Este ensaio discute a atuação política dos grupos conservadores que, em São Paulo e no Paraná, apoiaram a intervenção militar de 1964. Analisamos a "Marcha da Família com Deus pela Liberdade". Conclui-se que, em Curitiba, o evento (rebatizado para "Marcha a favor do Ensino Livre") priorizou a luta pelas "liberdades individuais", deixando em segundo plano os valores tradicionais cristãos, diferentemente do enredo seguido em outras cidades. O caso em questão ilustra a complexidade da conjuntura ideológica no pré-1964, a natureza crítica das iniciativas do governo Goulart para levar adiante sua agenda reformista e as diferentes motivações não somente sociais, mas também regionais no engajamento da "sociedade civil" na campanha golpista.
Palavras-chave: Golpe de 1964; "Marcha da Família com Deus pela Liberdade"; "Marcha a favor do Ensino Livre".
ABSTRACT
This essay discusses the political activity of the conservative groups in São Paulo and Paraná who supported the military coup of March 31, 1964. We analyze the "March of Families with God for Freedom" and conclude that, in the case of the march that was held in Curitiba (re-named "March for Educational Freedom"), priority was given to issues of "individual freedom", relegating traditional Christian values to a secondary concern. The issue illustrates the complexity of the ideological conjuncture that preceded the 1964 coup, the critical character of the initiatives taken by Goulart's government in carrying out its agenda of social reform and the varying motivations, regional as well as social, underlying "civil society's" engagement in the campaign that promoted the coup d'etat.
Keywords: 1964 military coup; "March of Families with God for Liberty"; "March for Educational Freedom."
Ditadura Militar ou 'República Popular' é o dilema em que o País estará metido em poucos meses. Carlos Lacerda, entrevista a O Estado de S. Paulo, 30 jan. 1962.4
Desde que o fim da Quarta República no Brasil deixou de ser explicado apenas como resultante de fatores macroestruturais (ou econômicos,5 ou institucionais6), o problema da mudança política passou também a ser enfocado a partir de outras variáveis, menos formalistas e deterministas (ou "funcionais"), e mais históricas e conjunturais.
Assim, as demais visões correntes sobre o golpe político-militar de 1964 têm insistido ou nos condicionantes militares do evento (a implantação do regime ditatorial resultando da quebra da "hierarquia e disciplina" nas Forças Armadas), ou nos condicionantes políticos (a implantação do regime ditatorial resultando do conflito entre projetos, estratégias e ações dos atores politicamente relevantes) ou, ainda, nos condicionantes sociais (a implantação do regime ditatorial resultando, precisamente, da luta de classes).7
Nesse particular, na análise das lutas sociais que conduziram ao colapso da "democracia populista", chama a atenção a quantidade de referências sobre os setores de esquerda (estudantes: UNE; trabalhadores: o Comando Geral dos Trabalhadores - CGT, o Pacto de Unidade e Ação - PUA, as Ligas Camponesas; a ala "nacional-reformista", os comunistas aí incluídos)8 quando comparadas com estudos específicos sobre os setores de direita (as "elites" e a classe média tradicional de orientação "liberal-conservadora"). Esses setores representados na cena política por empresários, profissionais liberais, líderes religiosos, movimentos femininos etc. forneceram, além do suporte financeiro e organizacional, os argumentos ideológicos mais sugestivos da conspiração contra o governo Jango.9
No período que se abre com a renúncia de Jânio Quadros (em 25 de agosto de 1961) e se encerra com o discurso de João Goulart no Automóvel Clube (em 30 de março de 1964), tanto os setores conservadores quanto os reformistas buscaram conquistar a confiança e o apoio da sociedade através de manifestações públicas - campanhas, comícios, passeatas e protestos em geral. De fato, a questão mais importante nessa conjuntura parece ter sido: "quem dará o golpe no Brasil?".
A opção pela conspiração, por um dos lados, pela luta política aberta, por outro, e pela "agitação e propaganda", por ambos, terminou com resultados significativos principalmente para a ala conservadora. Como resposta ao comício a favor das "Reformas de Base" diante da Central do Brasil no dia 13 de março de 1964 para uma multidão de cerca de 200 mil pessoas, em 19 de março 500 mil10 desfilaram da praça da República à praça da Sé em São Paulo na "Marcha da Família com Deus pela Liberdade". A manifestação terminou "com uma missa 'pela salvação da democracia'. Durante o trajeto foi distribuído o Manifesto ao povo do Brasil, convocando a população a reagir contra Goulart".11
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