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Desigualdade Jurídica no Brasil (página 2)

José Maria Nóbrega Jr

Lombroso construiu toda uma "ciência" do crime que tinha como grande pretensão rivalizar com a Escola Clássica, que teve sua origem no século XVIII com as idéias de Cesare Beccaria (1738-1794) e Jeremy Bentham (1748-1832). A perspectiva de Lombroso e seus colaboradores[2], da Escola Positiva, destacava um determinismo biológico na prática criminal em vez de definir de forma legal a prática do crime. A Escola Clássica define a ação criminal em termos legais, enfatizando a liberdade individual.

Formado em medicina, influenciado por teorias materialistas, positivistas e evolucionistas, Lombroso ficou conhecido mundialmente por defender a teoria que ficou conhecida como a do "criminoso nato". Partiu do pressuposto de que os comportamentos humanos são biologicamente determinados, baseando-se em afirmações sobre dados antropométricos. Sua teoria evolucionista afirmava que os criminosos eram indivíduos que reproduziam física e mentalmente características primitivas do homem. Tal abordagem daria condições ao criminologista analisar os indivíduos criminosos através de dados antropométricos indicando pessoas que, hereditariamente, estariam inclinadas a prática de determinados crimes (Alvarez, 2002: p. 679).

Apesar de considerar causas sociais como sendo passíveis influenciar os indivíduos à prática de crimes, Lombroso "nunca abandonou o pressuposto de que as raízes fundamentais do crime eram biológicas e que poderiam ser identificadas a partir dos estigmas anatômicos dos indivíduos. Em termos gerais, reduziu o crime a um fenômeno natural ao considerar o criminoso, simultaneamente, como um primitivo e um doente" (Alvarez, 2002: p. 679).

Lombroso e seus seguidores rejeitavam a noção de responsabilidade moral, que seria incompatível com o ideal de defesa social, e enfatizaram a individualização da punição, a qual deveria ter por referência as características particulares de cada criminoso (Alvarez, 2002: p. 681).

A Antropologia Criminal desenvolvida pelos estudos de Lombroso e seus colaboradores fez-se universalizada na Europa de fins do século XIX através de vários congressos sobre o tema que passaram a interferir numa nova perspectiva sobre o crime numa sociedade capitalista. Apesar de várias resistências no meio jurídico europeu, essas idéias foram bem acalentadas na doutrina jurídica brasileira.

João Vieira de Araújo (1844-1922) é considerado por vários historiadores do direito penal (Moraes, 1939; Castiglione, 1962) o primeiro a publicizar as idéias de Lombroso e de sua Escola através de suas aulas na Faculdade de Direito do Recife e de textos em revistas criminais importantes no Império brasileiro (Alvarez, 2002: pp. 682-83). Seus esforços foram no sentido de uma "modernização" do estudo de direito criminal, destacando os estudos da Escola Positiva como sendo o que havia de mais avançado em estudos criminológicos no mundo. Após ter sido recepcionada no Recife, as idéias lombrosianas tiveram o adepto de inúmeros outros juristas que passaram a divulgar as novas abordagens ditas "científicas". Clóvis Beviláqua, José Higino, Paulo Egídio de Oliveira Carvalho, Raimundo Pontes de Miranda, Viveiros de Castro, Aurelino Leal, Cândido Mota dentre outros, publicaram artigos e livros em que são destacados e discutidos conceitos e autores da criminologia e da Escola Positiva de direito penal. Muitos deles se tornaram propagandistas das novas idéias, tornando-as obrigatórias nos debates sobre direito penal (Alvarez, 2002: p. 684).

Com isso, não quero afirmar que a única fonte de estudos de direito penal tenha sido a Escola Positiva da Antropologia Criminal de Lombroso. No Brasil houve o ecletismo, mas houve um grande destaque às idéias positivistas. Clóvis Beviláqua argumentou a favor da visão biológica, apesar de ser simpatizante da Escola Sociológica[3], mostrando ecletismo em seu argumento:

"Estou convencido de que há um pathos criminogêneo, um morbus que impele ao delito, qualquer que seja a sua natureza, e contra o qual a pena se revelará impotente na maioria dos casos; mas essa anomalia é menos comum do que se poderia supor; estou igualmente convencido. O que mais ordinariamente se depara na vida, é a combinação de certas condições fisico-psíquicas apropriadas à perpetração do malefício, com certas outras condições sociais que fecundam esse germe individual, se é que muitas vezes não o fazem produzir-se." (Beviláqua, 1896: p. 17).

O importante é salientar que as idéias positivistas se fizeram firmes e impactaram decisivamente no corpo jurídico brasileiro. Quando se analisa as obras jurídicas brasileiras no final do Império e na Primeira República, diga-se de passagem, um período de extrema complexidade por se tratar de uma transição, é muito forte a presença de Lombroso em grande parte daquelas obras. "Mais do que a concordância em torno da contribuição de Lombroso, o principal ponto de convergência do discurso da criminologia no Brasil, ou da Nova Escola Penal como passa a ser chamada com mais propriedade pelos autores nacionais, é a idéia de que o objeto das ações jurídica e penal deve ser não o crime, mas o criminoso, considerado como um indivíduo anormal" (Alvarez, 2002: p. 688. Negrito meu).

João Vieira de Araújo (1889) destaca de forma contundente essa tendência nos estudos criminológicos:

"(...) entregar ao júri assassinos, ladrões, estupradores, falsários, enfim o julgamento dos crimes comuns é sancionar a impunidade e a impossibilidade de praticar qualquer sistema racional de repressão social que se funde nos ensinamentos da ciência e no conhecimento exato da natureza real do delinqüente" (Araújo, 1889: p.330).

Com o fim da escravidão no Brasil, mas não da extrema pobreza da ampla maioria da população, o ideal das elites republicanas em construir uma sociedade organizada em torno de um modelo jurídico-político contratual defrontou-se com uma população excessivamente disforme e multivariada. O controle social nas mãos dessa elite se fará então necessário, e a criminologia será um instrumento fundamental nesse controle (Alvarez, 2002: p. 693).

No contexto estamental e restritivo da sociedade escravocrata, a cor da pele funcionava como índice tendencialmente absoluto da situação servil. Na sociedade competitiva advinda com o capitalismo nacional, a cor da pele passa a funcionar como índice de primitividade, colocando tal aspecto em relação ao padrão humano definido como útil e produtivo no racionalismo ocidental, implementado por suas instituições fundamentais – como as instituições jurídicas o são. O indivíduo negro ou mulato que no primeiro momento da formação da sociedade brasileira funcionava como um elemento de inexorável prestabilidade servil, num segundo momento, com a ascensão de uma sociedade capitalista, onde a competitividade se impõe entre iguais, o desqualifica como tal, pois o considera como "imprestável" para exercer qualquer atividade relevante e produtiva no novo contexto, constituindo a nova perspectiva da marginalidade (Souza, 2003: pp. 57-58). Esta perspectiva também terá reflexo no aparato jurídico, sobretudo no que diz respeito ao direito penal.

O republicanismo revela na sua igualdade jurídica um componente que passa a ser visto com desconfiança pela elite dita republicana. A criminologia resolverá este impasse. Para os criminologistas brasileiros, baseados nas idéias de Lombroso, os ideais de igualdade não poderiam afirmar-se em face das desigualdades percebidas como constitutivas da sociedade brasileira. A pressão para a mudança no Código penal de 1890 nesse quesito levará toda a primeira república (Alvarez, 2002: p. 694).

O maior expoente da crítica à igualdade jurídica na primeira república foi o médico Nina Rodrigues. Em seu ensaio As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil (1938), expôs as principais conseqüências, no campo jurídico-penal, que poderiam ser deduzidas da aplicação rigorosa das idéias da antropologia criminal à realidade brasileira. As características raciais eram destacadas como sendo fundamentais para a prática do crime, fortalecendo a crítica do autor ao modelo liberal encontrado no Código Penal de 1890. A distinção regional, racial, étnica deveria ser levada em consideração nos processos, códigos e procedimentos do direito penal. A partir da desigualdade encontrada entre as "espécies" de seres humanos é que deveria ser aplicada a lei. O grande erro, para Nina Rodrigues, era o fato de tratar igualmente indivíduos desiguais.

A maior preocupação dos juristas estava em tratar desigualmente os desiguais. O modelo importado de Lombroso passou a influir de forma decisiva na criminologia brasileira estimulando e contribuindo para o fortalecimento de estereótipos criminais e de tipos de crimes. Não estender a igualdade de tratamento jurídico-penal perpassou para os outros períodos históricos. As transformações pelas quais passaram a sociedade brasileira no século XX não foram suficientes para implementar um modelo liberal nos códigos e regras jurídicas, sobretudo no que diz respeito ao direito penal, ou melhor dizendo, ao devido processo legal. Apesar de termos elaborada uma Constituição que prioriza o componente liberal, refletido nos direitos fundamentais, o Código de Processo Penal e o Código Penal brasileiro se mostram numa corrente antagônica a tal componente. Podemos destacar o aspecto arbitrário por parte do estado em dois tipos de crimes que são vistos de forma desigual pelo sistema de justiça brasileiro. O crime de Latrocínio – homicídio com intenção de roubo – e o seqüestro seguido de morte da vítima. Quem é suspeito da prática de tais crimes, são indivíduos que serão vistos de forma diferenciada pelo sistema de justiça penal. Não serão atores ativos no processo, sendo negada a tais o direito de ser julgado pelos seus pares, sendo avaliada a sua pena por um juiz singular. Qual a justificativa para o tratamento diferenciado?

III. Os artigos 157, parágrafo 3 e 159, parágrafo 3 do Código Penal brasileiro: tratando desigualmente os desiguais.

Os crimes contra a vida são da exclusiva competência do Júri. São eles: homicídio; induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio; infanticídio, genocídio e aborto. Estão no Código Penal seus detalhes entre os artigos 121 e 128. O latrocínio – homicídio com intenção de roubo – e o seqüestro seguido de morte da vítima são considerados crimes contra o patrimônio. Estes, no Código de Processo Penal, não estão sob responsabilidade do Júri, sendo de competência de um juiz singular.

Quando observamos quem pratica tais crimes percebe-se certa inclinação para formação de estereótipos dos possíveis indivíduos que cometem os crimes de latrocínio e seqüestro seguido de morte da vítima. Advém, geralmente, das classes mais baixas da sociedade. Tipos de crimes praticados por "tipos" de cidadãos, ou cidadãos de "terceira classe", não-cidadãos ou subcidadãos, portanto limitados em exercer ação penal.

Há nessa distinção uma preocupação do Direito Penal em aplicar as regras conforme o dado antropométrico do indivíduo que pratica tais tipos de crimes. Visto numa perspectiva que retrata a "ciência" de Lombroso, existe a necessidade de um árbitro que esteja defendendo em primeiro plano os interesses do Estado ou da coletividade da sociedade em detrimento do princípio individual de liberdade. Este árbitro leva o indivíduo a um contexto de dominador versus dominado no processo de julgamento, que pode ser visto de forma bastante clara na formatação do interrogatório, artigos 185 ao 200 do Código de Processo Penal brasileiro (Ferreira, 2004).

Não há razão legal para a distinção, fica destacado o aspecto do criminoso. Lembrando a citação de João Vieira Araújo (1889), o estado não admite que os indivíduos envolvidos em acusações na prática de latrocínio e seqüestros seguidos de morte da vítima tenham o direito de ser julgado pelo Júri, pois o crime praticado envolve um significado mais complexo do ente acusado. Este não pode efetivamente ser tratado de forma equânime, pois não é considerado "igual" em seus direitos, é cidadão de segunda ordem, um perigo à sociedade.

O conceito social permanece o mesmo desde o início do século XX. Indivíduos que tiveram a mudança de status na transição do Império para a República – escravos que passaram a libertos e os trabalhadores pobres e camponeses que passaram a ter acesso a "escolha" de seus governantes - passaram a ser vigiados de outra forma pela nova(velha) elite política republicana. Os códigos e regras penais perpassaram as transformações institucionais sem levar em consideração as mudanças no meio social. Apenas o aspecto econômico se fez presente, onde a evolução econômica do país levaria, necessariamente, a evolução social, acabando, dessa forma, com as desigualdades estruturais. Mas, o crescimento desigual recrudesceu a desigualdade estrutural e a igualdade jurídica, única num sistema capitalista, não se fez presente.

A elite dominante do aparato político-jurídico do país não efetivou uma mudança em bases normativas nos códigos e regras de conduta penal. Reflexo disso encontra-se nos dois tipos de crimes que foram destacados aqui. A única explicação para a desigualdade de tratamento está nos indivíduos que praticam tais crimes, aqueles que pertencem às classes sociais mais baixas, geralmente encontrados nas periferias das grandes cidades, negros, mulatos e outras minorias, cidadãos de segunda ordem, ou, simplesmente, subcidadãos.

IV. Democracia e Direito de Cidadania: exigem tratamento jurídico-formal igualitário, mas é o nosso caso?

A formatação do direito de cidadania no Brasil se fez de forma inversa e contraditória. Em Regimes Democráticos o seu componente liberal se encontra fortalecido no respeito integral aos direitos civis. No caso da Constituição brasileira de 1988, podemos encontrar tal componente em seu artigo 5º. O princípio da isonomia jurídica é o que garante a efetiva aplicabilidade da igualdade entre os homens e mulheres. A formação da cidadania no Brasil tem em sua história a construção de uma realidade que se distancia de uma sociedade de iguais. A tradição hierárquica prevalece na conjuntura estrutural da sociedade brasileira. Isso se encontra refletido em seu aparato de justiça.

Num contexto onde a cidadania se mostra marcada por uma divisão social, onde esta divisão, ou distinção é percebida pelos agentes da lei como fazendo parte de uma realidade estrutural na qual tratar de forma desigual os desiguais é "natural", encontra-se desenvolvido o aparato legal do Estado de Direito no Brasil.

Desde o inquérito policial até o julgamento e a condenação ou absolvição, o indivíduo é tratado conforme sua posição social dentro de uma escala de valores percebida pelos agentes estatais do aparato legal de justiça (Kant de Lima, 1995). Apesar do esforço de alguns juristas brasileiros em endossar uma doutrina jurídica isonômica à forma anglo-americana (Ferreira, 2004), o que se verifica é um grande distanciamento entre um modelo hierarquizado e inquisitorial de justiça, no Brasil, e outro modelo, acusatorial refletido no modelo anglo-americano de justiça (Teixeira Mendes, 2004). Este sistema nasceu e foi legitimado pela vontade popular, garantido pela democracia liberal estadunidense. No Brasil, ocorreu o inverso. O sistema processual foi formado, desde seus princípios, sob a égide do Estado numa perspectiva de dominação e controle da sociedade (Kant de Lima, 1999).

As mudanças históricas ocorridas no Brasil em seus mais de 500 anos de história, pouco mudaram a essência de sua sociedade. Na passagem da Monarquia para a República houve mudança de elites. Uma elite agrária e burocrática foi substituída por um patriciado rural, este composto, sobretudo, pela elite cafeeira paulistana. No que diz respeito à cidadania, não houve mudanças. A participação eleitoral continuou tênue, os direitos civis resumidos à liberdade de culto e o arrefecimento dos direitos sociais, já que a ortodoxia liberal a isso contribuía. A legislação social e trabalhista patrocinada pelo Estado Novo varguista engendrou o processo de construção da cidadania no Brasil, sendo que de trás pra frente quanto ao que ocorreu na construção desse mesmo processo no modelo anglo-saxônico (Marshall, 1967). Os direitos sociais vieram primeiro conquanto não houvesse contradição entre legislação social e repressão política. No período democrático de 1945-1964 os direitos civis se mantiveram como sendo um artigo pouco visível para a maioria do povo brasileiro. A carência social e a imaturidade política levaram o país a mais uma ditadura. O regime militar (1964-1985) foi assistencialista, elencando direitos sociais para a maioria excluída ao custo da extinção dos direitos civis que atingia mais a classe média educada. Já o movimento de luta armada, não se mostrou eficaz, pois ia muito aquém da realidade social brasileira.

Desencantada com o regime – o fim do crescimento econômico[4], do "milagre brasileiro", a isso contribuiu – a classe média protagonizou o movimento das "diretas" que influenciou um intenso movimento por abertura política em toda a sociedade civil. O entusiasmo ingênuo levou todos a pensar que a simples mudança de regime político seria suficiente para resolver os complexos problemas do país, sobretudo a exclusão social. A transição tutelada (Zaverucha, 1994) mostrou quais eram as verdadeiras intenções das elites políticas brasileiras, elas militares ou civis. Uma base popular, organizada e participativa, fundamental para a construção e consolidação de uma cidadania civil e política não existiu. A justiça social não veio, e a cidadania em seu aspecto mais simplório não se fez concretizar.

O caráter elitista e hierárquico da sociedade e das instituições brasileiras tem raízes nessa cidadania pouco ativa. Os direitos civis aparecem como aqueles que são imprescindíveis para o efetivo exercício do estado de direito democrático. A cláusula da igualdade jurídica aparece como o mínimo fator de igualdade em uma sociedade desigual, já que o sistema de mercado tem tal desigualdade como sendo inevitável.

Como a cidadania não se mostrou ativa em seu componente liberal e, além do mais, os direitos sociais e políticos nasceram numa conjuntura sempre patrocinada pelo Estado, a ação cidadã no Brasil se mostrou rarefeita. Isso teve reflexo em suas instituições coercitivas. O Estado de Direito não se consolida, como também a democracia, pois a forma de tratamento desigual se infiltra nas instâncias jurídicas do país como foi o exemplo exposto nos crimes de latrocínio e seqüestro seguido de morte da vítima que não justifica o tratamento desigual senão dentro de um contexto antropológico do "tipo" de indivíduo que os pratica, ou seja, o "criminoso nato" de Lombroso.

No contexto histórico da formação da sociedade brasileira ficou ausente o componente homogeinizador que encontramos, por exemplo, na sociedade francesa. Esse componente fora responsável pela efetividade da "dignidade" entre os seus indivíduos, cidadãos franceses. Essa efetividade fora compartilhada pelas classes que lograram homogeneizar a economia emocional de todos os seus membros numa medida significativa, que parece ter sido o fundamento mais profundo do reconhecimento social infra e ultra-jurídico, o qual permitiu a eficácia social da regra jurídica da igualdade, ou seja, de uma noção moderna de cidadania. A dimensão da "dignidade" compartilhada, no sentido não jurídico de "levar o outro em consideração", é que tem que estar disseminada de forma efetiva numa sociedade para que possamos dizer que, nessa sociedade concreta, temos a dimensão jurídica da cidadania e da igualdade garantida pela lei. Para que haja eficácia legal da regra de igualdade é necessário que a percepção da igualdade na dimensão da vida cotidiana esteja efetivamente internalizada na sociedade (Souza, 2003: p. 63).

V – Conclusão:

Dispositivos constitucionais igualitários existem na Constituição brasileira de 1988. Mas, os códigos de conduta mantêm sérias limitações aos princípios igualitários encontrados na Constituição e que é fundamental para uma democracia sólida (Nóbrega Júnior, 2005). O aparato jurídico brasileiro tem em sua essência uma forma desigual em tratar indivíduos que são também desiguais. Há um choque dos princípios constitucionais, liberais, com o sistema de justiça.

Para isso, utilizei a filosofia da criminologia do final do século XIX início do século XX no Brasil, influenciada pelas idéias de Lombroso, que ainda permeiam a concepção criminológica do direito penal brasileiro. Para exemplificar esta tendência destaquei os crimes de latrocínio – homicídio com intenção de roubo – e o seqüestro seguido de morte da vítima, que são crimes classificados pelo Código Penal como contra o patrimônio e o seu procedimento de julgamento fica fora da responsabilidade do Júri, sendo da exclusividade de um juiz singular. Sem explicação legal plausível para tal tratamento diferenciado em relação aos crimes contra a vida (arts. 121 a 128 do Código Penal) .

Quando avalio os artigos 157, parágrafo 3 e 159, parágrafo 3 do Código Penal brasileiro, percebo que o tratamento desigual a tipos desiguais permanece na essência jurídica brasileira. O latrocínio e o seqüestro seguido de morte da vítima são crimes contra a propriedade e não contra a vida. Dessa forma, são da competência de juiz singular. Os indivíduos acusados de tais crimes terão tratamento diferenciado. Não existe explicação legal para a "seleção", a não ser uma de caráter antropométrico que advém com as idéias de Lombroso. O tratamento desigual está atrelado ao tipo de pessoa, a quem praticou o crime, geralmente advindo das classes mais baixas da sociedade.

Foi destacado no artigo o aspecto histórico da passagem da monarquia para a república onde salientei o aspecto elitista do meio jurídico brasileiro e a sua preocupação em fornecer direitos igualitários aos recém libertos, os escravos. Este aspecto cultural permaneceu no limiar do direito penal brasileiro, influenciando todo um século do sistema de justiça e insiste em permanecer, mesmo em ambiente considerado democrático pela maioria dos analistas, especialistas e cientistas políticos e sociais.

O Estado de Direito democrático que comporta os direitos de cidadania exigem tratamento jurídico-formal igualitário, quando ele "peca" em assim proceder temos fragilizado o processo de amadurecimento e consolidação da democracia. Mostra que ainda existe um vácuo institucional provocado pela desconfiança da elite nacional em enxergar de forma igualitária uma população tão desigual e desequilibrada socialmente. Isto passa pela formação da cidadania brasileira, invertida e contraditória, e pela conjugação da igualdade perante as leis como fazendo parte da cultura cívica brasileira.

VI – BIBLIOGRAFIA:

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* Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPE, Pesquisador do NIC – Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas da UFPE e Professor das Faculdades Integradas Barros Melo.

[1] Em países onde o componente liberal se faz presente desde a formação de sua sociedade, isso é indiscutível em qualquer tipo de crime no qual o indivíduo é acusado, é um direito da pessoa ameaçada em perder sua liberdade ou sua vida ter o acesso ao julgamento pelos seus pares (Ferreira, 2004).

[2] Rafaele Garofalo (1852-1934) e Enrico Ferri (1856-1929) principalmente (Alvarez, 2002).

[3] Que tem em Emile Durkheim seu principal expoente. É importante salientar que os estudos científicos do crime ficaram nas mãos dos juristas, pois não existia no país uma tradição de estudos sociais, estes só vieram ser realidade a partir da década de 30 do século XX.

[4] Para um melhor entendimento dessa questão sugiro a leitura de Brasilio Sallum Jr (2003) "Metamorfoses do Estado Brasileiro no Final do Século XX", publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 18, Nº 52. pp. 35-53.

 

Autor:

José Maria Nóbrega Jr

josemariajr23[arroba]hotmail.com

Mestre e Doutorando em Ciência Política na UFPE, pesquisador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas da UFPE. Professor das Faculdades Integradas Barros Melo.

Fonte: Revista Espaço Acadêmico Nº 89, Outubro de 2008.



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