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Hipótese: São relações pouco hierarquizadas, em que as lideranças e mediadores decidem as principais questões do assentamento, considerando, em parte, a opinião da maioria (base).
2.3.2) Subjetividade
Questão: O processo de subjetivação (transformação parcial do indivíduo em sujeito) ocorreu de forma significativa no movimento?
Hipótese: A subjetivação está, em parte, presente, mas ainda é um processo em construção.
2.3.3) Estrutura
Questão: Qual estrutura organizacional predomina no movimento, assim como qual sua conseqüência?
Hipótese: predomina uma junção da estrutura piramidal (relações hierárquicas) e da estrutura em rede (relações descentralizadas e horizontalizadas), tendo por conseqüência um nível médio de democracia interna.
2.3.4) Empoderamento[24]
2.3.4.1) Informação
Questão: Qual o nível de informação sobre política, reforma agrária e sobre o movimento em si, que possuem os sem-terra, a fim de facilitar sua participação no movimento?
Hipótese 1: O nível de informação é de médio para baixo, ou seja, pouco se compreende sobre os aspectos levantados nesta questão.
Hipótese 2: Através da participação em comissões, núcleos, os assentados tendem a adquirir maior informação sobre os referidos temas. Dessa forma vão aprendendo a práxis de uma democracia real: de defender uma posição, de ouvir os outros, de decidir em conjunto e de traçar objetivos comuns.
2.3.5) Pertencimento
Questão: A participação no movimento propiciou aos sem-terra um sentido de pertencimento, ou seja, de inclusão social, política e econômica?
Hipótese: Em certo sentido sim, mas também está presente, em muitos casos, o sonho da pequena propriedade, da vida rural, sem o intermédio do movimento, em função das "responsabilidades" que demandam em ser do MST, tais como participar de manifestações, auxiliar em ocupações, entre outros.
CAPÍTULO III
Conforme exposto, o propósito central dessa pesquisa é entender, neste momento/contexto, como ocorre a construção do sujeito no MST. Como aspecto principal e complementar a análise do sujeito, elegeu-se a temática da autonomia, destacando que ambos (sujeito – autonomia), quando presentes num grupo social, tendem a favorecer o surgimento de relações democráticas (emancipadas). Nesse sentido, será sucintamente delineado o que se compreende por relações democráticas[25]levando em conta a realidade sócio-histórica brasileira.
Os principais autores para análise de tal proposta são: Alain Touraine que analisa a temática do sujeito, Conelius Castoriadis que aborda o a questão da autonomia e Pedro Demo que trata do significado da democracia no contexto sócio-histórico brasileiro.
Posteriormente, a fim de propiciar uma melhor compreensão da terminologia de redes, procura-se destacar alguns aspectos do que se entende por rede, tais como:
- Origens e desenvolvimento das redes; - Organização em rede; - Redes sociais (enfoque nos movimentos sociais) Os principais autores selecionados para abordar o tema rede são: Manuel Castells; Francisco Whitaker e Ilse Scherer-Warren.
3- O Conceito de sujeito em Touraine
De acordo com Alain Touraine (1994), o sujeito emerge como liberdade e criação na modernidade e constitui-se pela racionalização e a subjetivação, no sentido de que ele faz parte da natureza, do conhecimento objetivo, mas também é sujeito e subjetividade[26]
Aqueles que querem identificar a modernidade unicamente com a racionalização não falam do Sujeito a não ser para reduzi-lo à própria razão e para impor a despersonalização, o sacrifício de si e a identificação com a ordem impessoal da natureza ou da história. O mundo moderno é ao contrário, cada vez mais ocupado pela referência a um Sujeito que está libertado, isto é, que coloca como princípio do bem o controle que o indivíduo exerce sobre suas ações e sua situação e que lhe permite conceber e sentir seus comportamentos como componentes da sua história pessoal de vida, conceber a si mesmo como ator. O Sujeito é a vontade de um indivíduo de agir e de ser reconhecido como ator (TOURAINE, 1994, p. 219-220).
A subjetivação exprime a "libertação" do ser humano a toda forma de dependência, seja a Deus, a natureza, enfim a valores transcendentais, ou seja, é a "penetração do sujeito no indivíduo", sendo que este só é sujeito pela autonomia (domínio de suas obras), que possibilita a força da criação, a multiplicidade de posições, propiciando riqueza à vida pessoal e social, diferente do caso em que os papéis sociais são impostos, onde o indivíduo está submetido a padrões estabelecidos. O sujeito passou a ser o princípio central de resistência ao poder autoritário, na sociedade moderna, principalmente pelas experiências totalitárias ocorridas, ou burocráticas que falavam em nome da sociedade.
O que caracteriza o não sujeito é o "Si-mesmo" (indivíduo), ou seja, o ator tal qual ele é definido pelas expectativas dos outros e controlado por normas institucionais. Diferente disso, o sujeito se opõe aos papéis sociais, à construção da vida social pelos centros de poder. "O sujeito somente existe como movimento social, por seu caráter contestatório à lógica da ordem". Nas palavras do autor:
O indivíduo não é senão a unidade particular onde se misturam a vida e o pensamento, a experiência e a consciência. O sujeito é a passagem do Id ao Eu, o controle exercido sobre o vivido para que tenha um sentido pessoal, para que o indivíduo se transforme em ator que se insere nas relações sociais transformando-as, mas sem jamais identificar-se completamente com nenhum grupo, com nenhuma coletividade (....). O ator não é aquele que age em conformidade com o lugar que ocupa na organização social, mas aquele que modifica o meio ambiente material e sobretudo social no qual está colocado (Ibidem, p. 220) O autor classifica o contexto social atual, como sendo de desmodernização, tendo seu início no final do século XIX com a formação em escala internacional da economia financeira e industrial, a qual provocou levante/protestos tanto em países centrais, como periféricos. Houve a ruptura entre o sistema e o ator, tendo dois pontos principais: desinstitucionalização (enfraquecimento das normas codificadas por mecanismos legais) e dessocialização (de um lado a economia globalizada, de outro uma moral social que atribui mais importância à sexualidade e a busca da comunidade).
Face ao exposto, constata:"O universo da economia, dos mercados e das técnicas separa-se do universo das identidades individuais e coletivas; separados um do outro, cada um desses universos se degrada, ao mesmo tempo que desaparecem as mediações sociais e políticas que os combinavam"(Idem, 2003, p.65) Sendo assim, aqueles que se opõem não são mais um rei e um povo ou capitalistas e trabalhadores, mas uma informação globalizada e identidades comunitárias definidas, mais em termos culturais que econômicos e sociais. Nesse panorama, o sujeito passa a ser a procura do próprio indivíduo, no sentido de ser ator de sua vida, aderindo a "coragem solitária", que protesta contra a ordem vigente e a "força da ação coletiva", a qual tende a proteger os direitos dos indivíduos e, a partir disso, fortalecer o sujeito. Dessa forma, o sujeito está relacionado à experiência vivida, a relação entre experiência pessoal e ação coletiva. O sujeito ou o grupo podem criar autonomia, no sentido de reconhecerem-se a si mesmo, pela combinação dos universos da instrumentalidade e da identidade, ou seja, tanto os instrumentos do mercado são importantes, a fim de coibir o enclausuramento comunitário, como também a identidade comunitária é importante, a fim de resistir a heteronomia do consumo, da cultura de massa, etc.
Conforme palavras do autor:
A desmodernização torna evidente aquilo que a modernização já nos tinha ensinado, a saber, que não existe resposta individual ou coletiva positiva que não seja a combinação de exigências contrárias, combinação que não pode chegar jamais à síntese e à superação desejada pelo pensamento dialético, pois ela é o trabalho incessante pelo qual o indivíduo se recompõe e se transforma em sujeito ao superar a abertura dos mercados e o enclausuramento de uma comunidade (Ibid, p.81).
Entre esses dois "pólos" (mercado – globalização) x (comunitarismo – identidade) a principal força capaz de fazer nascer o diálogo e a compreensão mútua é o sujeito. Sua presença ativa possibilita a visualização do que estava oculto, mesmo que para isso ele corra risco de exclusão por parte da comunidade, seja pela força do Estado (exército/polícia) ou pelo mercado (perda do emprego, etc).
Essa visão do sujeito distancia-se das filosofias da história, assim como das visões religiosas do mundo, o que evita o fechamento em identidades ou em autoritarismos político. Sendo assim, os movimentos sociais da atualidade reivindicam não mais a teleologia de uma sociedade futura, mas exigem a defesa da liberdade, da cidadania, enfim condições dignas de vida no momento atual, ou seja, esse "novo" sujeito não é mais o portador do modelo ideal de sociedade. Da mesma forma, não está subordinado as leis da natureza, a uma revelação divina, pois é através da ruína de todos os sistemas ordenadores que permitem que o sujeito "encontre dentro de si mesmo a sua legitimidade e que o impede de se colocar a serviço de uma lei que estaria acima dele" .
Por outro lado, cabe questionar se o sujeito ao libertar-se dos valores comunitários, assim como da utopia política (no sentido de sacrificar-se por uma causa incerta), não tende a inclinar-se para o individualismo e consumismo presentes nas sociedades contemporâneas. Segundo Touraine, é através da resistência do sujeito tanto à comunidade, quanto ao mercado, pela afirmação de sua individualidade e autonomia que consegue libertar-se desses obstáculos.
[...] O sujeito é vontade, resistência e luta, e não experiência imediata de si mesmo; [...] não há movimento social possível fora da libertação do sujeito.
Uma ação coletiva que se define como agente de progresso histórico, de defesa de uma comunidade ou de uma crença, [....] não pode vir a ser um movimento social e se tornar logo um agente de opressão a serviço de um poder. (Ibid, p. 98).
Enquanto o sujeito centra-se em sua vontade de autonomia, o ator social se define pela relação com outros atores sociais, no sentido de propor a definição de normas, estatutos, etc.
Essa concepção de sujeito tem por intuito lutar contra a "degradação da vida social em mercado", assim como "contra a substituição do mundo da vivência por uma comunidade fechada sobre si mesma". Além disso, esta análise do autor, decorre do totalitarismo do século XX que pretendia criar um homem novo, uma sociedade nova, ou seja, nesta época o sujeito era visto como justificação para a ordem moral vigente. Assim, Touraine re-introduz a idéia de sujeito não tal qual nos primórdios da modernidade, mas situando-o "entre o universo da instrumentalidade e o da identidade, como única força que poderia deter o seu desvio e a sua degradação, como um princípio de reconstrução da experiência social" (Ibid, p.105), ou seja, da mesma forma que esse sujeito não aceita a redução da vida social ao mercado e a comunidade, entende que é impossível a dissociação total desses dois âmbitos.
A fim de evitar as extremas concorrências generalizadas nas sociedades de mercado, aponta como necessário à busca do individualismo, não no sentido da indiferença, do egoísmo, mas no sentido da busca de si mesmo para lutar contra a exclusão, as humilhações, as desigualdades, assim como resistir contra os autoritarismos e a falta de liberdade.
Esta forma de resistência traz dentro dela uma afirmação de si, não apenas como ator social mas como sujeito pessoal. A destruição da idéia de sociedade só pode nos salvar de uma catástrofe se levar à construção da idéia do sujeito, à busca de uma ação que não procure nem o lucro nem o poder nem a glória, mas que afirme a dignidade de cada ser humano e o respeito que ele merece (Id, 2006, p.102).
Destaca que em nome de direitos culturais se constroem comunitarismos que impõem leis, assim como em nome da identidade e de uma tradição emergem muitas vezes autoritarismos, imposição de princípios, negando a liberdade de consciência e as opções culturais (livre escolha).
Dessa forma, tendo em vista os fatores apontados acima como inibidores do sujeito, faz-se necessário à volta ao sujeito (bem), sem esquecer do anti-sujeito (o mal). O sujeito designa o bem, pois é descoberto em si mesmo e nos outros. O anti-sujeito são aqueles que lutam para acabar com o sujeito. Neste caso, podem-se citar como exemplo os massacres, campos de concentração, torturas, execuções, etc.
Tanto na sociedade globalizada, quanto nos neocomunitarismos, em que se busca moldar as atitudes do sujeito, tal qual a lógica dominante, ele tem como alternativa para continuar sendo sujeito a resistência, ou seja:
O sujeito é mais forte e mais consciente de si mesmo quando se defende contra ataques que ameaçam sua autonomia e sua capacidade de perceber-se como um sujeito integrado, ou pelo menos lutando para sêlo, para reconhecer-se e ser reconhecido como tal. [...] O sujeito não é apenas aquele que diz eu, mas aquele que tem a consciência de seu direito de dizer eu (Ibid, p.112 - 113).
O sujeito não corresponde a uma identificação consigo, mas sim a uma rebeldia/resistência em relação às regras, aos poderes, ao mundo impessoal do consumo, da violência, os quais impedem de sê-lo ele mesmo, de ser livre. Nesse sentido, o sujeito se traduz em empoderamento, assim como referência para as Instituições que zelam pelas liberdades, enfim é a "capacidade de conhecer e transformar o mundo".
Para aqueles que vêem a realidade social como pura dominação e os indivíduos (marginalizados, explorados) apenas vítimas desse contexto, no sentido de não serem capazes de tornarem-se atores de sua própria história, não aceitam a reflexão exposta sobre o sujeito, assim como, em nome disso, justificam muitas opressões e formas brutais de exercício do poder. Contudo, atualmente é quase impossível fechar-se nesta análise, tendo em vista as diferentes formas e atuações dos movimentos sociais. Segundo o autor:
Nada é mais inquietante do que a facilidade com que aqueles que se pretendem agentes de luta contra as dominações negam a possibilidade da ação criadora e libertadora. Estranha visão de mundo, que fala constantemente da dominação sofrida mas negligencia os pensamentos e os atos libertadores (Ibid, p.130).
Diferente das sociedades autoritárias, comunitárias, populistas, que procuram manter os indivíduos atrelados a uma identidade, nação, crença religiosa; as sociedades liberais primam pelos critérios universalistas de liberdade e responsabilidade de cada ator. Isso possibilitou o surgimento da idéia de sujeito, assim como a organização dos atores em movimentos sociais.
Contudo, o aparecimento do sujeito pode surgir em qualquer momento, mesmo sendo os movimentos sociais locais mais propícios para isso. O nascer do sujeito pode ser através de simples questões, tais como: "sou feliz?" "Tem sentido a minha vida?" "Porque as coisas são como são?" Da mesma forma quando interroga o dirigente político, as lideranças do seu grupo, não confiando cegamente nas direções/lideranças. No entanto, essa nova maneira do sujeito portar-se é recente, pois até pouco tempo o sujeito era histórico (a sociedade industrial,o proletariado) e não social. Assim o sujeito é contrário a toda forma de determinismo que analisa as condutas dos atores sociais apenas como reflexo da ordem vigente de dominação, incapaz de autonomia para constituir-se como sujeito e lutar para manter-se como tal.
O indivíduo ao tornar-se sujeito dá sentido a sua vida, a sua existência, conquistando sua liberdade, responsabilidade e esperança. No entanto, o autor esclarece: "Nenhum indivíduo, nenhum grupo é, em sua totalidade sujeito. Sempre é mais exato dizer: Existe algo de sujeito em tal conduta ou em tal indivíduo" (Ibid, p.137). Para adquirir estima, construir-se como sujeito também é importante o reconhecimento do indivíduo por parte dos membros da comunidade em que faz parte. Ou seja, é importante receber imagens favoráveis dele mesmo proveniente dos seus pares. Sendo assim, com o respeito e reconhecimento da singularidade de cada um é possível a existência de uma "democracia viva", que não se reduz a proteção da igualdade, mas que prioriza a liberdade e a singularidade de cada ator.
3.1- O conceito/aquisição de autonomia em Castoriadis
A autonomia é o domínio do consciente (Ego) sobre o inconsciente (Id), ou seja, é a lei do sujeito oposta a regulação pelo inconsciente ou lei do outro. Quando está dominado pelo discurso do outro, o sujeito não fala por si, mas existe como parte do mundo de outro, de forma alienada, dominado por um "imaginário autonomizado" que define tanto a realidade quanto o desejo do sujeito. Sendo assim, para libertar-se desse jugo, o sujeito deve advir sobre o discurso do outro.
Um discurso que é meu é um discurso que negou o discurso do outro; que o negou, não necessariamente em seu conteúdo, mas enquanto discurso do outro; em outras palavras que, explicitando ao mesmo tempo a origem e o sentido desse discurso, negou-o ou afirmou-o com conhecimento de causa, relacionando seu sentido com o que se constitui como a verdade própria do sujeito – como minha própria verdade (CASTORIADIS, 1982, p.125).
No entanto, é muito difícil um indivíduo tornar-se apenas Ego, realizar um discurso exclusivamente seu, pois está imerso num meio social em que constantemente recebe informações, valores, etc, assim como possui seus próprios "fantasmas". Entretanto, argumenta o autor, que a autonomia não é a eliminação total do discurso do outro, mas a instauração de outra relação entre o discurso do outro e o discurso do sujeito. "Um sujeito autônomo é aquele que sabe ter boas razões para concluir: isso é bem verdadeiro, e: isso é bem meu desejo" (Ibid, p.126).
Dessa forma, a autonomia deve ser concebida como um problema e uma relação social que está inserida num contexto social, o qual pode ser altamente alienante no sentido de limitar e tornar quase impossível a autonomia individual. Isso se manifesta na estrutura global das Instituições, mercado, poder, ideologia, entre outros. Desse modo a tendência para a autonomia deve enfrentar todo o peso da sociedade instituída, que tende a reprimir tudo o que poderia manifestar-se como autonomia .
Em face disso, pensar em autonomia é necessariamente pensar em revolucionar as instituições, as quais sancionam uma divisão antagônica da sociedade, em explorados e exploradores. Da mesma forma, já exposta acima, da relação da autonomia do sujeito em que não é possível eliminar todo o inconsciente, também não é possível eliminar o fundamento em que repousa a sociedade, ou seja, as Instituições, mas sim é possível alterar as relações dos sujeitos com as Instituições.
Através da autonomia torna-se possível a conquista da autodeterminação o que implica no questionamento da situação opressiva, tanto para consigo, quanto para o público (atores sociais do movimento, assim como fora deste), a fim de impor limites aos poderes autoritários (SANTOS, 2003).
Para aquisição da autonomia, Castoriadis destaca como aspecto fundamental a práxis – fazer no qual o outro(s) é visado como ser autônomo e considerado o agente essencial de sua própria autonomia.
A práxis é, por certo, uma atividade consciente, só podendo existir na lucidez; mas ela é diferente da aplicação de um saber preliminar (não podendo justificarse pela invocação de um tal saber – o que não significa que ela não possa justificar-se). Ela se apóia sobre um saber, mas esse é sempre fragmentário e provisório. É fragmentário, porque não pode haver teoria exaustiva do homem e da história; ele é provisório, porque a própria práxis faz surgir constantemente um novo saber, porque ela faz o mundo falar numa linguagem ao mesmo tempo singular e universal.(CASTORIADIS, op.cit, p.95) Em decorrência da experiência de que faz parte, o sujeito está constantemente sendo transformado. Com isso, o sujeito não pode ser definido de uma vez por todas, pois está "aberto" em mudança freqüente.
Para Castoriadis (2006) uma sociedade é autônoma quando consegue de forma permanente se auto-instituir, no sentido de que o coletivo tem consciência que as instituições foram criadas por ele, podendo ser mudadas, transformadas, conforme os anseios da maioria. Para isso deve predominar a auto-organização e o autogoverno por parte do coletivo, o que implica a formação de novas relações da sociedade com as instituições, assim como o surgimento de novas instituições, em outras palavras, seria uma sociedade democrática."Una sociedad democrática, cualquiera sea su tamaño, está siempre formada por una pluralidad de individuos cuya totalidad participa en el poder en la medida en que cada uno tiene, tanto como los demás, la posibilidad efectiva de influir en lo que ocurre (Id, 2006, p. 179)." Segundo Adorno (1995) a emancipação é imprescindível para a democracia, uma vez que esta repousa na formação da vontade individual e se consolida nas Instituições. Para tanto, faz-se necessário que o indivíduo seja sujeito, capaz de se servir do seu próprio entendimento/esclarecimento. Para Kant, esclarecimento consiste:
"Esclarecimento" [Aufklärung] significa a saída do homem de sua menoridade [.]. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a sua causa não estiver na ausência de entendimento, mas na ausência de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem.[.] (KANT, 2003, p.115) O esclarecimento é necessário para a emancipação e, só a partir desta, que a maioridade se torna possível. Segundo Kant, o esclarecimento é dinâmico, "como um vir-a-ser e não um ser", ou seja, está sendo construído. Destaca que qualquer forma de tutela sobre um indivíduo ou um povo é um crime contra a humanidade.
Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em um estado em que para esta se torne impossível ampliar seus conhecimentos (sobretudo os mais imediatos), purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do esclarecimento [Aufklärung]. Isso seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação original consiste precisamente neste avanço (Ibid, p. 119).
No entanto, em razão da própria organização da sociedade, da pressão exercida sobre as pessoas, do controle exercido pela "indústria cultural", Adorno questiona sobre a possibilidade do esclarecimento/emancipação neste contexto, esclarecendo que:
[...] a organização social em que vivemos continua sendo heterônoma, isto é, nenhuma pessoa pode existir na sociedade atual realmente conforme suas próprias determinações; enquanto isso ocorre, a sociedade forma as pessoas mediante inúmeros canais e instâncias mediadoras, de um modo tal que tudo absorvem e aceitam nos termos desta configuração heterônoma que se desviou de si mesma em sua consciência. É claro que isto chega até as instituições, até à discussão acerca da educação política e outras questões semelhantes. O problema propriamente dito da emancipação hoje é se e como a gente – e quem é a ´gente` , eis uma grande questão a mais – pode enfrentá-lo (ADORNO, 1995, p.181-182).
Atualmente, os movimentos emancipatórios, tais como de mulheres (feminismo); negros, índios (étnicos); de agricultores (Via Campesina; MST) entre outros, contribuem no processo de democratização da sociedade, como demonstram vários estudos[27]Geralmente lutam contra várias formas de opressão e não possuem uma teoria determinada de mudança social, mas tendem a conceber o processo histórico como algo aberto, em constante construção. A maioria desses movimentos são anti-capitalistas, na medida em que questionam a estrutura da sociedade atual, tal qual aparece nas palavras de Castoriadis:
No queremos el cambio social por el cambio social. Queremos uma trasformación radical de la sociedad porque queremos uma sociedad autônoma hecha por indivíduos autônomos; y la sociedad capitalista contemporánea, incluso en su forma seudodemocratica, es una sociedad dominada por una oligarquía (económica, política, estatal, cultural) que condena a la pasividad a los ciudadanos, que sólo tienen libertades negativas o defensivas. Es lo que llamo el proyecto de autonomía individual y social (Ibid, p.263).
Geralmente, esses movimentos são plurais e constituídos de "sujeitos abertos". " Un sujeto abierto es alguiem que es capaz de determinarse y que permanece abierto a nuevas determinaciones que él mismo crea o que recibe de parte de los demás, ya sean sus amigos o sus adversarios (Ibid, p.312)".
3.2- A democracia no contexto sócio-histórico brasileiro: Pedro Demo
Em relação à democracia[28]Demo (1990) esclarece que esse regime está longe de realmente se concretizar. Aponta duas formas principais de empecilhos a consolidação democrática: 1.°- pobreza sócio-econômica; 2.°- pobreza política. O primeiro caso ressalta que é mais fácil de ser diagnosticada através das técnicas estatísticas/números, enquanto que a segunda forma de pobreza é mais "camuflada", pois envolve a conquista e organização da cidadania. Ambas as formas de pobreza dificultam a capacidade de a população gerir seus próprios destinos e, dessa forma, impossibilita a concretização da real democracia.
Outro agravante para esta segunda modalidade de pobreza é a conservação do pobre como objeto da política, ou seja, através de políticas assistencialistas que distribuem cestas básicas e insignificantes auxílios financeiros, geralmente fazendo a "troca de comida pelo cabresto". Essa forma de política, ao invés de propiciar a cidadania, a autonomia do sujeito para conquista de direitos, acaba amordaçando-o, alienando- o. Assim como, funciona como forma estratégica do Estado em desmobilizar a população.
Ser pobre não é apenas não ter, mas ser coibido de ter. Pobreza é, em sua essência, repressão, ou seja, resultado da discriminação sobre o terreno das vantagens. (...) É politicamente pobre aquela sociedade tão debilmente organizada, que não passa de massa de manobra nas mãos do Estado e das oligarquias, e que, por isso, não consegue construir representatividade legítima satisfatória em seus processos eleitorais, com líderes excessivamente Dessa forma, a participação no fazer político, na conscientização dos problemas e busca de suas soluções, ou seja, não aceitar ser objeto (massa de manobra), ficar aquém das decisões, são importante para a possibilidade de tornar-se sujeito político. Assim como, entender que as desigualdades, as injustiças sociais não são algo dado e eterno, mas construído, sendo produto de tipos históricos de organização social.
A redução da desigualdade não cai do céu por descuido, mas será conquistada historicamente, não como produto definitivo, mas processual. Por isso, participação só pode ser conquistada. Aquela doada é presente de grego, porque vem do privilegiado, não do desigual. A redução da desigualdade que o desigual quer só pode ser aquela que ele mesmo constrói. E aí está sua competência (Bordenave, 1985; Dallari, 1984; Demo, 1982d:153-62 e 1986 apud DEMO, 1990, p.16).
Nesse sentido, a participação, a organização política, seja em associações, movimentos sociais, ONG´s, partidos políticos é de fundamental importância, no processo de aprendizagem democrática. A qualidade do sistema democrático depende dessas organizações. Isso evidencia que a democracia não se restringe às instituições políticas, mas a toda e qualquer relação social em todos os âmbitos. Frequentemente, em pequenos grupos, ou em movimentos sociais surgem com muita força as lideranças, as vanguardas que, muitas vezes, acabam sufocando a iniciativa popular e organizacional. A fim de coibir essas práticas, faz-se necessário que em qualquer organização/comissão/movimento a luta e organização sejam autogeridas pelos seus integrantes/base (BRUNO, 1985).
Daí a importância da conscientização política da injustiça social, o que coloca a formação de um processo educativo de longo prazo, com perspectiva geracional. Descobrir-se ou surpreender-se vítima, entender a pobreza como injustiça, ver a fome como repressão, definir o desemprego ou subemprego como usurpação de um direito, para quem já tem a devida consciência parece óbvio. Mas não, é quando se vive imerso em séculos de opressão, ao mesmo tempo dura e engenhosa, que criou uma senzala que se sente normal e honrada à sombra da casa grande (DEMO, op.cit, p.32).
Diferente da pobreza material que aparece como violência física, a pobreza política é uma violência moral, pois impossibilita as condições para a autodeterminação, ou seja, não existe sujeito, mas sim objeto, escravo. A plena democracia, sua conquista por todos os cidadãos denota qualidade de vida, pois conforme explica Demo: "Não é a conquista de uma mina de ouro que nos faria ricos, mas sobretudo a conquista de nossas potencialidades próprias, de nossa capacidade de autodeterminação, do espaço de criação. É o exercício da competência política" (Ibid, p. 45).
Sendo assim, a reação contra a tutela, as diferentes formas de dominação (classe, gênero, étnicas) tende a favorecer o desenvolvimento de sujeitos autônomos e, dessa forma, a democracia/cidadania vão se consolidando.
A cidadania é aqui entendida como participação política nos negócios públicos, a fim de ratificar o que dizia Hannah Arendt que os homens não nascem iguais, mas tornam-se iguais por conquista política. Dessa forma, cidadania é uma construção histórica, a qual está relacionada às lutas por direitos, igualdade e respeito à pluralidade (VIEIRA, 2001).
3.3- Redes: Origens e Desenvolvimento
Nesse contexto, face às questões ora referidas (autonomia, sujeito, democracia, etc) insere-se a perspectiva de análise de redes, a qual procura entender a organização e atuação dos atores, em certo contexto, de modo relacional, ou seja, o interesse não está apenas nos atributos individuais dos atores (classe, gênero, etnia, etc), mas na sua atuação, nos seus contatos/relações estabelecidas dentro de um grupo/comunidade/sociedade (rede), tendo por fundamento que:
[...] cada pessoa não é o átomo isolado e indivisível do liberalismo anglo-saxão, mas um conjunto coerente de relações, tanto físicas quanto intelectuais, com a natureza, com os objetos e com outras pessoas; relações que a transformam continuamente. Assim, nenhum indivíduo é estritamente individual (VILLASANTE, 2002, p.91).
O termo rede foi utilizado desde a antiguidade até os dias atuais, tendo diferentes significados em cada contexto sócio-histórico. Primeiramente rede designou a técnica de tecelagem, com fios entrelaçados, tendo por função a captura de animais, geralmente pequenos. Posteriormente, a rede passou a ser associada ao corpo humano em sua totalidade, devido à conexão e interação dos diferentes órgãos do corpo, os quais fazem com que o todo funcione em harmonia (DIAS, 2005).
Dessa forma, o organismo seria constituído de múltiplos e diferente nós, sendo que a desconexão (doença ou morte) de um desses nós afetaria o funcionamento do organismo total ou aos poucos o debilitaria. Dentro desta grande rede formada por todos os órgãos e sistemas, existem sub-redes, ou seja, nós mais conectados que outros devido às semelhanças de suas funções e "afinidades".
Nesse caso, cada sistema do organismo seria uma sub-rede conectada a rede "corpo humano", integrado por nós centrais (principais órgãos) e nós periférico (órgãos secundários).
Em meados do século XVIII ocorreu uma ruptura com essa analogia das redes ao corpo, ou seja, as redes "saíram do corpo humano" e passaram a ser usadas, (principalmente por militares) como redes de comunicação, "representando o território como um plano de linhas imaginárias ordenadas em rede", as quais passaram a ser interpretadas matematicamente e graficadas (mapas). Dessa forma, a rede passa a estar relacionada com a técnica (infra-estrutura rodoviária, estrada de ferro, telegrafia) que modifica a relação espaço – tempo (Ibid, 2005).
Posteriormente, em fins do século XIX, início do XX, começou a surgir, principalmente no campo da matemática, as teorias das redes, em especial nos trabalhos de ÓUm grafo é uma representação de um conjunto de nós conectados por arestas que, em conjunto, formam uma rede" (RECUERO, 2005).Em seguida, na área da Sociologia, na década de 1970, a teoria dos grafos passou a ser a base para o estudo das redes sociais, integrando a metodologia de Análise de Redes Sociais (ARS) ou Análise Estrutural.
No entendimento de Wellman (2005) a abordagem de redes constitui um novo paradigma de análise que procura entender mais as relações entre as partes, visando a análise do todo, diferente do cartesianismo que analisa a parte e a soma destas. O autor destaca as principais vertentes da ARS:
Segundo Wellman (1999 – 20-22), a Análise Estrutural foi construída através de três grandes tradições: à primeira, de origem britânica, deve-se o desenvolvimento antropológico do conceito de rede social. Nela, os teóricos britânicos realizaram, através de uma perspectiva estrutural-funcionalista, descrições da estrutura social, com um foco na maneira através da qual a cultura prescreve o comportamento considerado válido em grupos muito fechados. A segunda, mais centrada nos Estados Unidos, trabalha fundamentalmente na análise quantitativa e de escopo substantivo (sociometria, por exemplo).
Wellman explica que o fundamento principal da teoria dos grafos vem da tradição, que buscou na matemática uma forma de analisar as redes sociais. A terceira foca na busca de explicações estruturais para os processos políticos. Os teóricos dessa tradição estão centrados no estudo de processos políticos como resultado de laços de troca e dependência entre nações e grupos de interesse (pg. 29). Temos, portanto, uma corrente de viés etnográfico (a primeira), uma de viés quantitativo (a segunda) e uma terceira de viés político. A partir delas, desenvolvem-se as abordagens que hoje são utilizadas no estudo das redes sociais. (Apud, RECUERO, 2005, p.02).
A ARS caracteriza-se pela análise relacional, no sentido de ir além do exame/entendimento dos atributos individuais, tais como gênero, idade, etnia, etc, e pela interdisciplinaridade. Enfim, busca focar em:
Relações (caracterizadas por conteúdo, direção e força), laços sociais (que conectam pares de atores através de uma ou mais relações), multiplexidade (quanto mais relações um laço social possui, maior a sua multiplexidade) e composição do laço social (derivada dos atributos individuais dos atores envolvidos) (Ibid, p.03).
Dessa forma, o principal foco de atenção da ARS é a interação, pois em qualquer rede social os atores são os nós e os vínculos/arestas são formados pelos laços sociais criados por meio da interação social. Nessa perspectiva a ênfase é colocada no dinamismo dos atores da rede, os quais estão sempre mudando.
Mais recentemente, com a explosão das redes de comunicação, em especial a internet, as redes passam a formar uma estrutura invisível de conexões em âmbito global, modificando a relação espaço-tempo, num nível de velocidade quase instantâneo. Castells (1999) caracteriza esse contexto como sendo a era da informação, na qual as funções e principais processos estão organizados em forma de redes, ou seja, constituem uma nova morfologia da sociedade.
Diferente de outras épocas, em que já existiam as redes, atualmente estas se intensificam e penetram em toda a estrutura social. O autor destaca que "o poder dos fluxos é mais importante que os fluxos do poder", no sentido de que a presença das redes constitui uma nova engenharia dos processos de dominação e transformação da sociedade, "caracterizada pela primazia da morfologia social sobre a ação social".
A revolução da tecnologia da informação e a reestruturação do capitalismo introduziram uma nova forma de sociedade, a sociedade em rede. Essa sociedade é caracterizada pela globalização das atividades econômicas decisivas do ponto de vista estratégico; por sua forma de organização em redes; pela flexibilidade e instabilidade do emprego e a individuação da mão-de-obra.
Por uma cultura de virtualidade real construída a partir de um sistema de mídia onipresente, interligado e altamente diversificado. E pela transformação das bases materiais da vida – o tempo e o espaço – mediante a criação de um espaço de fluxos e de um tempo intemporal como expressões das atividades e elites dominantes. (CASTELLS, 1999, p.17) Mesmo existindo uma multiplicidade de formas e tamanhos de redes, com diferentes atores, pode-se em termos gerais denominar que toda e qualquer rede é: "um conjunto de nós interconectados. Nó é o ponto no qual uma curva se entrecorta. Concretamente, o que um nó é depende do tipo de redes concretas de que falamos" (Ibid, p.497 – 498).
Os nós ou atores podem ser Estados, empresas, sistemas de televisão, enfim irão variar segundo os dados da análise. A capacidade de expansão das redes é ilimitada, sendo que os nós serão integrados apenas se compactuam com os mesmos códigos, ou identidades existentes na rede.
Dessa forma, as redes são dinâmicas e modelam a economia capitalista que é "globalizada, descentralizada e flexível", através das conexões que estabelecem, tendo poder de influência tanto na organização quanto na orientação das sociedades.
3.3.1- Organização em Redes
Segundo Whitaker (2006), as pessoas geralmente tendem a se organizar para a realização de qualquer atividade. A estrutura dessa organização tendeu, na maioria das vezes, a ser piramidal, ou seja, com predominância de relações hierárquicas, através do afunilamento da base ao topo da pirâmide, onde geralmente se encontra o chefe, ou coordenadores. Atualmente, principalmente em função da globalização, da revolução nas telecomunicações, das novas tecnologias de informação (TIC`s), está cada vez mais sendo experimentada a organização em rede, onde a descentralização e horizontalidade caracterizam a atuação/posição dos seus integrantes. Mesmo ainda existindo atores mais centrais, os fluxos de informação, assim como as decisões, ocorrem de forma mais rápida, pois não existindo rígidas hierarquias, a informação não permanece centralizada em certos atores, mas tende cada vez mais a se descentralizar. No caso das decisões, tende a ocorrer uma maior igualdade decisória, pois todos têm poder de decisão.
Nas palavras do autor:
Quanto mais a realização dos objetivos de uma organização depende da ação disciplinada de todos que a integram, mais se tende a organizá-la em pirâmide, com seus níveis superiores comandando e controlando a ação dos inferiores.
Quando a realização de um objetivo depende menos da disciplina dos que dela participam do que do engajamento consciente de todos na ação, menos cabe comandar e controlar o que os outros fazem ou deixam de fazer: tem que se contar é com a lealdade de cada um para com todos, baseada na coresponsabilidade e na capacidade de iniciativa de cada um, e a organização pode ser feita numa estrutura em rede, horizontal. Um paralelo com a ação militar pode ser elucidativo: os exércitos convencionais são necessariamente e rigidamente piramidais; os corpos guerrilheiros tendem a se horizontalizar, em rede. (Ibid, p.02) Dessa forma, na estrutura horizontal a representação é baixa, ou mínima, pois cada integrante da rede é autônomo em sua ação, tendo consciência que sua atitude deverá fluir em consonância para a realização dos objetivos do grupo.
No quadro abaixo, está sintetizado as principais diferenças entre a estrutura em rede e a estrutura piramidal. Contudo, cabe destacar que principalmente em relação à estrutura em rede, nem sempre ocorre uma total horizontalidade na tomada de decisões, ou seja, o poder acaba de uma forma ou de outra se centrando mais em alguns atores que outros. Isso decorre por vários fatores, tais como carisma, liderança, conhecimento, entre outros. Dessa forma, a classificação abaixo serve como tipo ideal[29]e não a real/concreta estruturação da maioria das redes.
Quadro 3 – Estruturas Organizacionais |
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ESTRUTURA EM REDE |
ESTRUTURA PIRAMIDAL |
Horizontalidade |
Hierarquia |
Poder descentralizado (todos têm poder) |
Poder centralizado (luta e competição pelo poder) |
Cultura do agir comum |
Cultura do "guardar para si", "levarvantagem" |
Autonomia |
Tutela |
Sujeito (participação livre e consciente) |
Indivíduo (participação manipulada e controlada). |
Compilação própria: SILVEIRA, S. Pozzer (2006), com base em WHITAKER, Francisco. |
3.3.2- Redes Sociais
Segundo Scherer-Warren (2006) a sociedade civil pode, de forma genérica, ser representada por três níveis, sendo dois mais institucionalizados e um terceiro sem registro formal. Entre os primeiros, pode-se destacar o associativismo civil (ONGs, terceiro setor) e formas de articulação inter-organizacionais (fóruns da sociedade civil; associações nacionais de ONGs e redes de redes). Essas organizações geralmente auxiliam protestos, manifestações sociais de maior abrangência que transcendem suas formas organizacionais, compondo assim o terceiro nível constituinte da sociedade civil. Exemplos ilustrativos são: Marcha Nacional pela Reforma Agrária (maio de 2005); Parada do Orgulho Gay, entre outros. Nesse nível, as organizações, movimentos sociais, fóruns, entidades tendem a atuar em rede, a fim de ampliar o campo de ação, assim como obter recursos e apoio para sua manifestação, visando obter visibilidade e produzir impacto na esfera pública.
Nesse contexto, a autora define rede de movimento social da seguinte forma:
Esta pressupõe a identificação de sujeitos coletivos em torno de valores, objetivos ou projetos em comum, os quais definem os atores ou situações sistêmicas antagônicas que devem ser combatidas e transformadas. [...] A idéia de rede de movimento social é, portanto, um conceito de referência que busca apreender o porvir ou o rumo das ações de movimento, transcendendo as experiências empíricas, concretas, datadas, localizadas dos sujeitos/atores coletivos (Scherer-Warren, 2006, p.113) Através das tecnologias de informação, essas redes transcendem a esfera nacional e passam a atuar em prol de questões de âmbito mundial, tendo por lema: "agir local e pensar global". Por exemplo: a luta pela terra (reforma agrária) tem apoio e participação de atores internacionais, tais como a Via Campesina. Paralelo a luta pela terra, os atores envolvidos também reivindicam igualdade nas relações de gênero; lutam contra diferentes formas de preconceito (étnico, religioso); defendem a preservação do meio ambiente, etc. Nesse sentido, pode-se falar de pluralidade dos sujeitos envolvidos no processo, conforme esclarece a referida autora:
As redes, por serem multiformes, aproximam atores sociais diversificados – dos níveis locais aos mais globais, de diferentes tipos de organizações -, e possibilitam o diálogo da diversidade de interesses e valores. Ainda que esse diálogo não seja isento de conflitos, o encontro e o confronto das reivindicações e lutas referentes a diversos aspectos da cidadania vêm permitindo aos movimentos sociais passarem da defesa de um sujeito identitário único à defesa de um sujeito plural (Ibid, 2006, p.116).
CAPÍTULO IV
O desenvolvimento dessa pesquisa percorreu a seguinte trajetória: primeiramente, foi definido como objeto de estudo o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, principalmente devido sua atuação em âmbito nacional e, algumas vezes, internacional e por ser um dos maiores movimentos social rural da América Latina. No entanto, não estava claro, em princípio, qual aspecto do movimento iria ser pesquisado. Na fase exploratória de análise das pesquisas já realizadas sobre o movimento, na leitura de livros sobre o tema, chamou atenção a radical diferença nas visões sobre o MST, principalmente em relação ao sujeito sem-terra, como exposto no capítulo II desse trabalho. Sendo assim, tendo em vista que esse aspecto ainda não foi pesquisado no movimento, optou-se por trabalhar a temática da construção do sujeito, procurando entender o que realmente muda na trajetória de seus integrantes, antes e depois de entrar no MST, no sentido da construção da autonomia e de relações mais democráticas.
Através das questões referidas, pretendeu-se verificar a "sintonia" dos integrantes do assentamento analisado com as bandeiras maiores do movimento, a fim de averiguar se a base dos assentados constitui-se como sujeito, participante ativo do movimento ou, caso contrário, como um não sujeito, ou seja, um integrante que pouco sabe sobre as lutas no campo, a mudança social, a construção da cidadania, etc. Em outras palavras, verificar-se-á se os integrantes do assentamento fazem parte do movimento tendo por objetivo apenas a conquista da terra, ou se objetivam algo mais, como novas relações sociais (mais solidárias, mais igualitárias) assim como uma sociedade mais justa (socialista), tal qual os anseios do MST:
Socialismo, aqui quer dizer acabar com a exploração de uma classe sobre a outra e colocar os meios de produção (terra, fazendas, empresas agropecuárias, minas, indústrias, bancos) nas mãos da classe trabalhadora, através do Estado popular. Este lento aprendizado de que no sistema capitalista não há libertação para os trabalhadores, o Movimento Sem Terra o faz pelas lutas por uma Reforma Agrária controlada pelos que trabalham e vivem da terra. (MST, 1986, p.7).
Tendo definido os aspectos supracitados, a próxima fase foi a qualificação do projeto (primeiro semestre de 2006). Após, deu-se continuidade, de forma mais concreta ao trabalho de campo[30]tendo sido desenvolvido no segundo semestre de 2006, sendo que a fase exploratória (primeiro contato com o local - assentamentos da região de Lebon Régis - e conversa com os assentados) ocorreu no primeiro semestre do referido ano.
Muito oportuna seria investigar essa temática no movimento como um todo, ou pelo menos em um assentamento de cada região, em âmbito nacional. No entanto devido a vários fatores (econômicos, temporal, distância, etc), apenas foi viável realizar um estudo de caso[31]O assentamento selecionado localiza-se na Região de Lebon Régis – Assentamento Eldorado dos Carajás - , no Estado de Santa Catarina. A seleção desse local, dentre os 131 existentes nesse Estado[32]decorreu em função do estudo exploratório no conjunto de assentamentos na Região de Lebon Régis, conforme tabela 1 já mencionada. Optou-se por pesquisar este Assentamento pois se percebeu que nele havia maior coesão organizacional, tanto referente a infra-estrutura, quanto ao grau de participação dos assentados nas questões pertinentes ao assentamento. Isso talvez seja decorrente do fato de ser um dos últimos assentamentos da região, o que facilitou aos novos assentados no sentido de aprender com a experiência dos mais antigos, a fim de não repetir erros na organização e condução do assentamento, nos seus vários aspectos (decisão do que plantar, segundo a composição do solo; organização interna, etc). A região de Lebon Régis foi selecionada, entre as demais do Estado, devido a facilidade de contatos para entrar em campo, tanto em termos de conhecer pesquisadores que já trabalhavam nestes assentamentos ou em, próximos destes, quanto dos aspectos físicos (maior proximidade da residência).
4 - Coleta dos dados
Para coleta dos dados aplicou-se uma entrevista estruturada[33]de forma aleatória, ou seja, não foi estipulada uma amostra dos assentados, principalmente por se tratar de um assentamento pequeno. Por meio do campo social[34]foram colhidos dados referentes aos atores individualizados, tais como atributos e discurso. As entrevistas foram realizadas até terem sido esclarecidos os principais aspectos do seguinte roteiro:
1) Sobre o Movimento dos Sem-Terra: Como conheceram; o que representa para eles; o que entendem por MST; qual a percepção da estrutura organizativa do MST; quais símbolos do movimento que mais se identificam; se recebem materiais informativos do MST (Quais?); se participam de congressos, reuniões do movimento, em âmbito estadual e federal; qual o sentido/significado dessa participação em suas vidas.
2) Sobre o assentamento: origens; significado da denominação do assentamento (Eldorado dos Carajás); número de famílias; como é a organização interna; divisão de tarefas; comissões; núcleos; existem mediadores (em caso afirmativo, quais são?).
3) Sobre o papel dos mediadores: Igrejas, Sindicatos e partidos (Quais mediadores, ou quem?); como funciona a relação com os mediadores (reuniões, palestras, encontros); costumam interrogar os mediadores, discordar de suas opiniões; importância dos mediadores para o coletivo, para obter informações (política, econômica, lazer), encaminhar propostas, entender decisões.
4) Sobre a Construção da subjetividade (sujeito): Como era a vida antes e depois de entrar no MST; quanto controle sente que têm na tomada de decisões que afetam suas vidas diárias; sentem que há direitos que lhes dão o poder de mudar o curso de suas vidas (Quais?); quanto de influência crêem possuir para fazer do assentamento um lugar melhor para viver; suas aspirações e expectativas em relação ao movimento; principais dificuldades; consideram –se felizes (mais agora, ou antes da entrada no movimento); porque as coisas (desigualdades sociais, dificuldade de reconhecimento, de acesso a cidadania e melhor qualidade de vida) são como são; sentem-se reconhecidos pelos membros do grupo; foi possível no movimento a conquista de novas potencialidades, assim como a capacidade de autodeterminação; entendem que o movimento constitui-se como resistência ao mundo impessoal do consumo e da violência, assim como contribui para a transformação da sociedade (de que forma isso ocorre?); entendem que possuem adversários (quem são?).
5) Sobre a organização em rede: capacidade de iniciativa; como funciona a entrada de novos membros, assim como o desligamento do assentamento; como são escolhidas as lideranças; como ocorre a distribuição de tarefas ou de funções políticas na organização; se já ocupou cargo ou foi responsável por atividades políticas (quais e como se sentiu?).
6) Sobre questões políticas e de infra-estrutura: Como funciona a questão política no assentamento - existem discussões, debates, todos participam; em relação à política, o assentamento tem diretrizes próprias ou segue as diretrizes nacionais do MST; se existem diferentes facções políticas no assentamento; como são decididos os projetos de infraestrutura para o assentamento.
7) Sobre a reforma agrária: opinião sobre a reforma agrária existente e a proposta de reforma agrária do MST .
4.1 - Análise dos dados
Conforme já mencionado, neste trabalho, nos capítulos II (problema, hipóteses e objetivos) e na metodologia, procurar-se-á nessa parte analisar, a luz dessas questões levantadas e do referencial teórico, o material empírico da pesquisa coletado em campo. Antes de iniciar a referida análise, procura-se esboçar um mapa (representação do espaço) do Assentamento Eldorado dos Carajás[35]a fim de facilitar a compreensão da estrutura organizacional do local.
4.1.1 – O Assentamento
Nos primórdios do assentamento, as famílias constituíam-se em torno de um único núcleo, conforme fica melhor esclarecido na fala de um assentado:
Vieram setenta famílias para essa área, mas mesmo que ficassem todos não ia caber do mesmo jeito. Daí nós temos seis posseiros do lado de lá. Eles se criaram vivendo aqui, né. O pai deles cuidava da fazenda (que era dos Moraes).
Aí quando o Juiz decretou a emissão de posse para o movimento, colocou mais essa cláusula embaixo em que o movimento era obrigado a assentar essas seis famílias. São seis irmãos que estão ali, né. Aí nós não podemos fazer nada, porque já estava decretado. Aí nós tivemos que escolher quem fica e quem sai, porque não dava terra pra todo mundo. O assentamento tem mais ou menos 280 e poucos hectares. Ficaram 12 hectares para cada um, em média, ou alguns de onze, dez, o menor é sete hectares, conforme o relevo, a geografia, né. Lá embaixo, perto do Serginho, temos uma área lá de 42 hectares que por Lei é reserva legal. Lá ninguém mexe. E para onde foram as demais famílias? Essas famílias foram para outros assentamentos. Aí nós fizemos uma discussão, a coordenação sentou e aí avaliamos a participação, o empenho no acampamento.
Não teve lá o 100% de acerto, né. Tiveram uns dois ou três que não era o que a coordenação pensava na época, mas tudo bem, errar é humano, você não vai acertar todas ("Assentado B").
O assentamento constituía-se de dezenove famílias, sendo treze do MST e seis posseiros, as quais se organizavam em torno de um único núcleo, ou seja, não havia divisões internas, em termos de coordenação. No entanto, posteriormente, devido a uma série de fatores[36]o assentamento foi dividido em dois núcleos, conforme quadro abaixo:
Quadro 4 – Núcleos do Assentamento Eldorado dos Carajás |
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NÚCLEO 1 |
NÚCLEO 2 |
10 FAMÍLIAS DO MST 2 COORDENADORES (HOMENS) |
6 FAMÍLIAS (POSSEIROS) + 3 FAMÍLIAS (MST) 2 COORDENADORES (HOMEM – MST; MULHER – POSSEIRA). |
Compilação própria: SILVEIRA, S. Pozzer. |
Agora, faz um mês mais ou menos, nós resolvemos montar um grupo. Aí nós montamos um núcleo para discutir as questões. Agora nós somos dois grupos.
O grupo dos posseiros e o grupo dos assentados. Então eles estão lá no canto deles e nós estamos no nosso ("Assentado B").
A análise dos dados refere-se, principalmente, a essa segunda fase, ou seja, a atual. No decorrer da fala dos assentados ficam mais explícitos os motivos, as divergências para a divisão do assentamento. O interesse deste trabalho é no Núcleo 1 que se constitui das famílias do MST. Em relação a origem dessas famílias, todas são do Estado de Santa Catarina.
São tudo do mesmo Estado, tem alguns do município de Lebon Régis e outros de Fraiburgo. Estavam juntos no mesmo acampamento (Faxinal na comunidade do Vinte e Seis) ("Assentado A").
Nós ocupamos lá faz 3 anos, né. Na verdade nós não ocupamos aqui. A primeira ocupação que nós fizemos foi no Vinte e Seis que é uma Vila que tem logo aí na BR. Nós falamos 26, mas na verdade lá é Faxinal do São Pedro.
Também fica na região de Lebon Régis. Aí ocupamos uma área ali que era do Japonês, né. Era área grande, se não me engano. Na época, cabíamos todos nós lá. Ficamos um ano lá acampado. E depois o movimento chegou lá uns dias antes, na verdade um meio de estratégia deles. Não falaram nada, só falaram: "tal dia vocês estejam tudo aqui reunidos que teremos uma reunião muito importante". Aí o pessoal ficou todo mundo para esperar. De repente, o pensamento era que a área lá estava saindo, né. Aí os caros chegaram lá de manhã, por volta das 8h, e falaram para nós: "daqui uma hora ou trinta minutos está encostando uma camionete aí. Vocês vão carregar as coisas de vocês e vão para a terra prometida". A terra não saiu aqui, daí já tava com o papel a emissão de posse dessa área aqui, né. Só que daí as coisas não funcionaram mais, como nós tudo pensava, porque a idéia era que todos os companheiros ficassem juntos. Na verdade, na época, quando chegamos lá, chegamos com 115 famílias, mas daí com o passar do tempo, uns vão pensando que vão ganhar amanhã. A maioria desiste, não agüenta, vai embora. Aí foi diminuindo, veio para cento e poucas. No final da história tava com uns oitenta e quando viemos para cá estava com setenta e poucas famílias. Os outros foram para outros acampamentos lá na região de Correia Pinto ("Assentado B").
A maioria dos assentados é oriunda do mesmo acampamento, com exceção de duas famílias que permutaram o lote.
Aqui tem meu irmão que mora aqui, mora do lado aqui. Eu morava sozinho lá (no outro assentamento). Daí o cara que tava aqui tinha umas quatro ou cinco crianças que vão na escola. Daí pra ele ficava difícil, aí falou comigo: "tu não quer morar perto do teu irmão?" Aí eu vim ("Assentado C").
A organização da produtividade no assentamento é individual, com exceção das negociações para aquisição de adubos, sementes, entre outros.
Aqui a gente pensa coletivo, embora a gente trabalha mais tipo mutirão, mas conta (finanças) em conjunto é tudo feito. Uma coisa que mudou, as negociações no Banco, qualquer Órgão assim a gente forma uma comissão e vai lá negociar.É escolhido quatro ou cinco famílias, pessoa por assentamento. Aí tira a proposta e leva lá ("Assentado A").
Em relação ao nome do assentamento "Eldorado dos Carajás" foi em decorrência:
O nome do nosso assentamento foi em homenagem aos companheiros que foram mortos lá em Eldorado dos Carajás[37]37. O nome foi, nós estávamos acampado ali no Vinte e Seis, daí foi, que cada acampamento tem que ter um nome e depois do acampamento segue para o assentamento. Até foi um companheiro do movimento que ficou um tempo ali com nós acampado, daí ele disse para nós o que achava do nome, né. Daí colocamos para homenagear os companheiros ("Assentado D").
Tendo sucintamente traçado um panorama geral do assentamento, passa-se para análise das questões (Capítulo II) levantadas nessa pesquisa, as quais se encontram agrupadas em três eixos de análise: 1º Eixo – Sujeito (subjetividade, empoderamento, pertencimento); 2º Eixo – Autonomia (Mediadores); 3º Eixo – Democracia (Estrutura). Essa divisão em diferentes eixos é de cunho mais didático, visto que se torna difícil na análise fazer uma nítida separação dos referidos temas, os quais estão imbricados/relacionados.
4.2 – Primeiro Eixo: sujeito
4.2.1 – Pertencimento
Inicialmente procura-se entender como conheceram, o que representa para eles o MST, assim como se participam de congressos do movimento, entre outros. A maioria dos assentados vê o MST como algo positivo, que os ajudou, conforme segue em fala representativa desse sentimento:
Nós morávamos no sítio, perto desse sítio tinha um assentamento. O cara desse assentamento passava em frente a nossa casa. Um dia soube que nós íamos sair do sítio, porque o cara iria vender o sítio, daí ele chegou lá e convidou para vir acampar. Só que eu no começo tinha muito medo, pois era a primeira vez que estava vindo, né, aí achava muito difícil, como foi difícil. Depois, através desse cara que a gente conheceu o que era o MST. Chegou lá em casa, fez uma reunião e explicou direitinho o que era, né. Não era o que eu pensava, que era um fim do mundo vim pra baixo de uma lona. [...] O que entende por MST? Eu entendo que hoje é uma forma de você conseguir as coisas, se organiza. Se você for depender só de você, não compra um pedaço de terra, levando em conta a quantidade de filhos que a gente tem, tem que trabalhar e pagar o aluguel. No Movimento Sem-Terra você consegue, né. Acho que é muito bom que as pessoas se organizam e, através disso, a gente consegue muito mais coisa. Não é só a terra, consegue respeito também que é o principal. Já participaram de congressos, em âmbito estadual e federal? Sim, lá você fica mais com vontade.
Lá você libera suas energias. Por exemplo: nós não vamos lá de graça, uma coisa nós temos que trazer, levar para eles. Então, de repente, muitas coisas a gente consegue, não é tudo, né! ("Assentado B").
Observou-se que há uma percepção do MST como "instrumento" para conseguir bens, tanto materiais (terreno, casa, sementes, etc) quanto simbólico/pedagógicos (aprendizado da importância da organização popular para ´conseguir muito mais coisa`, valorização da identidade rural, etc). Dessa forma, o movimento e em conseqüência as ocupações, os acampamentos são formas de organização que são positivas para os assentados, pois através destes conquistaram um espaço, tanto físico (terreno, etc) quanto subjetivo (auto-estima). Através desta, conforme fala do "Assentado B", se ´consegue respeito`, o qual é imprescindível para ser Sujeito, no sentido de ser reconhecido pelos demais, seja do seu grupo ou da sociedade em geral, ao invés de estar a mercê, seja desempregado ou submetido as relações de produção já estabelecidas. Sendo assim, observase que os assentados expressam-se como sujeitos, o qual segundo TOURAINE (1994) "é a vontade de um indivíduo de agir e de ser reconhecido como ator"(p.34).
Em relação ao primeiro contato dos assentados com o MST, verificou-se que geralmente envolve lideranças, familiares, amigos que já tiveram ou tem alguma relação com o movimento.
Como conheceu o MST? Foi através das lideranças. Na verdade, meus irmãos foram assentados antes, né. Eles foram assentados por primeiro, depois através das lideranças nós fomos. O que representa para você o MST? O que entende?
Pra nós o movimento, se não fosse ele, nós não tínhamos conseguido terreno, nada, se temos o terreno hoje é graças ao movimento [...].Participam de congressos, reuniões do movimento? Sim. Qual o sentido dessa participação para você? Pra nós o congresso é mais para pressionar, pois tem muitos companheiros que estão embaixo de lona. Pressionar para liberar o terreno para eles, para sair recurso também ("Assentado D").
Para o "Assentado D" o poder do coletivo, expresso no MST, é fundamental para suas conquistas. Percebe o congresso como forma de pressionar, seja para adquirir melhores condições para o assentamento, quanto para auxiliar os demais integrantes do movimento que ainda estão acampados. Sendo assim, verifica-se a questão do aprendizado da solidariedade, do agir em conjunto, ou seja, não basta apenas conseguir a terra, mas é preciso continuar a luta, a fim de conseguir recursos para o assentamento e também contribuir para que os demais acampados (integrantes do movimento) conquistem a terra. Dessa forma, fica explícito que a luta não é só pela aquisição da terra de forma individual, mas que envolve todo um novo contexto, ou seja, pensar diferente do individualismo, enxergar o movimento em sua maior amplitude e não apenas nas questões de sobrevivência mais imediatas e individuais.
Já o "Assentado G" expressa que o contato com o movimento ocorreu devido a popularidade do mesmo:
Olha o pessoal falava muito do Movimento Sem Terra, depois meu marido queria terreno, aí nós viemos. Sempre trabalhava na roça, em tudo que era lugar por dia e tudo. Era muito sofrido, a gente pagava água, luz e tudo que era despesa, não podia ter uma criação, nada. Por isso que nós viemos para o Movimento Sem-Terra. Mas eram os vizinhos que falavam sobre o MST? Eram os vizinhos. O que representa o MST para você? O MST pra nós representa um jeito da pessoa viver melhor, numa terra, trabalhando para sobreviver melhor.
Participa de congressos? Fui agora, não lembro bem o mês, lá em Caçador.
Participo tanto estadual, quanto federal, quando posso. Qual o sentido dessa participação para sua vida? Nós a gente, até que não mudou quase nada. Essa questão de Banco, nós estamos perecendo tudo o pessoal daqui. Porque lá saiu que tinha direito as mulheres dos seis mil para pegar e tudo. Mas até agora nada feito, não falaram mais nada e nada feito. E o tal de fundo perdido, para comprar um calcário, ou coisa assim, não temos nada e tá ferrado, estamos sofrendo aqui. Como pessoa, o que muda participando desses congressos?
Senti uma coisa muito beleza, sabe. A reunião lá em Caçador foi muito boa, a explicação sobre o Movimento Sem Terra, assim foi muito boa. Só que chega aqui no Banco, nada feito. Mas chega ali dá tudo pra trás ("Assentado G").
O "Assentado G" também percebe o MST como algo bom. Passou a ter mais qualidade de vida, tem sua própria terra para plantar, sem precisar ficar indo de um lugar para o outro a procura de trabalho e sobrevivência. Em relação a sua participação nos congressos do MST, percebe-se sua crítica, no sentido da diferença do discurso e da prática, ou seja, no congresso é tudo muito bom, bonito, mas chega na hora de conseguir as coisas surgem às dificuldades, os empecilhos. Ou seja, ao mesmo tempo em que sente-se muito bem, como pessoa, nos congressos, destaca que depois a realidade não condiz com as expectativas, permanecendo o duro cotidiano de não conseguir subsídios para plantar, comprar sementes, adubos, etc. Pela fala do assentado vê-se que não há um planejamento estratégico, por parte do movimento, que propicie uma certa garantia aos assentados para gerirem suas necessidades básicas. Dessa forma, o discurso do movimento denota um caráter mais mobilizador, a fim de que os próprios assentados façam seu planejamento e reivindiquem as melhorias necessárias, de acordo com seu contexto e necessidades locais.
Contudo, talvez essa seja a parte mais difícil, pois envolve mobilização, negociação com os Órgãos competentes, enfim uma série de fatores relacionados com tempo, burocracia, deslocamentos, enfrentamentos, etc. De outro modo, quiçá seja a parte mais importante, pois os assentados deverão ser atores de suas ações, através da atuação em conjunto para lutar por melhorias para o assentamento ou para seu próprio lote. Esta prática é fundamental, pois segundo Castoriadis (1982) é através da práxis, ou seja, do fazer no qual o outro é considerado o agente essencial de sua autonomia que o sujeito a adquire.
Conforme o exposto, a hipótese dessa pesquisa no tocante ao pertencimento[38]38 pode ser em parte refutada, pois o movimento propiciou aos assentados um sentido de pertencimento. Assim como, não percebem o movimento, suas formas de luta, como um empecilho (peso), pois adquiriram consciência que através da luta e organização torna-se possível a conquista de uma melhor qualidade de vida.
4.2.2 – Subjetividade e empoderamento
Analisando o cotidiano, a convivência, o trabalho no assentamento percebe-se que os assentados constroem uma subjetividade própria do meio rural, peculiar à realidade concreta em que vivem.
Para ser possível confirmar e procurar "medir" o quanto esses agricultores são sujeitos hoje, fazse necessário análise de como se constituem como sujeitos autônomos, assim como da aplicação de uma referência comparativa, do tipo: como era a vida antes e depois de entrar no MST; qual o potencial de empoderamento, de autodeterminação desses assentados; entre outros, conforme pode ser ilustrado pelos seus depoimentos abaixo:
Se eu te conto. Era uma vida sofrida, antes de vir pra cá dependia de morar no que é dos outros, pagando aluguel, dependia de tudo. Hoje não, graças a Deus não estamos mil maravilhas, né. Deu uma virada, pelo menos foi um giro de noventa graus. Porque não tenho nada contra a cidade, gosto de tudo, né. Nós morávamos na casa dos outros, alugada (Fraiburgo). Por exemplo: os filhos, a mulher tinha que manter que nem cachorrinho (preso). Era só aquele lotinho e nada mais. Hoje, não, temos a liberdade aqui. Lá não podia andar de qualquer jeito [...]. Eu acho que tenho mais liberdade agora, que por mais que tenha algumas cláusulas no contrato[39]39 que não posso fazer, né, mesmo assim eu acho que tenho minha liberdade. Porque, por exemplo se eu tivesse trabalhando fora como iria estar aqui agora para nós conversar, não é? ("Assentado B").
Trabalhava em pomar de maça, depois que entrei no MST mudou, não tem hora marcada, a hora que você pode vai, se sente mais livre e mais a vontade ("Assentado F").
O grau de liberdade adquirido depois da conquista da terra é significativo, tanto em termos de decidir o que e como produzir (plantar) como em relação ao horário de trabalho. Além disso, o modo de portarem-se, de poder ´andar de qualquer jeito`, conforme fala do "Assentado B", das crianças terem espaço para brincar, sem muito cuidado, tal qual exigia em terreno pequeno na cidade, faz com que tenham uma grau maior de liberdade.
Para o "Assentado C" o movimento contribuiu em diversos aspectos, tanto no seu aprendizado como pessoa, quanto em relação aos demais integrantes do grupo, conforme segue:
Antes de entrar no MST era difícil. De ter terra pra plantar, né. Pra mim melhorou bastante por isso. Antes trabalhava de peão. Agora tendo a terra pra você trabalhar, você planta o que quer. Vai pra roça a hora que quer. De empregado, peão, assim é diferente. [...] Acho que no movimento você aprende um monte de coisa, é uma aula para a pessoa. Tu aprendes muita coisa, né. Eu para começar, porque aula eu quase não fui. Porque dali quando entramos no acampamento, porque ficava meio que debalde. Tinha gente que pegava e fazia aula. Eu não sabia, mal a pena assinar meu nome. Só nesse sentido você aprende, né. E não fui só eu, foi um monte de gente. Desde estas jornadas que fomos, não é sair para fazer turismos. Desde o começo acho que o movimento foi bom para mim. [...] Não é eu para mim e você para você. Se tu tens tu come, se não tem fica sem, né. É muito diferente. Então é uma sociedade que é tudo junto. Nesse sentido, não é assim individualmente, é pelo conjunto. Se estou aqui, porque eles me ajudaram e não só eles, né, também a sociedade ("Assentado C").
A liberdade, o maior espaço, a capacidade e possibilidade de decidir o que e como fazer na terra conquistada evidencia o grau de autonomia e subjetividade adquirido por esses assentados, principalmente em relação à vida que tinham antes, em que eram obrigados a vender sua força de trabalho e de submeterem-se as ordens do proprietário.
A fala do "Assentado C": ´Nesse sentido, não é assim individualmente, é pelo conjunto`, revela que no movimento aprendem a se relacionar com os demais de outra forma, em que o coletivo é mais importante que o individual. Desenvolvem a capacidade de ser solidários, de dividirem quando necessário para que todos tenham dignidade, de, por exemplo, não ficar um sem comida, enquanto o outro tem de sobra. Outro aspecto da fala do "Assentado C":´no movimento você aprende um monte de coisa, é uma aula para a pessoa`, ou seja, há uma significativa valorização do conhecimento adquirido no MST, no sentido positivo, de empoderamento do sujeito e não como algo tutelador, imposto.
A percepção, por parte do "Assentado D", do movimento como "um ser" solidário, que acolhe todos, segundo segue:
O movimento nunca virou as costas para ninguém, né. O assentado, se não fosse o movimento ele não conseguia. Porque não existe a pessoa entrar num terreno sem ter apoio de ninguém, né. Se tem o movimento eles vêm e conversam, tem tempo, mas sem o movimento os pistoleiros já tiram direto as pessoas do terreno ocupado, mal dá tempo para entrar. A luta do movimento vai além da aquisição da terra? Luta, o movimento não é só pelo terreno. Na verdade o movimento somos nós. Tem a liderança, né, mas quem faz o movimento somos nós, né. O movimento é para conseguir o terreno e lutar por melhores condições de vida do assentado. Até se puder ajudar uns que estão na cidade, também, sempre na idéia da solidariedade, do não querer só pra si. Se tem movimento, o objetivo do movimento é sempre o coletivo, né, não individual. Sempre recursos para cooperativa, linha de leite, enfim um monte de coisa. Porque se lutasse só pelo terreno para o assentado, se não tem recurso como vai sobreviver em cima do terreno? ("Assentado D").
Conforme esclarece o "Assentado D" é uma quimera achar que os agricultores por si só, sem o suporte do movimento, irão conseguir êxito em suas lutas, assim como desenvolver-se autonomamente, principalmente, num meio social que não propicia isso, tal qual o meio rural brasileiro, em que a violência, os maus tratos são freqüentes ao trabalhador rural. Sem mencionar a questão da mídia, pela qual são estigmatizados. Dessa forma, vêem o movimento como um amparo, uma forma de se incluir socialmente e que os propicia tornarem-se ator capaz de ir construindo o movimento, ou reconstruindo-o, ou seja, como explica o referido assentado: "quem faz o movimento somos nós".
O "Assentado G" esclarece a rotina daqueles que não têm um lugar definido, que não pertencem a uma comunidade, que não possuem um grupo social de referência, pois andam de um lugar para outro em busca da sobrevivência.
A gente aqui mudou a vida pra melhor. Temos criação, galinha, porco, mantimentos.Mesmo sem dinheiro colhemos para o gasto. Antes era sofrido. Nós somos do interior. Toda a vida capinava na roça, desde os 12 anos. Porque foi para a cidade? Daí nós fomos trabalhando na roça como agregado, como diziam, depois a vida não era fácil. Daí nós fomos indo procurar serviço na cidade, um pouco trabalhava na firma, um pouco de diarista, bóia-fria. Mas agora melhorou 100% do que nós morávamos na cidade. Acha que no movimento foi possível a conquista de novas potencialidades? Achei que foi uma coisa boa, pra nós foi uma coisa muito mais diferente, muito melhor. Eu achei que melhorou bastante a questão de falar, de ter mais coragem. Se o movimento constitui como resistência ao mundo capitalista? É que o movimento determina uma coisa que seria muito melhor a nossa vida, só que chega nos grandão, partidário, pra nós são os feras. Os cara do Banco do Brasil acham que a gente está estorvando. Na caixa, as pessoas da roça, do movimento sem-terra são pessoas muito sem valor para pessoas assim. Até que um dos meus filhos trabalha com um tal de "Baipe", mas não querem nem saber dos sem-terra, querem ver morto os sem-terra ("Assentado G").
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