste Octaviano. Mas a influência de Constantino seria marcante.
Em 312, enfrenta o primeiro grande desafio do seu reinado, tendo de travar a famosa batalha da Ponte de Mílvio, que opunha Constantino a Maxentius, pretendente ao trono imperial. Conta a lenda que, na noite anterior à batalha, o imperador sonhou com uma cruz e com uma voz que lhe dizia: "Com este signo vencerás". Na manhã seguinte, Constantino mandou que uma cruz fosse pintada em todos os escudos das suas tropas. A vitória de Constantino foi retumbante. Esta lenda, ou facto, provocou, em grande parte que, em 313, o Imperador declarasse, num édito assinado em Milão, a liberdade religiosa em todo o império, o fim da perseguição aos cristãos e, mais ainda, decretasse que o cristianismo passaria a ser a religião oficial do império. Desta forma, em apenas dois anos, depois de 300 anos de clandestinidade, os cristãos passam de criminosos, anátemas e rebeldes a senhores da religião imperial. Foi uma revolução completa em todo o império.
De todo este processo não podemos deixar de conferir alguma, senão muita, atenção a uma figura que passa quase despercebida na história tanto do império romano como na do cristianismo: Flavia Iulia Helena. Esta mulher, de origens humildes, filha de um estalageiro ou comerciante, tornou-se mulher legítima do Imperador Constâncio Cloro. Foi um amor esporádico, enquanto Constâncio era apenas um general encarregue da governação de uma província longínqua do norte do império. No entanto, tomou-a como legítima esposa e foi desse casamento que nasceu Constantino. De volta a Roma e às tramas do poder, Constâncio Cloro repudia Helena e casa-se com Teodora, filha do Imperador Maximiano Herculius, de modo a obter influência politica e poder militar. Helena, fica então no exílio com o seu filho Constantino.
As probabilidades de Helena ser cristã, mesmo de nascimento, não podem ser comprovadas historicamente mas a sua possibilidade não pode ser posta, de todo, de lado. A região onde habitava, contava com uma forte comunidade que seguia a doutrina de Jesus, a sua origem simples e humilde inseriam-na no "grupo alvo" que constituía as comunidades cristãs dos primeiros séculos. Desta forma, é possível que Constantino, desde muito cedo, tenha tido contacto com o cristianismo. Depois da morte de Constâncio Cloro e devido a algumas vicissitudes históricas que não têm lugar no assunto que seguimos, Constantino vê-se aclamado Imperador e Augusto do Império Romano pelas legiões em detrimento de Maxentius, filho de Maximiniano, antigo imperador de Roma. Com o apoio das legiões, isto é, do poder militar, Constantino consegue manter o poder, não obstante os ataques sucessivos de Maxentius, que terminam na já referida Batalha da Ponte Mílvia.
Quando Constantino é aclamado imperador expulsa a segunda mulher de seu pai. Manda então chamar Helena, fá-la aclamar na corte imperial, confere-lhe o título de Augusta e manda cunhar moedas com a sua esfinge, tornando-a, assim, uma espécie de Imperatriz-Mãe. Com os poderes que lhe são conferidos, Helena começa a exercer uma influência crescente na corte de Roma, trazendo cristãos para o Fórum, para o Senado e para o Paladino. Para além disso, envia centenas de emissários por todo o oriente procurando as provas reais da existência de Jesus, da sua vida, morte e ressurreição. Nesse esforço, encontra o Madeiro da Cruz, identifica os lugares sagrados como o sepulcro de Jesus, a caverna do seu nascimento, mandando construir, nesses lugares, sumptuosos templos. Helena é, deste modo, não só a causadora "parda" da conversão do Império ao cristianismo, como também a estruturadora da nova ordem social e a primeira a dar, à nova religião oficial, objectos e lugares de referência para a edificação do culto e da adoração.
A lenda da Batalha da Ponte Mílvia é entendida por muitos como um argumento justificativo para legitimar a promulgação do Édito de Milão. Por influência de Helena, Roma já era governada por cristãos, sendo somente necessário conferir-lhes legitimidade jurídica. Desta forma, uma das revoluções mais marcantes do ocidente foi perpetrada por uma mulher, que era considerada Augusta, isto é, divina segundo a tradição e a religião Imperial Romana.
Com o Édito de Milão, a Igreja tem de se transformar de um modo radical. Passar da clandestinidade para o poder, assim, directamente, não é um processo fácil, muito menos pacífico. Já não se tratava de administrar e orientar pequenas comunidades, fiéis seguidores, como acontecia até então. Era necessário estabelecer hierarquias bem definidas, decretar, impor a ordem, em suma, assumir, em pleno e eficazmente, o poder que o Imperador lhe conferia. Nesta altura, lembremo-nos, já tinham passado 300 anos sobre a morte de Jesus, de Pedro, de Paulo, a maioria das comunidades já estavam fora da Judeia, e a esmagadora maioria dos cristãos não era já de judeus conversos, mas era constituída maioritariamente por gregos, romanos, macedónios, alexandrinos, fenícios. As origens essênias e judaicas da comunidade dos apóstolos era já algo de distante, de longínquo e, para muitos, algo de estranho e de desconhecido.
Desta forma, quando o catolicismo é chamado a tornar-se a religião oficial do império, outras influências, outros elementos, outros arquétipos que não os das fundações do cristianismo, contribuirão, decididamente, para esta metamorfose.
A hierarquia cristã tinha que tomar importantes decisões. Na altura, era Pontífice da Igreja Cristã (nessa altura ainda completamente unificada, por isso não utilizamos o termo "Católica") Silvestre I. Este papa era romano de nascimento, de uma família abastada mas também cristã, que entregou a sua educação a um sacerdote, Cirino, que o introduziu na doutrina e na teologia cristã. No entanto, sendo membro de uma família abastada romana, Silvestre não podia deixar de ter contacto com todo o culto que se movia em torno do Imperador.
Nesta transição entre a clandestinidade e o poder, Silvestre teve de tomar difíceis decisões: era necessário criar uma nova classe sacerdotal, era necessário remodelar todo o calendário, as festas, os feriados, antes completamente dedicados aos deuses pagãos; era necessário encontrar uma forma da nova religião legitimar o poder Imperial, que já não poderia advir de Vénus nem de Marte, mas do "novo" deus vigente. Era necessário, ainda, não criar demasiadas cisões, não interferir em demasia com o quotidiano de todo o império que se estendia desde a Judeia até à Bretanha, quotidiano esse que se regia e se regulava pelo culto e pelos rituais aos deuses pagãos. Não se tratava já de converter pequenas comunidades, pequenos grupos, que se reuniam em casas modestas, em rituais privados, em que se invocava o nome de Cristo, se liam alguns textos sagrados e se partilhava o pão e o vinho. Era necessário converter milhões de pessoas, cidades, províncias, que queriam as suas manifestações públicas de fé, os seus rituais realizados em templos sumptuosos, que queriam a sua classe sacerdotal. Silvestre, como bom romano, foi pragmático como só os romanos o sabiam ser. Se a Igreja cristã seria a religião do Império, não era o império que se tinha que adaptar ao cristianismo, mas sim o cristianismo que tinha que se adaptar ao Império.
5. A visão da divindade e as novas circunstâncias
As religiões politeístas, especialmente as helénicas e latinas, tinham uma grande vantagem relativamente ao cristianismo: tinham uma teologia. De facto, durante cerca de dois mil anos (já que, em termos teológicos as religiões helénicas e latinas possam ser consideradas uma só), os mais brilhantes pensadores tinham-se debruçado sobre a relação entre o humano e o divino, sobre os rituais, sobre todo o estudo da divindade, as suas manifestações, a sua natureza, a sua essência, sobre todos os aspectos que, afinal, compõe a teologia, o estudo de deus.
O cristianismo não tinha essa herança valiosa. Mais ainda: o cristianismo tinha tido origem numa outra religião, o judaísmo, que, embora muito antiga, nunca tinha desenvolvido, salvo raríssimas excepções, uma teologia, uma filosofia. Contra um saber acumulado que incluía nomes como Anaximandro, Sócrates, Platão, Aristóteles, Ptolomeu, Horácio, Ovídio, Séneca, os cristãos tinham a opor algumas cartas de uns apóstolos quase analfabetos. O cristianismo, antes de mais, precisava de uma teologia, de uma ciência que explicasse o seu deus único, que justificasse e fundamentalmente legitimasse todas as adaptações que teriam de ser feitas para que a Igreja Cristã pudesse assumir, em pleno, o astuto de religião do Império.
Desta forma, e seguindo o pragmatismo de Silvestre, o cristianismo tinha que preencher duas lacunas fundamentais na estrutura do seu pensamento e sem as quais nenhum pensamento filosófico podia ser sustentado: Jesus, podia ser o único deus, mas fosse qual fosse, tinha que ter uma origem; e, como em toda a orgânica mítica, não pode faltar uma figura demiúrgica, isto é, algo ou alguém que estabeleça a comunicação entre o deus e a humanidade.
Para além do mais, havia algo que não se enquadrava muito bem na própria organização e mentalidade do império: a ausência do factor feminino. Durante milénios, os gregos e os romanos tinham sido tutelados por deusas, as suas cidades, Atenas, Roma, eram protegidas por entidades femininas. Os gregos e os romanos tinham a sua célula social basilar na família. As aldeias, as províncias, mesmo o império tinham as suas estruturas baseadas na organização dessa célula básica. Ter um império regido por uma religião sem deusas, era como ter uma casa sem mãe, era condenar o povo a uma espécie de orfandade divina, em que havia um pai, até havia um filho, mas depois, não havia uma mãe, não existia o elemento gerador, congregador e pacificador da domus. Esta "não existência" num império em que as mulheres, embora sempre sujeitas à autoridade masculina, tinham granjeado grande poder e grande prestígio, influenciando, grandemente a sua história, poderia causar alguns, mas sérios, problemas.
A influência, o poder, a cultura das famosas matronas romanas deixaram a sua marca na história do ocidente. E não tinha sido uma dessas matronas, ainda por cima Augusta, que tinha trazido o cristianismo das profundezas das catacumbas às alturas do trono imperial? É neste contexto, na busca dos novos teólogos cristãos, que a figura de Maria começa a sair do esquecimento. Ela resolvia o problema das origens da divindade. Tinha sido a mulher escolhida por deus para servir de ventre ao Messias. Não era deusa, e isso estava definido a priori, assim como Helena não era Imperatriz, mas numa corte celestial, assim como numa corte terrena, tanto se adequam os cargos às pessoas como as pessoas aos cargos. Maria não seria deusa? Não! Mas seria Rainha do Universo, a Luz da Manhã, a Estrela da Tarde, a Rosa de Ouro e todos os outros epítetos que vai buscar à quase totalidade das divindades femininas da mitologia greco-latina. Maria, como mãe do criador, também poderia assumir, perfeitamente, o papel de demiurgo, isto é, de interlocutora privilegiada entre os homens e deus.
Não seriam necessários oráculos, arautos nem lígures com as suas mensagens enigmáticas para se interceder junto do divino. Quem mais podia ter influência sobre deus senão a sua própria mãe? Por último, Maria fechava o círculo da nova domus divina. Havia um Pai, um filho e uma Mãe, a figura maternal, feminina, geradora, fértil, que incorporava todo o elemento matriarcal da sociedade romana, que não deixava a religião do império órfã de mãe. Maria, era então, tudo aquilo que os teólogos necessitavam para resolver alguns dos seus mais agudos problemas. Recrutaram-se, assim, as mais brilhantes mentes do cristianismo do século IV como Atanásio, Basílio, Crisóstomo, Cipriano e Agostinho para atingir um objectivo: retirar Maria do esquecimento e conferir-lhe o lugar que ela necessitava ocupar na corte celeste para que também os da corte terrestre pudessem ficar como se pretendia.
Figura 5
Representação do Concílio de Nicéia.
Note-se que ao centro, presidindo ao Concílio, não se encontra o Papa, mas o Imperador Constantino, ostentando trajes sacerdotais, as insígnias do poder espiritual (como a cruz e o palium) e também, inclusive, uma auréola o que lhe conferia o estatuto de santidade.
6. Os mimetimos e a fundação das bases cristãs
Mimetismo pode parecer uma palavra muito erudita. De facto não pertence ao léxico que normalmente utilizamos no estudo das ciências da religião, mas sim aos domínios da biologia. Mimetismo é, tão simplesmente, a capacidade que alguns animais detêm de adaptar a sua morfologia às características do ambiente que os rodeiam de modo a defenderem-se dos predadores. Um exemplo típico de mimetismo é o camaleão, capaz de mudar de cor conforme o ambiente em que se insere. Mas porque fomos buscar este termo para o domínio das ciências da religião e, em específico, para tratar deste assunto? Porque, de facto, o que aconteceu nos primeiros tempos da Igreja instituída foi, claramente, um fenómeno de mimetismo.
Como vimos, o Cristianismo, agora religião imperial, carecia de uma doutrina unificada, de uma filosofia consolidada, de uma dogmática estruturada, de uma cosmogonia sustentável. O que fazer? Alguns filósofos que tinham permanecido fiéis ao politeísmo, tais como Celso, atacavam fortemente o cristianismo. A filosofia "pagã" tinha séculos de experiência, dominava a retórica, a oratória, muitos dos filósofos tinham-se formado nas famosas escolas Atenienses do Liceu ou da Academia, fundadas por Platão e Aristóteles.
A Igreja sofria estes ataques sem possibilidade de defesa. Tudo era rechaçado, eram encontradas contradições nos evangelhos, na história de Cristo, na ainda jovem doutrina cristã. O cristianismo só não soçobrou a estes ataques porque Constantino interveio prontamente. Homem habituado a travar batalhas difíceis, não seria esta que iria perder. No entanto, esta guerra não decorria no campo militar, mas no campo filosófico. Assim o Imperador não chamou soldados, chamou filósofos, preferencialmente convertidos ao cristianismo, tenha sido por vontade própria ou por obediência imperial.
A esses filósofos Constantino ordenou a criação de uma filosofia cristã, de uma doutrina, de uma história que a legitimasse e a defendesse dos ataques dos partidários do "paganismo". Foram chamados homens de dentro e de fora da igreja, filósofos reputados, também eles formados nas academias filosóficas, tais como Cipriano de Cartago, Eusébio de Cesareia, João Crisóstomo, Jerónimo de Strídon, Agostinho de Hipona entre muitos outros, conhecidos hoje como Padres da Igreja, isto é, os Pais da Igreja. De facto, estes homens, em pouco menos de 50 anos, construíram as bases da Igreja Cristã tal como hoje a conhecemos.
Definiram uma filosofia, uma doutrina, dotaram-na de uma história canónica, tanto relativamente à vida de Cristo, como referente ao período de perseguição, estabeleceram uma genealogia pontifícia provando que, desde Pedro, sempre tinha havido sucessor legitimando assim o papel do pontificado, definiram até um conjunto de homens e mulheres que serviriam de exemplo aos crentes, chamando-lhes santos, de modo a que os fiéis pudessem criar referências, modelos, arquétipos. Mas como fizeram estes homens tanto em tão pouco tempo? Utilizando, única e simplesmente, um argumento, só um, nada mais, esse argumento que resolvemos designar de "mimetismo das origens".
O argumento era o seguinte: desde as origens dos tempos que Deus sabia da encarnação do seu filho, da altura em que decorreria, das circunstâncias em que teria lugar, enfim, de tudo. Desta forma, deus, omnisciente, foi preparando a vinda de seu filho, inspirando alguns homens com a sabedoria divina, que mesmo não o sabendo, mesmo utilizando nomes de deuses pagãos, mesmo vivendo antes da vinda do Messias, preparavam a sua vinda, compondo uma filosofia, uma doutrina, um corpus capaz de sustentar a igreja de Cristo quando esta surgisse. E quais eram os nomes desses homens inspirados, cristãos antes do nascimento de Cristo, messianistas antes da vinda do Messias? Platão, Aristóteles, Ptolomeu, Virgílio, Pitágoras, isto é, quase a totalidade dos grandes filósofos da antiguidade. O que os Padres da Igreja fizeram foi "mimetar" a filosofia greco-latina às necessidades do cristianismo. A caverna de Platão passou a ser uma alegoria clara a Cristo que retira os homens do mundo das sombras e os traz à luz, a Física de Aristóteles provava a perfeição e a unidade da criação divina, a sua Metafísica provava a existência da alma, do paraíso, até mesmo da ressurreição. Pitágoras, na sua geometria, tinha descoberto a essência da Santíssima Trindade, declarando o triângulo como a figura geométrica perfeita. Mesmo os poetas consagrados da Roma Imperial, como Virgílio, que morreu 19 anos antes do nascimento de Cristo, escreveu toda uma Écloga, a IV, dedicada ao futuro Messias onde diz "incipe, parve puer, risu cognoscere matrem:/ matri longa decem tulerunt/ fastidia menses./ incipe, parve puer: qui non risere parenti, /nec deus hunc mensa, dea nec dignata cubili est.". O próprio Séneca, o maior filósofo Romano, preceptor de Nero, já seria cristão, tentando conduzir o seu imperial discípulo para os caminhos de Jesus Cristo. As obras de Orígines, esse sim assumidamente um filósofo cristão, foram aclamadas e a sua filosofia institucionalizada. De facto, tendo sido o autor da teoria que todo o Antigo Testamento, profetisa e prepara a vinda de Cristo e que os textos, sagrados ou não sagrados, para além do seu sentido imediato, podem ter um sentido simbólico, alegórico, mesmo esotérico, pode afirmar-se que foi Orígines que acabou por lançar as bases do mimetismo do século IV.
Assim e de uma forma rápida e eficaz, o cristianismo tinha todos os elementos necessários para a sua sustentação teórica, podendo enfrentar os ataques pagãos, com as mesmas teorias, citando os mesmos autores, é certo, mas com o argumento que se Platão, por exemplo, era um proto-cristão, todas as suas teorias só poderiam apoiar o cristianismo e nunca o paganismo. Esta elaborada teoria convenceu alguns, os cárceres imperiais convenciam outros e o cristianismo florescia.
Em 325, o Imperador já tinha material suficiente para impor, em definitivo, a sua religião imperial, unificando o culto, exterminando os dissidentes, promulgando as bases inquestionáveis da Igreja Imperial. Para isso convoca o primeiro Concílio ecuménico, em Nicéia. Nesse Concílio são condenados os Arianos, são definidos os procedimentos para a celebração da Páscoa, trata-se do cisma de Milécio, regulamenta-se o baptismo de heréticos e o estatuto dos prisioneiros na perseguição de Licínio e, por fim, mas não por último, proclama-se o Credo de Nicéia, ou Símbolo dos Apóstolos, hoje mais conhecido como "Credo" que continua a ser entoado em todas as celebrações eucarísticas do catolicismo. Esta "profissão de Fé" proclama a Fé em Deus, em Cristo, declara, definitivamente, Jesus como filho de Deus, professa a redenção humana na sua morte e ressurreição e afirma a autoridade absoluta da Igreja una, santa, católica, apostólica e romana, centrando em Roma todo o poder, toda a influência, todo o domínio da nova religião Imperial. Tudo parecia estar justo e perfeito tanto para o Imperador como para o agora glorioso cristianismo. Havia somente algo que ficara por resolver, algo que nem os mais elaborados mimetismos dos padres da Igreja tinham conseguido solucionar, explicar, fundamentar: Maria.
Essa continuava oculta e desamparada, à espera que alguém encontrasse uma solução que lhe permitisse ocupar o lugar que era necessário que tomasse no Cristianismo Imperial. Constantino declara que o Império passaria a ser o reflexo da Igreja de Cristo, dos seus princípios, da sua doutrina. Mas a Igreja tinha que reflectir a imagem que o Império quisesse ver. E nessa imagem tinha de haver uma rainha.
7."Heresias" em favor de Maria
Quando Constantino morre em 337, podia dar-se por satisfeito com o seu trabalho de edificar uma nova Igreja para o seu Império. O cristianismo tinha encontrado o seu caminho. No Concílio de Nicéia tinham ficado definidos os principais dogmas da cristandade, evitando (pensava Constantino) novas heresias e sismas. O clero estava a estruturar-se, as antigas festas pagãs tinham sido substituídas por festividades cristãs, os antigos templos dos deuses ancestrais tinham sido espoliados das suas estátuas para dar lugar à cruz redentora de Cristo. De Roma às mais remotas províncias do Império viajavam monges pregadores a anunciar a boa nova da Salvação. Somente uma coisa lhe faltava resolver: o seu império celeste continuava órfão de mãe. Alguma coisa tinha que ser feita... Ele próprio tinha mandado edificar, em plena Roma, a magnífica catedral de Santa Maria Maior, no Símbolo dos Apóstolos, figurava o nome de Maria, logo depois da expressão do filiusque que tinha provocado toda a heresia ariana, professando que Cristo tinha sido "gerado, não criado, consubstancial ao pai, e por ele todas as coisas foram feitas, e por nós homens, e pela nossa salvação, encarnou pelo espírito santo no seio da Virgem Maria e se fez Homem." Mas era demasiado pouco para a consagração de uma rainha celeste, da Mater Eclesiae, de uma Imperatriz.
Depois da morte de Constantino, a situação política degradou-se velozmente. O Império foi dividido em três, respectivamente pelos três filhos do Imperador (Constantino II, Constante e Constâncio). Esta divisão provocou as devidas cisões e instabilidades, afectando a igreja, a sua unidade e o seu progresso. Como não bastasse, a Constantino II, sucedeu Juliano que embora educado no cristianismo, tentou restaurar os antigos deuses pagãos e a antiga religião imperial, sofrendo o cristianismo nova perseguição. Embora Joviano, o imperador que lhe sucedeu, tenha restituído à Igreja o seu papel de religião oficial do Império, viveram-se tempos conturbados em que uma sucessão de Imperadores aclamados pelo exército tentavam travar o que já se poderia considerar como o prelúdio da queda do Império dos Césares.
Figura 6
Representação do Concílio de Constantinopla.
Mais uma vez, ao centro, presidindo, encontra-se o imperador, ostentando as mesmas insígnias sacerdotais e pontifícias.
Está ladeado dois dos Patriarcas (o do Ocidente e o do Oriente) segurando o texto as deliberações conciliares.
Só em 381 se começou a retomar alguma normalidade, formalizada pelo Concílio de Constantinopla, sob os auspícios do Papa Dâmaso e do Imperador Teodósio. Debateram-se algumas heresias, falou-se, de novo, das questões ligadas ao filusque, decretou-se algumas coisas sobre o Espírito Santo, introduzindo-o no Símbolo dos Apóstolos. Mas nada mais. Quanto a Maria, nada. Ainda não havia matéria de facto para se poder tratar do mistério mariano. Embora todos os teólogos começassem a levantar questões sobre que lugar, na hierarquia celeste, deveria ser dada àquela que tinha sido o ventre donde nascera a divindade, não havia fontes, não havia filosofias, teorias, não havia textos que pudessem fundamentar algo sobre Maria. Os Evangelhos canónicos, como já vimos, são pouco mais que omissos.
E os teólogos debatiam-se com um problema que começava a incomodar a própria hegemonia da Igreja. Já se tinha definido que Jesus era, ao mesmo tempo e em simultâneo, deus e homem, assim tinha nascido como homem mas sendo já deus encarnado. Esse nascimento tinha sido possibilitado por Maria, o ventre sagrado. Começaram, então pelo século V, a levantar-se, algumas vozes, algumas teorias. Maria, o seu papel no mistério da salvação, a sua natureza… Já não se trata apenas de uma necessidade política levantada por Constantino de preencher uma vacatura celeste que o incomodava. Maria tornava-se, cada vez mais, uma questão teológica que urgia resolver. Multiplicavam-se as opiniões, as teorias, levantavam-se questões, davam-se algumas respostas vagas. Mas, como é habitual na história humana, era necessário um conflito aberto para que a questão definitivamente se resolvesse.
Este conflito, segundo a história, aconteceu num pacato e normalíssimo domingo em Constantinopla. O Patriarca Nestor tinha convidado, para pregar nesse domingo, um sacerdote, chamado Proclo, que tinha fama de, nos seus longos sermões, entusiasmar as multidões. O tema do sermão: Maria. Depois de louvar as virtudes de Maria, e afirmar que ela era " a única ponte entre Deus e os Homens" eis que Proclo conclui da seguinte forma: "eis a descrição exacta da Théotokos, Santa Maria".
Figura 7
Representação de Maria aprovada no Concílio de Éfeso.
Note-se que é Maria que se senta no trono, tendo Jesus a seu colo.
Está, também, a dar-lhe de mamar, sinal inequívoco de ser a Mãe de Deus.
Na faixa que um sacerdote segura ao lado direito de Maria lê-se o princípio dogmático aprovado nesse mesmo concílio:
"Maria, Mãe de Deus e dos Homens"
Reza a história que Nestor, não se fez rogado: levantou-se do seu trono episcopal e espancou, ali mesmo, em plena Basílica e perante toda a multidão, o loquaz Proclo. Uma disputa, adormecida há bastante tempo, tinha-se tornado num sisma declarado. De um lado, estavam os partidários de que Maria era apenas Christotokos, isto é e traduzindo do grego, a "Mãe de Jesus", do outro, a facção da também Théotokos, mãe de Deus.
Para a facção liderada por Nestor, Maria tinha sido um simples veículo para a encarnação de Cristo, a que modernamente chamaríamos "Mãe de aluguer". Servira simplesmente como meio, iniciando e terminando aí, e dessa forma, o seu papel nos mistérios da salvação. Não nos podemos esquecer de como era entendido o processo de fecundação nesses tempos. Entendia-se que a semente masculina continha todo o potencial gerador da concepção, tendo a mulher de, somente, dar as condições para que essa "semente germinasse", assim como a terra faz com as sementes. Não havia o conceito de Gâmeta masculino e feminino, do óvulo e do espermatozóide e que só a sua união gera, de facto, uma vida humana. Se os primitivos Padres da Igreja tivessem esse conhecimento, por certo outras questões se levantariam e outros problemas teriam de ser resolvidos. Mas o facto é que não tinham essa percepção o que leva a restringirmo-nos aos factos e às circunstâncias do tempo.
Figura 8
Embora figuras como Santa Ana (representada neste quadro do século XV de autoria desconhecida) não sejam referidas nos Evangelhos Canónicos, nem em qualquer outra fonte reconhecida, os Padres da Igreja, não hesitaram em proclamar a sua realidade histórica, "compondo" para Maria, uma biografia completa e total, com as suas origens, vida e até a assunção ao Céu em corpo e alma.
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