A desigualdade social exacerbada encontrada ainda hoje em toda América Latina é vista como um dos maiores problemas a ser resolvido pelo poder público. Mas, o que dizer de uma estrutura de estado que enxerga tal desigualdade em seu aparato jurídico? As transições do autoritarismo para a democracia política ocorreram em praticamente todos os países latino-americanos, mas o sistema de justiça desses países se manteve como um sério empecilho ao avanço e consolidação da democracia. Dispositivos igualitários constitucionais foram criados, mas os códigos de conduta se mantiveram com sérias limitações hierárquico-institucionais (Nóbrega Júnior, 2005). O Código de Processo Penal e o Código Penal brasileiro trazem exemplos disso. Encontramos neles alguns pontos que mantiveram uma forma de "enxergar" a sociedade brasileira como desiguais em seu aspecto jurídico. O tratamento desigual aos desiguais se manteve. Um choque com a Constituição de 1988 em seu componente liberal.
Como exemplo desse choque tem-se o quesito dos crimes contra a vida que "são de exclusiva competência do júri (art. 153, parágrafo 18, Emenda Constitucional nº 1). O Código de Processo Penal estatui que se houver outros crimes em conexão com aqueles que estão sob o poder jurisdicional do júri, todos serão julgados por este (art. 78, I, Código de Processo Penal). Entretanto, o Código Penal não classifica homicídio com intenção de roubo (latrocínio) e seqüestro seguido de morte da vítima entre os crimes contra a vida (art. 157, parágrafo 3, e 159, parágrafo 3). Os crimes contra a vida são somente os crimes tipificados pelos artigos de 121 a 128: homicídio, aborto, infanticídio, instigação ao suicídio e genocídio. Estes, portanto, são os crimes da alçada do júri, segundo a lei processual. O latrocínio e o seqüestro seguindo de morte da vítima são julgados por juiz singular (...) não há qualquer razão para que o latrocínio e a morte de vítima seqüestrada sejam excluídos da competência do júri por serem classificados como crimes contra a propriedade e não contra a vida (...) A única explicação para os tratamentos desiguais estipulados pela Lei processual parece residir no "tipo" de criminoso que se presume estar envolvido no latrocínio e no seqüestro: os marginais, os criminosos violentos pertencentes às classes mais baixas." (Kant de Lima, 1995: pp. 81-2. Negritos meu).
Há aí uma "categorização", uma interferência do Estado indicando quem deve ser julgado pelo Tribunal do Júri e quem não deve. Os ditos criminosos violentos podem ser tipificados segundo a ciência positiva criminal que teve origem em fins do século XIX e migrou para o Brasil no período de transição do Império para a República, conhecida como Antropologia Criminal sob os estudos de Cesare Lombroso (1835-1909) e seus militantes. Lombroso influenciou toda uma geração de juristas brasileiros, como o ilustre Tobias Barreto, onde os seus estudos ficaram conhecidos na Escola Positiva, uma linha de pesquisa onde o aspecto biológico do indivíduo prevalece sobre a perspectiva sociológica do crime (Alvarez, 2002).
O presente artigo vem contribuir com o debate, destacando como os ensinamentos da Escola Positiva de Lombroso ainda se fazem presente na doutrina jurídica brasileira, onde o Código Penal – aqui exemplificado pelo crime de Latrocínio e o seqüestro seguido de morte da vítima – está profundamente permeado por àquela lógica. O trabalho está dividido em três partes, além desta introdução. Na primeira parte, destaco as idéias de Lombroso (Alvarez, 2002) e sua influência na criminologia brasileira numa perspectiva histórica. Em seguida abordo os artigos 157, parágrafo 3 e 159, parágrafo 3 do Código Penal brasileiro, que dizem respeito ao crime de Latrocínio – homicídio com intenção de roubo – e seqüestro seguido de morte da vítima respectivamente, e uma possível explicação para a negação por parte do estado ao acesso ao Tribunal do Júri[1] aos indivíduos acusados por estes crimes. A terceira parte destina-se a abordagem da filosofia estudada como sendo incompatível com a democracia contemporânea. No final, a conclusão.
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