Carlos Cirne-Lima, professor na Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul, Brasil, oferece uma definição insubstancial, formal, de Bem e de Mal na sua «ética da coerência dialéctica» que não é, senão, uma cópia retocada das éticas procedimentalistas de Habermas e Apel.
«Qual é o critério que deve reger nossas decisões livres? Evidentemente aquele que é expresso pelo princípio da coerência universal. Bom é tudo aquilo que é coerente consigo mesmo, com o seu meio ambiente imediato – os outros homens – e mediato – a natureza – e, em última instância, com todo o universo. Mau é aquilo que é incoerente em qualquer dos níveis citados. Tanto o bem como o mal se constituem através da coerência ou da incoerência, ambas entendidas em seu sentido pleno, que do individual vai para o universal, e deste retorna àquele, num movimento de vai-e-vem que caracteriza e constitui tanto o indivíduo em seu bom sentido como o universal concreto que é o universo. Mas, em casos do dia-a-dia, como saber se uma decisão é coerente em todos esses níveis? Aí é preciso, primeiro, conversar consigo mesmo, para ver se há coerência interna. Logo depois, conversar com os homens ao meu redor, de minha família e de minha sociedade, para ver se minha decisão pode ser por eles aceite sem prejudicá-los. A seguir, devo ampliar essa conversa real, feita na roda do discurso do meu mundo real, de maneira que ela se transforme numa conversa na roda ideal do discurso, roda esta que abrange todos os homens, mais, todos os seres do universo. A decisão é boa se e quando ela pode ser inserida harmoniosamente na rede de relações que constituem o universo. A acção é eticamente boa se e enquanto ela possui, dentro de si, coerência universal. Má, se e quando não há coerência universal.»
«Vemos, de imediato, a semelhança entre a teoria proposta e a ética do discurso de Apel e Habermas. Certo, correctíssimo. Meu princípio de coerência, quando aplicado ao espírito, é uma formulação do imperativo categórico de Kant, do princípio U de Apel e Habermas. Só que minha proposta explica coisas que eles não conseguem explicar, como, por exemplo, as regras do bem-viver (dês guten Lebens), que eles confessam não poder fundamentar e que eu fundamento de maneira bem simples através da coerência consigo mesmo, pensada – é claro – como etapa que leva do eu individual ao eu que se sabe o universo. Apel e Habermas não conseguem fundamentar a eticidade só com os princípios D e U, e dizem expressamente que tem de haver no discurso Gründe, razões, que são decisivas. Isso não obstante, não introduzem um terceiro princípio, um princípio G (Gründe), sem o qual a ética do discurso não subsiste, por recair no formalismo vazio.
(Carlos Cirne Lima, Ética de coerência dialéctica, in Manfredo A.Oliveira, organizador, Correntes fundamentais da Ética Contemporânea, Editora Vozes, pag 226-227; o bold é nosso)
O coerentismo ético de Cirne-Lima, segundo o qual o bem é coerência consigo mesmo, com os outros e com o universo, é um formalismo. Não é uma ética substancialista como a de Aristóteles, Nietzschze ou Marx que indicam, expressamente, o que é o bem e o que é o mal em dadas circunstâncias. Na verdade, Cirne-Lima não nos diz nada em concreto sobre o conteúdo sensível-ideal do bem e do mal. Por isso, é uma ética formalista-procedimentalista, uma cópia das de Apel e Habermas, a que se adiciona a palavra «coerência».
A coerência é um princípio insuficiente para discernir o bem do mal. Imaginemos um carrasco ao serviço da Inquisição ou um membro da Santa Vehm, organização antijudia existente na Alemanha já no século XIV, que assassina homens ou mulheres à traição porque são judeus ou ricos detestados pela população da zona e se sente bem consigo mesmo após cada homicídio (coerência consigo mesmo). Suponhamos que a própria população do bairro ou da aldeia aplaude os crimes (coerência com os outros) uma vez que participa do mesmo espírito sanguinário colectivo. Suponhamos ainda que abutres ou outras aves de rapina vêm devorar os cadáveres das vítimas (coerência com o universo: reciclagem natural de resíduos). Segundo o princípio da coerência de Cirne-Lima estes homicídios de judeus ou outros, cometidos por gente sem remorsos (em coerência consigo mesma) com o consentimento da larga maioria ou da totalidade da população em redor e em harmonia com o universo, são, necessariamente, actos bons.
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