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O sentir das estruturas e as estruturas do sentir: a poesia que lévistrouxe (página 2)

Vagner Gonçalves da Silva

O gosto apurado de Lévi-Strauss pela dimensão estética não o fez um artista propriamente dito. Mas certamente forneceu-lhe uma ferramenta eficaz na formulação da teoria estrutural que caracterizou sua obra antropológica, principalmente quando se considera que alguns dos temas centrais desta obra referem-se ás relações estabelecidas pela cultura entre o sensível e o inteligível, entre o inato, gerenciado pela natureza, e o adquirido pela plasticidade do pensamento.

Vejamos como esses temas aparecem em alguns trabalhos de Lévi-Strauss sem pretender com isso discutir estas obras em si mesmas.

Lévi-Strauss aplicou a teoria estrutural em antropologia concentrando-se sobretudo em "regiões" da cultura nas quais certos fenômenos se apresentavam mais acessíveis á sua demonstração. Essas "regiões", ou "ilhas de organização", poderiam ser agrupadas em três domínios, como o faz Edmund Leach (1970:11): parentesco, classificações primitivas (ou lógica simbólica) e mitologia. A "arte" como objeto do interesse científico banha mais freqüentemente as praias dos dois últimos domínios ou "arquipélagos". Não é sem razão que o livro Antropologia estrutural, manifesto do estruturalismo lançado por Lévi-Strauss em 1958 (reunindo artigos escritos entre 1944 e 1956), contém uma parte dedicada á "Arte" ao lado de outras como "Linguagem e Parentesco", "Magia e Religião" etc.

É na introdução escrita por Lévi-Strauss para uma edição dos trabalhos reunidos de Marcel Mauss, Sociologia e Antropologia, publicada em 1950, que temos um bom ponto de partida para pensarmos a forma pela qual Lévi-Strauss elaborou suas primeiras idéias no campo da arte ou pela qual estas "se pensaram" através da obra de Lévi-Strauss 3.

Ao tratar das classificações primitivas (abordadas por Mauss e Durkheim em função de fenômenos como o totemismo e a magia), Lévi-Strauss buscou entendê-las como produto e produtor do pensamento humano que "quando pensa sobre ele mesmo, pensa sempre num objeto" (Lévi-Strauss,1974:32).

Assim para entender como o pensamento se pensa através do real, afirma-se que a significação resulta do caráter relacional do pensamento e como tal deve ter surgido de um só golpe. A significação é uma relação entre termos, entre significantes e significados. Dessa forma, o universo não poderia ter se tornado significativo paulatinamente. O conjunto dos significantes e o dos significados se constituíram de modo simultâneo e solidário. O "Universo significou muito antes de que se começasse a saber o que ele significava. (...) ele significou, desde o começo, uma totalidade do que a humanidade podia esperar conhecer a respeito dele" (Lévi-Strauss, 1974:33). A adequação entre significantes e significados, em termos das "melhores" relações a serem estabelecidas entre uns e outros, deu-se aos poucos. O pensamento científico, por exemplo, revela apenas uma adequação mais satisfatória sob certas circunstâncias ao pensamento mágico, mas a natureza do processo que os engendra é a mesma. Entretanto, há uma inadequação irredutível entre significantes e significados, pois, para compreender o mundo, o homem enfrenta sempre uma "superabundância de significante em relação aos significados sobre os quais ela pode aplicar-se" (: 34). No limite, existe sempre um excedente de significação e o "progresso do espírito humano [...] só pode e só poderá sempre consistir em retificar fendas, proceder a reagrupamentos, definir pertinências e descobrir recursos novos, no seio de uma totalidade fechada e complementar de si mesmo" (:33).

O conceito de mana (força mágica presente em seres animados e inanimados), analisado por Mauss, seria para Lévi-Strauss uma evidência da natureza relacional do pensamento simbólico, e é exatamente na discussão que faz da relação entre percepção e intelecção do mundo que a arte desempenha um papel fundamental. A produção artística submete-se as mesmas propriedades da linguagem:

Acreditamos que as noções tipo mana (...) representam precisamente este significante flutuante, que é a servidão de todo pensamento acabado (mas também garantia de toda arte, de toda poesia, de toda invenção mítica e estética) (...). Em outros termos, e inspirados no preceito de Mauss de que todos os fenômenos sociais podem ser assimilados á linguagem, vemos no mana (...) e em outras noções do mesmo tipo, a expressão consciente de uma função semântica, cujo papel é o de permitir que o pensamento simbólico se exerça apesar da contradição que lhe é própria. (Lévi-Strauss,1974:34, grifo meu)

Totemismo e pensamento selvagem

Em dois livros posteriores, Totemismo hoje e Pensamento selvagem (ambos de 1962), Lévi-Strauss retomou essas idéias aprofundando-as.

No primeiro deles considerou o totemismo (a relação dos homens com as espécies vegetais e animais) como uma decorrência da ação do pensamento simultaneamente sobre a ordem do social e do natural pois, como afirma, "o advento da cultura coincide com o nascimento do intelecto" (Lévi-Strauss, 1976b:181). Mas, se entendo bem o que isto significa nas afirmações de Lévi-Strauss, a passagem da natureza para a cultura não coloca uma oposição entre o emotivo e o intelectivo. Estas dimensões não se distinguem num primeiro momento. Aqui Lévi-Strauss retoma os argumentos de Rousseau. Para o autor do Ensaio sobre a origem das línguas não foram as necessidades físicas (fome ou sede) que levaram os homens á sociedade. As necessidades podem ter "ditado os primeiros gestos", mas foram as paixões (amor, ódio, piedade) que "arrancaram as primeiras vozes" através das quais os homens se reconhecem uns nos outros:

"Apresentam-nos a linguagem dos primeiros homens como línguas de geômetras e verificamos que são línguas de poetas (...). Não se começou raciocinando, mas sentindo". (Rousseau,1973: 169)

Mas se as paixões levaram os homens a falar, Rousseau deduz que as primeiras expressões teriam sido em forma de tropos, uma linguagem figurada que antecipou e anunciou o sentido próprio. As primeiras histórias foram em versos pois a poesia veio antes da prosa como as paixões vieram antes da razão (1973:192). Parecem bem audíveis os ecos deste raciocínio quando Lévi-Strauss vê no mana um símbolo em estado puro, ou um termo de valor simbólico zero, pois o pensamento acabado é o resultado do esforço da linguagem, o sentido próprio, limitado, discreto versus a figura aberta dos tropos.

No Pensamento selvagem, Lévi-Strauss explorou exaustivamente as possibilidades de interpretar a lógica das classificações primitivas anunciadas no Totemismo hoje. Não caberia aqui retomar a longa e complexa argumentação presente neste livro (com sua "agradável dose de contorcionismo cerebral", como lembrou Leach,1970:84), mas apenas dizer que na tentativa de explicar os mecanismos universais intelectivos presentes na mente humana novamente o autor se depara com as propriedades sensíveis a partir das quais esse mecanismo se constrói e se expressa. é sintomático, portanto, que neste livro a arte tenha ocupado uma posição heurística de grande valor pois é ela quem faz a intermediação entre a ordem da estrutura e a do acontecimento. Isto é, permite ao pensamento construir uma imagem metafórica do objeto que visa a "reproduzi-lo" e não propriamente a "produzi-lo" (tal como faria a construção científica do objeto que trabalha na escala do real ainda que metonimicamente). Nesse sentido, a definição de Lévi-Strauss do processo do bricolage (deslocamento de termos de um sistema classificatório para outro construindo significados diversos em função dos novos arranjos obtidos) engloba uma dimensão artística que lhe é inerente. Aqui, sem dúvida, a influência dos surrealistas com os quais Lévi-Strauss conviveu dá seus primeiros frutos como ele próprio admitiria em De perto e de longe:

"Foi com os surrealistas que eu aprendi a não temer as aproximações abruptas e imprevistas como as que Max Ernst usou nas suas colagens. A influência é perceptível em O Pensamento selvagem. Max Ernst construiu mitos particulares por meio de imagens tomadas de empréstimo a uma outra cultura (...) Em Mitológicas, eu também recortei uma imagem mítica e recompus seus fragmentos para fazer com que deles brotasse mais sentido". (Lévi-Strauss, 1990:50)

Vejamos, então, o modo pelo qual a arte marcou as pegadas deixadas por Lévi-Strauss no "terceiro arquipélago" mais conhecido de sua produção intelectual: o da mitologia.

Mito e música

Os motivos que levam os mitos a serem simultaneamente sistemas de relações abstratas e objetos de contemplação estética decorrem das relações simétricas e inversas existentes entre os primeiros e as obras de arte. Como se lê em O Pensamento selvagem:

"[Na obra de arte] parte-se de um conjunto formado por um ou vários objetos e por um ou por vários acontecimentos, ao qual a criação estética confere um caráter de totalidade, pondo em evidência uma estrutura comum. O mito segue o mesmo percurso, mas noutro sentido: utiliza uma estrutura para produzir um objeto absoluto que ofereça o aspecto de um conjunto de acontecimentos (já que todo mito conta uma estória)". (1976a: 47)

Em "A estrutura dos mitos" (artigo de 1955 e incluso na coletânea Antropologia estrutural), essas comparações vão ganhando força com a homologia explorada entre o mito e uma modalidade específica de arte: a música. Esta comparação serviu primeiramente para ilustrar o procedimento de análise estrutural que prescreve a leitura dos mitos através dos mitemas (unidades de significado), os quais se articulam no interior dos mitos em cadeias paradigmáticas e sintagmáticas, tal como as notas (invariantes) são agrupadas na partitura e executadas simultaneamente (ou não) pelos vários instrumentistas que compõem a orquestra (Lévi-Strauss, 1970: 231).

Mas foi sobretudo com as Mitológicas (inicialmente na série de quatro volumes publicados entre 1964 e 1971) que Lévi-Strauss levou adiante a homologia entre mito e música tanto no plano da organização dos textos quanto em relação á natureza dos objetos analisados. O cru e o cozido, o primeiro volume das Mitológicas, teve seus capítulos organizados de modo a sugerir ao leitor os vários movimentos musicais executados por uma orquestra. A overture com a qual o livro se inicia é seguida por sonatas, fugas, tocatas, sinfonia etc. Do mesmo modo o capítulo final de O homem nu (o último livro deste núcleo inicial das Mitológicas) é chamado de finale.

A percepção das conexões entre mito e música foi tão inspiradora para Lévi-Strauss que este atribuiu a Richard Wagner o título de "pai irrecusável" da análise estrutural dos mitos 4. Na abertura de O cru e o cozido, vemos uma dessas sessões de idolatria reveladora do quanto a noção dos mitemas em Lévi-Strauss também é devedora dos leitmotiv wagnerianos.

E ainda que a música não fosse utilizada como um objeto "bom para pensar", as relações lógicas do pensamento humano, para Lévi-Strauss, bastava ouvi-la para que seu pensamento a ela se enredasse:

"Consciente ou inconsciente, o artista busca esse estado de graça. Minha relação com a música é da mesma ordem: penso melhor quando a ouço. Uma relação de contraponto estabelece-se entre a articulação do discurso musical e o fio da minha reflexão. Oram andam juntos, ora separam-se, e finalmente se encontram. Quantas vezes não percebi - mas só depois - que, escutando uma obra, eu deixava de ouvi-la enquanto uma idéia nascia! Após essa separação temporária que o torna autônomo, meu pensamento engrena-se novamente na obra, como se o discurso mental, por um momento, tivesse se revezado com o discurso musical, mas permanecendo em cumplicidade com ele". (Lévi-Strauss, 1990:229)

A música e a mitologia aparecem na obra de Lévi-Strauss como um desdobramento no campo da antropologia dos pressupostos estabelecidos pela lingüística estrutural sobre a relação entre som e significado. Como afirmou Saussure, "o signo lingüístico une não uma coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem acústica". E as imagens acústicas só adquirem sentido quando colocadas em relação umas com as outras e com as coisas ás quais se unem. Os mitos, como a música, formam sistemas cuja inteligibilidade deve ser buscada na relação estabelecida entre seus termos, suas unidades de significação. Ouvir uma música é ouvir a si mesmo. E o mesmo vale para quem conta um mito.

O poético

Lévi-Strauss, além de aproximar o mito da música, também o aproximou de outra forma de expressão artística elaborada a partir da linguagem (da relação entre som e significado): a poesia. Embora essa aproximação não tenha sido tão freqüente ou sistematizada como no caso da música, ela é reveladora do interesse constante de Lévi-Strauss pela literatura em geral.

Em A estrutura dos mitos essa aproximação foi indicada nos seguintes termos:

"O lugar do mito, na escala dos modos de expressão lingüística, é oposto ao da poesia (...). A poesia é uma forma de linguagem sumamente difícil de ser traduzida para uma língua estrangeira, e qualquer tradução acarreta múltiplas deformações. Ao contrário o valor do mito como mito persiste, a despeito de qualquer tradução (...). O mito é linguagem; mas uma linguagem que tem lugar em um nível muito elevado, e onde o sentido chega, se é lícito dizer, a decolar do fundamento lingüístico sobre o qual começou rolando". (Lévi-Strauss, 1970: 230)

Na entrevista concedida por Lévi-Strauss a Georges Charbonnier, Arte, linguagem, etnologia, as idéias do antropólogo sobre a poesia se tornaram mais claras. O poeta, por exemplo, estaria para a linguagem assim como o pintor para o objeto:

"A linguagem se torna sua [do poeta] matéria prima, e esta que se propõe significar - não exatamente as idéias ou conceitos que possamos tentar transmitir pelo discurso, mas esses enormes objetos lingüísticos que constituem conjuntos ou pedaços de discurso". (Lévi-Strauss apud Charbonnier,1989: 98)

A poesia seria então uma espécie de "metalinguagem", ficando entre a "integração lingüística" e a "desintegração semântica":

"Poeta assemelha-se ao químico tentando fazer a síntese das grandes moléculas; trata-se de criar enormes seres lingüísticos, objetos compactos, cujos materiais já são de natureza lingüística: uma espécie de meta-linguagem". (Lévi-Strauss apud Charbonnier,1989:115)

Aqui novamente voltamos á nascente que origina os vários afluentes que banham simultaneamente essas "ilhas de organização" enfocadas pela análise estrutural: a relação entre o significante e o significado, o contínuo e o discreto, o sensível e o intelectivo, a paixão e a razão, a natureza e a cultura. E a análise da poesia parece-me um tema muito propício para sondar o fluxo dessas águas como, aliás, foi acentuado pela própria crítica literária de inspiração estruturalista.

A poética tal como a pensava Roman Jakobson deveria ser "antes de tudo a investigação da estrutura dos signos, isto é, os signos semióticos e, em um sentido mais estrito os lingüísticos da obra de arte" (1992: 103).

A mensagem verbal teria assim inúmeras funções hierarquizadas de acordo com o seu uso. A estrutura verbal, nesse caso, dependeria da função predominante. Na função poética haveria uma "concentração dentro da mensagem verbal da mensagem verbal em si mesma" (Waugh apud, 1992:196).

Mas que tipo de concentração a função poética realizaria?

Inicialmente é preciso considerar que toda linguagem se estrutura a partir de dois níveis: o fônico e o semântico (significante e significado como aponta Saussure).

Como se sabe, a poesia, em oposição á prosa - enquanto gêneros da arte literária -, constituiu-se originariamente relacionando sua face fônica ao nível semântico. Alguns desses recursos fônicos são bem conhecidos: o ritmo que marca simetricamente ou não as sílabas poéticas nos versos em termos dos contrastes obtidos pela alternância entre sílabas de som forte e fraco, ou entre as que são formadas por vogais longas e breves. O metro que mensura o verso em termos das quantidade de sílabas poéticas neles existentes. A rima que enfatiza uma semelhança de som entre as sílabas poéticas que se encontram em posições homólogas em versos diferentes. Além destes recursos, o aspecto sonoro do poema aparece em processos como: aliteração (repetição da mesma consoante ao longo do poema), assonância (repetição da mesma vogal), anáfora (repetição de palavras), entre outros (Goldstein, 1994).

No nível semântico, a poesia busca sua significação a partir da ênfase nas figuras de linguagem que de certo modo concentram a força de sua expressão artística ou, para utilizar os conceitos de Jakobson, da eficácia de sua função poética em contraste com a função referencial (denotativa ou cognoscitiva) da "língua comum". Nesse nível são recorrentes, por exemplo, as inúmeras figuras como similaridade (comparação, metáfora, alegoria, sinestesia), contigüidade (metonímia, sinédoque) e oposição (antítese, ironia, paradoxo) (idem, ibidem).

Entretanto, como lembrou Jean Cohen, retomando Saussure:

"Todos os sistemas de versificação baseiam-se em normas convencionais cuja característica comum é lançar mão só das unidades não-significantes da língua. Para considerar apenas o verso regular francês ele baseia-se no metro e na rima, ou seja, na sílaba e no fonema. Ora sílaba e fonema são unidades menores que a palavra ou monema, isto é, que a unidade mínima de significação. Que uma mensagem comporte tal ou tal número de sílabas, isso não muda sua significação, do mesmo modo que o sentido de uma palavra não se altera quando rima ou deixa de rimar com outra. Por conseguinte metro e rima não parecem caracteres lingüísticos pertinentes. Apresentam-se como uma super-estrutura, que modifica apenas a substância sonora, sem influência funcional sobre o significado (...). A linguagem versificada identifica-se então á soma: prosa + música. A música soma-se á prosa sem modificar nada de sua estrutura" (1974: 28)

Cohen estende a comparação feita por Saussure entre a linguagem e o jogo de xadrez. A versificação funcionaria como as peças esculpidas de um tabuleiro que em nada alteraria as regras do jogo. Além disso a "música" que a sonoridade da poesia permite é realmente muito pobre em relação á musica: "frágil música se comparada á verdadeira, Baudelaire e Wagner", nas palavras de Henri Bremond.

Considerando que os recursos fônicos da poesia são definidos em relação ao significado, qual o significado de se jogar com fonemas (ou sílabas tônicas), isto é, com unidades não significantes da língua? Mesmo no caso dos versos brancos (sem rimas) ou dos versos modernistas (de ritmos assimétricos), verifica-se a presença do nível fônico como um elemento inerente á produção da arte poética.

Comparando o mito com a poesia, Lévi-Strauss lembrou a dificuldade de tradução da segunda como decorrência de uma particularidade desse tipo de arte. Para Cohen esta dificuldade resulta do fato de que a linguagem não é a roupa do pensamento mas o próprio pensamento: quanto mais exato ou científico for o pensamento mais este pode ser traduzido, e quanto mais abstrato, mais prejudicada fica sua tradução (:32). Isto porque a linguagem, embora seja conteúdo e expressão, estaria mais próxima do conteúdo no pensamento científico e mais próxima da expressão no pensamento abstrato ou nas artes. Para Cohen a intradutibilidade do poema resulta do fato de que este trabalha com a "forma do sentido". Na prosa (como na prosa coloquial ou científica) isto não ocorreria pois se estaria apenas no campo da preeminência do sentido (:33). Portanto, a arte interfere como um domínio explícito na busca de sentido: "A linguagem natural é a prosa, a poesia é linguagem de arte". A poesia é um desvio da linguagem:

"A poesia não é prosa mais alguma coisa. é antiprosa. Neste aspecto ela aparece como totalmente negativa, como uma forma de patologia da linguagem. Mas esta primeira fase implica uma segunda, que é positiva. A poesia destrói a linguagem corrente para reconstruí-la num plano superior. À desestruturação operada pela figura sucede uma reestruturação de outra ordem". (Cohen,1974: 45).

Assim, a poesia surge como uma "estrutura fono-semântica", uma "antifrase", na qual o poeta busca embaralhar os planos fônicos e semânticos, o som e o sentido, buscando sondar, inverter, enfraquecer ou fortalecer as estruturas do discurso (:47 e 63). Entre informar e comover, entre a conotação e a denotação, a poesia fica com a segunda porque busca construir uma "imagem afetiva" do objeto, expressar estados da alma de quem experimenta sensitivamente o mundo exterior. Mas sentir é aproximar a consciência de um ser sobre si mesmo através das coisas:

"Trata-se portanto de uma modalidade da consciência das coisas, uma maneira original e específica de apreender o mundo. Logo a emoção poética não acrescenta de fora á imagem do objeto: é imanente á imagem e constitui o que se pode chamar "imagem afetiva" do objeto". (:166).

Acredito que aqui estamos muito próximos do que Rousseau definiu como a capacidade do homem de solidarizar-se em face do outro e do mundo. Vontade de exprimir uma sensibilidade que fazia da coisa não a coisa em si mesma, mas uma idéia subjetivamente orientada que se exteriorizava como forma de estabelecer vínculos emotivos que são também sociais. Humanizar-se é construir um sentido não do que é um "eu" mas do que é um "ele" e reciprocamente saudar em "vós" o que em "nós" habita. E isso parece ter sido a função primeira da linguagem.

Assim, se no esquema de Cohen, denotação e conotação aparecem como códigos antagônicos que não podem produzir-se ao mesmo tempo, a tensão existente entre eles faz da função poética uma expressão de arte privilegiada, pois através das figuras do código denotativo, próprias da poesia, busca-se "forçar a alma a sentir aquilo que geralmente ela se limita a pensar" (:179). Por isso, "a frase poética é ao mesmo tempo morte e ressurreição da linguagem" (: 180). Ou como disse Mallarmé: "não é com idéias que se fazem versos mas com palavras". Mas aqui a palavra se despe momentaneamente das idéias para criar um diapasão entre forma e conteúdo, som e sentido. Lapidar a palavra para torná-la propícia a novos conteúdos, a surpresa de descobrir em suas lascas motivações encobertas.

Versos finais

As observações de Lévi-Strauss sobre o universo das artes, das quais mostrei aqui apenas uma ínfima parte, não diferem muito do tratamento que este autor dispensou aos demais campos sobre os quais se debruçou em suas diversas obras. As relações percebidas entre mito e música, por exemplo, derivam da recorrente homologia que estabeleceu entre os fenômenos sociais e a linguagem: os homens trocam entre si signos (palavras) para formarem a língua assim como trocam mulheres para formarem o parentesco e objetos para formarem a economia.

A arte também é linguagem, ou se expressa através dela. Entretanto, dependendo da modalidade de expressão artística (isto é, do objeto original sobre o qual a arte se pensa: cores, sons, palavras), há ênfases diferentes devido á própria natureza dos objetos sensíveis e de sua estrutura própria de significação 5. Comparando a relação entre música, mito e poesia com o sistema lingüístico, pode-se dizer que na música o sistema das notas musicais "salta" diretamente para a frase (melódica) pulando o "nível" da palavra. O mito, entendido como objeto da emoção estética e do exercício intelectivo, encontra um sistema lingüístico elaborado, portanto parte diretamente da palavra e da frase para construir seus significados através das unidades mínimas, os mitemas. A poesia, por sua vez, tal qual o mito, encontra o sistema lingüístico pronto, mas seu objeto não é tratar unidades de sentidos e sim mergulhar na própria construção da língua sem desprezar o nível fônico das palavras, fonte dos significantes.

Em termos gráficos:

Assim, se o elemento sonoro predomina na música e o significado no mito, na poesia existe uma intermediação entre um domínio e outro, como ao se buscar associações de sons e significados entre palavras de valor semântico já estabelecido fosse possível colocar em suspeição a função conotativa da língua ou traficar com versos a superabundância de significantes disponíveis nos celeiros de significados da cultura.

A poesia implode a relação entre significante (som) e significado não para aboli-la mas para mostrar o caráter arbitrário, discreto, finito do pensamento diante das inúmeras possibilidades de sentir o mundo.

A função poética nos aproximaria assim tanto da interpretação de Rousseau para o surgimento das línguas como da de Lévi-Strauss ao indicar o superávit de significantes em relação aos significados na sua introdução á obra de Marcel Mauss. Se algumas noções como mana possuem valor simbólico zero pois são símbolos em estado puro cuja função é permitir que o "pensamento simbólico se exerça apesar da contradição que lhe é própria" (Lévi-Strauss,1974:35), o poeta tende a tratar todas as palavras como capazes de realizar esse artifício. As palavras são seus "manas" e o seu ofício é sondar as fendas do pensamento ou, dito de outra forma, construir através delas pontes que permitam atravessar o fosso que separa a ordem do sensível e do inteligível.

Por fim, permito-me também experimentar o sentido dessa implosão realizada pela poesia que conota e subjetiva na prosa que denota e objetiva mostrando como o objeto deste ensaio poderia ser convertido da linguagem do geômetra para a linguagem do poeta:

totemismo ontem:

não era animal ruminante

nem tinha os cascos fendidos

nem totem do coração

nem totem da mente

assim próximos se distinguiam

homem serpente gavião

hoje,

totêmico ainda

escarifico sua pele

sem a crueza dos artefatos líticos

de ranhuras expondo

a carne abstrata das aves

pintadas

nas rochas dos abrigos

versão up to date

desses impulsos que não passam

graxa nas unhas

cheiro de peixe na mão

metalurgia que nos forja

por dentro:

lua firmamento razão

Notas

1 Trabalho apresentado no Seminário Lévi-Strauss e os 90 promovido pelo Departamento de Antropologia, FFLCH-USP, em 26 e 27/11/1998. Agradeço aos participantes e a Rita Amaral pelas críticas e sugestões recebidas.

2 Seria para marcar a "natureza residual" deste capítulo que Lévi-Strauss (ou seu editor) optou por imprimi-lo com fontes em itálico?

3 A introdução á obra de Marcel Mauss pode também ser entendida como uma introdução á própria obra de Lévi-Strauss.

4 Na verdade o estruturalismo segundo Lévi-Strauss é filho de vários pais: Rousseau, Mauss, Boas etc.

5 Esta é uma das teses centrais de Olhar, escutar, ler (Lévi-Strauss, 1997).

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Artigo publicado na Revista de Antropologia v.42 n.1-2 São Paulo  1999

 

 

 

Autor:

Vagner Gonçalves da Silva

vagnergo[arroba]usp.br

Núcleo de Antropologia Urbana da USP

www.fflch.usp.br/da/vagner
www.doafroaobrasileiro.org
www.n-a-u.org



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