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In Alfred & Edward Newton, On the osteology of the Solitaire, 1869 . Tradução de Maria Estela Guedes e Nuno Marques Peiriço
Parte
II
Transmutação na iconografia
científica
Nuno
Marques Peiriço
A par de uma possível limitação daquilo que o ser humano pode aprender, podemos também interrogar-nos sobre uma eventual limitação daquilo que deve aprender.
François Jacob, O Ratinho, a Mosca e o Homem
O Discurso das Imagens
É fácil reconhecer que uma imagem substitui mil palavras. Para um pintor, fotógrafo ou desenhista, a máxima terá certamente um valor acrescido. Mas, mesmo para os restantes, não será difícil aceitar a veracidade da afirmação.
Então que tipo de informação nos dá uma imagem? E uma mesma imagem dará a mesma informação a diferentes leitores? Não creio.
Por exemplo. Ao fornecer a imagem de um hipopótamo num lago, não pretendo com isto passar qualquer informação. No entanto, se á imagem fizer corresponder uma fantástica descoberta no lago Loreto, localizado a mais de 1000 metros de altitude na ilha africana de Fernando Pó (Bonelli), estarei a passar a mesma informação a todos os leitores? Estarei a seleccionar leitores? Muitos dirão que se trata de uma barbaridade, pois a ocorrência natural de mamíferos terrestres em ilhas oceânicas não é suportada pela biogeografia, excepto a atlante, que os consideraria relíquias ou fósseis vivos. Outros, mais estimulados para um discurso extraordinário, questionar-se-ão sobre o propósito desta fantasia. Por detrás pode estar o interesse do informador de que pessoas instruídas se desloquem a Fernando Pó para averiguar o que lá se passa. Dar uma informação fantasiosa sobre a fauna foi uma maneira subtil de seleccionar os leitores que me interessam. Desta forma, a imagem ganha carácter linguístico, assumindo nova identidade.
Fechado este preâmbulo, podemos avançar para o DoDó.
A Espécie
Por me sentir inepto para descrever os caracteres de uma espécie tão transmutante, recorro a Sonnini para alguns traços fundamentais do Dronte ou DoDó.
Os holandeses chamaram-lhe dodaerts e walgh-vogel (ave nauseabunda), os portugueses, dodo, os naturalistas, cisne de capelo, avestruz encapuçado, galo estrangeiro, etc.. Mas esta ave já não se encontra nas ilhas, perda que não se deve lamentar, pois era uma dessas espécies que a natureza parece ter gerado em momentos de negligência ou de humor e que pouco se preocupa em conservar. Com efeito, o Dronte não apresenta senão formas e qualidades repulsivas. Maior que um cisne, de ave só tem as penas e a forma geral. De resto, era-lhe impossível elevar a sua pesada massa no ar e andar com velocidade; mal podia arrastar-se pesada e desajeitadamente. A cabeça, montada num pescoço espesso, inchado como o do pelicano, é quase inteiramente um bico imenso, de mandíbulas côncavas no meio, curvas na ponta em sentido contrário. A abertura do bico prolonga-se bem para lá de dois grandes olhos negros. Um tufo de plumas, ou segundo certas pessoas, uma membrana, forma sobre esta cabeça já bem disforme uma espécie de capuz. O corpo é cúbico. Penas cinzentas, moles e suaves, cobrem-no completamente. Um tufo de penas amareladas de cada lado fazem de asa e cinco plumas da mesma cor, de barbas desunidas e crespas, substituem a cauda. Toda esta massa bizarra se sustenta mal sobre dois pés, ou antes, sobre duas colunas com quatro polegadas de comprimento e quase o mesmo de circunferência, terminados por dedos sem unhas. Acrescente-se a este quadro tenebroso que a carne do Dronte não se pode comer, devido ao sabor desagradável, e ter-se-á a noção exacta de uma verdadeira ave nauseabunda, que, pela singularidade dos seus atributos, se diria dever a existência á fantasia de uma imaginação desordenada.
Fig. 1: Imagem que acompanha a descrição do DoDó in Sonnini.
Maurícia: Didus ineptus, Ornithopera solitaria, e D. broeckii ou Aphanapterix imperialis, a galinha vermelha;
Reunião: Didus ineptus, Raphus solitarius e D. borbonicus ou Victoriornis imperialis, o DoDó branco da Reunião.
Rodrigues: Pezophaps solitaria, Pezophaps minor e Didus nazarenus, a ave de Nazare.
Desde que foi descoberto, o DoDó foi desenhado por inúmeros autores, quer para fins científicos, quer em representações artísticas. A figura mais antiga de DoDó de que tenho conhecimento é de 1601, por De Bry, e representa um animal que fora levado vivo para a Holanda por Van Neck, explorador holandês que andou pelas Mascarenhas no final do século XVI. Roelandt Savery pintou o Dodó várias vezes: Berlim, 1626; Viena, 1628; Haia; Estugarda e Londres (Zoological Society e British Museum), Oxford e Harlem. Na biblioteca do último imperador da Áustria, existe um desenho atribuído a Hoefnagel que se pensa datar de 1620, feito a partir de animais do vivário do imperador.
Figura 2: O DoDó, por Hoefnagel em 1600. In Wissen.
O mais importante trabalho português sobre o DoDó é de Luna de Carvalho (1989). Neste artigo apresentam-se alguns desenhos do Dronte que o autor relaborou a partir dos originais.
A respeito da imagem de Hoefnagel, Luna diz ter origem num animal empalhado, trazido para a Europa por Van Neck. O espécime estava mal empalhado, diz o autor, justificando o aspecto excessivamente magro do DoDó de Hoefnagel. Por isso corrige o desenho, arredondando as formas á ave.
Fig. 3: Algumas representações do DoDó da primeira metade do séc. XVIII. In Luna de Carvalho.
Gigantesca Imaturidade
A imagem de De Bry (1601) patenteia-se no diário de Van Neck. O DoDó está despido, como qualquer criança acabada de vir ao mundo. Nos Exoticorum, obra de Clúsio (1605), que classifica o DoDó como Gallinaceus gallus peregrinus, a imagem, de Adriani Vennij (ou Adrian van de Ven), não difere muito da anterior. As asas curtas e inaptas para o voo são a principal característica desta ave, que, talvez por se aperceber disso, apresente em Herbert (1634) um ar melancólico, perdendo o aspecto desembaraçado e feroz das imagens anteriores. Tal é a tristeza, que não tira os olhos do chão e até o bico se arredondou.
A imagem de Walther (1657), diferente das outras pela postura muito mais erecta e garbosa, foi razão para descrever nova espécie, Ornithopera solitaria, segundo Hatchissuka, Hachisuka, Hachissuka ou Hakisuka (in Luna de Carvalho). Agrada-me saber que o galo peregrino teve direito a baptismo católico, se me não engano ao decifrar a legenda em que leio DODO BÍBL. de FLORENCE.
Figura 4: O DoDó por Pieter van de Broecke. In Luna de Carvalho.
Todas estas representações dão a ideia de estarmos na presença de jovens e não de adultos. Aliás, Maddox acha muito curioso que o Dodó tenha sido descrito como um patinho do tamanho de um cisne (young duck or gosling enlarged to dimensions of a swan). O Dodó será então exemplo de uma população cujos adultos mantiveram caracteres juvenis de outra espécie?
Comparando a imagem de Clúsio com a de van de Broecke, encontramos no segundo um animal bastante mais envelhecido e mais gordo, mas mantendo o aspecto de gigantesca imaturidade de que fala Maddox.
Excessiva Obesidade
.Em 1626, duas figuras, uma de Vennij e outra de Savery, dão-nos conta de outras transmutações, com especial destaque para a perda da postura erecta. Vennij, que tinha desenhado o DoDó de Clúsio, apresenta agora uma ave bastante mais robusta, de papo saliente e pescoço curto e curvado, certamente pelo peso de uma vida começada em 1605. Conclusão, o DoDó é o mesmo, mas engordou, talvez por causa de uma alimentação á base de biscoitos, como sugere Kitchener, ao tentar justificar a súbita obesidade dos espécimes representados.
Figura 5: Duas representações do DoDó datadas de 1626: a) por Adriani Vennij (in Wissen); b) Cena com vários exemplares, por Roelandt Savery (in Gould, 1996a).
Na imagem de Roelandt Savery temos uma cena doméstica, com um roliço casal de DoDós e descendente, notando-se, no que julgo ser a fêmea, cauda dupla e um olhar de abutre; como abutre foi aliás classificado por Blainville (Gervais & Coquerel). De notar que o pescoço da cria é exactamente igual ao do adulto, o que demonstra a transmissão hereditária dos caracteres recém-adquiridos, pois até aqui o DoDó tinha o pescoço levantado, como afirma Leguat.
Patos, Pombos e Avestruzes
Figura 6: a) DoDó representado por Pieter Withoos em 1684 (in Luna de Carvalho); b) DoDó representado por Salomon Savery em 1680 (in Wissen).
A transmissão do carácter pescoço curvado não vai além do filhote, afinal Withoos, em 1684, mostra-nos o DoDó como um belíssimo pato a cortejar uma pata, de pescoço curto e erecto, sem qualquer ar melancólico, pelo contrário. é Salomon Savery, parente de outros Saverys, que em 1680 ainda mantém o pescoço curvado da família. Mas essa é a única semelhança entre a imagem de Salomon e Roelandt, pois as aves representadas pelos dois autores diferem em todos os restantes caracteres. O que não é de espantar, afinal foi o próprio Roelandt Savery quem também desenhou um DoDó bastante idêntico ao de Salomon e totalmente diferente das suas representações anteriores (figura 7). Só fica por saber quais as semelhanças e diferenças entre estes Saverys que nasceram com dezoito anos de intervalo.
Figura 7: Desenho de Roelandt Savery representando Dodós em habitat natural, patente na Croecker Art Gallery, Sacramento, USA. In Wissen.
Maiores transmutações são observáveis em Minaggio (1618), ao representar um Dodó que se transcende a si mesmo, elevando-se á grandiosidade de um dragão, na forma tendencial de avestruz. Oxalá S. Jorge não liquide o guardião do Jardim das Hespérides, ficávamos sem as maçãs de ouro e o DoDó corria o risco de não alcançar a imortalidade.
Figura 8: Cena de Caça ao DoDó representada por Minaggio em 1618. In Luna de Carvalho.
Este aspecto tendencial de avestruz concretiza-se na imagem de Gessner, que representa um verdadeiro Struthio camelus, que alguém tomou por DoDó. Tal é a semelhança que Lineu já tinha classificado o DoDó como Struthio cucullatus, o avestruz encapuçado.
Tirando dispersas similitudes com patos, cegonhas, galinhas, abutres, pinguins e avestruzes, a tendência dominante da ciência é para incluir o DoDó entre os pombos. Os terrestres, por não se assemelhar aos bons voadores, se bem que com os terrestres também não se pareça, conforme declara Milne Edwards. Strikland & Melville resolvem o problema considerando-o uma forma aberrante de pombo, com paragem do desenvolvimento do aparelho de voo.
Milne Edwards nota que as modificações dos pombos para adaptação á vida terrestre são diferentes das apresentadas pelo Dronte, não podendo por isso ser considerado um pombo terrestre, nem sequer da mesma família, sendo necessário criar para ele uma família distinta.
Na linha dos pombos, ou tão próximo quanto a imaginação o permite, apenas encontrei uma imagem, existente no Museu de Port Louis, na Maurícia, não na secção de sexologia, sim na de História Natural. Pelo ar reconfortado da ave, sou da opinião que se trata de uma pomba, possivelmente uma das belas que Leguat amou quando passou por Rodrigues.
Imagem 9: Representação de DoDó patente no Museu de Port Louis, Mauricia. In Luna de Carvalho.
Pedras, Ovos, Sementes e Hipopótamos
Na moela do DoDó encontra-se sempre uma e só uma pedra do tamanho de um ovo de galinha, diz Leguat. A comprová-lo, Newton & Clark apresentam três imagens de uma de três pedras, que encontraram na Rodrigues, aquando da Transit of Venus Expedition. Esta pedra, além de desenhada em três posições, foi analisada em profundidade, para detecção dos elementos minerais que a compunham. Basáltica na maior parte, continha hematites, plagioclases, feldspatos, olivinas, labradorite, opacite, augite e outros macrolitos. E anotam os autores que não se pode afirmar que fosse semelhante á pedra descrita por Leguat, por indubitavelmente não ser achatada num dos lados. De outra parte, a ave á qual pertencia aquele apêndice era jovem, pois a pedra ainda era pequena, só pesava 21,26 gramas. Talvez a pedra crescesse com o indivíduo, como pretendem os alquimistas que metais e minerais crescem e se desenvolvem; a menos que não fosse uma pedra, sim um bezoar, como Newton & Newton tiveram ocasião de comprovar em outro artigo.
Já nos nossos tempos, coube a Stephen Jay Gould (1996b) informar que o objecto contido na moela dos DoDós era a semente muito dura de uma árvore que habitava as terras altas da Maurícia, Calvaria major. Gould conta que Temple, o autor da novidade, argumenta que a Calvaria desenvolveu a sua casca invulgarmente espessa como uma adaptação para resistir á destruição por esmagamento numa moela de DoDó, tornando-se dependente da existência deste animal; visto que, só depois da abrasão, os embriões conseguiam furar a casca das sementes e germinar. O autor provou a teoria, socorrendo-se de perus - nas suas palavras, os análogos modernos mais próximos do DoDó - que obrigou a engolir 17 sementes de Calvaria, das quais 10 foram excretadas ou regurgitadas (as restantes esmagadas) e, destas, 3 germinaram. Hoje as Calvaria quase não existem e a culpa da sua extinção é atribuída ao desaparecimento do DoDó.
E assim, comendo as últimas sementes a caminho do Calvário, o DoDó transmutou-se em peru, para expiar as suas faltas debaixo dos pés do Cristo, á semelhança do dragão. Muito se arrependerá quem em Florença o baptizou.
Quanto a ovos, conheço um. A ser de DoDó, diz Kitchener, a ave teria o tamanho de um avestruz, mas como o autor não concorda que o ovo seja de DoDó, até esse, vindo de uma ilha onde só por milagre haveria avestruzes, se tornou duvidoso. Resta a esperança que seja de hipopótamo, pois já vos informei que existem em ilhas. Uma vez que os animais em ilhas sofrem fortes transmutações face ao stock parental, não será de todo impossível que os hipopótamos ponham ovos na Maurícia. Afinal, não será isso muito diferente de um pequeno pombo verde voar para uma ilha, aí engordar e perder a capacidade de voo e depois ir a nado para outras duas a 600 Km de distância, onde se transforma um pouco mais. Tudo isto num período inferior a 10 milhões de anos.
E ainda há quem diga que o DoDó era lento.
Anomalias Geográficas
Newton & Newton, ao discutirem a fauna e flora insulares, consideram que a existência de duas espécies de DoDó na mesma ilha apenas seria possível caso houvesse uma separação dela, como é o caso da Nova Zelândia, em que cada ilha tem a sua espécie peculiar de Apterix. Segundo os autores, a existência de espécies únicas com grande variabilidade individual em pequenas ilhas oceânicas não só está de acordo com o conceito de Selecção Natural, como é um forte argumento em seu favor. O que os pensantes irmãos Dupont & Dupont esqueceram é que não se trata de uma, sim de 3 espécies em cada ilha e isso de forma alguma concorda com o conceito de Selecção Natural. Aliás, talvez por isso um dos autores tenha implorado a um tal Snr. Janner para encontrar mais ossos de solitário e depois de aparecerem umas largas centenas deles, sabe-se lá de quê, puderam os ditos irmãos concluir que a espécie era única na Rodrigues.
Figura 10: Elementos da avifauna das ilhas do Pacífico apresentadas por Brehm: a) Raphus cucullatus - o DoDó; b) Didunculos strigirostris - a galinha vermelha.
Mas os problemas não acabam aqui, estendem-se até ás ilhas do Pacífico, onde Brehm localiza o DoDó endémico das Mascarenhas, com uma sua prima, a galinha vermelha, isto pelo lado Oeste; para Sul, o DoDó encontra-se na Austrália, de acordo com a tradução portuguesa de Alice no País das Maravilhas, na edição da Afrodite (Carrol).
Survival of the Fittest
O DoDó desapareceu no século XVII da Maurícia e no século XVIII da Reunião e da Rodrigues, mas as transmutações persistem nos dias de hoje. A última, aclamada com direito a capa da Oxford Today foi a nova silhueta anos 90 do DoDó (figura 11b).
Figura 11: Modelos actuais do DoDó: a) Zoölogisch Museum van de Universiteit van Amsterdam; b) Oxford University; c) American Museum of Natural History; d) British Museum; e) Mauritus Museum.
A pedido do Director do Museu da Universidade de Oxford, Kitchener, com centenas de ossos á sua disposição, fez um mapa de um esqueleto na escala de 1:50, a partir do tamanho médio de cada osso. Construiu um esqueleto a que juntou plasticina para representar músculos e outros tecidos. Obteve uma imagem singularmente idêntica ao primeiro retrato do DoDó, visível na obra de Cornelius Van Neck, um DoDó de pernas altas e pescoço fino. O modelo do autor sugeria um animal com peso entre 12,5 e 16,1 kg. Ora Herbert, por exemplo, garantia que o DoDó pesava no mínimo 23 kg. Outro método, baseado numa escala para o peso dos ossos dos pombos, permite estimar um peso entre 10,6 e 17,5 kg. Por mais que tentasse, nunca Kitchener conseguiu obter os 23 kg indicados por Herbert.
O DoDó era muito mais magro do que se pensa, por isso podia ter ganho a corrida eleitoral de Alice no País das Maravilhas. O mesmo aliás fora descrito em 1662 por uma testemunha ocular, o senhor Volquard Iversen, náufrago numa ilha a sudeste da Maurícia, que conta: Amongst other birds were those which men in the Indies called doddaersen ["round bottoms"]; they were larger than geese but not able to fly. Instead of wings they had small flaps; but they could run very fast.
Kitchener põe a hipótese de que o DoDó estivesse sujeito a ciclos sazonais muito diferentes nos recursos alimentares. Oudemans acrescenta que este comportamento é similar ao de outras aves endémicas da Maurícia, mas ressalva que nunca nenhuma delas mostrou discrepâncias de peso tão drásticas como as patenteadas pelos quadros do DoDó.
A confiar em Kitchener, conclui-se que os primeiros desenhos e quadros, que mostram uma ave muito mais magra do que aquela que estamos habituados a ver, foram todos efectuados no ciclo de grande pobreza de alimento. Os restantes, a partir de cerca de 1626, que apresentam invariavelmente a variedade mais pançuda, foram pintados durante o ciclo de abundância. Kitchener formula outra hipótese, com base no conhecimento de que a maioria das representações posteriores a 1626 são de artistas europeus que nunca foram á Maurícia. Os DoDós cativos na Europa eram por alguma razão mais gordos: They might have grown dissolutely obese on the voyage, gorging on an unrestricted diet of ship"s biscuits and the weevils that inevitably went with them. Outros autores lembram que os animais, na Europa, eram domésticos e por isso provavelmente sobrealimentados.
Da conclusão dos seus estudos, Kitchener elaborou um novo modelo de DoDó, patente no Museu de Oxford, a partir do qual se confirmam as expectativas do autor acerca da boa capacidade de corrida. Ao contrário do que tem sido dito do DoDó há mais de 340 anos, the reality is, however that in the forests of Mauritius it was lithe and active.
O autor aceita a tese dos ciclos sazonais mas nunca nas proporções que as figuras patenteiam. Finalmente, comenta com tristeza: Sadly, it is from this portraits of the last captive individuals that most people have gained their impressions of the world"s largest and famous pigeon.
Olhando para as representações da figura 11, vemos que tem sido acidentado o caminho mutante de uma ave que teve a triste missão de ser a primeira espécie extinta da era moderna. À semelhança do que tem acontecido com outros endemismos, em outras partes do mundo (Guedes & Peiriço), não julgo que a história acabe aqui. Acredito antes que por detrás de tanta transmutação há outras histórias, segredos por contar, códigos por decifrar. Em suma, jogos que me são difíceis de jogar.
Mas arrisco, e mesmo sem estar certo das regras avanço com as minhas propostas. Se as transmutações do DoDó forem apenas uma questão de adaptação ás correntes da moda e do design, permitam-me que apresenta a minha proposta para a colecção DoDó século XXI.
Figura 12: Galo monstruoso de Aldrovandi.
Podem rir. Mas se o fazem é porque certamente já esqueceram as regras do jogo. Eu levanto o véu. A informação que vos queria passar é que, creio eu, o DoDó, nascido como galo peregrino, só deixou de o ser para se tornar na galinha vermelha. Isto é, a espécie de DoDó é única, aquela que se transmutou em Aphanapterix imperialis. A ser verdade, terá razão Jerry Berg Man ao sugerir que os factos da história do DoDó não suportam o mito da evolução, suportam sim a corrupção moral da humanidade?
Eu não tenho a resposta, pois como vos disse desse jogo não conheço as regras. Apenas vos lembro que esta é uma história com início alguns anos depois da edição da obra de Darwin, On the Origin of Species, numa altura em que a Ciência começava a ganhar algum espaço á Igreja Católica e em especial ao Santo Ofício.
Por outro lado, o DoDó é uma ave nauseabunda, de formas grotescas, pateta e pachorrenta que se transmuta num animal de encantadora beleza, ágil, bastante elegante e com uma plumagem exuberante e cuidada. A valer pelo seu poder transmutante, o DoDó é a Fénix, ainda que inepta por não saber voar.
Parte III
Transmutação no discurso científico
Maria
Estela Guedes
As Professor Owen has remarked, there is no greater anomaly in nature than a bird that cannot fly. Charles Darwin, On the Origin of Species
Figs. 4, 5 e 6 - Uma pedra engolida pelo Dodó vista em três posições (Newton et al., 1879?)
O trabalho Do Dodó á Fénix resulta de investigação no âmbito do projecto Ciência extraordinária: espécies críticas e supercríticas, da responsabilidade exclusiva dos dois autores. Nuno Marques Peiriço, ao mostrar como o dodó se transmuta na iconografia, já declarou que espécies críticas são aquelas cujo historial é mais mirabolante do que um espectáculo de ilusionismo, precisando por isso de ser lido com espírito crítico.
Para contextualizar a transmutação dos dodós convém iluminar três pontos:
1º A palavra transmutação ocorre em História Natural em lugar de evolução. Darwin pouco ou nada usou este vocábulo. Em vez dele, prefere variação. Owen, contemporâneo de Darwin, quando refere as mudanças anatómicas do solitário, o termo que emprega é transmutation. Nem todos os evolucionistas eram darwinistas, na maior parte defendiam o criacionismo - Deus criou, mas as espécies não são imutáveis.
2º A ciência garante que três espécies de dodó se extinguiram nas três ilhas nos três últimos séculos, e que só uns treze animais vivos viajaram das Mascarenhas para outras partes do mundo, entre elas um para o Japão. Tudo o que deles resta são ossos soltos e reconstituições. Gould vai ao extremo de afirmar que, in flesh and blood, não há mais do que a pata e a cabeça do exemplar empalhado de Elias Ashmole, salvas da fogueira em 1755, data sísmica, pois foi em 1755 que a ave nauseabunda sofreu tal condenação. Com apenas um pé e uma cabeça de não se sabe o quê, nenhum naturalista descreveria uma espécie, e, se o fizesse, ninguém lhe publicava o artigo, salvo em circunstâncias extraordinárias. No mínimo, em caso de vida ou de morte. Ornithoptera solitaria foi descrita a partir da gravura de um livro, em data recente, o que é ainda mais inacreditável. é o mesmo que pegar num livro de quadradinhos e descrever como novas espécies o Pato Donald, o Rato Mickey, etc.. Ora as transmutações do dodó, a que também se dá o nome de tolo e idiota, não andam longe das de um Superpateta.
3º O período Fénix do dodó segue de perto a publicação da Origem das Espécies (1859). é aquele em que, por obra dos irmãos Newton, a ave renasce das cinzas para se transmutar numa vedeta científica. O estrelato ocorreu na sequência de uma Transit of Venus Expedition. Periodicamente, Vénus aproxima-se de nós, e o ponto da Terra de que mais se aproxima é as Mascarenhas.
Na Maurícia havia um lago, a Mare aux Songes, que então estava a ser drenado. Ora foi aí, no Lago dos Sonhos, que Edward Newton e os naturalistas da Expedição do Trânsito de Vénus descobriram importante depósito de ossos de várias espécies, entre elas de Didus ineptus e de Didosaurus mauritianus. O Didosaurus, ou sáurio Dido, tem a propriedade de apresentar, na iconografia, um osso de mamífero. Este facto espectacular indica certamente a sua origem atlante, pois o osso transmutado é o atlas. De outra parte, um célebre lagarto gigante de Cabo Verde foi considerado seu descendente (Hoffstteter), pelo que mais uma vez o discurso científico aponta para a Atlântida.
É através da New Atlantis, de Francis Bacon, que o mundo submerso de Platão penetra no discurso da ciência. Este livro, ao descrever o sistema governativo de uma sociedade de 36 fellows numa ilha secreta, forneceu inspiração aos construtores de uma das mais poderosas sociedades científicas, a Royal Society of London, cujos membros se auto-designavam Colégio dos Invisíveis, isto é, Rosa-Cruz. O período Fénix do dodó inicia-se nos anos sessenta. Em 1870, Alfred Newton, reputado ornitologista, será eleito fellow da Royal Society. Por seu intermédio, o irmão, Edward, auditor-geral na Maurícia, obtivera financiamento para explorações na ilha Rodrigues, onde tinha descoberto muitos ossos de solitário, após as colheitas no Lago dos Sonhos.
O tema da Atlântida está presente na ciência até para lá de meados do século XX. Para a biogeografia atlante, espécies como o dodó, o sáurio Dido, os lagartos e osgas de Cabo Verde e Canárias, etc., são relíquias (fósseis vivos) da fauna de um continente afundado, cujos pontos de altitude afloram como ilhas. Outras teorias rejeitam a atlante, por isso negam que tais espécies sejam fósseis vivos, para as considerarem modernas, formadas tão recentemente como as ilhas que habitam. As Mascarenhas só têm vinte milhões de anos de idade, de acordo com The New Caxton Encyclopedia.
Estudado pelos cientistas da época, o Didus ineptus foi elevado á via de Vénus ou, como diria o Abade Pingré, sic itur ad astra. Nas palavras de Newton & Newton, tomou a place among the constellations.
E porquê subiu ao céu uma ave quase sem asas, que não voava? Precisamente, porque estamos a viver a polémica da selecção natural ou sobrevivência dos mais aptos. O Didus ineptus torna-se um desafio para a ciência, ao reclamar a sobrevivência dos inaptos. E qual a sua origem geográfica e genética? A maior parte das fontes inclina-se para a hipótese de que na origem teria sido um pombo. Chegado a ilhas distantes do continente, encontra um éden sem cobras nem outros predadores de que fosse preciso fugir usando as asas. Não precisando de usar as asas, elas atrofiaram-se e por isso diferenciou-se dos pombos. Estas teorias são contrariadas por Gervais & Coquerel, ainda no século XIX, ao declararem que o dodó não é um pombo modificado, sim uma ave que sofreu uma paragem no desenvolvimento do aparelho de voo. Esta hipótese também é defendida por cientistas actuais: o dodó é uma ave que nunca chegou a voar. A sua inépcia é inata e não adquirida. Mas, se já nasceu inepto, a menos que Deus o tenha criado assim nas Mascarenhas, não se vê a que outro milagre possa dever a existência, excepto, claro, ao da criatividade humana.
Extraordinário é que na Origem das Espécies Darwin não mostre conhecer sequer o dodó, quando ele tem sido tão discutido quanto á evolução. E sobretudo sendo Darwin criador de pombos. Hibridava-os, conhecia todas as variedades, entendia que todas derivavam do pombo das rochas, Columba livia, a que muito se assemelham os pombos das praças. Darwin concorda com Owen em que não há maior aberração na natureza do que uma ave incapaz de voar, mas não lhe ocorre o exemplo da Fénix inapta, porque, á data, a Fénix ainda não tinha ressuscitado para o teatro darwinista.
Extraordinário também que Bernardin de Saint-Pierre não o inclua na avifauna de Paul et Virginie. A entidade mais semelhante a Dido que na obra se encontra é o primeiro editor, M. Didot. A dado passo, porque Virginie gostava de ouvir o canto das aves junto de uma fonte, Paul transporta para ali ninhos de todas as aves da Maurícia, mas nada de dodós. Mais longe, ao falar das aves de arribação, o narrador menciona os pombos holandeses. Mas estes são migradores, com boas asas. Saint-Pierre viveu na Maurícia de 1768 a 1770, desempenhando funções de "maítre maçon", literalmente, ele que se diz ter sido pedreiro em livre exegese. E nem por uma vez menciona a Dido inapta. é certo que nessa época já só sobreviviam os solitários de Rodrigues e de Reunião. Em todo o caso, estranha-se o silêncio, quando afinal a história dos amores de Paulo e Virginia pertence a uma época anterior, contada como foi pelo velho Domingos.
A ciência faz remontar a história das Didos a Vasco da Gama, primeira pessoa que as terá visto, ao passar pela Maurícia (Osório). Acontece que Vasco da Gama não passou nas Mascarenhas, e os únicos animais associáveis a dodós de que fala Álvaro Velho são os soliticairos:
E neste ilhéu há umas aves que são tamanhas como patos, e não voam porque não têm penas nas ásas, e chamam-lhes soliticairos e matámos delas quantas quisémos; as quais aves zurram como asnos.
O consenso assentou em que o descobridor das Mascarenhas foi Pero de Mascarenhas, nove anos após a passagem do Gama pelas cercanias de Madagáscar. Assim sendo, embora nenhum português tenha até hoje reclamado a descoberta dos dodós, dê-se o dodó a Mascarenhas e a Gama o pinguim do Cabo, pois é dele que fala Álvaro Velho. A sua nota é tão correcta que é como zurrar de asnos que os ornitólogos ainda hoje lhe descrevem a voz (Brown et al.). As aves zurrantes, Spheniscus demersus, habitavam um ilhéu perto do Cabo da Boa Esperança, e foi já em Janeiro de 1498 que os marinheiros as avistaram.
A que motivo se deverá a implantação destas aves, digamos que invertidas, em ilhas tão distantes do palco científico europeu? Estamos a lidar com naturalistas, e naturalistas e maçons são quase sinónimos. Lendo pela cabala hermética o nome da Expedição do Trânsito de Vénus, achamos nele os Fiéis do Amor, defensores da Igreja Invisível, oposta á Romana. Pedro de Mascarenhas, como todos os Mascarenhas da família deste Pedro que não deve ser o navegador, foi o introdutor da Companhia de Jesus em Portugal, em 1540. Jesuítas e maçons não são doces que se possam juntar na mesma bandeja. De outra parte, estas ilhas foram palco de disputas e partilhas entre pombos que uns aos outros se atacavam e os holandeses não seriam os menos aguerridos - portugueses, espanhóis e ingleses. Aos portugueses criticavam por exemplo os holandeses a nossa tendência para o secretismo: mapas deliberadamente erróneos, para ninguém saber onde ficava o Brasil, diários de bordo que não se publicavam, etc.. E é facto que os portugueses, a respeito do dodó, mantiveram até hoje o mais profundo silêncio, ao contrário de todos os adversários, que publicam informações não só deste mundo como do outro, o que acaba por dar no mesmo secretismo. Em suma, Pedro é pedra, e sobre estas pedras mascarenhas se edificou o templo ao dodó.
Desde Clúsio, que só lhe viu um pé, o bastante para se reconstituir toda a arquitectura orgânica, aos utilizadores da Internet, o dodó tem sido transmutado de todas as maneiras. Nuno Marques Peiriço já mostrou algumas, e como resultam de golpes de varinha mágica. As transmutações iconográficas não são autónomas das literárias, o ícone interage com o verbo: se de repente vemos uma Dido com os dedos ligados por membrana interdigital, deve-se isso a Cuvier ter dito que os dedos de Didus ineptus seriam de pinguim, se os pés fossem palmados. As imagens em que o dodó é um avestruz decorrem de Lineu o ter classificado como tal - Struthio cucullatus.
Assinalemos uma diferença entre os dois discursos: no escrito, há frequente identificação com o pombo, aliás o dodó continua na ordem Columbiformes. Nas imagens, só com imaginação nos parece columbiforme. é mais um negativo ou uma paródia disso. Falta-lhe a graça, a espiritualidade da Pomba. Diz-se que era tão denso que arrastava o ventre pelo chão, e no livro de Lewis Carroll até usa bengala. é tão plúmbea a sua matéria que não surpreende ver a imagem na qual, enfrentando a espada de S. Jorge, substitui o dragão (Luna de Carvalho).
Se o dodó fosse um dragão, talvez pudesse ter chegado á Maurícia num carro de fogo, tal como Elias foi para o céu. Elias o profeta, não Elias Ashmole, o alquimista que tinha uma Dido empalhada, anos depois condenada á fogueira. Mas seria ela um dragão? Consoante as fontes, já se transmutou em avestruz, galinha, galo, peru, grou, cegonha, pato, pombo, abutre, cisne, etc., e Gallinogralle.
Com o táxone Gallinogralle (Gervais & Coquerel), passamos mais directamente ao discurso científico penetrado por técnicas destinadas a duplicar sentidos, o que é próprio do discurso alquímico, mas não se aceita em ciência, ainda que esteja á vista com a grandiosidade de um hipopótamo insular escarrapachado nas páginas do Boletim da Sociedade Geográfica de Madrid, e pelo punho de um dos directores. Inútil dizer que é de propósito que alguém descreve o dodó como um cubo montado em colunas cúbicas e com dedos sem unhas, quando na imagem o bicho tem garras enormes e mais perto estaria da esfera. A ciência normal não aceita duplicações de informação num dicionário de História Natural publicado em Paris e com mais de uma dúzia de volumes. Nem os artistas da mesma arte aceitam ás vezes que um arquitecto está por detrás da descrição, que as colunas têm as letras J e B, e que o cubo já se sabe que representa o Templo maçónico. Para todos os efeitos da paz de espírito, o que temos vindo a enunciar são erros de ortografia, manifestos de ignorância das fontes, etc.. Que pânico move á rejeição? - o da fraude. Mas não é fraude, é guerra, subversão, terrorismo cultural, como já tivemos oportunidade de comunicar no trabalho sobre a Chioglossa (Guedes & Peiriço, 1998). Paródias como a do dodó impedem que o leitor aceite a autoridade do mestre, portanto elas são uma guerra aberta ao ensino escolástico, que entre nós foi monopólio dos jesuítas até ao tempo do Marquês de Pombal. O novo ensino que se propõe é o do livre arbítrio, da livre interpretação, que corresponde ao aprende á tua própria custa dos alquimistas, posto o método em termos profanos.
O dodó revelou-se espécie crítica quando nos apercebemos de que a sua literatura e iconografia constituiam um currículo fortemente gralhado. Gralhado como em "Gallinogralle", que literalmente seria fruto de relações sexuais entre uma pernalta e uma galinha. O táxone Grallae já não é válido mas, outrora, pertenciam-lhe espécies como o flamingo. No Egipto, a Fénix, ou ave Benu, era a garça vermelha, Ardea purpurea. Foi porém ao flamingo que a ornitologia deu o nome da Fénix - Phoenicopterus ruber roseus. O étimo gradus que subjaz a Grallae sugere todo o tipo de graus, grãos e silêncios.
Falar ás aves e arte de música são designações da ciência hermética, aquela cujo discurso só é decifrável mediante a íntima conquista de chaves, ao longo de uma via de provações em direcção ao inexprimível. Na linguagem das aves incluo a das gralhas, irmãs dos corvos e rivais das musas, cuja tagarelice causa ruído ensurdecedor. Discurso gralhado é aquele em que a informação científica normal é subvertida pela extraordinária. À maneira de vírus, a gralha infecta o documento. Porém, em vez de o destruir, desdobra a informação. Vejamos alguns órgãos do discurso científico feridos pelas gralhas.
Discurso das Gralhas
1. Nomenclatura
a) confusão de identidades
b) etimologia inverosímil
2. Geografia
a) distribuição geográfica anómala
b) anormalidades geográficas
3. Anatomia e comportamento
a) dados somáticos fabulosos
b) sexualidade transcendental
4. História
a) arquitectura mítica
b) materiais de construção esotéricos
Por confusão de identidades não me refiro á circunstância de o dodó não ser uma espécie, sim cerca de nove; nem á de ter muitos nomes - walgh vogel, doddaers, dronte, doudo, solitário, avestruz encapuçado, cisne macaco, galo estrangeiro, dudu, etc., na nomenclatura vulgar; e Pezophaps, Didus, Raphus, Victoriornis e Ornithoptera, na científica - isto não é confusão, sim resultado normal do trabalho dos sistematas. O que não é normal é o acervo de confusões que levam Gervais & Coquerel, por exemplo, a dizer que os únicos dodós verdadeiros eram os de Rodrigues e da Maurícia. Dos de Reunião não havia um desenho, um osso, uma descrição.
Perguntemos: Que confusão de dodós há na ilha Rodrigues? - e logo Damião Peres e Fontoura da Costa, em pleno século XX, respondem:
"A Reünião e a Mauricia, belas pérolas do Oceano Índico, a E. de Madagascar, são duas ilhas que restam de um grupo que as Cartas do século XVI indicavam como sendo três. A terceira só existiu na ardente imaginação dos descobridores portugueses."
Se Rodrigues nunca existiu, fica demonstrado que as confusões de dodós nela existentes não passam de fruto da minha ardente imaginação, e por isso até me dispenso de tocar no item das anormalidades geográficas.
Quanto a duplicação de identidades humanas, é ver que certas fontes atribuem todas as gravuras de dodós de Savery a Savery, como se o Savery pintor de dodós fosse só um, quando no mínimo há dois, o Rolando e o Salomão, se bem que as suas datas de nascimento distem só dezoito anos; é ver como o distinto ornitologista Alfred Newton (1865), director da mais importante revista de aves do mundo, a Ibis, que ainda se publica, pede várias desculpas: por ter classificado machos e fêmeas de dodó como duas espécies de dodó; por ter classificado um dos redescobridores do dodó como filho do governador da Maurícia, o capitão Barcly, quando o Barclay redescobridor do dodó não era filho do governador da Maurícia. E não esqueçamos a actualíssima salada de Hatchissuka, Hachisuka, Hachissuka e Hakisuka, tudo especialistas japoneses em dodós.
Para fechar a alínea, recuemos á confusão gerada por Emmanuel Althman, quando escreve ao irmão, a avisar que envia da Maurícia uma estranha galinha e umas contas para as primas, filhas do seu most loving brother: of mr perce you shall receue a iarr of ginger for my sister: some beades for my Cosins your daughters: and a bird called a DoDo (Newton, 1874).
O aviso de que estas cartas são posteriores ao século XVI vem da inadequação de parentescos. E então percebemos que quem de facto as assina, como autor de obra e de arte, são Bons Primos (carbonários) e Irmãos (maçons).
Quanto á etimologia, incide na palavra dodó, que não provém de uma língua, sim de todas, consoante a nacionalidade da fonte. Não se trata de os portugueses reclamarem nada, sim de ingleses e franceses nos oferecerem de bandeja a palavra doudo como étimo de dodó; de o Webster afirmar que provém do francês doudo (na edição do Webster mencionada na bibliografia; noutras, a imagem mostra um dodó anatomicamente diferente, e desaparece a informação de que a palavra doudo é francesa); e de Cândido de Figueiredo, sem mais explicações, oferecer ao inglês dodl a filiação de doido. Além disto temos de contar ainda com as palavras holandesas Dodars, Dodoor, Doddaers, etc., que nos afiançam serem todas origem da palavra dodó e significarem pateta e preguiçoso.
A palavra dodó existe em português, de acordo com o Didionário Etimológico de Pedro Machado, originária do concani dhadó, que por sua vez provém do hindustânico, remontando decerto este a alguma expressão sânscrita querendo dizer não tem os alqueires todos bem medidos, uma vez que o dodó é uma medida de peso.
A Mare aux Songes é bom local para fazerem dodo os que precisam de fraldas Dodot, e com isto lembro que o dodó sofria de gigantesca imaturidade. Maddox interpreta como pedomorfose esta frase, junta a uma descrição segundo a qual os dodós eram aves adultas com aparência de pintainhos, por terem o corpo coberto de penugem em lugar de penas. Outras fontes, porém, referem que inicialmente se julgava que as Didos eram todas fêmeas, fenómeno também inteligível como pedomorfose, mas injustificados ambos atendendo a que não havia predadores nas ilhas que os poupassem por delicadezas morais. A não ser os marinheiros de que diz Leguat não raro pouparem as fêmeas á morte por serem maravilhosamente belas. Em suma, o dodó é um brinquedo como a Nessie, com que ainda hoje a ciência arma e desarma hipóteses, subverte, diverte, controla o conhecimento, nos desarma a nós também.
Avanço para Vénus, a deusa do Amor, esse anagrama. Estamos no coração de uma guerra entre Roma e os naturalistas, com a encíclica Humanum genus entalada na garganta de muitos. Em Portugal, como o governo era maçónico, nem a queriam traduzir (Clemente). Não posso entretanto parar aqui, sim no papel do sexo na permanência da vida e suas transmutações - sejam as espécies imutáveis, transformáveis por adaptação a novas condições do ambiente, ou modificáveis pela selecção natural, o meio de que a natureza dispõe para isso se passar é a cópula, etc., e subsequente reprodução de caracteres.
Com a subversão das gralhas, o sexo transcende não só a norma como o natural. A cópula entre dodó e marinheiro, como sugeriu a imagem encontrada em Luna de Carvalho, imita cópulas divinas como a de Leda e o cisne, ou das virgens daomeanas com Dangbé, a piton sagrada. O relato de Leguat que traduzimos no programa do colóquio, acerca do dodó da ilha Rodrigues, retrata bem a sensualidade das espécies críticas.
A história das espécies não católicas costuma ser como Paul et Virginie, muito bem construída pelos mestres pedreiros. Na de Dido temos três pedras e, como as pedras são órgãos essenciais na anatomia das aves, Newton & Clark proporcionaram-nos a importante visão de três faces da pedra que um dodó entesourava na moela. E mais: essas pedras, de basalto, não existiam no local onde tinham sido desenterrados os ossos do dodó, só a milhas de distância, donde se depreende que os pintainhos, mal saíam do ovo, empreendiam a questa do Lapis basalticus. Essa pedra ia crescendo filosofantemente á medida que crescia a moela, até a moela atingir proporções compatíveis com uma pedra do tamanho de um ovo de galinha. Leguat confirma que interpretei correctamente este fabuloso achado, ao declarar que a pedra da moela dos dodós era a preferida para amolar facas, decerto pelas perfeitas dimensões.
A pedra mais curiosa deste templo narrativo é Elias Ashmole, doador de um museu á Universidade de Oxford, entre cujos objectos ia uma Dido empalhada. Em 1755, a administração do Museu da Universidade manda lançar o empalhado á fogueira, por ser um objecto inútil, feito com penas de várias espécies de aves, bolorento e cheio de traça. O conservador salva uma pata e a cabeça como peças de inventário, para obedecer ás regras do próprio Ashmole, falecido décadas antes: devia guardar-se uma pata e a cabeça de todos os animais reformados. Enquanto perdemos tempo a magicar em patas e cabeças de centopeia e de minhoca, escapa tudo o que é importante. Ashmole, como Bernardin de Saint-Pierre, era um arquitecto, um mestre pedreiro. Na pré-história da maçonaria, encontramo-lo a assentar as colunas da ordem sobre os três graus de iniciação. Toda a história do dodó é alquímica, assinada pelos mestres maçons.
Jerry Berg Man estudou as mais recentes teses evolutivas sobre o dodó. Conclui que se aceita hoje a passada existência da espécie, não porém a tese de que se tenha modificado. Os factos apontados, diz ele, não suportam o mito da evolução, suportam, isso sim, a corrupção moral da humanidade.
Eis uma extraordinária conclusão moral, de que tomo distância, preferindo a literária: Dodó era a alcunha de Charles Lutwidge Dodgson. Lewis Carroll era tão gago que lhe custava imenso apresentar-se. Dó-dó-dó, tentava. E como bem tentava, por Dodó ficou conhecido (Carroll).
Quanto ás aves das Mascarenhas, os portugueses começaram por dar á Maurícia o nome de Ilha do Cirne ou do Cisne. Melhor é ficar por aqui e olhar para a solitária de Leguat (Figura 13). Não é tão bela que dá dó?
Solitária de Leguat. In Owen
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Autor:
François Leguat
Nuno Marques Peiriço
Maria Estela Guedes
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