Segunda-feira, oito da noite. Os primeiros que chegavam iam juntando mesas e ordenando cadeiras em um grande círculo. Pouco tempo depois, cerca de 30 pessoas - homens e mulheres - se acomodavam em torno da mesa, abrindo seus livros de literaturas. Começava a Tertúlia Literária Dialógica da Escuela de Educación de Adultos La Verneda de San Martín. [1]
Durante duas horas, este grupo formado por pessoas com idade variável entre 50 e os 85 anos entrecruzavam as idéias e narrativas expostas nas obras literárias de diferentes autores com as histórias de suas vivências e os acontecimentos cotidianos, materializando um processo de educação de adultos focalizado na participação, superação da desigualdade, inclusão e mudança, via aprendizagem dialógica[2]. Por seis meses participei, como voluntária, desses processos sócio-educativos. Tentei, de maneira plural, conciliar uma postura de pesquisadora/observadora participante, marcada pela objetividade e pela alteridade com a de "aprendiz", caracterizada por relações simbólicas e subjetivas, enunciadoras de uma nova identidade. Não tive pretensões de respostas precisas sobre as minhas questões de investigação: que aprendizagens ocorrem nos processos educativos promovidos pelas tertúlias literárias? será que os procedimentos adotados nessa atividade educativa possibilitam a transformação e a inclusão do indivíduo, previstas nos seus objetivos? A incerteza faz parte da trajetória de construção do objeto de investigação, do próprio objeto de conhecimento. (Fialho, 1983)
Neste texto, intento resgatar a história das tertúlias literárias dialógicas e a da minha participação como voluntária dessa atividade educativa que idealiza propiciar aos integrantes elementos em favor da igualdade educativa e social e para a luta contra a exclusão social de pessoas adultas - notadamente idosas - (Flecha e Miguel, 2001), baseando-se nas idéias de dialógo e de consenso e defendidos por pensadores como Freire, Habermans, Beck, Giddense Vygotsky.
Conviver com esta experiência e com essas pessoas adultas me oportunizou múltiplos e diversificados conhecimentos, tanto no âmbito da pesquisa e dos saberes sobre a aprendizagem dialógica, como, e, sobretudo, na dimensão das sociabilidades e dos afetos propiciados pela convivência com o grupo. Como o processo de busca de conhecimento não é neutro, assumo a responsabilidade por misturar abordagens e reflexões objetivadas e requeridas pelos processos de investigação acadêmica com sentimentos subjetivos decorrentes das minhas memórias e representações. Assumo, também, seu teor "complexo". Meu interesse foi o de, a partir da reflexão sobre os métodos pedagógicos de aprendizagem das pessoas adultas, estabelecer "diálogos" com outras disciplinas como a antropologia, sociologia e filosofia, áreas que, também, lidam com os processos de aprendizagem, identidade, conhecimento, participação, autonomia, igualdade e transformação, categorias que contemplam a formação integral do adulto.
Será, portanto, combinando formas diferentes de perceber e explicar o mundo da educação que relato esta experiência de educação de pessoas adultas, através do uso da literatura e dos princípios do diálogo. Na primeira parte do texto trato de me colocar como indivíduo em processo de descobertas e de redefinições de valores ao confrontar-me com uma sociedade heterogênica e variada em experiências e costumes: a cidade de Barcelona. Na segunda parte procuro descrever e analisar os procedimentos educativos da tertúlia através das vozes e das representações do mundo dos personagens participantes daquela experiência educativa. Por último, tento refletir sobre a relação entre os princípios e objetivos que norteiam a aprendizagem dialógica e o alcance da sua aplicação prática, manifestada nos processos de aprendizagem das pessoas adultas.
A organização e o desenvolvimento do texto será orientado pela idéia de que a proposta teórico-metodologica da tertúlia literária em aplicação na Escuela de Adulto La Verneda de Sant-Martí, Barcelona, Espanha propicia que pessoas adultas com características e histórias de vidas semelhantes e diferentes combinem interesses e objetivos particulares e universais (Velho,1999: 18) para, em conjunto, transformarem experiências (projeto individual) vividas e percebidas em respostas coletivas (projetos sociais) que lhes possibilitem a construção - para si e para o outro - de um campo de possibilidades na superação de situações de desigualdades sociais e educativas.
Em uma tarde de verão, seis meses após iniciar meu estágio de pós-doutorado na cidade de Barcelona, Espanha, Cervantes me introduziu nas tertúlias literárias, através das suas Novelas Exemplares.
Nos primeiros meses após a minha chegada áquela cidade, sem conseguir maior integração com os grupos locais e sem maior domínio das regras culturais do novo contexto - inclusive o idioma catalão - sentia-me insegura e em situação de exclusão [3]. Esses sentimentos, causados pela sensação de inúmeras perdas: da identidade, do espaço social familiar, da voz (Burke,1995) e do reconhecimento social propiciado pelo local, contraditoriamente, se compensava pela liberdade do anonimato e dos desafios de viver, de forma intensa, novas experiências e descobertas plurais, tanto do ponto de vista acadêmico como social. As condições multiculturais da cidade, por exemplo, propiciando constantes manifestações e debates sobre os iguais e os diferentes e sobre a possibilidade de se viver juntos (Touraine, 1999), enunciavam as possibilidades humanizadoras da tolerância e da inclusão em um mundo globalizado. Pouco a pouco, passei a celebrar a oportunidade impar de me submeter a todos os processos de aprendizagens que me possibilitassem combinar o pluralismo cultural em situação de descobertas com as experiências de vida (identidade pessoal) propiciadas pela vivência anterior, em busca de uma "auto-adaptação" (Burke, op.cit., p.91)
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