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Em torno da mesa: Como iguais e diferentes aprendem juntos através do dialógo literário (página 2)

Emilia Maria da Trindade Prestes

Foi vivenciando essas sensações duais e heterogêneas na diversidade dos seus componentes, funções e possibilidades que me ofereci como voluntária para atuar em uma das atividades oferecidas pela Escuela de Personas Adultas la Verneda-Sant-Martí,[4] optando pelas tertúlias dialógicas de literatura universal - ou tertúlia literária - acreditando ser a mais adequada ás minhas capacidades e condições de estrangeira.

Objetivamente tinha presente que participar das atividades de educação de pessoas adultas oferecidas pela Escuela La Verneda-Sant Martí, aplicando conceitos educativos baseados no diálogo e na interação e privilegiando as relações entre educação, transformação e cidadania, me possibilitaria novas aprendizagens e auto-aprendizagem e o cumprimento de um plano de trabalho acadêmico pré-estabelecido. Do ponto de vista subjetivo, emergiam necessidades de natureza simbólicas e afetivas (Gonzáles Ochoa, 2000). Eu necessitava interagir e compartilhar com o outro, novas experiências, uma das formas de exercitar a prática do viver juntos, ainda sendo diferente. (Touraine,1988.) Assim, naquela verão de 2003, ciente da minha condição de Estranha ao grupo (Beck, 2000) oriunda de um país visto como colonizado, ingressei, timidamente, em uma turma especial de leitores dos clássicos da literatura. Apesar dessas condições que me  faziam sentir diferente diante dos interesses do grupo,  estava disposta a conhecer e vivenciar uma experiência de educação de adultos idealizada e desenvolvida por e para um grupo homogêneo, do ponto de vista cultural. Havia sido informada que, exceto a monitora e os voluntários (como eu), nenhum dos demais integrantes do grupo tinha realizado ou estava realizando estudos universitários e nem "pertenciam ao público habitual ao que se dirigem  as ofertas culturais", ou seja, pessoas adultas  "que os preconceitos oficiais (inclusive eu)  consideram como não motivadas pela literatura" (Flecha: 2003:11).   Com efeito, no meu caso,  trazia muito interiorizadas as concepções de aprendizagens atreladas aos modelos pedagógicos teleológicos, normativos e conservadores, em que pessoas adultas e com pouca escolaridade teriam muito que aprender e pouco que contribuir no desenvolvimento das aulas. Por isso esperava que o monitor e a equipe voluntária  centralizasse em si o processo de aprendizagem.

 é importante dizer que essas minhas representações não estavam dissociadas da minha realidade anterior. No bojo das minhas experiências locais com adultos - basicamente analfabetos - trazia como referência um publico que, não raramente, vivenciava seus processos educativos através das praticas do silêncio, signo inequívoco de uma sociedade que conserva suas marcas hierárquicas.  No contexto brasileiro, marcado por enormes diferenças sociais e econômicas, o uso da voz nos espaços coletivos de público heterogêneo é um símbolo de status e de diferenciação, sobretudo, de "consciência falante" confirmando as idéias de Bajtín, de que é a língua (a palavra), produto da atividade humana coletiva e reflexo da organização econômica e sóciopolítica da sociedade que a gerou, a que permite o diálogo e a pluralidade de vozes (In: Vila, 1998: 80-87).

O nordeste brasileiro, mesmo sendo o ambiente sócio-histórico da produção pedagógica de Paulo Freire, ainda mantém cerca de dois terços de sua população sem saber ler nem escrever. As lições em vida e o acervo pedagógico legados por Freire não foram, ainda, capazes de derrubarem um muro erguido, secularmente, de vozes silenciadas dos grupos de adultos analfabetos. A manutenção do medo do falar "diferente" no novo modelo de sociedade baseada na comunicação e informação amplia as desigualdades e a aceitação passiva dos processos decisórios pelos grupos submetidos e de pouca escolaridade.

No caso de Barcelona, é preciso dizer que o público que encontrei nas tertúlias literárias eram pessoas alfabetizadas, que assumiam sua palavra, sua opinião, o olhar do outro - até a discórdia. A metodologia adotada possibilitava a participação e a integração de todo o grupo indistintamente. As atividades, planejadas e decididas em conjunto, encorajavam a participação, propiciando as comunicações e a aprendizagem respaldada nos conteúdos dos textos literários discutidos em conjunto. Cervantes, por exemplo, selecionado pela maioria dos participantes antes da minha chegada, inspirou interpretações e comentários sobre o autor, a obra em si e a constatação de que alguns problemas como a violência, o abandono de crianças, a corrupção e as injustiças sociais perpassam a história e o espaço territorial e assumem, de maneira atualizada, novas construções e significados. A identificação e o reconhecimento desses fenômenos e acontecimentos na sociedade moderna propiciava que os grupos identificassem e reconhecessem suas próprias histórias de vida - ou fragmentos delas - elaborando ou re-elaborando novas idéias e propósitos de encaminhamento de vida.

Isso revelava que, naquele lócus, múltiplas inteligências reunidas em torno da  mesa exercitavam, de forma coletiva, suas "inteligências culturais" com base no "dialógo igualitário", estabelecendo uma relação entre a obtenção da informação, o uso da palavra e a capacidade de elaborar idéias (ação comunicativa) presente nas idéias de Habermas e de Freire. (Melo Neto, 2002). As capacidades cognitivas materializadas na pluralidade de vozes e interpretações sobre verdade, justiça e sinceridade, possibilitavam o dialógo e compunham, na sua totalidade, diferentes posturas e visões de mundo. Era através das sínteses conclusivas das idéias primeiras que novas sínteses (idéias) se formavam, compondo a verdade do enunciado. Era essa verdade, que se ia erigindo de forma dialógica, seguindo a lógica do melhor argumento, propiciando o surgimento da significação das coisas, pessoas e relações consensualmente elaboradas e respeitadas, resultantes do diálogo entre o ego e o alter (idem).Esse era o processo da aprendizagem dialógica que se processava em torno da mesa. ( Melo Neto, 2002)

Após as primeiras sessões onde, evidentemente, fui sujeito e objeto de exames,  passei a me sentir mais segura para "compartir as palavras", mesmo quando me expressasse com algumas "dificuldades e hesitação "(Burke, op.cit. p.68) em um idioma que não era o meu. Ao compartilhar as palavras ia adquirindo a sensação de pertença e de integração, apesar da minha condição de estranha e de estrangeira. Essa integração, também, ia me propiciando o surgimento de uma nova identidade, mescla do  antes estabelecido com variedades de coisas novas e estranhas (Baumann, 1992. In: Beck, op.cit.:149).As diferenças continuaram a existir, entretanto, sentia-me igual nas minhas condições de diferente.

Dezembro chegou e eu teria que regressar a meu país, a minha cidade. Em uma fria noite de outono me despedi do grupo. Apesar do clima hostil que pairava fora, o ambiente onde ocorria a tertúlia era cálido e generoso. A despedida, registrada com a doação de um livro de literatura espanhola: El señor y los demás son cuentos de Leopoldo Alas Clarín, contendo dedicatórias carinhosas e com um coro de Vozes entoando uma tradicional canção de despedida, fortaleceu minha convicção sobre a importância das emoções para o estabelecimento dos laços de solidariedade presentes nas relações sociais. Naquele momento, vivenciando confusos sentimentos de tristeza e de alegria, lembrei-me de uma tarde de verão quando, percebendo-me em situação de exclusão e de diferente, sentei-me em torno á mesa, iniciando minha participação nas tertúlias através de Cervantes. Também lembrei da "Canción para Caritó", quando a personagem tema da melodia, na condição de emigrada da província para Buenos Aires, põe em evidencia a solidão em meio da multidão e a necessidade de se sentir reconhecida e identificada entre os demais. Naquele recinto da tertúlia eu, continuando  diferente, já não me sentia anônima nem indeterminada. Não me sentia uma a mais no ritmo febril da grande cidade. Saí da mesa e da sala com uma forte convicção de que havia participado como uma integrante nesse processo de educação de adulto.Sentia que havia adquirindo o reconhecimento e aceitação do grupo e que, igual aos demais adultos, havia tido a oportunidade de vivenciar novas aprendizagens e experiências capazes de validar "os princípios da aprendizagem dialógica" adotados pela tertúlia literária.

 Sai da mesa e fui abraçar a noite colorida pela luzes natalinas. Enquanto me despedia daquela cidade que eu já não considerava estranha, percorrendo ruas e calçadas desertas, ia pensando no livro de Carlos Fuentes: O espelho enterrado - reflexões sobre a Espanha e o Novo Mundo - quando ele menciona que a nossa modernidade mais exigente pede que "abracemos o outro para ampliar as nossas possibilidades humanas, homens e mulheres de outra cultura, outro credo, outra raça". Só através desse reconhecimento de humanidade é possível ouvir a voz de Pablo Neruda dizendo: "Eu estou aqui para contar a história" "(Fuentes, 2001: 356). E toda história, como conclui Michel Ende, "é uma história sem fim"(1989).

2- Em torno da mesa: lições sobre aprendizagem

No final do verão o grupo foi ampliado. Custava acomodar, em uma sala pequena, cerca de 30 pessoas em torno á mesa, para iniciar a leitura do livro: A Árvore da Ciência, uma obra do início do século XX , do escritor espanhol Pio Baroja.

            Os participantes da tertúlia, em sua maioria, haviam migrado do sul da Espanha quando jovem e, após mais de 30 anos trabalhando como operários/as, vendedores ambulantes, ferroviários, motoristas ou como donas de casa se haviam se aposentado e regressado á escola. A despeito da pouca escolaridade e familiaridade com a educação formal acadêmica, interpretavam e discutiam obras literárias clássicas de forma espontânea e autodidata. A vida cotidiana, condição mais concreta de vivências, servia como objeto de debates e de diálogos, propiciando aprofundar temas polêmicos  sobre as  histórias de vida individuais ou familiares. A opressão da mulher, os preconceitos, a exploração do indivíduo, a violência, a migração, o abandono da infância e do velho, o desemprego, as desigualdades étnicas e sociais, a solidão e a condição humana eram objeto de recordação, de concordância ou de discordância, sempre articulado ao eixo do dialógo. Na dimensão cotidiana das histórias de vida reveladas o grupo exercia a prática de pensar e discutir, coletivamente, acontecimentos da vida social, construindo interações sociais e representações sobre o significado da obtenção e manutenção de valores envolvendo os direitos e os deveres: os valores da "satisfação das necessidades e da manutenção da liberdade" (Sen, 2004: 16-18). Era o cotidiano que propiciava maior visibilidade sobre as condições sociais de existência dos participantes. Os diálogos, construídos por diferentes vozes, tendo como referências primeiras de análises trechos dos livros de literatura  selecionados,  possibilitavam estabelecer referências, comparações e interpretações das condições de vida e de trabalho vividos em diferentes espaços e tempos e se situar, se questionar, se encontrar: 

"Durante 30 anos, todos os dias eu ia para a fabrica operar a mesma máquina deforma mecânica. Ninguém se preocupava em saber se eu era inteligente. Para fazer aquilo não precisava ser inteligente.  Ninguém queria saber o que eu estava sentido se eu era capaz de fazer outra coisa, quais eram os meus sentimentos, se era feliz. Como eu não tinha muitos estudos os meus superiores me faziam acreditar que eu não era inteligente. Eu achava que não era inteligente".( uma participante)

O mundo consiste em realidades múltiplas ou que aparenta ser  uma mesma realidade pode ter múltiplos sentidos. Nos processos de busca e de aquisição de conhecimento sobre si mesmo e sobre a realidade, os seres humanos lançam mãos das representações ou imagens que lhes possibilitem esse conhecer. Nessa busca, a realidade da vida cotidiana - estruturada tanto espacial como temporalmente - é a que se apresenta como suprema e natural, onipresente. A estrutura espacial da realidade da vida cotidiana, como explica Gonzáles, tem como centro o eixo da experiência e da interação com o outro. Na perspectiva temporal, cada pessoa tem seu próprio tempo e o tempo que comparte com o outro. "La temporalidad compartida determina nuestra historicidad, lo que nos hace ser de una época dada, de un momento histórico particular" (Gonzáles, 2000:114-5).

      Mas a descrição do cotidiano e as suas representações eram apenas uma das tantas formas de condução do processo de aprendizagem. "Os diálogos igualitários" incluíam informações e aprendizagem sobre diferentes perspectivas filosóficas, sociológicas, pedagógicas ou biológicas. A leitura da obra de Pio Baroja, por exemplo, oportunizou informações e debates sobre a obra específica daquele literato e sobre pensadores como  Kant, Nietzsche, Schopenhauer e Darwin, presentes na sua obra. Ao mesmo tempo em que se discutia a influência desses pensadores na formação daquele autor, também se discutia sobre a influência das suas idéias nos movimentos políticos, filosóficos e ideológicos do século XX.

A teoria evolucionista de Darwin, por exemplo, debatida e compreendida como uma postura científica que ajuda a justificar e legitimar as diferenças sociais e étnicas, foi objeto de crítica e repúdio por contribuir, segundo o grupo, para manter e ampliar a discriminação e injustiça social:

"Não se pode aceitar as diferenças de classes e as discriminações sociais como algo normal ou como resultante de um processo seletivo.natural. Aceitar esta teoria é justificar a manutenção das injustiças sociais e banalizar a exploração do homem pelo homem, conservando e ampliando a ignorância e a servidão humana". (um participante)

         As idéias de Schopenhauer presentes em um capítulo do livro: A árvore da ciência de Baroja, serviram ao grupo para refletir sobre o significado do mundo, das suas representação e das condições gerais de suas possibilidades humanas; serviram para pensar  na relação existência, espaço, tempo e causalidade, provocando o surgimento de questões que colocavam o sentido do "eu" na dimensão da  circunstância histórica:  

  "Quando passo pela av. Diagonal[5] e olho aquela avenida enorme e cheia de prédios, trânsito e pessoas, penso no tempo, no meu tempo, na mortalidade e no significado da vida. Olho para as pessoas caminhando e reflito sobre o tempo passado, o presente e o futuro. Olhando para os prédios vejo que eles estão lá há séculos e ficarão por muito tempo mais. Penso que, daqui a uns anos, meses, dias ou minutos, eu já não estarei compondo a história e o quadro da rua... Mas a rua e os prédios ainda continuarão resistindo ao tempo. Outras pessoas, passarão pela Diagonal e olharão para os edifícios históricos, como eu estou olhando agora, integrando a história presente do movimento  da rua. Um dia eu terei desaparecido e a minha existência terá perdido o sentido". (uma participante)

Reflexões sobre "meu eu" em sua relação com a dimensão temporal conduzia ao pensamento de Ortega y Gasset sobre o sentido e o significado da vida humana nas possibilidades imprecisas e históricas do futuro.  Nos exames da vida em processos  emergiam os princípios da  aprendizagem dialógica. Ao redor da mesa os/as  participantes se permitiam, sem temores ou inibições exporem os seus desejos, necessidades,  esperanças e  sonhos. Eram a tertulias, verdadeiras comunidades dialógicas de aprendizagem, [6]que todos nós tínhamos a oportunidade de ampliar nossos conhecimentos sobre literatos, pensadores, educadores e, também, de estabelecer laços de sociabilidades e de solidariedade. Nesses processos de interação as pessoas iam aprendendo e ensinando, aplicando na prática, os significados de conceitos que envolviam a relevância da cidadania e da liberdade. Uma liberdade como um modo de ser; capaz de definir parte do seu próprio destino, tornando-se a história de um/a, eu mês/a. Era nesse processo educativo, que misturava a interação subjetiva com o processo de comunicação, aonde os participantes iam elaborando os significados de suas vidas e desenvolvendo ações de emancipação, materializando as idéias de Freire e de Habermans.

Os mecanismos de intercâmbio de informação e de relatos, um dos elementos dinâmicos do processo da aprendizagem dialogada, ajudavam a responder questões como: quem somos e o que queremos; e a perceber e analisar situações que diziam respeito a cada  um em particular, na busca de sua superação:

"Trabalhei 30 anos em uma fábrica para ajudar nas despesas de casa e criar meu filho. Acordava todos os dias ás 4 da manhã, fazia comida e chegava á noite do trabalho na fábrica para arrumar as coisas. Agora que eu estou aposentada, viúva, que tenho mais de 70 anos, meu filho não queria me permitir que eu estudasse: que freqüentasse a Escola la Verneda. Ele queria que eu ficasse em casa sem ter direito de sair. Como uma prisioneira sem ter liberdade. Mas eu disse que ele não ia me prender em casa. Isso não". (uma participante)

A possibilidade da pessoa perceber o mundo e de desenvolver ações de transformação pelo uso da comunicação e do dialógo coletivo faz pensar em termos de redes: rede de solidariedade e de apoio, de criação e de emancipação. A leitura e interpretação dos textos escritos selecionados propiciavam emergir novos textos orais -composição de histórias de vida - produto do conjunto das opiniões, idéias, reminiscências e posicionamentos: a "criação de sentido" da aprendizagem dialógica. Era através do princípio da capacidade dialógica que as pessoas iam procurando respostas para as inquietações e as opções de vida: para as buscas do prazer e as satisfações individuais:

        "Para mim é uma alegria e um privilégio poder participar das tertúlias literárias. A emoção que sinto em participar desse grupo, ler os livros, aprender novos ensinamentos, crescer intelectualmente, ter condições de melhor refletir sobre o mundo, a vida, minha condição de ser humano e de mulher me enche de emoção. Para mim, independência e emancipação é isso. Você poder crescer intelectualmente e ser responsável por suas decisões e opções". (uma participante)

     Os diálogos reflexivos, presentes na obra de Paulo Freire e estabelecidos nas tertúlias, provocavam mais aprendizagem e mais solidariedade entre os/as participantes. Verdadeiras "comunidades de aprendizagens", as tertúlias permitiam aos participantes não apenas a interação, a comunicação, o diálogo igualitário e a construção de significados. Elas abriam as possibilidades de que pessoas adultas e de pouca escolaridade pudessem ampliar sua maneira de ser e de viver o processo educacional como um componente natural da vida cotidiana, com mais instrumentos para intervir e atuar na busca da satisfação das necessidades e  aquisição e crescimento de espaços de liberdade.

3 -Em torno da mesa: iguais e diferentes aprendem juntos

             O Ministério de Educação e Cultura da Espanha anuncia em suas publicações oficiais[7] que a finalidade da Educação de Adultos é o desenvolvimento integral da pessoa e a viabilização da democratização através da igualdade de oportunidades, independentemente da idade da pessoa. (Sarrate, 1997, In:.MEC, Las desigualdades sociais em Espanha II, 83).

No ano de 1997 a população espanhola maior de 16 anos, idade considerada adulta para aquele país, apresentava um contingente de 32.320,0 pessoas, das quais 3,72% eram consideradas analfabetas, 13,56% não tinham qualquer estudo e 31,15% (10.068,1) possuíam apenas estudos primários.

Essa situação quando apresentada por idade e sexo mostrava que na categoria dos adultos com mais de 50 anos, três entre dez homens são analfabetos ou necessitam de estudos e, no caso das mulheres, o contingente é de cerca de quatro analfabetas para um grupo de dez mulheres. O documento ainda assinala que quase a metade dessa população maior de 50 anos cursou apenas estudos primários,  motivo porque muitas dessas pessoas, se não estão aposentadas, enfrentam inúmeros problemas e dificuldades para conservar ou adquirir novos empregos devido ás atuais exigências do setor produtivo e á rápida evolução das tecnologias de informação e comunicação.

As características dos participantes da tertúlia eram semelhantes. Além da pouca escolaridade formal, muitos  haviam migrado de regiões pobres da Espanha, pertenciam a etnias discriminadas (os ciganos) e eram do sexo feminino. Assim este grupo, também, era vulnerável aos efeitos perversos da exclusão ou da discriminação, inclusive familiar. (Flecha, 2003:130). Para enfrentar a exclusão, havia necessidade de transformar as informações e os conhecimentos recebidos em saberes, ajudando-os a redefinir sua responsabilidade e ação e modificar a própria prática sociocultural. (Matusov, 1998, p.326.,In: Daniels, 2003, p.56) Esse é o objetivo da tertúlia e o próprio objeto da ação educativa: a aprendizagem.

Como objeto e sujeito do processo educativo da tertúlia costumava me indagar sobre o ato de aprender e sobre  os mecanismos que possibilitam a passagem da aquisição da informação para o conhecimento e deste para o saber, possibilitando a transformação. Tenho clareza que não fui capaz obter uma resposta que me possibilitasse romper com o conhecimento sensível, produto da minha própria experiência cotidiana, assistemática e experimental e chegar ao estágio do conhecimento científico produto da "apropriação teórica das determinações do real" (Fialho, 1986, p. 119). Entretanto, também penso, concordando com Berger e Luckmann (1994), que a realidade social não é mais do que uma construção composta de significados subjetivos e fatos objetivos. O meu envolvimento  direto no processo educativo da tertúlia marcava a construção de seu significado tanto na perspectiva da objetividade da prática educativa em processo como das percepções  subjetivas advindas da socialização estabelecida em torno daquela mesa.

Olhando para aquelas pessoas que meses após meses, anos após anos, se juntavam  para vivenciarem, através de uma produção colaborativa, as histórias dos livros que liam, para contarem histórias das suas vidas e histórias dos seus cotidianos, não tive dúvida da existência de uma aprendizagem que se adequava ás novas exigências de um mundo em transformação, marcado por profundas modificações sociais, avanços tecnológicos e novos padrões de comunicação. Como entende Gonzaga (2003, p.45), á luz das idéias de Freire, os "oprimidos" necessitam recriar sua existência com os recursos e os materiais que a própria vida lhes ofereceu. Os caminhos se ampliam (o método) quando as descobertas são significativas para o aprendiz, quando, através da aquisição de novas informações, conhecimentos e saberes, encontrem alternativas para a preservação e a constante recriação da vida e tornam-se capazes de superar os obstáculos que impedem a aprendizagem e as mudanças.     

Acredito que a tertúlia, caracterizada como um espaço de trocas e de diálogos com os iguais e os diferentes - homens e mulheres trazendo consigo distintas histórias de vidas, pessoas portadoras de um maior acervo cultural através da universidade, pessoas de distintas etnias e nacionalidades [8]- possibilitava a pluralidade de informação e o reconhecimento da existência de múltiplos e importantes saberes independentemente de serem produzidos pela "cultura socialmente válida". Assim os princípios da aprendizagem dialógica: diálogos igualitários, inteligência cultural, transformação, dimensão instrumental, criação de sentido, solidariedade, e igualdade na diferença, aplicados nos procedimentos metodológicos da tertúlia, iam se revelando e abrindo espaços para que  os iguais - detentores de características homogêneas - e os diferentes - portadores de diversidades heterogêneas - participassem da aprendizagem do "vivir juntos em una verdadera igualdad que incluye el derecho de cada persona a vivir de forma diferente" ( Elboj e outros, op.cit., p.130).

Mas, havia o cuidado dos gestores da  Escuela La Verneda [9] de incluir no elenco do seu processo pedagógico as aulas de formação inicial, em alfabetização, pós-alfabetização e certificados; o ensino secundário; as aulas preparatórias ao acesso á universidade aos maiores de 25 anos; o curso de acesso ao grau superior, os cursos de formação ocupacional e as oficinas culturais; o espaço informatizado Punto Ôminia, para o ensino de tecnologias de informação e comunicação e as oficinas culturais contendo dança, artesanato, poesia, teatro, pintura; nas oficinas de língua: espanhol oral, catalão oral, inglês, galego, português, francês e árabe. Nestas atividades incluíam-se as Tertúlias literárias. Haviam ainda atividades relacionadas com os processos organizativos: organizar festas promovidas pela comunidade ou pela própria Escola e congressos nacionais de tertúlias literárias - coordenado pela Confederação de Federações e Associações de Participantes em Educação e Cultura Democrática de Pessoas Adultas da Espanha (CONFAPEA) e realizados bienalmente em Madri. Todas essas atividades propiciam ao adulto complementar a sua aprendizagem, considerando que a construção do atual processo de aprendizagem requer uma ampla formação capaz de amenizar os processos excludentes e desintegradores, fortalecidos pela sociedade da informação.

Os princípios de aprendizagem dialógica que incorporam o fazer, as descobertas e o  aperfeiçoamento das práticas sociais coletivas na busca de alternativas de transformação social (familiar, comunitária) e de superação da situação de exclusão, buscam simultaneamente, a superação do medo decorrente da falta de praticas habituais de falar em público ou do enfrentamento. A práxis da organização e da mobilização política, presentes nas atividades de "extensão" da tertúlia, tentava o rompimento desse medo através das diferentes comissões de representações: defesa do meio ambiente, defesa da condição da mulher, a luta pela paz, a luta em favor do respeito a diversidade cultural ou  étnica ou de uma melhor educação ás crianças ou adultos, ampliavam as aprendizagens sobre o atual sentido da justiça social, da tolerância e da solidariedade, valores reafirmados no conjunto das propostas para o exercício democráticos do século XXI. (Beck, Gidderns y Lash, 1997).

O estabelecimento dessas ações evidencia a relação entre os conceitos e os princípios da aprendizagem dialógica - presentes na concepção e na operacionalização das tertúlias literárias - e o alcance da sua aplicação prática manifestada nos processos educativos. Através da reflexão sobre o sentido e significado da vida, de suas vidas, das vidas dos seus amigos e familiares, da vida dos personagens dos livros que liam, os adultos iam efetivando "experiências de criação e recriação da própria vida"" (Freire, In; Gonzaga, 2002, p.32), produzindo e aplicando conhecimentos e saberes.

Por tudo isso, acredito que a proposta teórico-metodologica da tertúlia literária em aplicação na Escuela de Adulto La Verneda de Sant-Martí, Barcelona- Espanha propicia que pessoas adultas com características e histórias de vidas semelhantes e diferentes combinem interesses e objetivos particulares e universais (Velho,1999: 18) para, em conjunto, transformarem experiências (projeto individual), vividas e percebidas, em respostas coletivas (projetos sociais) que lhes possibilitem a construção - para si e para o outro - de um campo de possibilidades na superação de situações de desigualdade social e educativa.

Foi durante essa experiência de aprendizagem processada de forma dialógica e coletiva que senti de perto a materialização das idéias de Freire sobre o "legado humano". Convivendo com essas pessoas e escutando suas histórias pude aprimorar minha percepção sobre o lado humano, terno e generoso dos participantes, sua disponibilidade para se comover e se solidarizar.

Para Torres, o legado humano, terno e generoso que a obra de Freire retrata talvez seja o maior aprendizado, muito maior e mais duradouro do que uma teoria educativa e qualquer método de alfabetização possam ser. (Torrres, In: Freire, A .M., 2201. p.242). Para mim, as tertúlias literárias me permitiram uma oportunidade de integração, de inclusão e de aprendizagem. Penso que sua dimensão educativa acompanhará a todos nós que fomos buscar, através da literatura e da convivência, uma forma de aprendizagem e de possibilidades de mudanças. Uma aprendizagem, sobretudo, da aceitação "do humano pelo humano", do conviver e do respeitar o outro em situação de igualdade, mesmo sendo diferente.

 

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Autor:

Emilia Maria da Trindade Prestes

prestesemilia[arroba]yahoo.com.br

Professora da UFPB/PPGE/CAPES/CNPq



[1] O nome Tertúlia Literária era a denominação dada aos encontros e conversações de intelectuais espanhóis, geralmente celebrados em cafés tradicionais.Surgida no ano de 1978, na Escola de Educação de Pessoas Adultas de La Verneda de Sant-Martí, em Barcelona, Espanha, como uma atividade cultural e educativa através da leitura  dos clássicos da literatura universal, esta atividade adquire ao longo da sua implantação um sentido de  superação da exclusão social. A dinâmica está baseada no diálogo, que é gerador de aprendizagem. Conf. Flecha, Ramón,  2003. Existe, atualmente, um projeto coordenado pela CONFAPEA -Confederació de federacions i associacions de participants en educació i cultura democrática de persones adultes democrática.. chamado "Mil e uma Tertúlias", sendo desenvolvido através de ?associações, universidades, grupos de mulheres, movimentos sociais, escolas de educação de adultos, associações multiculturais, etc., em  diferentes em estados, cidades e bairros da Espanha e em outros países do mundo (inclusive Brasil, na Universidade de São Carlos).

2- .Considera-se  Aprendizagem dialógica como o " resultado das interações que produz o dialógo igualitário, ou seja, um dialógo em que diferentes pessoas aportam argumentos em condições de igualdade, para chegar ao consenso, partindo do que se quer comunicar e falando sem pretensões de validez".  (     )

[3] Segundo Bonneti, citando Vicent Gaulejac  et alii, 1994,  a exclusão social pode ser  vista como processo resultante de mutação tecnológica, social e cultural. A exclusão social está relacionada á luta pelo espaço na sociedade e ocorre entre indivíduos e instituições ou organizações sociais. O individuo, á medida que perde a identidade, o espaço social, é também um excluído.  (2000: 28-29).

[4] A Escuela de Personas Adultas de La Verneda-Sant Marti, foi fundada nos ano de 1978 através de iniciativas de s da população  no bairro de  Sant Martí  - bairro operário circunscrito á cidade de Barcelona. Um grupo de cerca de 20 vizinhos  pretendia, entre outras coisas, obter um espaço para os que não sabiam ler e escrever e garantir-lhes, assim, acesso á educação. A ocupação pelo grupo de um prédio vazio, no qual funcionava a extinta seção feminina do regime franquista, possibilitou a criação de um centro cívico comunitário, com uma creche, uma biblioteca, um lugar para jovens e para aposentados e a sonhada escola de adultos. No decorrer de 20 anos, os participantes da Escuela de La Verneda, em conjunto com outros movimentos dos  moradores do bairro, conseguiram transformações comunitárias de natureza urbanística e cultural.  

[5]  A av. Diagonal, localizada na cidade de Barcelona, é uma das principais vias de acesso urbano cortando a cidade do norte ao sul

[6] Na Espanha, as Comunidades de Aprendizagens são entedidas como centros educativos do ensino primário e secundário que abrem suas portas aos membros da comunidade na busca  coletiva de  respostas igualitárias a partir da perspectiva da educação para os desafios da   nova sociedade que chamamos da  informação,  do  conhecimento,  ou  do  risco.

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[7] Ministerio de Educación y Cultura. Centro de Investigación y Documentación Educativa. Las Desigualdades de la Educación en España, II. Área de Estudios e Investigación. CIDE. 1999

[8] Nas atividades de educação de adultos  predominam as alunos da "terceira idade", denominados na Espanha como "mayores", mulheres na maior parte. Dentre os participantes, uma parcela significativa é de imigrantes: em 2002, havia 273 participantes da escola originários de 47 países, inclusive 15 brasileiros.

[9] Existe um processo de participação e autogestão, onde as decisões são tomadas no coletivo, em espaços deliberativos como a COME-Coordenação Mensal e as assembléias gerais. Duas associações sem fim lucrativo, ÁGORA e HEURA , criadas pelos participantes, gestionam a escola. O trabalho é divivido entre todos participantes, através de diversas comissões de trabalho, desde de infra-estrutura até culturais. Existe plena liberdade de opinião, cada um e todos tem coisas para ensinar e aprender. Cerca de 120 pessoas dos mais diferentes lugares e formação, trabalham como voluntários na escola.



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