O ensaio analisa o papel da arte na abordagem de Lévi-Strauss da cultura, enfatizando o modo pelo qual um determinado tipo de expressão artística, a poesia, poderia ser colocada no conjunto das preocupações estruturalistas em antropologia.
PALAVRAS-CHAVES: estruturalismo, lingüística, literatura, cultura, arte, poesia.
ABSTRACT: The essay analyzes the role of art in Levi-Strauss" approach to culture, and emphasizes how a particular artistic expression - poetry -can be understood by struturalistic anthropology.
KEY WORDS: estruturalism, linguistics, literature, culture, art, poetry.
Apresentam-nos a
linguagem dos primeiros homens como
línguas
de geômetras e verificamos que são línguas de
poetas
(...) Não se começou raciocinando, mas sentindo.
(Rousseau, 19773)
Pode parecer paradoxal afirmar que o homem que mais fez para transformar a antropologia numa ciência dedicada á busca de leis lógicas, racionais e universais, tenha tido igualmente uma grande sensibilidade para o universo da produção artística, suposto reino da subjetividade - império das emoções. Para dissipar esse paradoxo bastaria, entretanto, Olhar, escutar, ler, o mais recente livro de Lévi-Strauss sobre alguns dos principais artistas e intelectuais franceses dos últimos séculos. Neste livro, a dimensão estética da cultura (pintura, música, literatura, mitologia, arte primitiva etc.) ocupa o primeiro plano numa harmonia impecável com a teoria e método do estruturalismo que consagraram Lévi-Strauss ao longo de sua vigorosa carreira como etnólogo.
Mas desconfiem das evidências fáceis assim como dos modelos que exageram em querer parecer com a realidade. (Eles, os modelos, escondem muito bem suas estruturas). Se Lévi-Strauss escolheu neste livro a arte de sua própria sociedade foi porque, parece-me, quis também produzir mais um exemplo original das suas famosas inversões simetricamente opostas para demonstrar e aprofundar concepções elaboradas em seus inúmeros textos de análise estrutural sobre o material etnográfico das sociedades ameríndias. E nesses textos o gosto do antropólogo pelo artístico sempre esteve presente ainda que por vezes submerso ou apenas indicando caminhos possíveis nem sempre percorridos.
Este ensaio tem como objetivo indicar algumas aproximações de Lévi-Strauss com a arte, interpretando-as como formas deste autor analisar a natureza das mediações estabelecidas pela cultura entre o sensível e o inteligível e incorporar na organização de alguns dos seus livros uma sensibilidade especial e um interesse pessoal nesse campo. Pretendo também sugerir como um determinado tipo de expressão artística, a poesia, poderia ser colocado no conjunto das preocupações estruturalistas em antropologia.
Arte e antropologia se cruzam na biografia e bibliografia de Lévi-Strauss. Nascido na Bélgica (1908) e educado em Paris, provém de uma família de artistas: o pai e dois tios paternos foram pintores, o bisavô violinista. Ele próprio, fascinado pela música, tomou lições de violino na infância (época em que começou a compor uma ópera) e alimentou o sonho, logo abandonado, de ser compositor e regente.
Tendo optado por uma formação em Direito com licenciatura em Filosofia, a Etnologia surgiu em sua vida através de um convite para lecionar na Universidade de São Paulo em 1934, o que lhe permitiu conhecer as sociedades indígenas do Brasil central. Em 1939 regressou á França mas, devido á eclosão da Segunda Guerra Mundial e á perseguição nazista aos judeus, emigrou para os Estados Unidos, aceitando a proteção oferecida por este país aos intelectuais e artistas europeus perseguidos. Em Nova York entrou em contato com alguns dos mais importantes membros da geração de surrealistas europeus que naquela cidade também se refugiaram, como André Breton e Max Ernst. Nesse período também conheceu e tornou-se amigo do lingüista Roman Jakobson, compartilhando com este muitos pressupostos estruturalistas e com quem escreveu uma análise do poema Os gatos de Baudelaire, publicada em 1962.
O interesse de Lévi-Strauss pela literatura confunde-se com o desejo que acalentou, durante muito tempo, de ser escritor. Entretanto, tal como ocorrera com a ópera que começou a compor na infância, o romance que iniciou nos anos 50 não passou das páginas iniciais. Dessa incursão pela ficção literária, como disse o próprio Lévi-Strauss, haveria de restar apenas dois resíduos: o título original do romance nunca escrito, Tristes trópicos, que acabou por nomear seu livro de memórias de viagem pelo Brasil, e uma descrição da paisagem dos trópicos que, sendo formulada inicialmente para compor o romance, permaneceu como um capítulo, incluído nessas memórias com o título O pôr do sol 2. Pena que o romancista não se tenha feito: é inegável o brilho desse crepúsculo vislumbrado pela fenda de uma sensibilidade muito especial que o "resíduo" aponta e ilumina no horizonte.
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