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Essa não foi, contudo, uma reação isolada. Conforme a avaliação de Quartim de Moraes, sabia-se que
marchas semelhantes estavam programadas para outros grandes centros urbanos. O golpe veio antes, transformando a mobilização da direita em desfiles de triunfo. Ela provara, de qualquer modo, antes do 31 de março, que podia pôr na rua muito mais gente que a esquerda. A superioridade da mobilização reacionária de massas sobre a das forças progressistas resultou de um enorme esforço de organização [por parte do] Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), na verdade uma vasta organização política do patronato, dirigida por um Estado-Maior composto por plutocratas e prepostos de alto nível, formando a cúpula do aparelho ideológico do capital no Brasil de então.12
Precisamente, as Marchas da Família com Deus pela Liberdade foram atos públicos organizados por setores católicos da classe média urbana - e impulsionados por políticos conservadores (a Ação Democrática Parlamentar, em primeiro lugar), pela elite empresarial (reunida no IPES) e pelos movimentos femininos - que reuniram milhares de pessoas às vésperas do 31 de março nas principais cidades brasileiras.13 Condenavam genericamente a política "populista" (isto é, "a demagogia, a desordem e a corrupção") e o "comunismo" (seja seu caráter "materialista e ateu", seja o risco que o "totalitarismo" poderia representar à propriedade privada e à democracia). Fazendo eco ao clima de guerra fria, comunismo e populismo eram considerados posturas simetricamente "antidemocráticas". O primeiro porque "esmagava o indivíduo", na expressão corrente da época, sufocando a "liberdade"; o segundo porque impedia a realização plena da "verdadeira democracia" (na verdade, uma versão idealizada e elitista do funcionamento do regime liberal-democrático nos países capitalistas centrais). Simplificadamente, as Marchas batiam-se pela obediência aos "valores tradicionais cristãos" (o terço e o rosário, o matrimônio, a família) e pela observação das "liberdades individuais" (a liberdade de expressão, a liberdade religiosa, a propriedade privada) ameaçadas (ou supostamente ameaçadas) pelo governo Goulart.
A Tribuna da Imprensa, porta-voz do lacerdismo, descreveu assim o que se passou no Comício da Central:
Guerra civil, fechamento do Congresso, constituinte e até implantação da socialização crescente da economia do País foram os elementos essenciais utilizados pelos oradores de comício de ontem pelas reformas de base, do presidente João Goulart ao deputado Leonel Brizola; do presidente da SUPRA [Superintendência da Reforma Agrária] ao representante do CGT. O Sr. João Goulart antecipou o quadro de revolução civil, ao acreditar àqueles que se opõem às reformas um possível derramamento de sangue no País.14
O anticomunismo e o antipopulismo transformaram-se em argumento político para legitimar uma intervenção militar redentora.
Não é estranho, portanto, que a consciência conservadora tenha podido representar o golpe de Estado como resultado da ação da divina Providência. No editorial de O Globo, sintomaticamente intitulado "Ressurge a democracia", os militares figuram como executores de uma decisão transcendente:
Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas, que obedientes a seus chefes demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições ... Mais uma vez, o povo brasileiro foi socorrido pela Providência Divina, que lhe permitiu superar a grave crise, sem maiores sofrimentos e luto. Sejamos dignos de tão grande favor.15
Seria o caso de perguntar-se: como essa imagem religiosa fundiu-se ao discurso político?
Este artigo compara a Marcha da Família com Deus pela Liberdade em São Paulo e Curitiba. Posta ao lado da marcha paulista, vê-se que suas principais bandeiras de protesto estavam ligadas não às questões mais críticas da conjuntura política nacional (as "Reformas de Base", a subversão da hierarquia militar, a ascensão das esquerdas partidária e sindical e do movimento popular em geral), mas, surpreendentemente, a duas propostas polêmicas do Ministério da Educação: a obrigatoriedade em se adotar nos colégios um "Livro Único", editado pelo próprio MEC, e a pretensa "encampação de escolas particulares" (leia-se: as escolas confessionais). Essas idéias eram não apenas inaceitáveis por si mesmas, mas típicas de países "totalitários". A elas se deveria opor os princípios liberais clássicos.
Os resultados da pesquisa permitem concluir que o evento no Paraná - rebatizado para "Marcha a favor do Ensino Livre" - priorizou, ao contrário das principais temáticas seguidas em outras capitais (Belo Horizonte, Niterói, São Paulo e Rio de Janeiro), a luta pelas "liberdades individuais", deixando os valores tradicionais cristãos em segundo plano. É o que se depreende da análise da sua organização e enredo. Nossa hipótese é que esse repertório evidenciou, ao menos no nível do discurso, uma inclinação pelo liberalismo (político e econômico), ao contrário da orientação convencional para o conservantismo típico das camadas médias brasileiras no pós-1945. O caso em questão ilustra portanto a complexidade da conjuntura ideológica no pré-1964, a natureza crítica das iniciativas tentadas pelo governo Goulart para levar adiante sua agenda reformista e as diferentes motivações não somente sociais, mas também regionais no engajamento da "sociedade civil" na campanha golpista. O estudo sugere assim que algumas atividades antigoverno, embora tivessem uma dimensão nacional, eram organizadas por grupos locais segundo uma lógica descentralizada, na medida em que respondiam a estímulos (sociais, organizacionais, políticos e ideológicos) muito conjunturais. Se isso for correto, pode-se começar a desconfiar das idéias que apresentam o golpe político-militar de 1964 como uma superconspiração nacional a partir de um único ator - "os militares", "a burguesia" etc.
O artigo está dividido em quatro seções. Na primeira, resumimos os eventos da política nacional entre 1961 e 1964 e chamamos a atenção para a importância do movimento dos católicos conservadores e sua centralidade na conjuntura de março; em seguida, procuramos sistematizar as idéias políticas da classe média urbana na Quarta República e indicar, esquematicamente, como o antipopulismo, o anticomunismo e o antiestatismo manifestaram-se na crise final do populismo. A terceira seção faz, a partir de uma minuciosa reconstituição histórica, a análise do movimento em Curitiba, destacando a participação de associações de classe e de grupos católicos femininos na organização do protesto; essa etapa serve para salientar as temáticas principais da marcha curitibana e suas particularidades diante do movimento político nacional. Por fim, descrevemos brevemente, ao lado da Marcha da Família, a "Marcha a favor do Ensino Livre". A história aqui contada é fundamental para ilustrarmos nossa hipótese de pesquisa, compreendermos o sentido da atuação das camadas médias no período anterior ao golpe e abordarmos menos superficialmente o "conservadorismo" do Paraná tradicional.
Temos tido governos inertes e governos incapazes, que pecaram largamente por omissão, deixando de aproveitar belas oportunidades para agir em benefício do país. Mas nunca tivemos, no Império ou na República, um governo tão encarniçadamente decidido a destruir, desmoralizar e até a prostituir tudo quanto neste país existe de organizado. Eugênio Gudin 17
A Nação não mais suporta a permanência do Sr. João Goulart à frente do Governo. Chegou ao limite final a capacidade de tolerá-lo por mais tempo. Não resta outra saída ao Sr. João Goulart senão a de entregar o governo ao seu legítimo sucessor. Só há uma coisa a dizer ao Sr. João Goulart: saia. "Fora!", editorial do jornal Correio da Manhã, 1º abr. 1964
O golpe de 1964 representa o ponto de chegada de uma série de golpes sucessivos contra a democracia populista e, especificamente, contra seus mecanismos de participação política e controle de classe. Daí que o golpe de Estado resolva, de forma particularmente dramática, as contradições expressas em conjunturas tão diversas quanto a de outubro de 1945 (fim do Estado Novo); a de agosto de 1954 (suicídio de Vargas); a de novembro de 1955 (o "golpe preventivo" do general Lott); a de fevereiro de 1956 e a de outubro de 1959 (rebeliões militares em Jacareacanga e Aragarças); e a de agosto-setembro de 1961 (renúncia de Jânio e imposição do parlamentarismo a João Goulart). Não deixa de ser curiosa, à luz dessa mera enumeração de acontecimentos, a expressão dita por Lacerda em 1962 para caracterizar o processo político entre 1945 e 1964: "golpes para evitar golpe".18
Mas para que a relação entre "os golpes" e "o golpe" final não seja simplesmente formal, nem seja apreendida num nível de generalidade quase banal ("teria sido possível [evitar o golpe de 64] se realmente nossas instituições fossem democráticas e sólidas"),19 seria preciso fixar, no interior desse ciclo longo, o momento em que, embora ainda evitável, o golpe contra o regime de 1946 tornou-se altamente provável (sendo as suas condições de possibilidade construídas desde então, uma vez que elas não estavam dadas de antemão).
Jacob Gorender sugere uma periodização política que dá um sentido à cadeia de acontecimentos e permite que iniciemos a história de 1964 a partir de um ponto um pouco menos distante ou arbitrário: a renúncia de Jânio Quadros em 1961. Esse ato (na verdade: um golpe malogrado), por seu significado, não é a causa do sucesso dos conservadores em março-abril de 1964, mas a antecipação do projeto político antipopulista. O presidente Jânio Quadros "pretendia o que os golpistas de 1964 obtiveram: poderes excepcionais que reduzissem as atribuições do Congresso e permitissem ao presidente governar de maneira autoritária".20
A conjuntura que vai de setembro de 1961 a fevereiro de 1964 é particularmente crítica. Reconstituí-la passo a passo foge do escopo deste artigo. É suficiente lembrar aqui os principais eventos políticos em seqüência: depois da renúncia de 25 de agosto e da reação da direita civil e militar à posse de Goulart, a resistência, em nome da "legalidade constitucional", adia o golpe mas aceita a solução de compromisso do parlamentarismo (Emenda Constitucional nº 4) em troca de um plebiscito sobre a forma de governo em 1963. Essa parece ter sido, naquela circunstância precisa, a única fórmula possível para garantir a posse do vice-presidente, uma vez que, "na ótica dos militares e dos demais setores civis golpistas, Jango simbolizava tudo aquilo que havia de 'negativo' na vida política brasileira: demagogo, subversivo e implacável inimigo da ordem capitalista".21
A vitória da direita nas eleições de outubro de 1962 consolida o conservantismo do Parlamento, mas os gabinetes Tancredo Neves, Brochado da Rocha e Hermes Lima não garantem nem governabilidade, nem estabilidade política ao sistema. "A pressão de Goulart para influenciar as decisões do Gabinete e as divergências entre Congresso e Conselho de Ministros" contribuem para a campanha pela antecipação do plebiscito.22 Retomado o poder presidencial em inícios de 1963, o governo passa a conviver, num contexto de grave crise econômica (inflação de preços), com pressões à esquerda (dos setores nacionalistas, populares e comunista), contra o "Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico-Social" e contra a timidez para nomear um ministério mais progressista e assumir uma política de fato nacionalizante; e à direita (latifundiários, o grande empresariado, udenistas e pessedistas, a alta oficialidade das Forças Armadas e a cúpula da Igreja católica), contra as "reformas", principalmente a agrária, e o "caos, a desordem e a instabilidade política", representada pela ascensão do movimento popular e sindical. No Congresso Nacional a polarização ideológica mina o centro político, o apoio parlamentar ao governo, e bloqueia as iniciativas do Executivo. A partir de julho de 1963 o Plano Trienal cede lugar na agenda do governo às Reformas de Base. Na frente militar, a revolta dos sargentos, em setembro, adiciona um elemento a mais na crise política e repercute negativamente na cúpula das Forças Armadas. A recusa em aprovar o Estado de Sítio em outubro de 1963 isola politicamente o Presidente. A radicalização da política populista de integração política e econômica das massas urbanas (e também rurais) é a resposta à ascensão do movimento popular.
Em 1964 o país experimenta, sem possibilidade de retorno, os efeitos da polarização ideológica que havia oposto, em todo o período, o liberalismo conservador ao reformismo nacionalista. Em março, o Comício da Central (no dia 13), a Marcha da Família (no dia 19), a Rebelião dos Marinheiros (no dia 26) e a reunião no Automóvel Clube (no dia 30) precipitam a conclusão desse período de crises. "Com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade ... o limite crítico foi ultrapassado. Depois da Marcha um grande número de atores passou a atribuir uma alta probabilidade de sucesso ao movimento contra o governo".23 No dia 31, a "manobra intempestiva" do general Olímpio Mourão Filho cerra o destino do governo Goulart.
As "Marchas da Família com Deus pela Liberdade" foram, nesse contexto, uma resposta política ao discurso de 13 de março na Central do Brasil. A faísca que incendiou o movimento reacionário saiu do pronunciamento do presidente Goulart durante o Comício das Reformas. Jango criticara a "indústria do anticomunismo" e a utilização de símbolos religiosos como instrumentos políticos de oposição a seu governo.
O inolvidável Papa João XXIII é que nos ensina, povo brasileiro, que a dignidade da pessoa humana exige ... o direito e o uso dos bens da terra, ao qual corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade para todos ... O cristianismo nunca foi o escudo para os privilégios ... nem ... os rosários podem ser levantados contra a vontade do povo e as suas aspirações mais legítimas ... Os rosários não podem ser erguidos contra aqueles que reclamam a discriminação da propriedade da terra, hoje ainda em mãos de tão poucos, de tão pequena maioria.24
O comentário, àquela altura dos acontecimentos, e segundo o espírito da "indústria do anticomunismo", foi tido como ofensa aos valores cristãos e como declaração explícita da intenção de levar adiante as reformas (agrária, bancária, eleitoral, universitária, urbana) mesmo contra a "legalidade constitucional". Essa impressão, de que havia uma revolução em marcha, era tão poderosa que permaneceu, na consciência conservadora, mesmo depois do fim do regime ditatorial-militar:
A ação dos partidários de Goulart assumia [em 1964] aspectos de verdadeira tomada do poder ... Apenas depois de 13 de março, quando Goulart realizou, sob a proteção de tropa do Exército, revolucionário comício na frente da Central do Brasil no Rio, a sociedade se deu conta da iminência dos perigos que corria. Alguns dias depois, 250 mil pessoas saíram às ruas de São Paulo ... na famosa 'Marcha com Deus, pela Família e pela Liberdade' [sic], respondendo ao Presidente da República que no comício da Central escarnecera do que o terço simboliza para os católicos. Foi como resposta a esse movimento ... que as Forças Armadas, praticamente sem dissidências, se puseram em marcha...25
Se no comício do dia 13 foram as entidades sindicais (o CGT, as federações e confederações nacionais de trabalhadores), uma série de organizações civis politizadas à esquerda (a UNE, a PUA, a UBES) e a Frente Parlamentar Nacionalista que haviam convocado "os trabalhadores e o povo em geral",26 os grupos sociais que estiveram à frente da Marcha da Família eram, em sua maioria, oriundos das camadas médias urbanas (profissionais liberais, pequenos empresários, donas-de-casa). Entidades femininas (Campanha da Mulher pela Democracia - CAMDE, Liga da Mulher pela Democracia - LIMDE, União Cívica Feminina - UCF e Movimento de Arregimentação Feminina), religiosas (Fraterna Amizade Cristã Urbana e Rural, Círculos Operários Católicos, Associações Cristãs de Moços), associações civis e de classe (Associação Comercial de São Paulo, Sociedade Rural Brasileira, Clube dos Diretores Lojistas, Conselho de Entidades Democráticas, Campanha para Educação Cívica) e sindicatos patronais (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Centro das Indústrias do Estado de São Paulo) empenharam-se no protesto.
A Marcha paulista parece ter desequilibrado a relação de forças pró-conservadores, isolando do movimento de massas a ala nacional-reformista. Ele ofereceu assim a oportunidade, o pretexto e a legitimação para o golpe militar.27 O movimento feminino, representado em São Paulo pela UCF, no Rio de Janeiro pela CAMDE e em Belo Horizonte pela LIMDE, liderou, em cada estado, a ação. A oposição ao "comunismo totalitário" de um lado, e a defesa de uma noção bastante larga de "democracia" e bastante estrita de "legalidade" de outro, foram o mínimo denominador comum da Marcha. À frente de tudo, enfeitando a aliança entre entidades femininas, associações religiosas e organizações do patronato, a exibição pública dos símbolos religiosos e a defesa dos "valores tradicionais cristãos".
Para não retirar do contexto mais amplo a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, é preciso todavia recordar que uma conspiração estava em curso desde 1961 liderada, nos meios civis, pelo "complexo" IPES/IBAD - Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais/Instituto Brasileiro de Ação Democrática. O IPES - representante "orgânico" do grande capital - também participou da organização da Marcha, planejando a passeata e colaborando, através de sua rede, para a difusão do protesto a partir de São Paulo para o país.
A ligação entre as ações do IPES e as Marchas foi descrita por René Dreifuss nos seguintes termos:
A mais significativa conquista do IPES no campo da mobilização política e ideológica consistia na utilização das classes médias como nova clientela política e o desenvolvimento de meios para mobilizá-las, com êxito, como uma massa de manobra, efeito que os partidos e frentes tradicionais não se dispuseram ou se capacitaram a alcançar. A mobilização das classes médias conferia a aparência de amplo apoio popular à elite orgânica e a mídia coordenada pelo IPES proporcionava grande cobertura às atividades dessas classes médias mobilizadas. Na atmosfera elitista do Brasil, as demandas das classes médias eram vistas como o ponto de referência para a identificação da legítima pressão popular. [Além de tudo,] o que o IPES viu como uma de suas conquistas de maior êxito foi a 'descoberta' dos grupos femininos de pressão, tão ampla e eficazmente usados dez anos mais tarde contra o governo constitucional de Salvador Allende, no Chile, e para os quais a experiência brasileira forneceu o modelo.28
A presença de setores do grande empresariado (por meio das organizações da esfera de influência do IPES) ao lado das camadas médias tradicionais (representadas pelas entidades femininas e pelas associações religiosas) na manifestação paulista sugere, no entanto, uma relação mais complexa do que de simples "porta-vozes" da elite conservadora. As evidências históricas não indicam uma relação instrumental entre as "elites" e uma "massa contra-revolucionária" de classe média. Ao contrário, permitem ver em ação um movimento que é a tradução, na cena política, das aspirações conservadoras das camadas médias tradicionais e do grande empresariado - liderados, nessa conjuntura precisa, pelo "partido" feminino e católico. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade esgrime assim, através de conteúdos morais e religiosos (os "valores cristãos"), a oposição radical - tanto do grande empresariado, quanto das próprias camadas médias - ao "comunismo" e ao "populismo".
O papel mais fundamental do IPES talvez tenha sido coordenar toda a ação cívica dos setores oposicionistas, e financiar e orientar politicamente as três organizações femininas mais importantes da classe média no período: a Campanha da Mulher pela Democracia, a União Cívica Feminina e a Liga de Mulheres Democráticas.29 Portanto, se "a classe dominante irá encontrar a sua 'massa' contra-revolucionária no seio da classe média" (conforme frisou Saes), isso não significa que a primeira detenha sobre a segunda a hegemonia - política e ideológica - do movimento propriamente dito. À função de direção (política) da Marcha paulista pela vanguarda feminina corresponde assim o arcaísmo (ideológico) dos temas morais e religiosos exibidos no protesto. A presença relevante de outros setores de classe média - os profissionais liberais, por exemplo - torna mais inteligível o destaque conferido ao temas políticos: o antipopulismo ao mesmo tempo em que se esconde na defesa da "Constituição Brasileira e dos princípios democráticos", revela-se na evocação da Revolução de 32.
Caso não se considere a natureza específica das forças políticas conservadoras - e a sua forma de expressão própria na cena política - torna-se mesmo impossível apreender as diferentes lógicas ideológicas que estão presentes no golpe político-militar de 1964.
A proclamação do governador de Minas Gerais Magalhães Pinto, aos "Brasileiros", em 1º de abril, repõe o sentido geral da contra-revolução e os objetivos dos conservadores, sintetizando a temática presente na crise do regime de 1946:
as forças sediadas em Minas ... consideraram de seu dever entrar em ação, a fim de assegurar a legalidade ameaçada pelo próprio Presidente da República. Move-as a consciência de seus sagrados compromissos para com a Pátria e para com a sobrevivência do regime democrático. Seu objetivo supremo é o de garantir às gerações futuras a herança de patrimônio de liberdade política e de fidelidade cristã...30
'Ordem' (ou na expressão edulcorada da fórmula acima: 'legalidade'), 'democracia', 'liberdade política' e 'valores cristãos' serão a base para compreender a configuração ideológica complexa dessa conjuntura.
Essa tarefa impõe um duplo entendimento: i) da relação entre classes e camadas ("setores sociais") e seus elementos ideológicos característicos no pós-1930; e ii) da relação entre esses setores, suas ideologias e os movimentos políticos conservadores de 1964: aqui, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade em São Paulo e a Marcha a favor do Ensino Livre, em Curitiba.
A tríade classe–ideologia–ação política será vista na próxima seção.
O Globo, desde a Aliança Liberal, quando lutou contra os vícios políticos da Primeira República, vem pugnando por uma autêntica democracia e progresso econômico e social do país. Em 1964, teria de unir-se aos companheiros jornalistas de jornadas anteriores, aos "tenentes e bacharéis" que se mantinham coerentes com as tradições e os ideais de 1930, aos expedicionários da FEB que ocupavam a Chefia das Forças Armadas, os quais sob a pressão de grandes marchas populares, mudaram o curso de nossa história
"Julgamento da Revolução", editorial do jornal O Globo, 7 out. 1984.
A tentação em caracterizar o "movimento de 1964" como a última (e mais expressiva) vitória dos tenentes só encontra apoio em evidências históricas circunstanciais. Que muitos oficiais ligados ao tenentismo nas décadas de 1920 e 30 - Eduardo Gomes, Juarez Távora, Cordeiro de Farias, Juraci Magalhães, Jurandir Bizzaria Mamede, Ernesto Geisel, Artur da Costa e Silva - estivessem à frente desse movimento, e, mais precisamente, da articulação militar para o golpe de Estado (ou que tenham participado dos governos militares), não faz dele o testamentário do projeto reformador que empolgou os jovens oficiais "contra as oligarquias". Os únicos elos possíveis entre 1964 e 1930 são mais negativos que positivos: uma visão golpista do processo revolucionário (com os militares à frente); uma visão estatista da economia; uma visão autoritária da política; e uma visão elitista da sociedade - a ausência de "instrução e civismo" das massas populares impediria, tanto em 1930 quanto em 64, a ampliação do sufrágio.
De maneira semelhante, a liderança dos "bacharéis" (entendidos aqui genericamente como "os profissionais liberais") é tão fictícia quanto a disposição, cultivada pelos políticos liberais e pelas forças "de centro", para, uma vez derrotadas militarmente as forças nacional-reformistas, restabelecer a verdadeira democracia.
Na articulação golpista é preciso considerar duas forças sociais civis que atuaram decisivamente na conjuntura 1963-1964: as "elites empresariais" e as camadas médias tradicionais: profissionais liberais (seu "tipo social mais expressivo"),31 donas-de-casa e pequenos empresários. Em março de 1964 esses setores fundiram-se política e ideologicamente. Desse programa "revolucionário" constava o combate ao "comunismo" e ao populismo. Sua manifestação prática foram as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, que representaram, como se viu, a maior mobilização política da opinião pública "de classe média" contra a mobilização popular.
O entendimento da ação política das camadas médias tradicionais nesse processo exige que se considere com mais atenção seus elementos ideológicos e principalmente a ascendência do liberalismo conservador das oligarquias da República Velha sobre suas posições políticas.
A nostalgia da política oligárquica
Como se poderia caracterizar a configuração ideológica da sociedade brasileira no pós-30? E, no interior desse universo, as representações mentais, os valores, as expressões políticas das camadas médias tradicionais? "O antipopulismo é a definição política essencial das camadas médias tradicionais a partir da revolução de 30". Essa afirmação precisa ser mais bem qualificada. Sinteticamente, o que está em questão, a partir da política de integração das massas urbanas e da classe operária ao sistema político-eleitoral, é a democracia de massas.
O antipopulismo traduz seu desejo de impedir a ascensão política da classe operária e a transformação do direito à política em prerrogativa comum e universal; em suma, o desejo de conservar a política como um símbolo de prestígio social. Podemos dizer, portanto, que a orientação política das camadas médias tradicionais está marcada, ao longo do período populista, pela nostalgia da política oligárquica.32
Esquematicamente é possível isolar alguns elementos que constituem e justificam essa visão de mundo. A idéia da política (no sentido mais simples de votar e ser votado) como privilégio social possui uma dimensão simbólica e uma dimensão prática. No primeiro caso, como já se mencionou, significa conservar a atividade política como um símbolo de prestígio social ("a política é para poucos"); no segundo caso, estabelecer certos requisitos essenciais - tais como "educação" e "cultura" - que justifiquem a presença ou ausência de tipos específicos de "indivíduos" na cena política ("a política é para quem entende"). O populismo, ao destruir as resistências à primeira, e ao ignorar a segunda dimensão, é por isso "basista" e irresponsável. Seu antielitismo converte a atividade política num jogo imprevisível, dependente do "carisma" do líder e da volubilidade das massas. Trata-se do exato oposto de uma política racional e "ideológica" - na verdade o traço básico da política nesse contexto, para as camadas médias, é o seu caráter "demagógico". A contra-face desse desejo por uma política no limite sem conflitos é a visão da economia como auto-regulada. O elitismo político cede lugar ao liberalismo econômico. Esse liberalismo expressa-se tanto no nível macro quanto no microeconômico. As camadas médias tradicionais foram uma consistente e constante força social contrária à política econômica no pós-30, criticando a industrialização pelo seu caráter "intervencionista", assim como a intervenção "irracional e indevida" do Estado no mercado de serviços dos profissionais liberais. A crença nos "méritos individuais" (como via de ascensão social) e a fé no individualismo (que as dispensaria de gozar as políticas de proteção social do Estado populista) estende e amplia o antipopulismo das camadas médias tradicionais em direção ao antiestatismo; antiestatismo, de resto, compartilhado com algumas frações das elites (principalmente a burguesia comercial e os proprietários fundiários).
Com diferenças expressivas, esse ideário orientou a intervenção das camadas médias tradicionais na cena política nas décadas de 1930, 40 e 50. Na campanha de 32 combateram pela "Constituição" (isto é, por uma democracia limitada); na transição de 45 pretendiam "redemocratizar o país"; e na crise de 54 focaram sua batalha "contra a corrupção". Em 1964, essas forças sociais orientam-se pela ideologia típica das "elites": o anticomunismo.
Seguindo, com grande liberdade, a sugestão de George Rudé, procuramos classificar os elementos ideológicos das classes e categorias sociais e indicar como eles são traduzidos politicamente, nessa conjuntura precisa, nos dois eventos em questão.
Rudé propôs uma fusão de elementos ideológicos para a melhor compreensão dos "protestos populares", sejam eles reacionários ou revolucionários. Sua sugestão reside em diferenciar dois tipos de ideários (ou repertórios de idéias e crenças): um "inerente" ou "tradicional", outro "derivado" ou tomado de empréstimo a outros ideários. O primeiro é "baseado na experiência direta, na tradição oral, na memória folclórica e não aprendido ouvindo sermões ou discursos ou lendo livros". O segundo é o repertório de idéias e crenças aprendidas, "que, com freqüência, adquire a forma de um sistema mais estruturado de idéias, políticas ou religiosas, como os Direitos do Homem, Soberania Popular, Laissez-faire e os Direitos Sagrados da Propriedade, Nacionalismo, Socialismo ou várias versões da justificação pela Fé".33
O Quadro 1, com todas as limitações e esquematismos que uma representação como essa comporta, pretende sintetizar a história ideológica aqui descrita.
Tomemos assim essa representação de uma conjuntura política crítica e de um período histórico extremamente complexo como hipóteses para orientar nossa compreensão das duas histórias aqui descritas.
aqui [em Curitiba] fizemos uma outra Marcha: os comunistas mandaram livros comunistas para todos os cursos primários ... A nossa Marcha foi contra o livro comunista nas escolas primárias. O livro era horrível, incutia na cabeça das crianças que todo industrial era um ricaço fumando charuto e elas estavam ao lado, paupérrimas, esqueléticas. Ah! Isso é desaforo. E nos insurgimos contra o livro.
Rosy Pinheiro Lima, líder da União Cívica Feminina Paranaense. Depoimento ao projeto Memória Viva do Paraná/Museu da Imagem e do Som - MIS.
Seguindo o mesmo figurino de São Paulo, associações empresariais e de mulheres católicas estiveram à frente do protesto no Paraná. Houve uma expressiva mobilização política da União Cívica Feminina Paranaense - UCF, e uma eficaz campanha ideológica promovida principalmente pela Associação Comercial do Paraná - ACOPA. As duas entidades organizaram o ato na capital. Atuaram de forma conjunta,35 realizando reuniões, cursos, palestras, protestos públicos relâmpagos, entre outras atividades "revolucionárias".
A UCF era uma entidade fundada em outubro de 1963 com o objetivo de realizar obras assistencialistas e debater assuntos cívicos e religiosos. Suas principais incentivadoras foram Dalila de Castro Lacerda e Rosy Pinheiro Lima. A grande maioria de suas associadas era oriunda das camadas médias tradicionais. A Associação Comercial do Paraná era uma entidade particular (não corporativa), composta por médios e pequenos empresários, em sua maioria comerciantes, mas também por profissionais liberais oriundos de setores da antiga elite (os "bacharéis") e das camadas médias tradicionais. A ACOPA atuava, segundo a própria opinião de seus membros, "pragmaticamente" e a partir dos interesses da "livre iniciativa".36
O caso de Curitiba chama a atenção do observador por vários aspectos. A começar pelo nome: em vez do pomposo título sob o qual os conservadores desfilaram em São Paulo - "Marcha da Família com Deus pela Liberdade" -, o evento foi, no Paraná, rebatizado para "Marcha a favor do Ensino Livre". A encampação das escolas particulares e a adoção do "Livro Único" foram os assuntos principais dos oposicionistas. A questão da encampação, principalmente dos colégios católicos, resumia-se à possível (mas não provável) estatização dos estabelecimentos particulares de ensino. A questão do "Livro Único", elaborado pelo MEC, era mais complexa. Ora os conservadores reprovavam o fornecimento pelo Estado de livros didáticos para todas as escolas (determinação, segundo a União Cívica, típica de governos "totalitários"); ora os conservadores acusavam essa operação (talvez por isso mesmo) de mera propaganda ideológica do governo de Jango.
O "Livro Único", ou ao menos um dos livros do material didático oficial, fora escrito pelo historiador Nelson Werneck Sodré possivelmente a partir de seus cursos no Instituto Superior de Estudos Brasileiros e recontava o processo de organização da sociedade brasileira contrariando os principais mitos da História tradicional. Além disso, consta que a brochura fazia apologia do programa das "Reformas de Base".37
No início de março de 1964, a Folha do Comércio, o jornal da Associação Comercial do Paraná, publicou uma declaração de Alceu Amoroso Lima criticando o "Livro Único":
O professor Alceu Amoroso Lima declarou para O Globo que o decreto assinado pelo presidente João Goulart, autorizando o Ministério da Educação a editar livros escolares, é perigoso de ser aplicado, porque a comissão encarregada de editá-los deverá preparar os textos de acordo com a posição ideológica dominante no Governo, como tem acontecido com outras comissões que editam livros oficiais.38
Num estilo mais sombrio e enfático, a cúpula do Exército também tratou dessa questão pedagógica:
O Ministério da Educação e Cultura transformara-se em instrumento de infiltração comunista. O Diretório do Ensino Secundário, apoiado na assessoria estudantil e em alguns técnicos do MEC, levava a intranqüilidade aos estabelecimentos de ensino, baralhando responsabilidades e minando a autoridade dos educadores. Verbas vultosas eram fornecidas para comprometer a liberdade de consciência. Livros eram impressos para serem adotados, indistintamente, por todos os estabelecimentos de ensino, havendo mesmo alguns deles que reformulavam a História do Brasil em bases marxistas.39
Seja como for, os conservadores paranaenses resumiram os dois lados do problema do ponto de vista liberal. A decisão do MEC ao mesmo tempo em que interferia no mercado de livros didáticos, terminava, por essa via, monopolizando o mercado de "idéias". Duas liberdades sagradas eram assim ofendidas: a liberdade de empresa e a liberdade de pensamento. Todas as contas feitas,
O que se pretende, está mais do que visto, não é propiciar o ensino aos filhos das classes menos favorecidas (já que se promete extensão do direito de voto aos analfabetos). O que se pretende é apenas isto: estatizar, monopolizar e comunizar o ensino. Tática infame e covarde.40
No dia 24 de março, durante a Marcha em Curitiba, o estudante Luiz Roberto Vialle, "em nome da mocidade", sublinhou um terceiro aspecto: as medidas do governo pretendiam, caso efetivadas, "bitolar as novas gerações dentro do ateísmo e do regime incompatível com o desejo da maioria do povo brasileiro [isto é, o comunismo]".41
Havia assim dois temas superpostos e que funcionaram como pólo de atração (e de fusão de interesses) tanto para os empresários quanto para os católicos. Enquanto a UCF batia-se contra a encampação dos colégios religiosos (em nome da "liberdade de pensamento") e contra a adoção dos livros didáticos oficiais (em nome da "liberdade de cátedra"), a ACOPA via, na encampação das escolas particulares, um insulto à "livre iniciativa". No que diz respeito ao "Livro Único" o risco maior era regido por razões nada espirituais: o monopólio estatal das brochuras escolares prejudicaria os interesses econômicos de diretores da ACOPA ligados à indústria gráfica que produzia... livros didáticos. Era, nesse caso, a "liberdade de mercado" que estava em questão.
Como esses dois grupos sociais organizaram a Marcha a favor do Ensino Livre? Qual o perfil de suas atuações respectivas? E que alianças fizeram para converter sua agenda, no fim das contas bastante restrita e em torno de uma questão aparentemente "menor", em uma plataforma anti-Goulart?
A ação da União Cívica Feminina Paranaense
Ainda que o movimento vitorioso de 1964 contasse, em Curitiba, com o apoio da cúpula da Igreja Católica42 e com a participação de diversos grupos religiosos, a União Cívica Feminina foi a associação que, no final das contas, planejou e organizou, junto com a ACOPA, a manifestação.
A ação política da UCF desdobrou-se simultaneamente em muitas frentes: promoveram a vinda do Deputado Armando Falcão (UDN-SP) a Curitiba e Ponta Grossa nos dias 6 e 7 de março para "ministrar palestras"; estabeleceram contatos com a Campanha da Mulher pela Democracia do Rio de Janeiro para fundar um subnúcleo feminino em Florianópolis; visitaram a Assembléia Legislativa e a Câmara Municipal e excursionaram para outros municípios a fim de apoiar outras Marchas da Família; promoveram cursos de orientação política direcionados a diversos setores da sociedade (mas principalmente às camadas médias).43 O tema central desses encontros era "a educação", e girava basicamente em torno do livro oficial da disciplina de História. (Na UCF, a questão do "Livro Único" obteve maior repercussão do que a encampação das escolas particulares.) Nas visitas aos vereadores Jobar Cassou (UDN) e Menotti Caprilhone (Partido Republicano), a demanda principal levada pela União Cívica era a anulação do "absurdo título" de cidadão honorário de Curitiba a ser concedido ao presidente João Goulart em 29 de março de 1964; nas articulações junto à Assembléia Legislativa, conduzidas pelos deputados Haroldo Leon Peres (UDN), Rubens Requião (UDN) e Aníbal Khury (PTN), pretendia-se conquistar a adesão do governador Ney Braga (PDC) à campanha contra o "Livro Único" e, assim, a oficialização do movimento antigovernista.44 Realizaram enfim pequenos protestos locais antes da Marcha (como o ato de repúdio a uma conferência do professor Darcy Ribeiro, reitor da Universidade de Brasília, na Universidade Federal do Paraná).
Contudo, se em Minas Gerais o chefe do executivo local era um dos conspiradores mais conhecidos e em São Paulo Ademar de Barros apoiara, com Dona Leonor à frente, a Marcha da Família, no caso do governador do Paraná essa questão era mais delicada. Com a renúncia de Jânio Quadros, seu principal apoiador, Ney Braga passou a depender da simpatia e do apoio do governo federal a fim de implementar o projeto de modernização da economia do estado. Sem grandes recursos, o governismo era, naquele contexto, sua única opção.45
Ou, na avaliação mais contundente da líder da UCF:
O Ney Braga estava em cima do muro e não queria se manifestar. Chegamos lá, pegamos uma criança e ela entregou o livro para o Ney. Aí ele se manifestou: rasgou o livro e jogou no chão. Mas ele não se manifestava, estava em cima do muro. Um general que trabalhava conosco e depois morreu, Mattos, foi ao Ney (ele, o Ruy Itiberê e vários senhores, porque trabalhávamos com a Associação Comercial e a Federação das Indústrias.46 Nossas reuniões eram cheíssimas). Eles foram ao Ney e também a vice-presidente da UCF, Leonor Castellano, foi (eu não quis ir porque o Ney não gostava de mim), e o Ney os tratou mal. Disse que sabia o que estava fazendo e não se definiu. Nós queríamos que ele se definisse a favor da Revolução, e ele não se definiu. Só se definiu no dia da Marcha do livro.47
Assim, a preparação da Marcha em Curitiba não se articulou politicamente com o governo do estado. Foi resultado de um trabalho conjunto da UCF e da ACOPA. Qual foi seu elemento de ligação? A preocupação com as propostas de "política educacional" será o ponto em comum entre a União Cívica e a Associação Comercial, ainda que essa temática tenha sido refratada segundo os valores e os interesses de cada setor.
A posição da Associação Comercial do Paraná
A União Cívica Feminina mostrou-se extremamente organizada e atuante na crise de 1964. Manteve, para além de sua mobilização nos círculos católicos de classe média, contatos com parlamentares ligados à conspiração, como se viu, e ligou-se a um diretor da ACOPA - Ruy Itiberê da Cunha.
A ACOPA era um braço do complexo IPES/IBAD no Paraná e o papel da Associação Comercial na organização da Marcha a Favor do Ensino Livre foi, conforme as informações disponíveis, fundamental. Principalmente na divulgação da campanha anti-Goulart através do seu semanário Folha do Comércio, que dava plena cobertura à conspiração (tanto no nível local, quanto no nacional), ressaltando temas relacionados ao movimento.48
Da diretoria da ACOPA,49 o presidente Oscar Schrappe Sobrinho foi o mais atuante. Dele partiu a idéia da criação do Comando Geral das Classes Produtoras - COMCLAP, em reunião realizada no dia 10 de março no Rio de Janeiro, na Confederação das Associações Comerciais do Brasil. Logo depois, no dia 15 de março, compareceu a um encontro, juntamente com o Deputado Rubens Requião (UDN-PR), convocado por Paulo de Almeida Barbosa (presidente da Associação Comercial de São Paulo), para discutir a "calamitosa situação nacional".
A Associação formou grupos organizados para a conspiração segundo as bandeiras locais, com ênfase na Comissão Pró-Ensino Livre, presidida por Ruy Itiberê da Cunha. Essa comissão, composta por diversos diretores e proprietários de colégios particulares ligados à ACOPA, foi criada exclusivamente para organizar os protestos contra as encampações.50 Os donos de colégios particulares, que atuaram no movimento, eram evidentemente os principais interessados em que a proposta de estatização de escolas particulares fosse derrubada. Por seu turno, a questão do monopólio dos livros didáticos pelo governo federal, conforme a proposta do "Livro Único", foi combatida com notável disposição pelo próprio presidente da Associação Comercial, que possuía expressivas ligações com a indústria gráfica (ele era o dono das "Impressões Paranaenses", o proprietário da Revista Panorama e presidia, além da ACOPA, o Sindicato das Indústrias Gráficas). Tinha, por essa via, grande inserção no mercado de livros didáticos.51
Nós somos o povo. Não somos [o povo] do comício da Guanabara, estipendiado pela corrupção. Aqui estão mais de 500 mil pessoas para dizer ao presidente da República que o Brasil quer a democracia, e não o tiranismo vermelho ... Aqui estamos sem tanques de guerra, sem metralhadoras. Estamos com nossa alma e com nossa arma, a Constituição.
Padre Calazans, orador na Marcha da Família. Folha de S. Paulo, 20 mar. 1964.
o livro que os senhores me trouxeram eu não jogo fora daqui, para não sujar o chão do Paraná.
Ney Braga, governador do estado. O Estado do Paraná, 25 mar. 1964, p.4.
Para o Estado de S. Paulo havia uma diferença a ser ressaltada entre a Marcha da Família e o Comício da Central. Com Goulart estavam "gentes dos morros". Na Marcha em São Paulo, não:
A multidão desta vez [era] composta de brasileiros profundamente cônscios de seus deveres e obrigações, brasileiros que, por seu passado, já sobejamente demonstraram a sua capacidade na construção da mais formosa parcela da economia nacional e da mais alta expressão da cultura brasileira.52
O elitismo dessa formulação traduz uma intuição sociológica fundamental. Ela ilustra à perfeição as bases sociais da divisão do campo ideológico no Brasil na primeira metade dos anos 60. A "mais formosa parcela da economia nacional" estava então representada pelo empresariado paulista - a FIESP, o CIESP e, com destaque, a Sociedade Rural Brasileira, SRB -, coordenados pelo IPES. A "mais alta expressão da cultura brasileira", pelo próprio jornal, pelos políticos da UDN e do PSD, reunidos na Aliança Democrática Parlamentar, pelos profissionais liberais e pelas associações de donas-de-casa católicas.
O 19 de março de 1964
Ainda que Sávio de Almeida Prado, líder do IPES e da SRB e um dos organizadores da Marcha, tenha celebrado a manifestação anti-Goulart como "um milagre de fé",53 entre os dias 13 e 19 de março, seis reuniões preparatórias foram realizadas. Originalmente planejada como "Marcha do Desagravo ao Santo Rosário", foi rebatizada no dia 14 para "Marcha da Família com Deus pela Liberdade". A cada encontro cresciam em número e em importância as adesões. Às duas últimas reuniões, nos dias 17 e 18, compareceram ao Auditório do Rotary Club duas mil e quinhentas pessoas.
No dia 19 de março de 1964, quinhentos mil desfilaram na Marcha da Família em São Paulo. "Eles foram chegando aos poucos à praça da República. E, antes das 14 horas, já ocupavam todos os espaços do local. Quando partiram em direção à catedral da Sé, somavam, segundo estimativas da época, meio milhão de pessoas, ou cerca de 10% da população da cidade de São Paulo naquele ano".54 Na primeira fila estavam vários ipesianos, os deputados da UDN Herbert Levy e Conceição da Costa Neves e o senador Padre Calazans; os deputados do PSD Jairo Albuquerque e Cunha Bueno, junto com a freira Ana de Lourdes, o maior incentivador inicial do movimento de protesto contra Goulart. O deputado Antônio Sílvio Cunha Bueno, membro da Ação Democrática Parlamentar, o braço político do complexo IPES/IBAD no Congresso Nacional, encarnava o perfil típico do político conservador contra as Reformas. No seu pronunciamento à multidão enfatizou: "Os brasileiros aqui estão reunidos para dizer ao presidente da República: Basta! Basta! Basta!". Quando a passeata chegou à Sé, depois de percorrer em uma hora e meia o caminho que sai da Praça da República passando pela rua Barão de Itapetininga, praça Ramos de Azevedo, Viaduto do Chá, praça do Patriarca e rua Direita, discursaram entre outros o líder direitista Plínio Salgado e, por último, Auro de Moura Andrade, presidente do Congresso Nacional. Enquanto Plínio clamava por uma intervenção militar ("Bravos soldados, marinheiros e aviadores de nossa pátria, sereis capazes de erguer vossas armas contra aqueles que querem se levantar, aqueles que se levantam contra a desordem, a subversão, a anarquia, o comunismo? Esta manifestação não vos comove?"), o senador pessedista frisava os limites do governo: a legalidade. "Que sejam feitas as reformas, mas ... pela Constituição. Senão, não. Pela consciência cristã do nosso povo. Senão, não".55
O tema da "legalidade" na Marcha paulista - isto é, a defesa da Constituição de 1946 e dos "princípios democráticos" - reencontrou a mitologia do "espírito de 32" (Herbert Levy). Nas faixas dos protestantes, "a favor da consciência cristã do Brasil", como enfatizou o Gal. Nelson de Mello, podia-se ler os previsíveis apelos anticomunistas ("Abaixo os imperialistas vermelhos"; "Reformas sim, comunismo não") e antipopulistas ("Tá chegando a hora de Jango ir embora"; "Renúncia ou Impeachment"); mas também: "32 + 32 = 64".56
O 24 de março de 1964
Em Curitiba, a "Marcha a Favor do Ensino Livre" foi realizada cinco dias depois da Marcha paulista, em 24 de março, "sob chuva torrencial".
Seguindo o mesmo enredo do movimento paulista, aproximadamente trinta mil manifestantes, numa população total de pouco mais de 350 mil pessoas, saíram da praça Santos Andrade (no centro da cidade, em frente à Universidade Federal do Paraná, onde funcionavam os cursos de Direito e Odontologia, entre outros) e se dirigiram ao Palácio Iguaçu, no setor administrativo, com objetivo de conseguir o apoio do governador ao movimento "contra a massificação do ensino". Nas primeiras fileiras, "à frente dos manifestantes, marchavam o Senador Adolpho de Oliveira Franco (UDN), os deputados Jorge Curi, Rubens Requião e Edgar Távora (todos da UDN); vereadores Jobar Cassou (UDN) e João Derosso (PSD)".57 No ato destacaram-se Maria Aparecida Portugal Alves ("membro do comitê executivo da marcha e incentivadora principal desse movimento"),58 Luiza Bueno Gonm e Esther Gaspareto (vice-presidente da UCF), Rui Itiberê da Cunha (presidente do comitê) e os diretores dos colégios dos Irmãos Maristas (católico e privado). No registro fotográfico da Revista Panorama pode-se ler com nitidez uma grande faixa: "Só queremos um livro: a Constituição do Brasil". O governador Ney Braga estava no Palácio Iguaçu e, ao lado de seu secretariado e de diversos parlamentares (em sua maioria da UDN), proferiu enfim o solene discurso: "queremos reformas sim, mas em ordem, em paz. Na realidade, nós temos hoje que decidir, talvez, os destinos do mundo e, por isso, vemos com muita emoção manifestações como esta".59
As marchas não decidiram os destinos do mundo. Mas pesaram efetivamente na decisão em precipitar o golpe de 31 de março.
Destinadas a converter a opinião pública e a mobilizar a "sociedade como um todo" contra a ameaça de uma "república sindicalista" e da política reformista do governo João Goulart, enfim anunciada no Comício da Central, as "Marchas da Família" foram a expressão ideológica prática mais explícita do anticomunismo e do antipopulismo na conjuntura que se abre em agosto de 1961 e se fecha em março de 1964.
Postas lado a lado, as Marchas de São Paulo e Curitiba permitem contudo diferenciar, sob o mesmo enredo, as modalidades diversas da tradução política desse ideário típico da IV República brasileira. Seja em função de variáveis estruturais (a base social das diversas organizações que conduziram as duas passeatas), seja em função de variáveis conjunturais (o papel que cada "setor social" - camadas médias/elites empresariais - cumpriu na idealização/organização dos movimentos), é necessário enfatizar três aspectos opostos das duas mobilizações: i) a forma de expressão, na cena política, do anticomunismo e do antipopulismo: em São Paulo, o anticomunismo manifesta-se através do catolicismo conservador (a defesa dos "valores tradicionais cristãos") e o antipopulismo através do legalismo constitucional; em Curitiba, o anticomunismo revela-se codificado no liberalismo clássico (a defesa da "livre iniciativa" - liberalismo econômico - e a defesa da "liberdade de pensamento" - liberalismo político); ii) o conteúdo por meio do qual se expressa o antiestatismo: na marcha paulista, as questões políticas ocuparam o primeiro plano (defesa da legalidade jurídica contra a intervenção do Estado, através das reformas, na vida econômica e social); na outra marcha, as questões ideológicas (basicamente: a defesa do direito individual de escolher uma educação não laica e de eleger livremente os meios de instrução) ocuparam o primeiro plano; e iii) o lugar (dominante ou subordinado) das classes e de suas organizações políticas em cada fase dos respectivos movimentos - e a repercussão dessa hierarquia sobre o perfil específico assumido pelo protesto resultante. Como se trata de resumir o papel dos agentes sociais na história das duas Marchas, esse ponto exige uma explicação mais pormenorizada.
Em Curitiba, a Marcha a Favor do Ensino Livre contou, desde o início, com a ação conjunta da União Cívica Feminina e da Associação Comercial do Paraná - expressões organizacionais grosso modo das camadas médias tradicionais e das elites empresariais, respectivamente - na idealização e na organização do protesto. Os trabalhos simultâneos e complementares desenvolvidos por essas entidades diante das propostas de política educacional do MEC (enquanto a UCF atuou na mobilização política da "sociedade", a ACOPA cuidou da propaganda ideológica do movimento) impedem que se indique o setor social que detém a hegemonia política e a hegemonia ideológica sobre o processo. Contudo, ainda assim é preciso diferenciar o liberalismo político (antipopular) da União Cívica Feminina do liberalismo econômico da Associação Comercial.
A tradução da oposição ao governo Goulart (mas não necessariamente ao regime populista; o antipopulismo é uma matriz ideológica secundária nesse processo) na linguagem do liberalismo político ("liberdade de pensamento e expressão") decorre em linha direta da representação que as camadas médias urbanas - representadas pelo movimento feminino e católico na UCF - fazem do comunismo "na prática". A questão do "Livro Único" ressalta um tema sensível aos críticos do "totalitarismo": o monopólio de "idéias" pelo Estado (daí a defesa excêntrica, quando se pensa na conjuntura nacional, da "liberdade de cátedra"). A proposta de encampação dos colégios particulares atinge outra prerrogativa sagrada das "sociedades democráticas": a liberdade de pensamento (ou o direito de professar uma religião contra a ideologia oficial dos Estados totalitários). Para a Associação Comercial a questão do "Livro Único" é tão-somente um problema terreno. O monopólio da produção e da distribuição de livros pelo Estado contraria a "liberdade de mercado". A ACOPA bate-se também a favor da "livre iniciativa". Essa é a questão que está colocada pelo movimento dos pequenos e médios empresários diante da estatização das escolas privadas. O liberalismo econômico é aqui a expressão política direta de uma posição de classe.
O caso da Marcha da Família é relativamente mais complexo. Como se viu, se a idealização da passeata, como resposta direta ao 13 de março de 1964, partiu de setores políticos conservadores (contra o "caos") e católicos (a favor do "rosário"), serão as entidades femininas, as associações religiosas e as organizações do patronato em conjunto, coordenadas/financiadas pelo IPES, mas dirigidas pelo movimento das mulheres, que tomarão a si a tarefa de organizar o movimento. A mudança do nome - de "Marcha do Desagravo ao Santo Rosário" para "Marcha da Família com Deus pela Liberdade" - não resultou apenas da sugestão de uma deputada udenista, a fim de incentivar a "participação de todos os credos", mas significou a perda, por parte dos setores apenas católicos, do controle exclusivo do movimento.
A hegemonia política da UCF em São Paulo, da CAMDE no Rio de Janeiro e da LIMDE em Belo Horizonte não se converte, no entanto, em hegemonia ideológica, o que implica dizer que as camadas médias tradicionais têm de compartilhar (de boa vontade, aliás) com os setores de elite, representados no IPES, suas plataformas. A recusa do "totalitarismo" (anticomunismo) e do "governo irresponsável" (antipopulismo) servirá para ambos. A frase estampada no cartaz "Tá chegando a hora de Jango ir embora" funciona assim como uma senha para exprimir duas reivindicações: a defesa da "ordem" contra as reformas e a defesa da "democracia" contra o totalitarismo. Para os setores de elite (a SRB, por exemplo), a manutenção da ordem, nesse caso específico, implica adiar as reformas, principalmente a da propriedade da terra, para fazê-las somente dentro da "legalidade constitucional" (isto é, não fazê-las). A preservação da democracia, por seu turno, não é certamente a preservação pura e simples do regime atual ("populista"). Essa palavra de ordem é um dique que se levanta contra o "comunismo" e seu rosário de males "totalitários": o partido único, a propriedade coletiva, o controle estrito da vida social e o fim das liberdades individuais. Mas é também uma comporta que se abre para uma sorte de "democracia" que foi o regime dos sonhos do conservantismo brasileiro entre 1945 e 1964: uma fórmula política ao mesmo tempo antipopular (porque destinada a reprimir as reivindicações "irresponsáveis") e antipopulista (porque pretende ser imune à "demagogia" e à "corrupção").
1 Este ensaio é resultado parcial da pesquisa integrada "Instituições e comportamento político no Brasil contemporâneo: o Paraná em perspectiva histórica", desenvolvida no Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira na Universidade Federal do Paraná - UFPR. Agradecemos ao General Raymundo Negrão Torres a cessão dos recortes dos jornais O Estado de Minas, Correio da Manhã e O Globo, e ao Professor Paulo Roberto Neves Costa as críticas e os reparos à primeira versão do artigo.
2 Professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná/Departamento de Ciências Sociais; coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira e Editor da Revista de Sociologia e Política (www.scielo.br/rsocp).
3 Professor de Ciência Política na Faculdade Internacional de Curitiba - FACINTER.
4 Apud CARONE (1980), p.249.
5 Cf. CARDOSO (1973), e O'DONNELL (1977). Ainda que ligeiramente diferentes entre si, os autores sustentam que a continuidade do processo de acumulação capitalista na América Latina exigiu a desarticulação dos mecanismos de participação política das classes populares e sua substituição por novas formas autoritárias de regulação social. Para uma crítica empírica ao argumento de O'Donnell, v. SERRA (1982). Sobre o funcionalismo dessas abordagens cf. HIRSCHMAN (1982), p.65-100. [ Links ]
6 Cf. SANTOS (1986). O argumento do autor é basicamente o seguinte: a crise de 1964 resulta do colapso do sistema político, isto é, da radicalização política (no sistema partidário) e da polarização ideológica (no parlamento federal) que, somadas, impediam o Congresso e o Executivo (sem apoio político estável) de produzirem decisões.
7 A bibliografia sobre o assunto é imensa. A fim de ilustrar nosso ponto de vista, citamos apenas alguns dos trabalhos mais representativos (ou atuais) de cada tendência explicativa. Respectivamente, cf.: Gaspari, E. A ditadura envergonhada (2002); [ Links ]FIGUEIREDO, A. C. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política: 1961-1964 (1993); [ Links ]TOLEDO, C. N. de. O governo Goulart e o golpe de 64 (1993). [ Links ]Um bom levantamento das referências sobre o golpe de 1964 pode ser lido em: TRÓPIA, P. Bibliografia sobre o golpe de 64 (1997). [ Links ]Um estudo da literatura da década de 1960 sobre o golpe, e que tem a vantagem de classificar o tipo de explicação oferecida para o evento, é: SOUZA, A. de. Março ou abril? Uma bibliografia comentada sobre o movimento político de 1964 no Brasil (1988). [ Links ]Gláucio A. D. Soares analisa as explicações acadêmicas para o golpe militar de 1964 e as confronta com a visão que os próprios militares ofereceram da conspiração, do golpe e do regime ditatorial. Cf. O golpe de 64 (1994).
8 Ver, por exemplo, SOARES (1968), MONIZ BANDEIRA (1979, 2001), NEVES (1981), RIDENTI (1987), MORAES (1989).
9 Os trabalhos destacados e de maior fôlego até o momento são: DREIFUSS (1981), SIMÕES (1985), STARLING (1986).
10 O número encontra-se em DREIFUSS (1981), p.297.
11 Cit. a partir do verbete MARCHA DA FAMÍLIA COM DEUS PELA LIBERDADE. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós-1930 (CD-Rom, 2000). [ Links ]
12 QUARTIM DE MORAES, J. O colapso da resistência militar ao golpe de 64 (1997), p.129, grifos nossos. Sobre o IPES (e seu congênere, o IBAD - Instituto Brasileiro de Ação Democrática), v. DREIFUSS (1981).
13 A Marcha da Família foi realizada em São Paulo em 19 de março e em Santos e Curitiba no dia 24. No Rio, o desfile conservador tornou-se a "Marcha da Vitória" em 2 de abril. A passeata estava programada para Porto Alegre no dia 3. Alguns dias mais tarde, comemorou-se o golpe em Juiz de Fora. Em 7 de abril os conservadores marcharam em Natal. Em Belo Horizonte e Niterói a Marcha ocorreu em maio. Ver, para as últimas datas, SIMÕES (1985), p.105.
14 Tribuna da Imprensa, 14 mar. 1964. Um noticiário mais ameno sobre o comício da Central pode ser lido em O Globo: o jornal não mencionou o anúncio de dois decretos presidenciais - um que declarava as terras situadas junto às estradas de rodagem ou das ferrovias como suscetíveis de desapropriação, e outro que nacionalizava refinarias de petróleo - mas destacou que "a Sra. Maria Teresa Goulart trajava um vestido azul-piscina, apresentava um penteado que lhe prendia os cabelos no alto ... e chegou sorrindo ao palanque". Treze oradores falaram no Comício das Reformas. O Globo, 14 mar. 1964.
15 Ressurge a democracia. Editorial do jornal O Globo, 2 abr. 1964, grifos nossos.
16 Expressão retirada de "O dever dos militares", editorial de O Estado de Minas, 5 abr. 1964.
17 A declaração pode ser lida em: Para um Brasil melhor. São Paulo: APEC, s.d. Apud TOLEDO (1984). [ Links ]
18 Carlos Lacerda, entrevista a O Estado de S. Paulo, 30 jan. 1962. Apud CARONE (1980), p.249, grifos nossos.
19 SODRÉ (1997), p.107.
20 GORENDER (1997), p.112. Essa discussão - se era o golpe de 64 evitável ou não - é menos bizantina do que parece. Não é um exercício de história contrafactual porque está fundamentada em evidências objetivas e que permitem hipóteses válidas e conclusões (passíveis de discussão, evidentemente). Assim, por exemplo, é bastante difundida na literatura recente a opinião, resumida por Quartim de Moraes, segundo a qual "Goulart dispunha de meios militares de resistência", sendo portanto as razões efetivas do resultado final políticas e sociais. No período janeiro-fevereiro-março as "divisões das forças democráticas e nacionalistas" que apoiavam Goulart (conforme Gorender), de um lado, e, de outro, o desequilíbrio na "correlação política de forças na sociedade brasileira" a favor dos golpistas (conforme Quartim de Moraes) contribuiu decisivamente para o sucesso do golpe de Estado. V. QUARTIM DE MORAES (1997), p.127-8.
21 TOLEDO (1993), p.12.
22 ALMEIDA (1995), p.145. O resultado do plebiscito (9.457.448 votos a favor do presidencialismo e 2.073.582 a favor do parlamentarismo) destacou, nessa conjuntura precisa, o isolamento e a falta de apoio popular dos setores conservadores.
23 FIGUEIREDO (1993), p.183.
24 Cf. O discurso de 13 de março de 1964. In: CARONE (1980), p.234. Goulart referia-se provavelmente "à maneira como as mineiras da 'Liga da Mulher pela Democracia' (LIMDE), que de terços nas mãos, haviam impedido Leonel Brizola (então governador do Rio Grande do Sul e cunhado do Presidente Goulart) de discursar pelas reformas de base". SIMÕES (1985), p.93.
25 30 anos depois. Editorial do jornal O Estado de S. Paulo, 31 mar. 1994, p.A3. Depois do Comício da Central e depois principalmente do discurso no Automóvel Clube o tema da "legalidade" tornou-se crítico. Na edição do Jornal do Brasil de 31 de março se podia ler: "O Presidente da República sente-se bem na ilegalidade. Está nela e ontem nos disse que vai continuar nela, em atitude de desafio à ordem constitucional, aos regulamentos militares e ao Código Penal Militar. Ele se considera acima da lei. Mas não está. Quanto mais se afunda na ilegalidade, menos forte fica a sua autoridade". Editorial. Jornal do Brasil, 31 mar. 1964.
26 Panfleto convocando para a concentração popular em 13 de março na Praça da República.
27 "Famílias em passeata exigiam que os militares assumissem a desgastante tarefa de restaurar a democracia, preservar as instituições, restabelecer a normalidade democrática e pôr fim à descomedida aventura ideológica que atordoava o País". Exército Brasileiro. 37º Aniversário da Revolução de 31 de março de 1964. Disponível em www.exercito.gov.br/NE/2001/03/9817/revol817.htm, acesso em 19 jan. 2004.
28 DREIFUSS (1981), p.291 e 294.
29 Ibidem, p.294-5. De forma mais sofisticada, mas bastante próxima à interpretação de Dreifuss, Saes vê nas campanhas cívicas e nas manifestações públicas, em resposta à ascensão do movimento popular (a principal delas a manifestação antigovernamental de 19 de março em São Paulo), movimentos "de massa" da alta classe média liberal criados, organizados e dirigidos pelas frações mais reacionárias da classe dominante (a burguesia comercial e os proprietários fundiários) "destinados a criar um clima político favorável à intervenção militar". SAES (s.d.), p.499-501.
30 O golpe armado civil-militar: proclamação de Magalhães Pinto (1º/4/1964). Apud CARONE (1980), p.266.
31 SAES (1984), p.107.
32 As duas passagens entre aspas são de SAES (1984), p.107. Todas as considerações seguintes, numa formulação bastante livre, se referem a esse livro e ao ensaio do mesmo autor: Classe média e política no Brasil (s.d.), p.463 ss.
33 RUDÉ (1980), p.25. Não nos passou despercebido o uso anacrônico que fazemos dessa formulação de Rudé. Ainda que o estereótipo dos "sociólogos" para os historiadores, na versão irônica de Peter Burke, seja o de "pessoas que fazem afirmações sobre o óbvio em um jargão primitivo e abstrato, [que] não têm nenhum sentido de lugar nem de tempo, espremem, sem piedade, os indivíduos em categorias rígidas e, ainda por cima, descrevem essas atividades como 'científicas'", decidimos correr o risco. Ver BURKE (2002). Ainda no capítulo "História versus Ciências Sociais", uma discussão interessante não exatamente sobre a compreensão e apresentação dos "dados" (o tópico anterior), mas sobre a lógica da explicação científica em cada um dos campos, ver GADDIS (2003), especialmente cap. 4: A interdependência de variáveis, p.70 a 88.
34 Em virtude da ausência de documentação sistemática sobre o assunto, parte das informações sobre o movimento em Curitiba foram obtidas (além de consulta às atas de reunião das duas entidades pesquisadas - a União Cívica Feminina e a Associação Comercial do Paraná) através de entrevistas. Os entrevistados foram selecionados de acordo com sua representatividade no processo político, seu grau de importância então e sua disponibilidade atual. Foram os seguintes: Dalila de Castro Lacerda, uma das fundadoras da União Cívica Feminina do Paraná e uma das organizadoras da marcha em Curitiba. Dalila era esposa de Flávio Suplicy de Lacerda (reitor da Universidade Federal do Paraná desde fins dos anos 40; Flávio seria logo depois Ministro da Educação do governo Castello Branco); Heron Arzua, consultor jurídico da Associação Comercial do Paraná - ACOPA à época (uma das entidades mais ativas da conspiração), mas que se mostrava simpatizante das reformas de base; Luiz Geraldo Mazza, jornalista da redação de Última Hora em Curitiba. Mazza era favorável às reformas de base e crítico das posições antigovernistas; Noel Lobo Guimarães, empresário e vice-presidente da ACOPA em 1964. Ele foi uma das principais lideranças empresariais da Marcha a favor do Ensino Livre; e, por fim, Rosy Pinheiro Lima, a primeira presidente da União Cívica, ex-deputada estadual pela UDN-PR no final da década de 1940, e uma aguerrida liderança dos setores "revolucionários".
35 A informação consta das atas de reunião de diretoria da União Cívica (de 25 fev. a 31 mar. 1964) e da Associação Comercial (de 8 a 23 mar. 1964).
36 Ativa até hoje, a União Cívica Feminina voltou-se exclusivamente para ações filantrópicas. Cf. Dalila de Castro Lacerda. Curitiba, 2001. Entrevista concedida a Marcus Roberto de Oliveira em 25 jan. 2001. A Associação Comercial continua em ação, mantendo as mesmas "posições pragmáticas em relação à iniciativa privada" (cf. Noel Lobo Guimarães. Curitiba, 2001. Entrevista concedida a Marcus Roberto de Oliveira em 9 abr. 2001), mas pouco politizadas.
37 Ver o depoimento do ex-governador Ney Braga (PDC-PR) em: Ney Braga: tradição e mudança na vida política; entrevista a Adherbal Fortes de Sá Jr. (1996), p.190. A informação foi confirmada pela líder da União Cívica Feminina Paranaense, Rosy Pinheiro Lima, entrevista citada, 29 jan. 2001.
38 Folha do Comércio, 2 a 8 mar. 1964, p.7, grifos nossos.
39 Relatório da 5ª Região Militar do Paraná, abr. 1964, p.4. Citado por Raymundo Negrão Torres, 2003. Entrevista concedida a Marcus Roberto de Oliveira em 4 maio 2003.
40 Revista Panorama, abr. 1964, p.49.
41 Folha do Comércio, 30 mar. a 5 abr. 1964, p.8.
42 No dia 31 de março os bispos da Igreja Católica no Paraná redigiram um documento criticando o comunismo e prestando pleno apoio à intervenção militar. Cf. KUNHAVALIK (1999), p.107. O texto estava assinado por, entre outros, o arcebispo de Curitiba à época, Dom Manuel da Silveira D'Elboux.
43 Dalila de Castro Lacerda lembra que, nas várias reuniões para a organização da Marcha em Curitiba, participaram "várias pessoas de diferentes setores" da sociedade: "Nas reuniões, médicos, enfermeiros, professores e professoras, donas-de-casa, empresários, advogados, todos estavam de acordo com o movimento que fazíamos. Pessoas de bairros, alunos de colégios que nos apoiavam e operários que percebiam o perigo que seria uma mudança de governo". Dalila de Castro Lacerda, entrevista citada, 25 jan. 2001.
44 Cf. Luiz Geraldo Mazza, entrevista citada, 19 jan. 2001. Para o "absurdo título", cf. Ata da Reunião da UCF Paranaense em 17 mar. 1964.
45 Quando renunciou o presidente "Jânio, Ney foi uma das lideranças regionais a favor da posse de Jango e, posteriormente, da volta do presidencialismo. Sua posição política flutuava entre a 'esquerda' (PTB) e a 'direita' (UDN, PSD, Partido Republicano)". Luiz Geraldo Mazza, entrevista citada, 19 jan. 2001. De acordo com o jornalista de Última Hora, o governo Ney Braga foi o que mais obteve recursos junto à "União" em 1963. Para a alta dependência do estado de recursos federais, cf. TORRES (1999), p.82.
46 A Federação das Indústrias do Paraná, assim como todos os sindicatos em Curitiba, encontrava-se na jurisdição do Ministério do Trabalho. Diante disso, sua participação no evento foi discreta, pois, caso contrário, o Ministério poderia, legalmente, intervir e destituir as diretorias. Cf. Heron Arzua. Curitiba, 2001. Entrevista concedida a Marcus Roberto de Oliveira em 12 mar. 2001.
47 Rosy Pinheiro Lima, líder da União Cívica Feminina Paranaense. Depoimento ao projeto "Memória Viva do Paraná"/Museu da Imagem e do Som (MIS).
48 Em janeiro de 1964 a ACOPA organizou, com a Associação Comercial do Rio de Janeiro, o primeiro curso de formação de lideranças políticas da Escola Superior de Guerra em Curitiba, mostrando um grande empenho ideológico na causa golpista. Cf. Noel Lobo Guimarães. Curitiba, 2001. Entrevista concedida a Marcus Roberto de Oliveira em 9 abr. 2001.
49 A diretoria da ACOPA era assim composta em 1964: Oscar Schrappe Sobrinho (presidente), Eros José Alves (secretário geral), Noel Lobo Guimarães, Ruy Itiberê da Cunha, Genésio Moreschi, Asdrúbal Bellegard, Jaime Prosdócimo, João Chalbaud Biscaia (diretores), Heron Arzua (consultoria jurídica) e Ruben Pinheiro (depto. econômico).
50 Cf. Folha do Comércio, 30 mar. a 5 abr. 1964, p.4. Estavam presentes na Comissão representantes dos "colégios Iguaçu, Novo Ateneu, Bom Jesus, Escola de Educação Familiar, Ginásio N. S. Rosário, Divina Providência, Sagrado Coração de Jesus, Sta. Terezinha, São José, Sacré Coeur e Sacré Coeur de Marie". Folha do Comércio, 30 mar. a 5 abr. 1964, p.8.
51 Cf. Noel Lobo Guimarães. Curitiba, 2001. Entrevista concedida a Marcus Roberto de Oliveira em 9 abr. 2001. Além das firmas de Schrappe Sobrinho, a Distribuidora Cummins (presidida por Asdrúbal Bellegard), a Cia. Paranaense de Representações (CIPAR), de propriedade de Noel Lobo Guimarães, e o Bamerindus de Avelino Vieira deram suporte ao movimento em Curitiba. Conforme R. Dreifuss, essas empresas contribuíam para o "complexo" IPES/IBAD, o que bem poderia caracterizar a ACOPA como uma representação desse "complexo" no nível regional. Ver DREIFUSS (1981), anexos.
52 Editorial. O Estado de S. Paulo, 21 mar. 1964, p.3. [ Links ]Apud PEREIRA NETO, A. de F. O Estado de São Paulo e a deposição do Presidente Goulart (1964): um estudo sobre as peculiaridades do liberalismo no Brasil (1999). [ Links ]
53 Declaração citada por DREIFUSS (1981), p.298. Apud DULLES (1970), p.275.
54 Folha de S. Paulo, 20 jan. 2004, p.C2.
55 Todas as passagens entre aspas são da matéria "São Paulo parou ontem para defender o regime". Folha de S.Paulo, 20 mar. 1964.
56 Para a referência à causa paulista cf. SILVA (1978), p.339. Para a frase do ex-Ministro da Guerra de João Goulart e o conteúdo das faixas, v. DREIFUSS (1981), p.298 e STARLING (1986), p.33-4. Para uma crônica detalhada da Marcha em São Paulo, cf. SIMÕES (1985). Não só as faixas eram reveladoras do anticomunismo e do antipopulismo da opinião pública conservadora. As palavras-de-ordem gritadas durante o comício na Sé também: "1, 2, 3, Brizola no xadrez. Se tiver lugar, vai o Jango também" e "Verde-amarelo, sem foice e martelo". Cf. Folha de S. Paulo, 20 mar. 1964.
57 Folha do Comércio, 30 mar. a 5 abr. 1964, p.8.
58 Ata da Reunião da UCF Paranaense em 31 mar. 1964. Aí se menciona o número de participantes da Marcha e a "chuva torrencial".
59 O Estado do Paraná, 25 mar. 1964, p.4. Para a foto e a faixa, v. Revista Panorama, abr. 1964.
Autores:
Adriano Nervo Codato
Professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná/Departamento de Ciências Sociais; coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira e Editor da Revista de Sociologia e Política
Website: http://adrianocodato.blogspot.com/
Universidade Federal do Paraná Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira www.nusp.ufpr.br
Revista de Sociologia e Política, Editor http://www.scielo.br/rsocp
Marcus Roberto de Oliveira
Professor de Ciência Política na Faculdade Internacional de Curitiba - FACINTER.
Departamento de Ciências Sociais – UFPR Faculdade Internacional de Curitiba – FACINTER
Revista Brasileira de História v.24 n.47 São Paulo 2004
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