A partir da descrição do filme peruano Não conte a ninguém, dirigido por Francisco Lombardi em 1988, este artigo pretende uma discussão acerca de algumas representações da homossexualidade presentes nas culturas latino-americanas. Recorre-se a uma revisão dos estudos de sexualidade e gênero até a constituição de um corpo teórico que permite menos a explicação das diferenças do que o questionamento dos discursos hegemônicos, a queer theory, bem como esboça-se algumas representações da homossexualidade recorrentes nas culturas latino-americanas. Dessa forma, há um questionamento acerca das idéias que circundam os discursos sobre a homossexualidade que acabam por legitimar a heteronormatividade, ainda que carreguem propostas de emancipação dos sujeitos.
Palavras-chave: Homossexualidade - Cinema GLBTT - Teoria Queer - Performatividade
- Heteronormatividade.
Pra começar...
"Neste país você pode ser viciado, traficante ou ladrão, mas não bicha!"
(Diálogo de Não conte a ninguém)
Tudo começa dentro de um acampamento de crianças e adolescentes, no interior do Peru, numa noite de lua cheia e cantoria em volta da fogueira. Joaquin, um menino de 7 anos, durante aquela noite pronunciaria a frase que daria tom á sua vida. Na hora de dormir, ele tenta se aproximar eroticamente de um amigo que de pronto lhe responde com um "que es esto maricón?", forçando o recuo de Joaquin com um aterrorizante pedido: "No se lo digas a nádie". Não conte a ninguém (Peru, 1998), filme de Francisco Lombardi, baseado na obra do escritor peruano Jaime Bayly, vai mostrar na seqüência a vida de um Joaquin triste e sem lugar numa sociedade onde a violência contra minorias étnicas e sexuais parece não chocar, em que espancar um travesti ou atropelar um índio na beira da estrada compõem formas de lazer de integrantes de uma certa burguesia. "Não conte a ninguém!" é uma frase que acompanha a vida do rapaz que só vai esboçar qualquer tipo de felicidade quando se muda para Lima para fazer faculdade, conhecer o sexo e o uso de entorpecentes. De um pedido infantil de desculpas, a frase vai se transformando num terrível ardil que relega ás relações de mesmo sexo á categoria de possíveis, porém inconfessáveis. Toleráveis desde que não coloquem em risco uma identidade masculina baseada em ideais de família, em que um casamento heterossexual não propriamente tem a ver com desejo sexual. A sucessão dos fatos leva Joaquin a não contar nada a ninguém e aceitar o casamento com Alessandra - uma amiga de faculdade disposta a fazê-lo superar seu "problema", seu "trauma"1 -, sem, no entanto, deixar de manter encontros sexuais com Gonzalo.
O filme não é sobre paixões arrebatadoras e romantismo entre pessoas do mesmo sexo, mas uma necessidade de ajuste de Joaquin á sua sociedade. Digo isso, por não se tratar de uma luta por liberdade ou quebra de tabus, típico de muitos filmes que nos últimos anos têm enfocado as relações de mesmo sexo. Os desejos sexuais de Joaquin não representam uma realidade impossível para seu país. O que ele vai descobrir é a devida localização daquele desejo, suas condições de possibilidade, restrito á fugacidade, á clandestinidade, ás sombras. é impossível não lembrar de cenas e falas tão comuns em muitos contextos da realidade brasileira (que não pode se pensar padronizada neste quesito), onde homens e mulheres que se relacionam afetiva e sexualmente com pessoas do mesmo sexo raramente não se deparam com situações em que são incentivados a não contar nada a ninguém.
Longe de querer estabelecer grandes estruturas de gênero e sexualidade na América Latina, este trabalho parte deste filme como exercício reflexivo para encontrar não comportamentos padronizados, mas idéias que se atualizam em espaços fortemente marcados por distinções gradativas entre homens e mulheres, brancos e não-brancos.
Enfocando mais as questões de gênero e sexualidade, pretendo mostrar que mesmo com o que se tem chamado de "boom gay" dos anos 90, quando a homossexualidade se marcou pela conquista e consolidação de espaços como as paradas gays, os carnavais GLS, casas noturnas exclusivas e não mais camufladas, além de discussões menos marcadas pelo tom predominantemente conservador - ainda que tenha havido um recrudescimento de grupos político-religiosos em sua cruzada contra a livre expressão sexual -, as práticas homoeróticas ainda se encontram circunscritas a um deslocamento quase inevitável numa cultura de gênero que vai ligar desejo sexual com identidade e estabelecer hierarquias entre masculinidade e feminilidade, em termos de atividade e passividade, capacidade de agir e negação de agência.
Desde que a homossexualidade começou a exigir discursos científicos que apontem suas causas e, em muitos casos, que indiquem formas de "resolver o problema", ela vai ser foco nesses 150 anos2 de inúmeras discussões que fazem-na passar (sob o posto de vista científico) de anomalia biológica a orientação sexual, tendo experimentado durante boa parte deste período a condição de "problema social" que deveria ser resolvido pelas autoridades biomédicas e jurídicas (FRY e MACRAE, 1986; TREVISAN, 2000; GREEN, 2000). Os movimentos sociais e as teorias feministas vão constituir nas últimas décadas do século XX um campo de forças e estudos renovados que não necessariamente apontam causas, mas de certa forma contribuíram na construção de novas possibilidades de sociabilidade e de interpretação das categorias de gênero e comportamentos sexuais não mais circunscritos ao controle e á "normalização" que prega a naturalidade das relações heterossexuais.
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