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Para além da legalidade: A importância pedagógica dos Movimentos Sociais Populares (página 2)

Rosalvo Schütz
Partes: 1, 2, 3

As citações a seguir contribuem no nosso objetivo de definir os MSP:

"Há movimentos sociais que representam os interesses do povo, assim como há os que reúnem setores dominantes do regime capitalista, os quais não tem interesse de questionar de modo absoluto, nem em transformar totalmente as estruturas de dominação. Ao contrário, pois estes setores recebem benefícios da manutenção destas estruturas. No entanto, interessam-se em questionar fragmentariamente a ordem social e propõem reformas parciais, em seu próprio benefício. Um exemplo claro disto consiste na ação dos movimentos empresariais e patronais, que se dirigem à busca de mudanças que os beneficiam ainda mais, deixando intacta a estrutura de dominação fundamental da sociedade. Em contraste, o questionamento feito pelos movimentos populares é mais radical. Podemos dizer, então, que os movimentos sociais tem duas grandes manifestações: por um lado, aqueles que expressam os interesses dos grupos hegemônicos, e, por outro lado, os que expressam os interesses dos grupos populares. Os movimentos sociais do segundo tipo são os que conhecemos como movimentos populares"

Zaniratti, ao se referir ao movimento popular explicita que: a "expressão "populares" representa uma visão de classe oprimida, explorada, não possuidora de capital e submetida à exploração do mundo capitalista" e mais adiante usa a expressão Movimentos Populares para designar "os movimentos que são resultado de uma ação coletiva, organizada, permanente e com caráter classista ou segmento oprimido do ponto de vista econômico, político, social, cultural, racial, de gênero e ainda do ponto de vista de sua opção sexual."

Conceição Paludo busca definí-los assim:

"... o conjunto social de setores organizados das classes populares, cuja praxes se orienta, pela necessidade e desejo de melhorar as condições de produção e reprodução da própria existência e pela perspectiva, mais ou menos consciente, de construção de novos ordenamentos sociais, econômicos, políticos e culturais."

Enfim, ao buscarmos delimitar a concepção de MSP, buscamos, simultaneamente, ampliar e diversificar os atores protagonistas da transformação social. Ao englobar todo um conjunto de Movimentos Sociais, e iniciativas coletivas decorrentes, nos distanciamos da concepção segundo a qual o proletariado seria o único sujeito da transformação. São diversos atores populares, (neste texto privilegiamos os MSP), que se organizam a partir de suas especificidades e lutam pela transformação, buscando atingir, de forma mais ou menos consciente, causas estruturais. Dependendo de sua capacidade de mobilização, formulação e potencial propositivo, podem se organizar em conjuntos, (entre si e com outros atores) hegemonizando processos que podem atingir espaços estruturais, universalizando aspectos e princípios viáveis para toda a sociedade, embora gestados a partir de suas particularidades. Como portadores das mazelas e sofrimentos gerados pela dinâmica da atual sociedade, são todos interessados, de uma ou de outra forma, na transformação e superação desta. Também o Movimento Sindical (proletários) é parte, (mas apenas uma delas!), desta diversidade de movimentos, entendidos no conceito de MSP. Geralmente as bandeiras dos MSP podem ser universalizáveis e suas lutas significam, em última instância, a busca da emancipação humana global. Isto, no entanto, nem sempre se evidencia para os próprios MSP e nem para a sociedade. Na construção desta identidade e de suas potencialidades, pretendemos contribuir com este texto.

1.2. A primazia pedagógica do processo

"Ao revolucionário cabe libertar

e libertar-se com o povo,

não conquistá-lo."

Paulo Freire

Nós humanos somos dotados da incrível capacidade de não orientarmos nossa vida apenas a partir de vivências passadas e das determinações biológicas e instintivas que nos caracterizam como espécie animal, integrada na natureza. Temos a capacidade de projetar o novo, nos colocar objetivos inéditos (individual ou coletivamente) e organizar nossa conduta para atingir estes objetivos. Os projetos de futuro são geralmente expressão de nossos desejos mais íntimos e fortes, e todos nós os temos, mesmo que não estejamos totalmente conscientes destes. Influenciam profundamente na forma como analisamos o presente e suas possibilidades e na interpretação de nossa história. O quanto mais ampliamos o nosso olhar sobre a história, maiores são os horizontes a partir dos quais projetamos o futuro, ou seja, construímos os nossos sonhos. É um movimento circular onde interagem, simultaneamente, nossa leitura da realidade presente, da história e a construção de nossos sonhos e utopias. Esta nossa capacidade de agir teleologicamente, ou seja, por objetivos projetados a médio e longo prazo, é um dos principais elementos que nos permite afirmar a historicidade e a liberdade. É a possibilidade que temos de nos libertar de qualquer pretenso determinismo histórico ou social. Só assim nossa vida tem sentido, estamos sempre em busca de ser mais do que somos (Paulo Freire), da libertação de nossas amarras e da construção de um mundo com mais beleza. A definição da forma como buscamos atingir estes objetivos depende de fatores qualitativos/emotivos/afetivos que os fundamentam, orientados por estes que passamos a buscar instrumentos para alcançá-los.

O potencial sedutor/aglutinador das idéias ou propostas de um Movimento Social, parece depender muito desta capacidade e intensidade com que nele se apresenta o sentido da esperança e da utopia. Ou seja, da sua capacidade de abrir de novos sentidos na vida das pessoas. Seu potencial de convencimento, portanto, depende muito do quanto atinge as pessoas na sua integralidade e do quanto consegue mostrar-se concretizável, ou seja, do quanto seja uma utopia concreta, digna do engajamento e do esforço pessoal e coletivo. O que não significa que os desafios devam ser necessariamente fácil, mas que seus integrantes possam estar convencido do protagonismo pessoal e, portanto, que contribuia na constituição do sentido de sua vida.

Entre a realidade, ou o concebível, em um determinado momento histórico, e a efetivação da utopia/objetivo existe um não-ser-ainda que só pode ser alcançado através da ação concreta, do desenvolvimento de instrumentos e metodologias para atingí-lo. Na verdade, os fins, as utopias, em si mesmas, não passam de abstrações, que somente se efetivam na medida em que se traduzem em meios. É muito interessante perceber, na história, que os meios desenvolvidos para atingir certos fins, por certos grupos ou pessoas, muitas vezes passam a ser utilizados para alcançar outros fins por outros grupos ou pelos mesmos. Inclusive que são aperfeiçoados e/ou adaptados quando da utilização para outros fins e em outros contextos. Desta forma os meios são mais duráveis que os próprios objetivos para os quais foram elaborados, e são os portadores efetivos de conhecimentos humanos de inúmeros indivíduos e gerações. A médio e longo prazo, principalmente para a constituição de culturas e visões de mundo, os meios são mais importantes que os próprios fins (Luckács), embora só tenham sentido quando novamente aplicados a fins. De certa forma todos os acúmulos cognitivos, culturais e técnicos da história da humanidade, estão expressos nos meios, ou seja, nos instrumentos, produtos culturais e materiais, metodologias, procedimentos, etc. Inclusive, muitas vezes, não sabemos mais em função de quais objetivos foram criados!

De todos eles, os que mais carregam consigo a cultura e as visões de mundo são aquelas tecnologias metodológicas que não são produtos materiais concretos, mas que são saberes orientadores das práticas, portanto, que tem mais relação com questões qualitativas do que com quantitativas. Se aproxima do que alguns autores chamam de capital cultural e/ou social, e que se relacionam com nossas estruturas de sentimentos e, portanto, de conduta em relação aos outros, ao meios e conosco mesmos. Tem mais a ver com posturas do que com técnicas. São aspectos relacionados ao imaginário social, ao inconsciente coletivo, e não são ensináveis de forma apenas teórica, exigem vivência e envolvimento da integralidade emotiva da pessoa (Maturana), e muitas vezes os apreendemos/incorporamos de forma inconsciente. Por isto o cotidiano/mundo da vida e a processualidade são seus espaços privilegiados de aprendizagem, interpretação e incorporação.

A preocupação com esta dimensão é nitidamente perceptível na maioria dos MSP com os quais atuamos e em alguns é trabalhada de forma consciente. A relevância da questão se apresentou quando se percebeu que o envolvimento no processo de organização, vivência e luta, tanto da articulação e vivência interna como da relação com outros movimentos e espaços sociais, é a condição para que ocorram transformações substantivas nas condutas pessoais, e sem a qual não surgem e nem se efetivam novas práticas. E, inclusive, que este é um processo permeado de contradições, onde dificilmente há uma libertação integral dos valores hegemônicos. É o que Paulo Freire expressou ao dizer que os oprimidos são hospedeiros da ideologia dominante. Conscientes da importância da vivência e engajamento, e da condição de "hospedeiros" da qual ninguém está imune, muitos MSP passaram a valorizar sobremaneira o engajamento concreto, ou seja, na construção dos meios, como processo formativo, pedagógico. Os momentos de avaliações, estudo, reflexões críticas e planejamento, passaram também a ser encarados como constantes e fortes momentos formativos, mas que só tem sentido no interior de um processo. O conhecimento e as alternativas (políticas, econômicas e culturais) passam a ser cada vez mais concebidas como sendo práticas socialmente construídas. O estudo da história , dos princípios orientadores da sociedade, bem como da construção de alternativas, para os MSP, adquiriu um sentido mais claro com esta perspectiva. Ou seja, entender o processo de dominação/opressão e as formas históricas de resistência e alternativas contriubui para uma melhor projeção da ação e vice-versa. Desta forma pode-se dizer que "este movimento vivo de construção, que vai das lutas à construção cotidiana – as relações consigo mesmo e com os outros -, com o Estado e com a sociedade, que se constitui, (...) a primeiríssima escola de formação," para os MSP.

Esta importância formativa que a processualidade tomou, permitiu a elaboração de parâmetros críticos constantes, que servem como uma espécie de balisadores das ações para os movimentos. Isto significa, que as conquistas só tem sentido, na perspectiva da alteração das relações sociais/qualitativas, e da sua incorporação na cultura do movimento e da sociedade, quando são visualizadas como frutos da construção/conquista coletiva. Quando conseguidas por meio da benevolência de uma ou outra liderança, do Estado ou outra entidade qualquer, tudo permanece como estava. Significa também que, por mais nobres que sejam os fins, se na processualidade constituída para atingí-los, esta nobreza não se manifesta (sacrificialismo) não tem sentido lutar por este objetivo! Assim, por exemplo, um movimento, partido ou indivíduo, que tenha por objetivo construir relações sociais mais democráticas, solidárias, amorosas, e emancipadas, mas que no seu cotidiano está tomado por uma lógica de competição, instrumentalização, onde as pessoas se sentem oprimidas e infelizes, construirá, a médio e longo prazo, exatamente o que está pretensamente combatendo.

Muitos movimentos já estão incorporando esta perspectiva avaliativa em suas práticas. Seria muito interessante, nesta perspectiva, avaliar também o PT (Partido dos Trabalhadores), espaço privilegiado de atuação política da maioria dos militantes dos MSP. Também seria interessante fazer uma avaliação crítica dos valores e práticas que os MSP incorporam na sua relação com espaços institucionais, sejam eles partido, governos, conselhos, etc. Uma vez que estes, enquanto meios, por sua própria institucionalidade, são determinados por procedimentos carregados de valores e concepções de mundo, (são estruturas estruturantes) e, por outro lado, qual é o nível de alteração destes que a atuação dos movimentos e suas concepções consegue realizar, seja direta (nos governos) ou indiretamente (pressão popular).

1.3. Como a sociedade atual se legitima

Os MSP são, por si mesmos, tais como acima definidos, denúncias das mazelas e/ou malvadezas e contradições intrínsecas da sociedade. Isto nem sempre está claro para toda a sociedade e, as vezes, nem mesmo para os MSP. A ideologia dominante procura apresentá-los como sendo expressão de "doenças sociais", interesses corporativistas ou, no máximo, como expressões de "falhas" no sistema social que, por problemas exclusivamente técnicos, ainda não teriam sido solucionados. Desta forma a dinâmica da sociedade, e das exigências para que haja a sua reprodução, não chega a ser questionada.

Por este motivo a sociedade é constantemente apresentada como se fosse resultado da própria natureza humana. Toda a organização social, política, econômica, etc carrega pressupostos aceitos, consciente ou inconscientemente, pelo imaginário coletivo. Tentar entender os fundamentos, as relações sociais disfarçadas, as idéias mais básicas que legitimam a atual sociedade, parece ser uma tarefa fundamental para que se possam encontrar formas de luta mais eficazes e parâmetros (antídotos) para a condução de ações transformadoras.

Aqui buscaremos entender alguns elementos da concepção de indivíduo a partir da qual se estrutura a sociabilidade, a organização política e econômica capitalista. Buscaremos, assim, ao tomar a questão do indivíduo como uma espécie de fio condutor/referência, trabalhar com a legitimação da ação dos MSP num nível que consideramos mais fundamental que a própria dimensão política e econômica, mas buscaremos também entender algumas conseqüências, nestas duas dimensões.

Como se sabe, durante os períodos em que na Europa predominaram os modos de produção escravista e feudal, toda a sociedade era concebida como sendo expressão da vontade divina. Tanto os privilégios da classe dominante como também as origens do poder apareciam como sendo bênçãos divinas. Desta forma eram definidas também as classes dominadas, bem como o seu papel. Ou seja, os indivíduos, ao nascerem, já estavam com o seu lugar social definido e assim permaneciam por todo a vida, a não ser que "por vontade divina" especialmente no caso dos clérigos, acontecesse alguma mudança. Interessante notar, no entanto, que todos os integrantes desta sociedade tinham um lugar, ou seja, não se concebia a mesma sem que incluísse todos os seus integrantes. Mesmo de forma desigual, e injusta, a organização social tinha uma função da qual não se abria mão: garantir a vida/subsistência de todos os seus integrantes. Política e economia, não podiam ser distinguidos da forma como as distinguimos hoje e eram organizadas dentro deste horizonte. Pressupostos parecidos, no que tange a função da organização social, poderíamos encontram na análise de civilizações como as dos Incas e dos Astecas, ou mesmo nas culturas indígenas brasileiras como os Guaranis, Caiganges, etc. Em todas elas o indivíduo não é concebido fora da sua totalidade social. O indivíduo sempre é concebido como parte orgânica desta, e ela tem como função garantir a vida do conjunto de seus integrantes.

As desigualdades e injustiças feudais começaram de ser deslegitimadas simultaneamente com o questionamento origem divina do poder. Questionamento este que começou a ser elaborado na medida em que aquela organização social revelava cada vez mais sua incapacidade de solucionar alguns problemas crescentes. Estes eram relacionados, principalmente, com o crescimento populacional e com o esgotamento da fertilidade das terras, o que dificultava a autonomia dos feudos, exigia uma maior mobilidade social e material e uma divisão social do trabalho mais complexa. Ao assumirem tarefas que não se limitavam mais a aquela determinadas pelos princípios de organização social feudal, enfrentando e solucionando estes problemas, os burgueses passaram a assumir papel cada vez mais importante. Junto com eles foi se elaborando uma nova concepção de mundo e também uma nova concepção de indivíduo. O lugar social começou a ser cada vez mais ser encarado como resultado das habilidades e esforços pessoais, e não mais da vontade divina. Resumindo, pode se afirmar que este processo culminou quando a burguesia, com apoio do insipiente proletariado e de parte significativa do campesinato, se tornou hegemônica. O fato mais notável/visível deste processo foi a Revolução Francesa, e as demais revoluções burguesas que se seguiram pelo mundo. Como o proletariado e o campesinato foram excluídos do processo decisório depois da chegada ao poder, toda a nova organização social que se seguiu, foi baseada nos interesses da burguesia, principalmente nos pressupostos da igualdade e da liberdade, com conteúdo específico, sendo que a fraternidade desapareceu do cenário, não casualmente, junto com o proletariado e o campesinato. A estes restou a liberdade de venderem sua mão de obra à nova classe dominante, que foi se apropriando progressivamente dos meios de produção. A existência de pessoas "livres" (por não terem vínculo e garantia material nenhuma e por estarem livres para vender sua força de trabalho para quem "quisessem"!) por um lado e a existência de pessoas dispostas a comprar a mão de obra na forma de mercadoria por outro, foi uma das condições básicas de edificação da nova estruturação social. E a nova concepção de indivíduo foi decisiva para legitimação e o reconhecimento desta estrutura!

Como era de se esperar, o indivíduo burguês, que queria se ver livre de qualquer tipo de intervenção externa em suas atividades econômicas, e que precisava justificar a suas propriedades, seus direitos individuais da vida, e sua liberdade, principalmente a de comércio, é que vai dar o tom da organização social. Interessante perceber que não se trata de garantir a vida do conjunto da sociedade, nem em garantir deveres substanciais quanto aos outros nem o bem estar de todos. Toda a organização social passa, assim, a ser submetida ao interesse do indivíduo burguês. Há, pois, uma diferença sutil e fundamental: a sociedade não é mais organizada em função do bem estar da coletividade, mas sim para garantir os interesses dos indivíduos, na concepção burguesa do termo. Na medida em que o conjunto da sociedade assume/aceita esta concepção de indivíduo, reconhece também a organização social decorrente. Com algumas variações, esta concepção básica se mantém até hoje.

Esta concepção burguesa de indivíduo passou a ser divulgada/apresentada como sendo a natureza própria de todos os seres humanos. Daí decorre que o contrato entre indivíduos, isolados e atomizados é que passa a ser a base para a constituição da sociedade política, organizada, agora, na forma de contrato: "O indivíduo é a fonte de todo o poder, que é legitimado por convenção. Desta forma, de um só golpe, resolvem-se duas questões: a legitimidade do poder, fundada numa convenção, e a fonte de sua legitimidade, localizada no indivíduo." Pela primeira vez na história da humanidade o conjunto da sociedade pode sentir-se totalmente desresponsável pela miséria de alguns de seus membros. A culpa passa a ser do indivíduo. Assim como também não pode haver limites para a propriedade e o poder pelo mesmo motivo. O Pacto Social não é nada mais do que uma multidão de indivíduos que se unem para garantir seus interesses egoístas.

Thomas Hobbes e John Locke foram os primeiros a dar um estatuto teórico/filosófico para a questão. As condições para a reprodução da sociedade burguesa, aparecem nos mesmos, como sendo direitos naturais e são assim justificados e defendidos, com suas conseqüentes formas de organização política e econômica. Interessante notar que, a liberdade, neste contexto, nada mais significa que o direito de ser um indivíduo circunscrito e separado. O direito à propriedade privada nada mais que o direito a dispor como quiser dos seus bens e rendimentos. A igualdade nada mais que a lei será a mesma para todos embora nem todos sejam iguais. A segurança nada mais que a garantia dada pela própria sociedade do egoísmo, onde cada pessoa pode manter seus direitos individuais e propriedades, enquanto mônada isolada.

O campo da economia, assim, não precisa da intervenção política. A única preocupação política neste sentido tem de ser a de garantir a forma das relações, delegando as questões relacionadas á qualidade material, ou seja, ao conteúdo da relação, unicamente para a liberdade dos indivíduos. O que, dentre outras coisas, permite e legitima a exploração de uns sobre os outros, a utilização dos meios de produção e também recursos naturais apenas para este fim, ou seja, a valorização do valor (capital), o lucro. Adam Smith foi quem, com mais lucidez, explicitou as conseqüências desta concepção de indivíduo para economia. Para ele, o impulso fundamental e, portanto, o que realmente tem de ser garantido, para que haja o desenvolvimento econômico e social é: o egoísmo, a possibilidade de barganha e o interesse próprio. Impulsionando os interesses egoístas de todos chegaremos a uma sociedade melhor, defendia Smith. A partir daí, desenvolveu-se toda uma teoria e uma prática na qual a economia foi se tornando cada vez mais sinônimo de mercado. Ou seja, uma economia baseada no intercâmbio de produtos conforme seu valor de troca, e não de uso, onde as próprias regras vão se tornando autônomas e se sobrepõe a organização social. Isto é coerente com a idéia, de que o interesse individual tem de ser o primeiro a ser garantido. De forma que em "vez de a economia estar imbutida nas relações sociais, são as relações sociais que estão imbutidas no sistema econômico." E a "sociedade tem que ser modelada de maneira tal a permitir que o sistema funcione de acordo com as suas próprias leis." Como a busca do lucro e barganha individual se tornara o objetivo principal da produção, em substituição a subsistência do conjunto da sociedade, não haveria mais necessidade de controle social sobre a economia, e a política passa a ser o espaço de expressão da soma de indivíduos e de seus interesses. Esta "fé verdadeira na salvação secular do homem através de um mercado auto-regulável" com suas conseqüências para a prática econômica e política, não resiste sem a concepção de indivíduo e sociedade gestada pela burguesia.

Um exercício interessante, neste sentido, poderia ser buscar entender a questão da alienação na sociedade atual. É comum ouvirmos afirmações de que a propriedade privada é a causa do trabalho alienado. Observando a mais de perto, percebemos, que a "alienação do homem e, acima de tudo, a relação em que o homem se encontra consigo mesmo, realiza-se e exprime-se primeiramente na relação do homem com os outros homens" Assim, a propriedade privada (privada de alguém, o que é diferente de posse!) só é possível por causa do trabalho alienado, e este encontra seu fim último na alienação do indivíduo humano dos seus semelhantes, da sua espécie/sociedade, e não o contrário. Uma vez que todos os seus sentidos sociais, o processo de trabalho, assim como o produto do trabalho e a relação material e cultural com outras pessoas só tem sentido na medida em que satisfaça o interesse próprio. Pois o indivíduo já não consegue, nem quer, perceber-se como um ser social. Sua felicidade parece depender da sua capacidade de competição com seus semelhantes. Porque haveria de se preocupar com o fato de que é explorador ou explorado, opressor ou oprimido? Ou com o processo produtivo, ou com o bem estar dos consumidores de seus produtos, ou com a proveniência dos produtos que consome, etc?

Pensar que estaríamos mudando as estruturas básicas da sociedade atual ao melhorarmos os salários (melhor remuneração de escravos!) ou que a simples distribuição e ou/tomada dos meios de produção, sem alterar nossa concepção de ser humano, de produção, consumo e felicidade, seria um engano que não passaria de um paliativo que, no máximo poderia nos conduzir a um capitalismo de estado, tal como aconteceu na URSS. Além disto, nesta perspectiva, não só os trabalhadores estão alienados, também os capitalistas e mesmo aqueles que não são nem empregados e nem empregadores, uma vez que estão todos inseridos e orientados por esta dinâmica. Buscar superar esta situação, é pois uma tarefa que remete a superação de um modo alienado de ser da sociedade como um todo, a construção de uma outra concepção de ser humano e de produção, e não uma simples vitória da classe trabalhadora sobre os capitalistas. Em outras palavras, lutar contra o fetiche do sistema produtor de mercadorias, produzido, fundamentalmente, pelo isolamento dos indivíduos e da sua conseqüente perda de consciência social, é muito mais do que luta de classes, embora sempre esteja permeada por ela! A história dos capitalismos de estado, que se autodenominavam socialistas, o tem provado.

Como veremos adiante, esta é uma concepção bastante clara nos MSP, e se traduz na afirmação e na necessidade da construção de novos valores e horizontes e na busca da efetivação destes em suas práticas cotidianas.

2. Níveis formativo/pedagógicos inerentes aos MSP

" O que distingue a liderança revolucionária da elite dominadora

não são apenas seus objetivos, mas o seu modo de atuar distinto."

(Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido)

A emancipação humana implica uma processualidade, a forma de sua realização não pode ser pré-definida e nem mesmo pré-determinada, não se dá de forma acabada, por ser o próprio ser humano inacabado , que busca sempre ser mais e que é fundamentalmente processo/movimento. Assim, também a sociedade e a história, enquanto espaços abertos onde a liberdade humana, tem a possibilidade de se efetivar. A capacidade de inovar sempre, de se adaptar, de agir reflexivamente, são inerentes a todo ser humano e a todos os grupos/sociedades humanas.

Conquistar esta postura reflexiva e autonomia, para os movimentos populares brasileiros, e talvez em todo o mundo, foi, e ainda é, um processo longo e custoso. Na verdade implica uma postura epistemológica/pedagógica, que visualiza o conhecimento e a transformação como sendo construção social, onde só é possível realmente aprender e/ou transformar, na medida em que há participação ativa dos sujeitos e atores envolvidos. Implica em superar uma visão elitista, vanguardista e conteudista de transformação. É só a partir de 1960 que esta concepção passou a ser conscientemente elaborada e praticada nos movimentos populares no Brasil. Até alí, tanto esquerda como direita, encaravam o trabalho educativo com a população, apenas como sendo transferência de conhecimento, ou de "conscientização" para propostas prontas e verdades pré-estabelecidas. Foi Paulo Freire que deu um formato teórico mais explícito para esta questão, traduzindo e expressando o que inúmeras experiências de auto-organização popular vinham elaborando na prática.

O engajamento concreto em espaços sociais e históricos, partindo da explicitação das contradições e, num permanente processo de reflexão-acão, permeado pelo diálogo coletivo, com a simultânea denúncia das situações injustas e anúncio das novas possibilidades, passou a ser resultado deste tipo de postura.

É neste contexto que as experiências individuais e coletivas passam a ter, em si mesmas, um caráter político/pedagógico. Este caráter pedagógico, no entanto, só é possível na perspectiva da ação reflexiva, ele não é automático, pode perder sentido ou não ser percebido se o olhar sobre ele for demasiado sectário e determinista, seja de direita ou de esquerda. Ambos só se distinguem porque "o primeiro pretende "domesticar" o presente para que o futuro, na melhor das hipóteses, repita o presente "domesticado", enquanto o segundo transforma o futuro em algo preestabelecido, uma espécie de fado, de sina ou de destino irremediável." Construir a transformação, portanto, significa assumir esta humilde postura de aprendiz da história. Não há experiência, que não possa ser positivamente significada, mas também não há experiência última. Permanece sempre o espaço aberto para a mudança. E não há mudança sem engajamento concreto e simultânea reflexão e vice-versa.

O que segue, quer ser um ensaio reflexivo, buscando explicitar alguns níveis pedagógicos e políticos, inerentes a própria forma como se constituem os MSP nesta processualidade.

2.1. Construção de novas identidades pessoais

" Onde há vivenciamentos concretos de esperança,

por limitados que eles sejam,

surge um suporte para sonhos maiores."

(Hugo Assmann/Jung Mo Sung)

Os MSP não são normatizadas pelos mecanismos formais/legais dos quais a sociedade se utiliza para manter inalterada o status quo existente. Isto, no entanto, não quer dizer que estes mecanismos não se presentifiquem de forma pontual ou, por vezes constante, em alguns aspectos, nestas organizações. No entanto, o fato de a sua própria estrutura e objetivos buscarem superar a organização e seus pressupostos, faz dos MSP um espaço privilegiado de construção de novos referenciais para os seus integrantes . Nela as individualidades não apenas se dão conta dos mecanismos ideológicos utilizados, como também do quanto a sua visão de mundo e de ação está impregnada pela ideologia opressora. O dar se conta, no entanto, só é possível por que neste meio é possível vivenciar, no sentido mais integral do termo, situações capazes de criar referenciais diferenciados e, portanto, de desencadear novos princípios de convivialiade e ação. Ao contrário do que muitas vezes pressupomos, a justificação racional é um momento posterior. Pois, como nos ensina Maturana, as "premissas fundamentais de todo sistema racional são não-racionais, são noções, relações, distinções, elementos, verdades, ...que aceitamos apriori porque nos agradam." Nos MSP, quando isto não acontece eles perdem sua vigorosidade estratégica e tendem a ir se esvaziando ou a se adequar a estrutura existente, o que também significa o seu desaparecimento.

Com a utilização de meios cada vez mais sofisticados, especialmente através dos meios de comunicação de massa e uma outra infinidade de meios semióticos, sociológico e psicológicos, que interferem sobremaneira nas estruturas de sentimentos e no direcionamento e manejo dos sonhos e utopias pessoais, o sistema está se legitimando em níveis cada vez mais implícitos e inconscientes. Estes métodos atingem cada vez mais a integralidade de pessoa, a tornado mais dependente, alienada e modelada aos padrões de consumo e produção apropriados a reprodução da mesmice da estrutura social existente. Resulta daí o reforço da idéia de indivíduo que, por meio da competição busca realizar a felicidade na aquisição de uma quantidade cada vez maior de produtos carregados simbolicamente pelas propagandas. E mesmo que grande parte da população não tenha acesso a estes padrões de consumo os espetáculos de imagens e de processos de identificação com personalidades mistificadas cria a ilusão de coparticipação nestes padrões idealizados e projetados. Assim, mantêm-se ativado o desejo mimético que, quanto mais forte, mais determinador é da conduta individual e coletiva. E mais difícil se torna, para os indivíduos imersos nesta realidade, perceber qualquer tipo de alternativa que ultrapasse os limites do esforço individual.

Interessante perceber que, por um lado há esta extrema valorização da competitividade individual, como caminho para o sucesso, a fama, o reconhecimento social, o poder econômico, político, etc. Por outro, existe um constante trabalho de convencimento de que as estruturas sociais, tais como são e se apresentam, são expressão de uma naturalidade necessária. Se existem problemas de ordem coletiva estes são delegados a imoralidade de um ou outro indivíduo que, quando corrigido, o problema se solucionará. Isto é aplicado para explicar, por exemplo, tanto a miséria e a violência como a incapacidade de o Estado resolver problemas sociais. Tudo é assim porque este ou aquele é corrupto, não tem iniciativa pessoal, é preguiçoso, etc. Portanto, a negação de dimensões sociais coletivas, solidárias, bem como da autogestão social e política são um lado da mesma moeda, que por outro lado absolutisa a liberdade e competição individual. A falta de trabalho, a miséria econômica, social e cultural bem como a degradação ambiental, neste horizonte, não podem ser percebidos como resultado inerente e necessário a uma estrutura socialmente produzida. Podem apenas ser delegados a indivíduos particulares ou a determinação de leis naturais e necessárias. Escondendo-se as relações sociais que legitimam e sustem as estruturas. Resulta daí uma subjetividade que se sente extremamente impotente frente as determinações estruturais e que canaliza/delimita as suas potencialidades e criatividades para a realização dos desejos restritos aos limites do egoísmo pessoal, ou no máximo, em relação a legalidade estabelecida. Esta é uma condição fundamental para manutenção e reconhecimento do sistema, e os MSP parecem o espaço privilegiado de explicitado, confrontação e construção de alternativas neste campo.

Por não ser determinado pelas estruturas estrutarantes da sociedade e por ser um espaço de redefinição do imaginário e do sentido da vida e das utopias individuais, os MSP tem contribuído na mudança de perspectiva e comportamento das pessoas que deles participam. A superação do indiferentismo e insensibilidade quanto a questões sociais, no entanto, parece depender da possibilidade que as pessoas tenham de experienciar no seu cotidiano, possibilidades reais de transformação , através da sua atuação em uma organização. Esta necessidade de sentir que há a possibilidade de mudança em nossas vidas ou em torno de nós, é o ponto de partida para engajamentos maiores. É muito significativo, o que acontece nos cursos de formação política dos MSP quando se faz a recuperação da trajetória de engajamento pessoal e mesmo de grupo, perceber que as pessoas identificam o início de sua atuação a situações muito pontuais, e que poucas vezes tem relação direta com a intencionalidade de transformações mais estruturais. Momentos de convivência gratuita, prazerosa, que se relacionam diretamente com experiências de superação da carência de contatos humanos, impostos pelos padrões sociais, são, na maioria das vezes, os suportes para engajamentos maiores. Claro que nem sempre estas experiências conduzem ao desejo de mudanças sociais e muito menos ao engajamento. Mas sem estas não há engajamento! No dizer de Assmann: "As necessidades sociais podem tronar-se objeto de desejos coletivos, coesionados a partir de experiências de esperança no cotidiano das pessoas. Sem este suporte experiencial, geralmente sobram apenas propostas centralistas, amparadas em algum mito do Estado ideal, ou ilusões ideológicas sem nexo com o cotidiano das pessoas."

Um MSP terá maior possibilidade de manter-se vivo, a médio e longo prazo, e mesmo de garantir seu caráter transformador, quanto mais conseguir que seus integrantes possam fazer esta experiência de pertencimento, de pluralidade e de transformações vivenciáveis. Se este espaço de vivências de esperanças concretas, como sendo um espaço de uma espécie de conversão de valores, é fundamental, a reflexão constante e crítica destas vivências também é a fim de que não se caia em um voluntarismo. Neste sentido, momentos de reflexão/formação, avaliação e planejamento da própria ação tem sido fundamentais nos MSP, e muitas vezes este aspecto é aprendido a duras penas. Há, no entanto, o outro extremo deste aspecto, onde ocorre uma espécie de passagem forçada para perspectivas mais amplas de transformação, para níveis estratégicos que grande parte das pessoas não conseguem acessar diretamente com argumentos predominantemente racionais. Além de que há uma crença de que todas as pessoas deveriam chegar a estes níveis mais estratégicos de compreensão crítico/racional e um equivalente engajamento, mesmo sem passar por um processo de vivenciamentos concretos, o que muitas vezes tem lavado a uma espécie de "politização" forçada das questões. Talvez por não conceber possibilidades de vivência e engajamentos em questões menos exigentes, muitos movimentos e lideranças acabaram por se afastar da realidade vivencial concreta da população. Esta violência contra o potencial de energias humanas disponíveis acontece de forma similar àquela que a sociedade capitalistas realiza, sendo que esta muitas vezes se utiliza de mecanismos amenizadores, que disfarçam o grau de violência com que isto acontece.

A importância deste nível da conversão de valores pessoais e da conseqüente visualização de um horizonte de sentido e transformação, se evidencia mais quando observamos mais detalhadamente como se legitimam e alicerçam os MSP. As manifestações massivas ou mesmo o seu funcionamento interno, com regras razoavelmente estabelecidas e objetivos razoavelmente claros, pode nos induzir a desconsiderar as condições de possibilidade dos mesmos, nos levando a afirmar, que existe alí um sujeito coletivo, quase que um "objeto empírico unitário" . No entanto, um movimento só se sustenta por ter um base social, por mínima que seja, onde é gestado e legitimado. O seu aparecer só é possível por existir, antes disto redes de relações, nem sempre visíveis, por se darem na informalidade, nos subterrâneos da oficialidade e do imaginário social que, quando coesionados, podem tornar-se visíveis e conscientes. E só daí e com isto que o movimento se constitui. Existe, pois, uma base referencial comum, que possibilita uma identidade, nos e com os MSP, sem a qual o movimento não seria possível, por não poder se constituir e por não ser reconhecido socialmente.

Pode-se dizer que há diversas fases/momentos onde se constitui e fortalece um movimento, onde há uma espécie de divisão social de atividades/tarefas organizadas. Existe, no entanto, um referencial ético-moral comum. A existência de pessoas que compartilhem de um sentido, que tenham experiências existenciais de vivências de esperança comuns a aquelas que fundamentam o movimento, de um "desejo de convivência num projeto comum de vida" , mesmo que não estejam diretamente envolvidos/engajados neste e não tenham clara todas as perspectivas estratégicas, parece fundamental para a legitimação social do movimento.

Por tudo isto, este não é um momento secundário do processo de construção de um MSP e, portanto, do poder popular. Movimentos que não trabalham para fortalecer e diversificar este espaço parecem estar fadados ao enfraquecimento e posterior desaparecimento ou a uma burrocratização conivente com o existente. As propostas políticas que não tem a um sólido fundamento, dificilmente conseguirão assegurar um caráter transformador para as suas ações, como veremos no terceiro item deste texto.

2.2. Explicitação das relações de poder e fundamentação de nova estrutura social.

"Os movimentos são um sinal.

Na são apenas produto da crise,

os últimos efeitos de uma sociedade

que morre. São, ao contrário,

a mensagem daquilo que está nascendo."

(Alberto Melucci)

Vimos acima, que os MSP tem um caráter pedagógico e político para as pessoas que delas participam no sentido que a sua própria formação e dinâmica interna se funda num modo de vida diferenciado daquele que o status quo social pretende impor. No entanto, os novos princípios que os movimentos gestam e a forma como se constituem e lutam tem, também, um caráter político e pedagógico para a sociedade. Ou seja, são um espaço de formação, desafio e renovação tanto para indivíduos como para a sociedade. Suas mobilizações e reivindicações tornam visíveis debilidades do sistema e forçam o poder a tomar posições e, neste sentido, são também uma forma de explicitação das estruturas de poder que, na complexidade da sociedade atual, muitas vezes são difíceis de serem identificados. Em outras palavras, podemos dizer com Melucci que a "ação coletiva nas sociedades complexas impede que o sistema se feche, produz inovação e intercâmbio das elites, faz entrar na área do decidível aquilo que está excluído, denuncia as zonas de sombra e de silêncio que a complexidade cria." Mas também podemos afirmar que enquanto organizações coletivas não determinadas pela legalidade institucional e com intencionalidade crítica em relação ao existente, apontam e introduzem novos valores, culturas e horizontes na dinâmica social, através do capital social/político coletivamente acumulado.

Deste ponto de vista, os MSP não podem ser classificados, como o fazem algumas teorias, como sendo um comportamento desviante, uma patologia social. Pelo contrário, eles denunciam as insuficiências, patologias e injustiças do sistema, e apontam para a necessidade de mudanças no interior destes ou para mudança estruturais. Realmente, nem todos os momentos constitutivos dos MSP apontam diretamente para uma ruptura com a ordem existente, embora haja uma tendência para tal, conforme veremos no próximo item. Pelo contrário, os momentos que dizem respeito a uma melhor distribuição de bens no inteiro do sistema organizativo, a ampliação das possibilidades de decisão e da participação nestes, bem como as ações voltadas para melhorar a posição nos processos decisórios, são momentos fundamentais de aprendizagem, reconhecimento e projeção. Sem estes momentos concretos de iteração social os MSP correm o risco de se perderem em profetismos/seitas ou basismos/pontualismos que perdem progressivamente sua vigorosidade crítica e, por isto, a adesão. Assim, por exemplo, todo o discurso e prática pautado nos direitos de cidadania, é um espaço fundamental de efetivação organizativa onde conquistas e reformas significativas e progressivas podem levar a um melhoramento da qualidade de vida de muitas populações que, sem isto, continuariam totalmente a margem dos sistemas. Mesmo que não alterem diretamente as estruturas de reprodução da sociedade. Ou seja, o fato de haver pressão, e o próprio receio de perda de legitimidade do Estado e o que e quem ele representa, enquanto representante estrutural de interesses estabilizadores e conservadores, forçam a efetivação de direitos. A existência/efetivação destes, no entanto, depende fundamentalmente da capacidade de mobilização, organização e proposição da organização popular. Embora este tipo de questões não contradigam a lógica do sistema, este também pode, caso não haja resistência, subsistir sem estes, e priorizar outras áreas de atuação com os recursos, serviços e metodologias disponíveis.

Não apenas questões e direitos que encontrem no Estado o espaço de negociação entram neste nível de ação e aprendizagem dos MSP. Também a relação capital e trabalho, expressa, por exemplo, nas negociações entre sindicatos, de trabalhadores e empresários, enquanto espaços legalmente constituídos e juridificados. Pois, sabe-se que o nível salarial de uma categoria, ou mesmo de uma região, tem relação direta, com a capacidade organizativa dos trabalhadores e do reconhecimento de suas reivindicações como justas no meio da população em geral. No entanto, melhores salários, não significam nenhuma ruptura com o sistema. Muitas vezes, inclusive, é preciso que o sistema vá bem para que haja salários razoáveis. Também os trabalhadores sabem que, no caso de crises, eles são os primeiros a serem sacrificados, tanto com diminuição de salários como com perda dos postos de trabalho.

Da mesma forma poderíamos analisar diversos movimentos sociais, que tomados os seus objetivos diretos, como a obtenção de moradias, de terra, de trabalho, igualdade de direitos, etc, não são bandeiras que contradizem o sistema atual em sua essência, se atingidos. Mas da sua capacidade de mobilização depende a obtenção ou não destes direitos. E é nestes espaços/momentos que se coloca a possibilidade de elaborações mais profundas (Conforme item1.2). As estratégias de conquista destes direitos materiais podem ser diversas, como greves, ocupação de espaços institucionais, mobilizações sociais/culturais, ou mesmo atos de desobediência civil. Mas há condições para que estas lutas se efetivem e se garantam: a autonomia e o caráter não institucionalizado destas organizações. O que as torna uma espécie de laboratório de construção de outras modos de vida. Sem isto as conquistas ficam, quando muito, no nível da legalidade e dos acordos, mas não se efetivam, ou quando se efetivam é de uma maneira tão pontual, que não interferem na dinâmica social e seus fundamentos. Mesmo um governo popular, sem esta base de pressão, renovação e crítica, não pode efetivar, nem mesmo o que seria possível no âmbito dos limites da atual estrutura estatal, muito menos contribuir para um processo de emancipação humana mais ampla e de superação da própria lógica do Estado.

Deste ponto de vista, os MSP são os meios que dinamizam as próprias estruturas com finalidades conservadoras. Obrigam estas a tratar de temas que sem a mobilização popular não seriam tratados. Assim as funções das organizações sociais, políticas, econômicas etc oficiais precisam ser constantemente legitimas e resignificadas, para poderem continuar sendo reconhecidas. O que nos permite afirmar que estes movimentos cumprem uma função indireta, que não aquela que diz respeito as suas bandeiras. Além disto, a sociedade é muitas vezes instigada a se posicionar a respeito dos temas conflituosos que fundamentam os MSP, instigando, assim, um aumento no nível de politização e criticidade na população. Desta forma os indivíduos são desafiados a saírem de suas "carcassas" individualistas e se posicionarem em relações a questões coletivas, públicas. Este processo, por si só, é uma forma de ir criando um capital político/social que não se restringe ás áreas de atuação direta dos MSP e que não pode ser reduzido e nem explicado no nível da concepção burguesa de indivíduo.

Este aprendizado social, é uma função, pedagógica e política, que os MSP cumprem e com importância estratégica fundamental na perspectiva da fundamentação, convencimento e construção de transformações mais substantivas e estruturais.

Pode-se dizer, também, que os MSP são os espaços privilegiados de elaboração e vivência de novos princípios sociais, diversos daqueles hegemônicos, mesmo que suas bandeiras imediatas não sejam contraditórias com as macro-estruturas. A convivência e construção coletiva interna bem como o enfrentamento da institucionalidade, a relação com outros atores populares e com organizações com interesses contraditórios aos seus, vão forjando formas de organização e de relação, que não se enquadram nas lógicas tradicionais. Percebe-se que estes acúmulos não são lineares e que dependem muito do caráter crítico/antagônico do movimento e da sua capacidade de reflexão (avaliação, estudo, projeção, etc) sobre a prática.

Ao evidenciar papéis que vão além de seus objetivos imediatos, amplia-se a visualização do processo histórico de transformação, dificultando a absolutização, sectarização e os sentimentos de fracasso em torno de questões pontuais. Neste sentido, pode, um MSP não atingir seus objetivos diretos e contribuir tanto ou mais com um processo de transformação do que um movimento que conquiste imediatamente seus objetivos. Justamente por isto que, geralmente há uma grande preocupação com a solução imediata (mesmo que desviada e/ou ilusória) dos objetivos dos MSP, por parte do poder conservador. Por não conseguirem (ou as vezes não quererem!) fazer deste momento uma oportunidade de projeção da ação e dos objetivos em direção da construção de novos modos de vida e relação, que muitos movimentos não conseguem superara seu caráter apenas reivindicativos.

Nos parece interessante ressaltar que os MSPs são organizações coletivas que resultam de um conjunto de aspectos. A existência de uma situação de injustiça/insatisfação é apenas um dos aspectos. Não são raras as vezes em que, mesmo existindo situações estremas de injustiça e insatisfação, não ocorre nenhuma reação coletiva que busque transformar as causas de tal situação. As reações de violência individuais podem ser compreendidas como sendo um dos sinais desta insatisfação que não se transforma em ação coletiva de transformação. Como vimos acima, o trabalho da propaganda ideológica que induz o indivíduo a buscar soluções isoladas e a limitar suas utopias ao nível do interesse egoísta e limitado é um fator que contribui fundamentalmente para a não-visualização/inviabilização de ações com caráter coletivo de transformação social. A maior ou menor capacidade de superação deste fator limitante depende da existência, em maior ou menor grau, de (1)experiências positivas de vivências coletivas que os indivíduos e/ou grupo tenham tido a oportunidade de realizar e de(2) tornar, este acúmulo cultural e coletivo, um impulso/subsídio para a organização do MSP. Neste sentido pode-se entender porque muitas lideranças dos MSP tem uma trajetória de vida comunitárias/coletiva muito rica, seja em espaços religiosos, associativos, familiares, etc, mesmo que este espaço não tenha originalmente nenhuma relação com os objetivos do movimento. Ou seja, parece claro que, pessoas com um capital social e político mais intenso, quando defrontados com situações de injustiça explícita (conflito!), tem uma maior possibilidade de tornar a sua indignação um força coletiva.

Além disto, o capital social e político geralmente não é algo que se constitui de forma visível, institucional. O que significa que muitas formas culturais, econômicas, sociais, políticas, etc, que não estão explicitas em nossas organizações oficiais, ou então, que são reprimidas pelo sistema a fim de que este possa impor/fazer reconhecer-se, podem revelar impulsos/identidades significativas para os MSP. Visto desta forma os MSP são os canais através dos quais dimensões, grupos e questões reprimidas pelo sistema vem a tona, ao mesmo tempo que são uma forma de desenvolver e potencializar estes capitais sociais e políticos, tornando os impulsos para a transformação. São a forma que certos grupos apresentam seus modos de vida e valores, como sendo válidos, mesmo que contraditórias com o sistema. Assim, por exemplo, o Movimento Negro explicita uma cultura reprimida na sociedade e propõe novas formas de organizações e convivência a partir desta; diversas experiências de cooperação, produção, comercialização, autogestão e consumo coletivo, deram se conta de elementos não capitalistas na sua forma de ser e estão construindo sua identidade, e simultaneamente novas formas de convívio econômico, na Economia Popular Solidária; o Movimento de Mulheres pode criticar o atual modelo de convivência entre homem e mulher e todo um outro rol de relações sociais a partir do acúmulo obtido através da reflexão e vivências de feminilidade, da economia doméstica, da sua luta contra o machismo, etc; a agricultura familiar se tornou um setor forte dentro do Movimento Sindical, na medida em que se deu conta de aspectos de sua dinâmica que não se enquadravam nos moldes de economia capitalista; os movimentos de bairros se fortaleceram quando, a partir de suas vivências comunitárias e pastorais conseguiram visualizar e propor o local de moradia como um espaço que ultrapassa as relações de produção e reprodução da sociedade capitalista; movimentos como o MST, o Movimento de Trabalhadores Desempregados (MTD) e o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) procuram não só apropriar-se do capital político já existente, e reprimido, em seus integrantes, como procuram desenvolvê-lo nos períodos de acampamento ou trabalho de nucleação; o movimento sindical adquire novos impulsos onde incorpora ao acúmulo histórico das suas lutas outras questões (como novas formas de economia/autogestão, desenvolvimento alternativo, questões de raça e gênero, etc) e assim por diante. Ou seja, na medida em que existe um capital social e político acumulado e uma situação de injustiça explicitada, acontece a possibilidade da construção coletiva da mudança, de um MSP.

Baseados no capital político e social adquirido em suas lutas específicas, constróem se as possibilidades de identificação com outros movimentos. Esta identidade baseias-se na luta contra a opressão, exploração e desigualdades. E esta identidade permite visualizar um horizonte de transformação com elementos comuns, que vai além das bandeiras imediatas, mas sem o constante relacionar-se com as mesmas também não é possível.

2.2. As propostas dos MSP transcendem a organização político/estatal atual

"O isolamento do indivíduo, sujeito da cidadania,

não se coaduna com os movimentos sociais

populares enquanto sujeitos coletivos."

(Marlene Ribeiro)

Como resultado da luta, organização e convencimento social, não raras vezes, setores e propostas oriundas dos MSP tem conseguido ocupar espaços governamentais/estatais consideráveis, trazendo a tona novas demandas e desafios que antes não entravam na pauta dos movimentos. Por um lado estas situações tem criado oportunidades de intervenção direta em políticas e na efetivação de objetivos dos MSP. Por outro lado, neste momento estes setores vêem-se também obrigados a aceitar as regras institucionais/legais inerentes ao Estado liberal de Direito e zelar pela sua manutenção. Isto tem causado conflitos, tanto nos indivíduos de origem popular como nos movimentos que, através de seus quadros, ocupam estes espaços.

Muitas vezes a não efetivação de bandeiras históricas dos movimentos, por parte dos governos populares, é atribuída a má vontade política dos indivíduos que ocupam os cargos nos governos. Em alguns casos isto pode ser realidade, visto que muitas pessoas que ocupam postos não tem uma trajetória na organização popular, não conhecem sua dinâmica ou vêem na organização popular uma importância secundária, e acabam priorizando ações burocráticas ou se amesquinhando em manobras políticas e interesses individuais e/ou de tendências. A questão que, no entanto, se coloca como sendo mais de fundo é: o que é permitido esperar, por parte dos MSP, da ocupação dos espaços institucionais? Se vale a pena ocupar ou não ocupar estes espaços, ou se são realmente os indivíduos de má vontade os culpados pela não efetivação de políticas, são questões secundárias, e que precisam ser consideradas nas conjunturas específicas. Ou seja, numa estratégia de transformação social ampla, o que significa e que potenciais existem na ocupação de espaços de governo/Estado? O que estamos propondo é que também este momento, a dizer, o da ocupação de espaços de governo/Estado por parte de setores oriundos do MSP, seja encarado numa perspectiva político-pedagógica, como um momento de aprendizagem, principalmente quanto a suas possibilidades e limites. Os MSP já tem aprendido muito com esta experiência, principalmente com os limites, exigências, e capacidade de absorção/neutralização que a estrutura estatal tem. Entender um pouco melhor a constituição e a dinâmica/função desta estrutura poderão fornecer elementos para uma melhor compreensão, otimização e transformação da mesma.

Como vimos acima, a atual organização da sociedade, tem seus fundamentos e lógica regida pelos interesses da classe burguesa. Sua dinâmica foi forjada num processo de luta contra a sociedade medieval/estamental mas também em oposição ao campesinato e ao recém surgido proletariado. Desta forma o direito burguês, também chamado de Estado de Direito, alicerçados no livre interesse individual, (direito á propriedade, ao livre comércio, liberdade de indústria, igualdade formal, etc) enquanto interesse particular de uma classe passou a ser apresentado, e progressivamente aceito, como interesse público com pretensões de universalidade. Toda a política passou a ser reduzida a uma organização estatal que pudesse dar conta e garantir estes interesses. Esta estrutura/dinâmica fundamental persiste até hoje. Ou seja, a atual estrutura estatal tem relação íntima com o modo de produção capitalista e com o conjunto da vida social concebida como uma enorme junção de indivíduos isolados. Assim, os direitos dos indivíduos que, no interior deste sistema, são denominados direitos do cidadão, são direitos individuais e que, por mais diferenciados que possam ser, jamais podem ultrapassar os limites impostos pelas regras do Estado de Direito. Ou seja, as possibilidades de ação no interior da estrutura estatal encontram-se limitadas por regras e regidos por uma lógica de forma que a manutenção e reprodução dos traços fundamentais do estado, da organização social e dinâmica produtiva, sejam garantidas.

Já na constituição histórica da atual estrutura estatal percebe-se a instauração de uma dinâmica garantidora da reprodução da sociabilidade do modo de produção de interesse da burguesia. Duas questões, aparentemente contraditórias, precisavam ser garantidas: a igualdade formal e liberdade/vontade individual, diante da lei e, ao mesmo tempo, o abandono das questões econômicas aos seus próprios mecanismos, sem que pudesse haver nenhuma intervenção da igualdade e da liberdade neste campo. Seria preciso garantir apenas a igualdade perante a lei, na esfera da político, e as outras esferas passariam a ser regidas por regras consideradas naturais, no caso, as leis do mercado, da oferta e da procura. Ou seja, era preciso garantir, por um lado, a igualdade formal para poder esconder as relações sociais desiguais inerentes a dinâmica econômico/material, impossível de se reproduzir, por exemplo, sem que haja exploração e apropriação do trabalho alheio. A divisão (não existente anteriormente!) entre sociedade política, único espaço da liberdade e igualdade, e sociedade civil, espaço da ação atomizada/individual e das "necessárias" relações materiais, passou a se consolidar a partir deste momento.

Neste momento percebe-se também uma delimitação do espaço de atuação do que poderíamos chamar do espaço do Político, pelo qual compreende-se a forma como um povo manifesta a sua unidade e da possibilidade de conduzir sua história coletiva. Pois ao se analisar formas políticas anteriores como a Pólis grega ou mesmo o Feudo medieval, ou outras formas políticas, jamais um povo se furtava de decidir também sobre a produção e as relações materiais mais apropriadas para o seu bem estar, bem como em garantir a sobrevivência dos seus indivíduos, mesmo que em estruturas desiguais. Com a identificação do político apenas ao nível do Estatal abandonou-se esta dimensão presente em todos os povos, qual seja, decidir e incidir sobre a melhor maneira de produzir, trocar, consumir e de garantir a existência/sobrevivência dos seus. Daí que o fenômeno da exclusão social ser próprio da nossa época. A configuração do espaço político, enquanto Estado, como o conhecemos hoje, portanto, é a forma como foi estruturado o Político na nossa época e que corresponde a um determinado modo de produção, baseado na exploração do trabalho, e pressupõe certas relações sociais, baseadas numa concepção de indivíduo atomizado. Conforme a afirmação de Vieira: "a dimensão política das comunidades humanas é um caráter essencial ou constituinte da sua existência, sob qualquer forma em que ela se manifeste, enquanto Unidade Política, o Estado é tão somente uma forma histórica mediante a qual ela pode se apresentar."

Como se sabe, a primeira forma como o espaço do político se estruturou na perspectiva de garantir os interesses da burguesia foi o Estado Absolutista, ou Monarquia Absolutista. Que se encarregou de, pela força, impor uma nova forma de organização política, em oposição a sociedade estametal feudal, em favor dos interesses de ampliação das atividades comerciais e industriais da recém surgida burguesia. No entanto, o poder do déspota, e na figura dele o Estado, por não se encontrar controlado, poderia, de forma arbitrária, intervir na sociedade civil, no campo das assim chamadas "relações materiais naturais", ou seja, da economia de mercado. Era preciso, pois, encontrar uma forma de evitar este perigo, estabilizando e garantindo os princípios/estruturas básicas para tal. A solução foi encontrada na formulação de uma Constituição, que garantisse estes princípios básicos. Constituição esta, pela qual o Estado deveria zelar, mas também submeter-se. Desta forma, garantindo os princípios básicos na Constituição e impedindo o déspota, ou seja, o Estado, de fazer qualquer coisa que ultrapassasse esta, estariam garantidas as condições de existência e reprodução social, bem como o modo de produção em questão. A divisão de poderes foi um mecanismo precautivo importantíssimo, para garantir a não interferência do poder político nos ditos direitos fundamentais, até hoje existentes no início de todas as constituições baseadas no Estado de Direito. Desta forma a Monarquia Absolutista passou a ser Monarquia Constitucional e a "transformação do modelo da Monarquia Constitucional para o da Democracia Constitucional foi apenas uma questão de tempo, pois o essencial nesta distinção não são os substantivos Monarquia ou Democracia mas o adjetivo Constitucional." O importante é que a ação política estava limitada pela formalidade das leis, pela formalidade do direito. Assim, nenhuma aspiração popular pôde mais ser efetivada pelo Estado sem que este cumpra os requisitos/exigências formais que o direito lhes coloca. Estes limites impedem, fundamentalmente, que haja qualquer interferência na lógica da reprodução material da sociedade, fundada na exploração do trabalho, na propriedade privada e na concepção burguesa de indivíduos.

Outro artifício criado e incorporado, as vezes reconhecido e sobrevalorizado até pelos MSP, é a forma de estruturação do chamado Sistema Representativo Moderno. Através deste artifício, onde a população delega o poder popular a representantes, simultaneamente o povo fica excluído das decisões políticas mais importantes e o espaço político torna-se mero espaço de negociação e de neutralização de conflitos fundamentais inerentes a sociedade civil. O parlamento, que nesta estruturação é o espaço político por excelência, passa assim, a ser "o lugar onde se defendem os interesses parciais dos grupos e camadas ali representados" e não um espaço de formulação do interesse público, embora se apresente como tal para a sociedade. Foi assim que os primeiros partidos de trabalhadores, que surgiram no início do século XX na Inglaterra, e que se denominavam partidos de organização de massas, com objetivos prioritários voltados para ativação política da população através de trabalhos de organização e educação, passaram a se tornar partidos eleitorais de massa, onde a vitória eleitoral e a atividade parlamentar foram se tornado prioritárias em relação ao trabalho de educação e organização. O que consequentemente levou a uma crescente aceitação das regras do jogo e da canalização de suas demandas para os espaços de negociação do parlamento. As possibilidades de pressão das massas, cada vez menos organizadas e confusas, uma vez que o discurso e a prática dos representantes partidários se adaptava cada vez mais as regras, significou o fim do seu potencial enquanto instrumento de transformação da sociedade. Ora, deste fato os MSP e partidos de esquerda podem aprender muito para a luta política e social atual!

Ao analisarmos conceitos inerentes e fundamentais desta dinâmica, como o de cidadania, perceberemos os limites deste tipo de ação, voltada prioritariamente para a institucionalidade (que é sempre a institucionalidade do Estado de Direito Burguês!). Marlene Ribeiro mostra que este conceito ambicionado e intencionado por muitos MSP pode ser, ele mesmo, pelas exigências que faz, uma forma de limitar e neutralizar as reivindicações e ações dos MSP. Mesmo tendo presente a historicidade do conteúdo dado á cidadania, ela pode ser percebida, enquanto é colocada como um valor fundamental com pretensão de ser portadora de utopias universais, como um instrumento de dominação e neutralização de todas formas de vida, sociedade e organização que não se coadunem com as estruturas de organização do poder. Assim, na cidadania ateniense ele era um instrumento conceitual através do qual 90% da população, especialmente mulheres, trabalhadores e escravos eram excluídos das decisões políticas. Nas cidades-república italianas os limites traçados pela cidadania não incluíam mulheres, camponeses e pobres. Na concepção de cidadania gestada pelas revoluções burguesas (que geraram o Estado de Direito, acima abordado!) a cidadania fica vinculada ao conceito de Estado-nação, que representa os interesses da burguesia (indivíduo dotado de razão e propriedade). Aí o discurso sobre Estado, democracia e cidadania só se torna aceitável e legitimado através da "separação entre a realidade política e as realidades econômica e social, porque nestas a materialização das desigualdades é incontestável" Também no dito Estado social (como nos Estados de bem-estar social europeus e mesmo em governos populistas como o de Getúlio Vargas, no Brasil), onde os direitos dos cidadãos parecem ter caminhado para uma universalização, eles pouco significaram além da desmobilização dos movimentos sociais, principalmente pela forma individualizada que os direitos eram concedidos, e eram considerados cidadãos somente os que tinham ocupações reconhecidas em lei. A conquista coletiva, a solidariedade, a cooperação e a emancipação humana, bandeiras dos MSP, não podem ser contempladas por este tipo de políticas legitimadas pelo discurso da cidadania. A cidadania, neste caso, é uma forma de neutralizar, excluir qualquer princípio que não se coadune com o pressuposto do indivíduo burguês, onde a "igualdade não existe para além deste espaço em que os homens se encontram como cidadãos políticos e não como pessoas privadas." Assim, lutas protagonizadas pelos MSP, que trazem consigo bandeiras e princípios como as dos agricultores familiares e sem-terra, a cultura afro-brasileira, dos movimentos indígenas, das associações de moradores, etc, trazem elementos que não são tematizáveis no espaço de institucionalidade que traça os limites da cidadania. Se limitadas pela atual concepção de cidadania, provavelmente perderão seu potencial transformador.

Desta forma, pode-se dizer que, mesmo que existam muitas fendas no interior da organização política atual, onde os movimentos sociais podem interferir com conquistas substantivas, e mesmo que a participação nestes espaços seja fundamental para o desvelamento de sua dinâmica e para a colocação de novos desafios, as principais bandeiras, ou seja, aquelas que propõe uma nova forma de sociabilidade, de relações de poder, de produção etc, não são tematizáveis e muito menos efetiváveis através dos atuais mecanismos da estrutura estatal. A consciência disto é fundamental para que não se criem ilusões nos movimentos e na sociedade e para que não se perca a perspectiva da superação da atual forma de Estado. Mas também, para que os MSP jamais deixem seus sonhos se aprisionarem pelos trilhos da institucionalidade.

Havendo esta compreensão dos limites e, portanto, dos cuidados a serem tomados na ocupação das estruturas institucionais atuais, certamente também haverão outras prioridades na própria ação institucional dos movimentos e forças populares. Inclusive muitas ações, no interior dos limites da estrutura de Estado atual, só podem ser visualizadas quanto da clareza desta questão. Pois, não raras vezes, por não haver esta compreensão, há um empenho muito mais forte no revigoramento de estruturas institucionais/estatais do que na construção e fortalecimento de instrumentos de poder popular . A autonomia da organização popular, em vez de ser estimulada, é propositalmente atrelada a estruturas estatais. Inclusive pessoas e movimentos com sinceras intenções de transformações mais profundas, são ingenuamente cooptadas por esta lógica, por não conseguirem realizar uma reflexão crítica mais profunda sobre a questão.

Este debate tem uma importância fundamental para os MSP no Brasil. Pois, analisando a história dos mesmos nas últimas décadas percebe-se um período de assenso muito forte durante os anos da ditadura, onde, dentre outras coisa, percebia-se com mais clareza as forças contrárias aos seus interesses. Mas, também foi um período em que os limites colocados pelas institucionalidade burguesa não interferiam diretamente no modo de ser e se organizar dos movimentos. O que permitiu o surgimento de inúmeras temáticas, metodologias, valores, horizontes e lideranças que foram sendo os alicerces para organizações populares com grande poder de influência na sociedade. No entanto, a partir do final da década de 80, passou a haver uma progressiva priorização da ação pelos e nos espaços institucionais. Não por acaso passamos a ter um período de forte descenso nos MSP.

A passagem de um período mais reivindicatório para um período também propositivo, nem sempre veio acompanhado de uma superação da visão paternalista de Estado. Este continuou sendo encardo como sendo o local, por excelência, o "o carro chefe", do fazer político e, portanto, da transformação. Aos poucos o processo de confronto/aprendizagem com as estruturas estatais vem rompendo com a idéia de que todos os problemas econômico/sociais podem ser resolvidos sem que se altere a estruturação básica do espaço do Político na atualidade, visível nas estruturas de Estado atual. Aos poucos também os MSP foram aprendendo que para conquistar suas bandeiras não bastam as leis e os caminhos legais, mesmo que num governo popular, mas que as ações que não se enquadram nos limites da legalidade burguesa, são a forma mais eficaz de trazer suas exigências à baila e efetivá-las. Inclusive que as conquistas nos espaços institucionais geralmente são maiores quando acompanhados de ações extra institucionais.

O caso da cidade de Porto Alegre é emblemático. Com um pujante Movimento Popular, baseado principalmente no Movimento Comunitário, no final da década de 80, o campo político capitaneado pelo Partido dos Trabalhadores, que encontrava sua principal base nos espaços propiciados por este movimento, conquistou o governo da Prefeitura da cidade. A organização popular permitiu a sustentação/legitimação de ações inovadoras, como o caso do Orçamento Participativo, a intervenção direta nas empresas de transporte coletivo, organização de compras coletivas, principalmente de produtos alimentícios, dentre outras ações. O que significou um claro início do enfrentamento de questões estruturais ou pelo menos de inversão de prioridades, baseadas no poder econômico e na estrutura política opressora. Estas ações, e principalmente o Orçamento Participativo, como exercício de democracia direta e desmistificação das relações de poder e otimização dos recursos e investimentos , foram fundamentais para a afirmação do chamado governo popular. Aos poucos, no entanto, foi se percebendo um progressivo enfraquecimento da forca aglutinadora e mobilizadora do movimento popular, especialmente nas associações de moradores, principal base de sustentação do caráter popular da administração. Com isto, todo um discurso e prática que encontrava ressonância e realidade nas vivências e reflexões que estes espaços proporcionavam, direta e indiretamente, a um amplo número de pessoas, foi sendo enfraquecido Isto tem criado uma dificuldade muito grande de inovação por parte da administração para aperfeiçoar/aprofundar o caráter transformador dos instrumentos já criados e também no estabelecimento de novos. Haja visto que o espaço não institucional, onde o novo era gerado e constantemente re-trabalhado, além de ser um salutar crivo crítico para as ações de governo e o local dos, atualmente quase desaparecidos, núcleos de base do Partido dos Trabalhadores, tem se enfraquecido a passos largos, cedendo espaço à forcas conservadoras. Por isto, não havendo nenhuma alteração na tendência atual, a dizer, de progressivo enfraquecimento da organização popular autônoma e não surgindo de novas formas de organização popular capazes de assumir este papel, apenas dois cenários se visualizam: a derrota eleitoral, ou a adequação cada vez maior ao existente e a qualquer outra forma de administração. (Ou as duas coisas. Menos mal se for apenas a derrota eleitoral!) Pois, mesmo que se mantenha um discurso aparentemente transformador isto já não será mais possível efetivamente, uma vez que faltarão elementos crítico/inovadores e a correlação de forças, onde a organização popular tem um papel decisivo, não o permitirá. Com isto experiências como a do Orçamento Participativo não terão tido a oportunidade de serem aprofundadas enquanto instrumentos de transformação das estruturas de poder, o que já pode ser percebido claramente no desgaste que a proposta está sofrendo atualmente no meio popular. Além de que um eventual governo de direita poderia mantê-la quase em sua integridade, uma vez que o próprio processo e nem as demandas apresentadas, comprometeriam ou se contraporiam a este eventual governo.

Segundo Zaniratti esta perda da capacidade dinamizadora e combativa dos Movimentos Populares de Porto Alegre demonstra, por um lado, que não havia um Projeto Estratégico, com o qual o movimento poderia orientar-se mais a longo prazo em vista, por exemplo, do controle popular do Estado. Além disto, nos parece importante destacar também que faltou, a uma grande maioria dos ocupantes das estruturas burocráticas, uma visão de fortalecimento do poder popular autônomo. O que se fez, mesmo que assim não se intencionasse, foi a extensão/adaptação de estruturas estatais, de modo a capacitá-las a incorporar e neutralizar as questões críticas e estruturais que estavam aflorando nos MSP. O que significa uma espécie de auto-suicídio, um vez que desta forma, a força, a identidade, propostas e posturas construídas ao longo de diversos anos de organização e luta coletiva, o que ia muito além da democracia liberal, foi se diluiu quando da chegada ao governo. Três fatores teriam contribuído fundamentalmente para isto: "a perda brusca, quantitativa e qualitativa, de lideranças que representavam sua direção" que passaram a ocupar cargos dentro do aparelho estatal, (grande parte se ocupando mais com o reconhecimento e afirmação do espaço institucional do que com o poder popular!) e a dificuldade de formar novas; "o aumento da desarticulação das lideranças com suas respectivas bases, gerando diminuição de lutas por conquistas imediatas", o que é próprio das estruturas estatais, organizadas para não se ocuparem (abstrair) das questões que dizem respeito á relação/reprodução material das pessoas, o que certamente diminuiu o potencial de adesão e mobilização e; que o Orçamento Participativo provocou um esvaziamento da organização coletiva autônoma, podendo se dizer que provocou uma mudança qualitativa na relação entre os cidadãos com o poder público, antes pautado por instâncias coletivas dos movimentos: agora "o cidadão participa como um sujeito individual, relaciona-se diretamente coma a burocracia estatal" , o que, como vimos acima, em nada colide com o pressuposto de indivíduo que fundamenta a atual sociedade. Portanto, o que surgiu como novo, fundamentado na organização popular, justamente pelo enfraquecimento desta organização já não pode ser mais do que o velho revigorado, mesmo que apresentado com cara de novo.

A questão da participação popular nas decisões políticas vem, desta forma trazendo aprendizados interessantes. Pois nas últimos anos tem se aberto cada vez mais espaços para que os cidadãos ou, por vezes os próprios MSP, participem na elaboração e mesmo assumam tarefas na execução de políticas. Mesmo considerando o potencial positivo, no sentido crítico/pedagógico, destacado no item anterior, é preciso considerar que a população está sendo chamada cada vez mais a decidir questões cada vez menos fundamentais. Ou seja, decididas as questões fundamentais, que aparecem e se justificam como estruturais ou como técnicas, não há problema na participação, uma vez que os trilhos da legalidade e, portanto, das condições de reprodução do status quo, estarão garantidos. Ocupando-se, inclusive, o potencial criativo das organizações, que, muitas vezes, neste processo vão perdendo sua capacidade crítica e incorporando os pressupostos fundamentais da atual organização social, restringindo o campo de ação aos limites impostos. Assim, o próprio processo participativo nos limites do Estado de Direito, é uma forma de neutralização e domesticação dos potenciais transformadores dos MSP. Alguns resultados da postura acrítica diante destes processos são perceptíveis na afirmação prática de posições que põe na istitucionalidade o "carro chefe" da transformação social, na crença de que "os processos de transformação podem se dar sem mexer em questões estruturais", o que muitas vezes resulta numa excessiva disputa interna por recursos e posições pessoais e na não priorização da constituição e fortalecimento de espaços de construção e formulação, sendo que em muitos MSP e seus espaços de atuação "quase não existem mais coletivos onde se possa fazer um reflexão, pensar juntos"

Partes: 1, 2, 3


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