Parte I
O Dodó ou Solitário da Ilha
Rodrigues
François
Leguat (1628)
.....De todas as aves da Ilha, a espécie mais notável é aquela a que se deu o nome de Solitários, porque raramente se vêem em grupos, apesar de haver muitos. Os machos têm a plumagem em geral acinzentada & castanha, os pés de galo da Índia, & o bico também, mas um pouco mais adunco. Quase não têm cauda, & o seu traseiro, coberto de plumas, é arredondado como garupa de cavalo. São mais altos que os galos da Índia, & têm o pescoço erecto, proporcionalmente um pouco mais longo que este animal, quando levanta a cabeça. Olhos negros & vivos, & cabeça sem crista nem poupa. Não voam, as suas asas são demasiado pequenas para sustentarem o peso do corpo. Só se servem delas para lutarem, & para dançarem o molinete, quando querem chamar-se uns aos outros. Dão vinte ou trinta piruetas de seguida com velocidade, para o mesmo lado, no espaço de quatro ou cinco minutos: o movimento das asas provoca então um ruído que se assemelha muito ao do Francelho; & ouve-se a mais de duzentos passos. O osso da ponta da asa é mais grosso na extremidade, & forma sob as penas uma pequena massa redonda como uma bala de mosquete: isto & o bico são a sua principal defesa. Dão muito trabalho a apanhar na floresta, mas, como se corre mais depressa do que eles, nos lugares abertos não é difícil agarrá-los. Às vezes é mesmo com grande facilidade que nos aproximamos deles. De Março a Setembro, ficam extraordinariamente gordos, & o seu sabor é excelente, sobretudo quando são jovens. Aparecem machos que pesam até quarenta e cinco libras.
A fêmea é de uma beleza admirável; há-as loiras e morenas; chamo louro a uma cor de cabelos louros. No cimo do bico têm uma espécie de lenço como um véu de viúvas de cor escura. Em nenhum ponto do corpo uma pena se atravessa sobre outra, porque elas têm imenso cuidado em acertá-las, & em polir-se com o bico. As penas que acompanham as coxas são arredondadas na ponta em caracóis; & como são muito espessas neste lugar, isso produz um efeito agradável. Têm duas elevações sobre o papo, de uma plumagem mais branca do que o resto, & que representam maravilhosamente uns belos seios de mulher. Caminham com tanta altivez & ao mesmo tempo com tanta graciosidade, que não podemos impedir-nos de as admirar & amar; de maneira que já muitas vezes a beleza lhes salvou a vida.
Embora estas aves se aproximem ás vezes bastante familiarmente quando não se corre atrás delas, jamais se pode aprisioná-las: logo que se prendem, vertem lágrimas sem gritar, & recusam obstinadamente todo o alimento, até que por fim morrem. Encontra-se-lhes sempre na moela, (quer nas fêmeas quer nos machos) uma pedra castanha do tamanho de um Ovo de galinha; é um pouco rugosa, chata de um lado & arredondada do outro, muito pesada, & muito dura. Nós julgámos que esta pedra nascia com eles; porque por muito jovens que sejam, têm-na sempre, & sempre só uma; além disso, o canal que vai do papo á moela é demasiado estreito para dar passagem a uma massa com metade do tamanho. Servíamo-nos dela de preferência a qualquer outra pedra para afiarmos as facas.
Quando querem construir os ninhos, escolhem um lugar limpo, & elevam-no a um pé & meio do chão sobre um monte de folhas de palmeira que juntam para esse fim. Só põem um Ovo, que é muito maior que o de uma gansa. O macho & a fêmea chocam-no á vez, & só eclode sete semanas depois. Durante todo o tempo em que o chocam, ou em que criam o seu petiz, que só consegue prover sozinho ás suas necessidades meses depois, não suportam que outra ave da sua espécie entre num raio de duzentos passos; & o que é bastante singular é que o macho nunca persegue as fêmeas; somente, quando vê alguma, produz o seu ruído usual enquanto faz piruetas, para chamar a fêmea, que vem logo perseguir a estrangeira, & que só larga quando a conduz para fora dos seus limites. A fêmea faz o mesmo & deixa o seu macho perseguir os outros. é uma particularidade que observámos tantas vezes, que falo dela com certeza.
Os combates duram ás vezes bastante tempo, porque o estrangeiro só foge em círculo, sem se afastar directamente do ninho; contudo, os outros só o abandonam depois de o terem expulso. Depois de as aves terem criado & abandonado o pinto a si mesmo, não se separam como fazem todas as outras, mas permanecem sempre unidas & companheiras, embora ás vezes vão misturar-se com outras da sua espécie. Notámos muitas vezes que, alguns dias depois de o pinto ter saído do ninho, uma companhia de trinta ou quarenta trazia-lhes outro jovem, & o recém-saído do ninho, com o pai & a mãe, juntavam-se ao bando, & partiam para lugar afastado. Como os seguíamos muitas vezes, íamos que depois disto os velhos se retiravam cada um para seu lado, sozinhos, ou em casais, & deixavam os dois jovens juntos; & nós chamávamos a isto um casamento.
Há nesta nova circunstância alguma coisa que parece um pouco fabulosa: mas são no entanto verdades puras, & coisas que bem frequentemente observei com cuidado, & com prazer. & tão-pouco podia deixar nesta ocasião de abandonar o meu espírito a diversas reflexões.
Página seguinte |
|
|